O QUE É A FILOSOFIA?
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oferece da ciência uma má caricatura: Paul Klee tem certamente uma visão mais correta quando diz que<br />
consagrando-se ao funcional a matemática e a física tomam por objeto a própria formação, e não a forma<br />
acabada(13). Muito mais, quando se comparam as multiplicidades filosóficas e as multiplicidades científicas,<br />
as multiplicidades conceituais e as multiplicidades funcionais, pode ser sumário demais definir estas últimas<br />
por conjuntos. Os conjuntos, já vimos, só têm interesse como atualização do limite; eles dependem das<br />
funções e não o contrário, e a função é o verdadeiro objeto da ciência.<br />
Em primeiro lugar, as funções são funções de estados de coisas, e constituem, então, proposições<br />
científicas, como primeiro tipo de prospectos: seus argumentos são variáveis independentes, sobre as quais<br />
se exercem operações de coordenação e potencializações, que determinam suas relações necessárias. Em<br />
segundo lugar, as funções são funções de coisas, objetos ou corpos individuados, que constituem pro-<br />
(12) Cf. Whitehead, Process and Reality, Free Press, p. 22-26.<br />
(13) Klee, Théorie de l'art moderne, Ed. Gonthier, p. 48-49.<br />
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posições lógicas: seus argumentos são termos singulares, tomados como átomos lógicos independentes,<br />
sobre os quais se exercem descrições (estado de coisas lógico) que determinam seus predicados. Em<br />
terceiro lugar, as funções de vivido têm, como argumentos, percepções e afecções, e constituem opiniões<br />
(doxa, como terceiro tipo de prospecto): temos opiniões sobre qualquer coisa que percebemos ou que nos<br />
afeta, a ponto de as ciências do homem poderem ser consideradas como uma vasta doxologia — mas as<br />
coisas mesmas são opiniões genéricas, na medida em que têm percepções e afecções moleculares, no<br />
sentido em que o organismo mais elementar tem uma proto-opinião sobre a água, o carbono e os sais de que<br />
dependem seu estado e sua potência. Essa é a via que desce do virtual aos estados de coisas e às outras<br />
atualidades: não encontramos conceito nesta via, mas funções. A ciência desce da virtualidade caótica aos<br />
estados de coisas e corpos que a atualizam; todavia, ela é menos inspirada pela preocupação de se unificar<br />
num sistema atual ordenado, do que por um desejo de não se afastar demais do caos, de escavar os<br />
potenciais para apreender e domesticar uma parte do que a impregna, o segredo do caos por detrás dela, a<br />
pressão do virtual(14).<br />
Ora, se remontamos a linha na direção contrária, se vamos dos estados de coisas ao virtual, não se<br />
trata da mesma linha, porque não é o mesmo virtual (podemos, pois, também descê-la, sem que ela se<br />
confunda com a precedente). O virtual não mais é a virtualidade caótica, mas a virtualidade tornada<br />
consistente, entidade que se forma sobre um plano de imanência que corta o caos. <strong>É</strong> o que se chama o<br />
Acontecimento, ou a parte do que escapa à sua própria atualização<br />
(14) A ciência não sente somente a necessidade de ordenar o caos, mas de vê-lo, de tocá-lo, de fazê-lo: cf.<br />
James Gleick, La théorie du chãos, Ed. Albin Michel. Gilles Châtelet mostra como a matemática e a física<br />
tentam reter algo de uma esfera do virtual: Les enjeux du mobile, a sair.<br />
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tempo, é devir. O entre-tempo, o acontecimento, é sempre um tempo morto, lá onde nada se passa, uma<br />
espera infinita que já passou infinitamente, espera e reserva. Este tempo morto não sucede ao que acontece,<br />
coexiste com o instante ou o tempo do acidente, mas como a imensidade do tempo vazio, em que o vemos<br />
ainda por vir e já chegado, na estranha indiferença de uma intuição intelectual. Todos os entre-tempos se<br />
superpõem, enquanto que os tempos se sucedem. Em cada acontecimento, há muitos componentes<br />
heterogêneos, sempre simultâneos, já que são cada um um entre-tempo, todos no entre-tempo que os faz<br />
comunicar por zonas de indiscernibilidade, de indecidibilidade: são variações, modulações, intermezzi,<br />
singularidades de uma nova ordem infinita. Cada componente de acontecimento se atualiza ou se efetua num<br />
instante, e o acontecimento, no tempo que passa entre estes instantes; mas nada se passa na virtualidade,<br />
que só tem entre-tempos como componentes, e um acontecimento como devir composto. Nada se passa aí,<br />
mas tudo se torna, de tal maneira que o acontecimento tem o privilégio de recomeçar quando o tempo<br />
passou(17). Nada se passa, e todavia tudo muda, porque o devir não pára de repassar por seus<br />
componentes e de conduzir o acontecimento que se atualiza alhures, a um outro momento. Quando o tempo<br />
passa e leva o instante, há sempre um entre-tempo para trazer o acontecimento. <strong>É</strong> um conceito que apreende<br />
o acontecimento, seu devir, suas variações inseparáveis, ao passo que uma função apreende um estado de<br />
coisas, um tempo e variáveis, com suas relações segundo o tempo. O conceito tem uma potência de<br />
repetição, que se distingue da potência discursiva da função.<br />
(17) Sobre o entre-tempo, conferir a um artigo muito intenso de Groethuysen, "De quelques aspects du<br />
temps", Recberches philosophiques, V, 1935-1936: "Todo acontecimento está, por assim dizer, no tempo em<br />
que nada se passa...". Toda a obra romanesca de Lernet-Holonia se passa em entre-tempos.