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O QUE É A FILOSOFIA?

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maio-<br />

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ria. <strong>É</strong> uma posição complexa, ambígua, a de muitos autores com relação à democracia. O caso Heidegger<br />

veio complicar as coisas: foi necessário que um grande filósofo se reterritorializasse efetivamente sobre o<br />

nazismo, para que os comentários mais estranhos se cruzassem, ora para pôr em causa sua filosofia, ora<br />

para absolvê-la em nome de argumentos tão complicados e alambicados que nos deixam perturbados. Nem<br />

sempre é fácil ser heideggeriano. Ter-se-ia compreendido melhor que um grande pintor, um grande músico<br />

caíssem assim na vergonha (mas justamente eles não o fizeram). Precisou ter sido um filósofo, como se a<br />

vergonha devesse entrar na própria filosofia. Ele quis reencontrar os gregos pelos alemães, no pior momento<br />

de sua história: que há de pior, dizia Nietzsche, do que se encontrar ante um alemão quando se esperava um<br />

grego? Como os conceitos (de Heidegger) não seriam intrinsecamente maculados por uma reterritorialização<br />

abjeta? A menos que todos os conceitos comportem esta zona cinza e de indiscernibilidade, onde os<br />

lutadores se confundem um instante sobre o solo, e onde o olho cansado do pensador toma um pelo outro:<br />

não somente o alemão por um grego, mas o fascista por um criador de existência e de liberdade. Heidegger<br />

se perdeu nos caminhos da reterritorialização, pois são caminhos sem baliza nem parapeito. Talvez este<br />

rigoroso professor fosse mais louco do que parecia. Ele se enganou de povo, de terra, de sangue. Pois a raça<br />

invocada pela arte ou a filosofia não é a que se pretende pura, mas uma raça oprimida, bastarda, inferior,<br />

anárquica, nômade, irremediavelmente menor — aqueles que Kant excluía das vias da nova Crítica... Artaud<br />

dizia: escrever para os analfabetos — falar para os afásicos, pensar para os acéfalos. Mas que significa<br />

"para"? Não é "com vistas a...". Nem mesmo "em lugar de...". <strong>É</strong> "diante". <strong>É</strong> uma questão de devir. O pensador<br />

não é acéfalo, afásico ou analfabeto, mas se torna. Torna-se índio, não<br />

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pára de se tornar, talvez "para que" o índio, que é índio, se torne ele mesmo outra coisa e possa escapar a<br />

sua agonia. Pensamos e escrevemos para os animais. Tornamo-nos animal, para que o animal também se<br />

torne outra coisa. A agonia de um rato ou a execução de um bezerro permanecem presentes no pensamento,<br />

não por piedade, mas como a zona de troca entre o homem e o animal, em que algo de um passa ao outro. <strong>É</strong><br />

a relação constitutiva da filosofia com a não-filosofia. O devir é sempre duplo, e é este duplo devir que<br />

constitui o povo por vir e a nova terra. O filósofo deve tornar-se não-filósofo, para que a não-filosofia se torne<br />

a terra e o povo da filosofia. Mesmo um filósofo tão bem considerado como o bispo Berkeley não pára de<br />

dizer: nós, os irlandeses, o populacho... O povo é interior ao pensador, porque é um "devir-povo", na medida<br />

em que o pensador é interior ao povo, como devir não menos ilimitado. O artista ou o filósofo são bem<br />

incapazes de criar um povo, só podem invocá-lo, com todas as suas forças. Um povo só pode ser criado em<br />

sofrimentos abomináveis, e tampouco pode cuidar de arte ou de filosofia. Mas os livros de filosofia e as obras<br />

de arte contêm também sua soma inimaginável de sofrimento que faz pressentir o advento de um povo. Eles<br />

têm em comum resistir, resistir à morte, à servidão, ao intolerável, à vergonha, ao presente.<br />

A desterritorialização e a reterritorialização se cruzam no duplo devir. Não se pode mais distinguir o<br />

autóctone e o estrangeiro, porque o estrangeiro se torna autóctone no outro que não o é, ao mesmo tempo<br />

que o autóctone se torna estrangeiro a si mesmo, a sua própria classe, a sua própria nação, a sua própria<br />

língua: nós falamos a mesma língua, e todavia eu não entendo você... Tornar-se estrangeiro a si mesmo, e a<br />

sua própria língua e nação, não é próprio do filósofo e da filosofia, seu "estilo", o que se chama um galimatias<br />

filosófico? Em resumo, a filosofia se reterritorializa<br />

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três vezes, uma vez no passado sobre os gregos, uma vez no presente sobre o Estado democrático, uma vez<br />

no porvir sobre o novo povo e a nova terra. Os gregos e os democratas se deformam singularmente neste<br />

espelho do porvir.<br />

A utopia não é um bom conceito porque, mesmo quando se opõe à História, refere-se a ela ainda e se<br />

inscreve nela, como um ideal ou como uma motivação. Mas o devir é o próprio conceito. Nasce na História, e<br />

nela recaí, mas não pertence a ela. Não tem em si mesmo nem início nem fim, mas somente um meio. Assim,<br />

é mais geográfico que histórico. Tais são as revoluções e as sociedades de amigos, sociedades de<br />

resistência, pois criar é resistir: puros devires, puros acontecimentos sobre um plano de imanência. O que a<br />

História capta do acontecimento é sua efetuação em estados de coisas ou no vivido, mas o acontecimento<br />

em seu devir, em sua consistência própria, em sua autoposição como conceito, escapa à História. Os tipos<br />

psicossociais são históricos, mas os personagens conceituais são acontecimentos. Ora envelhecemos<br />

segundo a História, e com ela, ora nos tornamos velhos num acontecimento muito discreto (talvez o mesmo<br />

acontecimento que permite colocar o problema "o que é a filosofia?"). E é a mesma coisa para os que morrem<br />

jovens, há muitas maneiras de morrer assim. Pensar é experimentar, mas a experimentação é sempre o que

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