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O QUE É A FILOSOFIA?

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ealmente heterogêneos, não são menos isomorfos em relação ao mercado mundial, enquanto este não<br />

supõe somente, mas produz desigualdades de desenvolvimento determinantes. <strong>É</strong> por isso que, como se<br />

observou freqüentemente, os Estados democráticos são ligados de tal maneira, e comprometidos, com os<br />

Estados ditatoriais que a defesa dos direitos do homem deve necessariamente passar pela crítica interna de<br />

toda democracia. Todo democrata é também "o outro Tartufo" de Beaumarchais, o Tartufo humanitário como<br />

dizia Péguy. Certamente, não há razão para acreditar que não podemos mais pensar depois de Auschwitz, e<br />

que somos todos responsáveis pelo nazismo, numa culpabilidade malsã que, aliás, só afetaria as vítimas.<br />

Primo Levi diz: não nos obrigarão a tomar as vítimas por algozes. Mas o que o nazismo e os campos nos<br />

inspiram, diz ele, é bem mais ou bem menos: "a vergonha de ser um homem" (porque mesmo os<br />

sobreviventes precisaram compactuar, se comprometer...)(17). Não são<br />

(17) <strong>É</strong> um sentimento "composto" que Primo Levi descreve assim: vergonha que homens tenham podido<br />

fazer isso, vergonha que nós não tenhamos podido impedi-lo, vergonha de ter sobrevivido a isto, vergonha de<br />

ter sido envilecido ou diminuído. Cf. Les naufragés et les rescapés, Gallimard (e, sobre "a zona cinza", de<br />

contornos mal definidos, que se-<br />

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somente nossos Estados, é cada um de nós, cada democrata, que se acha, não responsável pelo nazismo,<br />

mas maculado por ele. Há catástrofe, mas a catástrofe consiste em que a sociedade de irmãos ou de amigos<br />

passou por uma tal prova que eles não podem mais se olhar um ao outro, ou cada um a si mesmo, sem uma<br />

"fadiga", talvez uma desconfiança, que se tornam movimentos infinitos do pensamento, que não suprimem a<br />

amizade, mas lhe dão sua cor moderna, e substituem a simples "rivalidade" dos gregos. Não somos mais<br />

gregos, e a amizade não é mais a mesma: Blanchot, Mascolo viram a importância desta mutação para o<br />

próprio pensamento.<br />

Os direitos do homem são axiomas: eles podem coexistir no mercado com muitos outros axiomas,<br />

especialmente na segurança da propriedade, que os ignoram ou ainda os suspendem, mais do que os<br />

contradizem: "a impura mistura ou o impuro lado a lado", dizia Nietzsche. Quem pode manter e gerar a<br />

miséria, e a desterritorialização-reterritorialização das favelas, salvo polícias e exércitos poderosos que<br />

coexistem com as democracias? Que social-democracia não dá a ordem de atirar quando a miséria sai de<br />

seu território ou gueto? Os direitos não salvam nem os homens, nem uma filosofia que se reterritorializa sobre<br />

o Estado democrático. Os direitos do homem não nos farão abençoar o capitalismo. E é preciso muita<br />

inocência, ou safadeza, a uma filosofia da comunicação que pretende restaurar a sociedade de amigos ou<br />

mesmo de sábios, formando uma opinião universal como "consenso" capaz de moralizar as nações, os<br />

Estados e o mercado(18).<br />

para e liga ao mesmo tempo os dois campos de senhores e de escravos...", P- 42).<br />

(18) Sobre a crítica da "opinião democrática", seu modelo americano, e as mistificações dos direitos do<br />

homem ou do Estado de direito internacional, uma das mais fortes análises é a de Michel Butel, UAutre<br />

journal, n° 10, março de 1991, pp. 21-25.<br />

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Os direitos do homem não dizem nada sobre os modos de existência imanentes do homem provido de<br />

direitos. E a vergonha de ser um homem, nós não a experimentamos somente nas situações extremas<br />

descritas por Primo Levi, mas nas condições insignificantes, ante a baixeza e a vulgaridade da existência que<br />

impregnam as democracias, ante a propagação desses modos de existência e de pensamento-para-omercado,<br />

ante os valores, os ideais e as opiniões de nossa época. A ignomínia das possibilidades de vida<br />

que nos são oferecidas aparecem de dentro. Não nos sentimos fora de nossa época, ao contrário, não<br />

cessamos de estabelecer com ela compromissos vergonhosos. Este sentimento de vergonha é um dos mais<br />

poderosos motivos da filosofia. Não somos responsáveis pelas vítimas, mas diante das vítimas. E não há<br />

outro meio senão fazer como o animal (rosnar, escavar o chão, nitrir, convulsionar-se) para escapar ao<br />

ignóbil: o pensamento mesmo está por vezes mais próximo de um animal que morre do que de um homem<br />

vivo, mesmo democrata. Se a filosofia se reterritorializa sobre o conceito, ela não encontra sua condição na<br />

forma presente do Estado democrático, ou num cogito de comunicação mais duvidoso ainda que o cogito da<br />

reflexão. Não nos falta comunicação, ao contrário, nós temos comunicação demais, falta-nos criação. Faltanos<br />

resistência ao presente. A criação de conceitos faz apelo por si mesma a uma forma futura, invoca uma<br />

nova terra e um povo que não existe ainda. A europeização não constitui um devir, constitui somente a<br />

história do capitalismo que impede o devir dos povos sujeitados. A arte e a filosofia juntam-se neste ponto, a<br />

constituição de uma terra e de um povo ausentes, como correlato da criação. Não são autores populistas,<br />

mas os mais aristocráticos que exigem esse porvir. Esse povo e essa terra não serão reencontrados em<br />

nossas democracias. As democracias são maiorias, mas um devir é por natureza o que se subtrai sempre à

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