O QUE É A FILOSOFIA?
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coisas, seja a coisas, seja a outras proposições: é fatal que a redução do conceito à função o prive de todos<br />
seus caráteres próprios, que remetem a uma outra dimensão.<br />
Os atos de referência são movimentos finitos do pensamento, pelos quais a ciência constitui ou<br />
modifica estados de coisas e de corpos. Pode-se dizer, também, que o homem histórico opera tais<br />
modificações, mas em condições que são as do vivido, em que os functivos são substituídos por percepções,<br />
afecções e ações. Não ocorre o mesmo com a lógica: como ela considera a referência vazia nela mesma,<br />
como simples valor de verdade, só pode aplicá-la a estados de coisas ou a corpos já constituídos, seja nas<br />
proposições adquiridas da ciência, seja nas proposições de fato (Napoleão é o vencido de Waterloo), seja em<br />
simples opiniões ("X acredita que..."). Todos esses tipos de proposições são prospectos, com valor de<br />
informação. A lógica tem pois um paradigma,<br />
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ela é mesmo o terceiro caso de paradigma, que não é mais o da religião nem da ciência, e que é como que a<br />
recognição do verdadeiro nos prospectos ou nas proposições informativas. A expressão técnica<br />
"metamatemática" mostra bem a passagem do enunciado científico à proposição lógica, sob uma forma de<br />
recognição. <strong>É</strong> a projeção deste paradigma que faz que os conceitos lógicos não sejam, por sua vez, senão<br />
figuras, e que a lógica seja uma ideografia. A lógica das proposições precisa de um método de projeção, e o<br />
próprio teorema de Gõdel inventa um modelo projetivo(3). <strong>É</strong> como uma deformação regrada, oblíqua, da<br />
referência com relação a seu estatuto científico. A lógica tem o ar de se debater eternamente na questão<br />
complexa de sua diferença com a psicologia; todavia, é-lhe concedido facilmente que ela erige, em modelo,<br />
uma imagem de direito do pensamento, que não é de maneira alguma psicológica (sem por isso ser<br />
normativa). A questão reside antes no valor desta imagem de direito, e no que ela pretende nos ensinar sobre<br />
os mecanismos de um pensamento puro.<br />
De todos os movimentos, mesmo finitos, do pensamento, a forma da recognição é certamente a que<br />
vai o menos longe, a mais pobre e a mais infantil. Em todos os tempos a filosofia correu este perigo, que<br />
consiste em medir o pensamento com ocorrências tão desinteressantes quanto dizer "bom dia, Teodoro",<br />
quando é Teeteto que passa; a imagem clássica do pensamento não está ao abrigo destas aventuras que se<br />
devem à recognição do verdadeiro. Ter-se-á dificuldade em acreditar que os problemas do pensamento, tanto<br />
em ciência como em filosofia, tenham a ver com tais casos: um problema, enquanto criação de pensamento,<br />
nada tem a ver com uma interrogação, que não é senão uma proposi-<br />
(3) Sobre a projeção e o método de Gõdel, Nagel e Newman, Le théo-reme de Gòdel, Ed. du Seuil, p. 61-69.<br />
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ção suspensa, o pálido duplo de uma afirmativa que se supõe servir-lhe de resposta ("qual é o autor de<br />
Waverley}", "Scott é o autor de Waverley?") A lógica é sempre vencida por si mesma, isto é, pela<br />
insignificância dos casos de que se alimenta. Em seu desejo de suplantar a filosofia, a lógica desliga a<br />
proposição de todas suas dimensões psicológicas, mas não deixa de conservar o conjunto dos postulados<br />
que limitava e submetia o pensamento às coerções de uma recognição do verdadeiro na proposição(4). E<br />
quando a lógica se aventura num cálculo de problemas, é decalcando o cálculo de proposições, em<br />
isomorfismo com ele. Dir-se-ia menos um jogo de xadrez ou de linguagem, que um jogo de questões para<br />
programas de televisão. Mas os problemas não são jamais proposicionais.<br />
Ao invés de um encadeamento de proposições, valeria mais a pena revelar o fluxo do monólogo<br />
interior, ou as estranhas bifurcações da conversação mais ordinária, desligan-do-as, também elas, de suas<br />
aderências psicológicas e sociológicas, para poder mostrar como o pensamento, como tal, produz algo de<br />
interessante, quando acede ao movimento infinito que o libera do verdadeiro como paradigma suposto e<br />
reconquista um poder imanente de criação. Mas, para isto, seria necessário que o pensamento fosse até o<br />
interior dos estados de coisas ou dos corpos científicos em vias de constituição, a fim de penetrar na<br />
consistência, isto é, na esfera do virtual, que nada faz senão atualizar-se neles. Seria preciso subir de novo o<br />
caminho que a ciência desce, e em baixo do qual a lógica instala seus campos. (O mesmo vale para a<br />
História, em que é preciso atingir a névoa não-histó-<br />
(4) Sobre a concepção da proposição interrogativa por Frege, "Recherches logiques" (Ecrits logiques et<br />
philosophiques, p. 175). O mesmo vale para os três elementos: a captação do pensamento ou o ato de<br />
pensar; a recognição da verdade de um pensamento, ou o juízo; a manifestação do juízo ou a afirmação. E<br />
Russell, Príncipes de Ia mathématique, § 477.<br />
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rica que ultrapassa os fatores atuais em proveito de uma criação de novidade.) Mas esta esfera do virtual,<br />
este Pensamento-Natureza, é o que a lógica só é capaz de mostrar, segundo uma frase famosa, sem poder