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O QUE É A FILOSOFIA?

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outro (exo e endo-referência). Nós destacamos uma qualidade suposta comum a vários objetos que<br />

percebemos, e uma afecção suposta comum a vários sujeitos que a experimentam e apreendem conosco<br />

esta qualidade. A opinião é á regra de correspondência de uma a outra, é uma função ou uma proposição<br />

cujos argumentos são percepções e afecções e, nesse sentido, função do vivido. Por exemplo, apreendemos<br />

uma qualidade perceptiva comum aos gatos, ou aos cães, e um certo sentimento que nos faz amar, ou odiar,<br />

uns ou outros: para um grupo de objetos, pode-se extrair muitas qualidades diversas, e formar muitos grupos<br />

de sujeitos muito diferentes, atrativos ou repulsivos ("sociedade" dos que amam os gatos, ou dos que os<br />

detestam...), de modo que as opiniões são essencialmente o objeto de uma luta ou de uma troca. <strong>É</strong> a<br />

concepção popular democrática ocidental da filosofia, onde esta se propõe a oferecer agradáveis ou<br />

agressivas conversações de jantar com M. Rorthy. Opiniões rivalizam na mesa do banquete: não é a Atenas<br />

eterna, nossa maneira de ser ainda gregos? As três características que remetiam a filosofia à<br />

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cidade grega eram precisamente a sociedade de amigos, a mesa da imanência e as opiniões que se<br />

enfrentavam. Objetar-se-á que os filósofos gregos não cessaram de denunciar a doxa, e de lhe opor uma<br />

episteme, como único saber adequado à filosofia. Mas é um negócio complicado, e os filósofos, sendo<br />

amigos e não sábios, têm bastante dificuldade em abandonar a doxa.<br />

A doxa é um tipo de proposição que se apresenta da seguinte maneira: sendo dada uma situação<br />

vivida perceptiva-afetiva (por exemplo, traz-se queijo à mesa do banquete), alguém extrai dele uma qualidade<br />

pura (por exemplo, mau cheiro); mas ao mesmo tempo que abstrai a qualidade, ele mesmo se identifica com<br />

um sujeito genérico, experimentando uma afecção comum (a sociedade daqueles que detestam o queijo —<br />

rivalizando assim com aqueles que o adoram, o mais das vezes em função de uma outra qualidade). A<br />

"discussão" versa, pois, sobre a escolha da qualidade perceptiva abstrata, e sobre a potência do sujeito<br />

genérico afetado. Por exemplo, detestar o queijo, é privar-se de ser um bon vivantí Mas "bon vivant" é uma<br />

afecção genericamente invejável? Não é necessário dizer que os que adoram o queijo, e todos os bons<br />

vivants, eles mesmos cheiram mal? A menos que sejam os inimigos do queijo que cheiram mal. <strong>É</strong> como a<br />

história que contava Hegel, a vendedora a quem se disse: "Seus ovos estão podres, velha", e que responde:<br />

"Podre é você, sua mãe, sua avó": a opinião é um pensamento abstrato, e a injúria desempenha um papel<br />

eficaz nesta abstração, porque a opinião exprime funções gerais de estados particulares(8). A opinião retira<br />

da percepção uma qualidade abstrata e da afecção uma potência geral: toda opinião já é política neste<br />

sentido. <strong>É</strong> por isso que tantas discus-<br />

(8) Sobre o pensamento abstrato e o juízo popular, cf. o texto curto de Hegel, Quem pensa abstrato?<br />

(Sámtliche Werke, XX, p. 445-450).<br />

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soes podem se enunciar assim: "eu, enquanto homem, considero que todas as mulheres são infiéis", "eu,<br />

enquanto mulher, penso que todos os homens são mentirosos".<br />

A opinião é um pensamento que se molda estreitamente sobre a forma da recognição: recognição de<br />

uma qualidade na percepção (contemplação), recognição de um grupo na afecção (reflexão), recognição de<br />

um rival na possibilidade de outros grupos e outras qualidades (comunicação). Ela dá à recognição do<br />

verdadeiro uma extensão e critérios que são, por natureza, os de uma "ortodoxia": será verdadeira uma<br />

opinião que coincida com a do grupo ao qual se pertencerá ao enunciá-la. Vê-se bem isso em certos<br />

concursos: você deve dizer sua opinião, mas você "ganha" (você disse a verdade) se você disse a mesma<br />

coisa que a maioria dos que participam desse concurso. A opinião, em sua essência, é vontade de maioria, e<br />

já fala em nome de uma maioria. Mesmo o homem do "paradoxo" só se exprime com tantas piscadelas, e<br />

tanta bobagem segura de si, porque pretende exprimir a opinião secreta de todo mundo, e ser o porta-voz do<br />

que os outros não ousam dizer. Mas este é apenas o primeiro passo no reino da opinião: esta triunfa quando<br />

a qualidade retida deixa de ser a condição da constituição de um grupo, quando não é mais do que a imagem<br />

ou a "marca" do grupo constituído, que determina ele mesmo o modelo perceptivo e afetivo, a qualidade e a<br />

afecção, que cada um deve adquirir. Então, o marketing aparece como o próprio conceito: "nós, os<br />

conceituadores...". Estamos na idade da comunicação, mas qualquer alma bem nascida foge e se esquiva,<br />

cada vez que lhe é proposta uma pequena discussão, um colóquio, uma simples conversa. Em toda<br />

conversa, é sempre do destino da filosofia que se trata, e muitas discussões filosóficas, enquanto tais, não<br />

vão mais longe do que aquela sobre o queijo, com suas injúrias e confrontos de concepções do mundo. A<br />

filosofia da comunicação se<br />

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esgota na procura de uma opinião universal liberal como consenso, sob o qual encontramos as percepções e<br />

afecções cínicas do capitalista em pessoa.

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