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O QUE É A FILOSOFIA?

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abafadas neste meio. A palavra empregada pelo utopista Samuel Butler, "Erewhon", não remete somente a<br />

"No-Where", ou a parte-Nenhuma, mas a "Now-Here", aqui-agora. O que conta não é a pretensa distinção de<br />

um socialismo utópico e de um socialismo científico; são antes os diversos tipos de utopia, dentre os quais a<br />

revolução. Há sempre, na utopia (como na filosofia), o risco de uma restauração da transcendência, e por<br />

vezes sua orgulhosa afirmação, de modo que é preciso distinguir as utopias autoritárias ou de<br />

transcendência, e as utopias libertárias, revolucionárias, imanentes(12). Mas, justamente, dizer que a<br />

revolução é, ela mesma, utopia de imanência não é dizer que é um sonho, algo que não se realiza ou que só<br />

se realiza traindo-se. Pelo contrário, é colocar a revolução como plano de imanência, movimento infinito,<br />

sobrevôo absoluto, mas enquanto estes traços se conectam com o que há de real aqui e agora, na luta contra<br />

o capitalismo, e relançam novas lutas sempre que a precedente é traída. A palavra utopia designa portanto<br />

esta conjunção da filosofia ou do conceito com o meio presente: filosofia políti-<br />

(1)2 Sobre estes tipos de utopias, cf. Ernst Bloch, Le príncipe esperance, Gallimard, II. E os comentários de<br />

René Schérer sobre a utopia de Fourier em suas relações com o movimento, Pari sur 1'impossible, Presses<br />

Universitaires de Vincennes.<br />

ca (embora talvez a utopia não seja a melhor palavra, em ra/.ão do sentido mutilado que a opinião lhe deu).<br />

130 ▲<br />

Não é falso dizer que a revolução "é culpa dos filósofos" (embora não sejam os filósofos que a<br />

conduzam). Que as duas grandes revoluções modernas, a americana e a soviética, tenham dado no que<br />

deram, não impede o conceito de prosseguir sua via imanente. Como mostrava Kant, o conceito de revolução<br />

não está na maneira pela qual esta pode ser conduzida num campo social necessariamente relativo, mas no<br />

"entusiasmo" com o qual ela é pensada sobre um plano de imanência absoluto, como uma apresentação do<br />

infinito no aqui-agora, que não comporta nada de racional ou mesmo de razoável(13). O conceito libera a<br />

imanência de todos os limites que o capital lhe impunha ainda (ou que ela se impunha a si mesma, sob a<br />

forma do capital, aparecendo como algo de transcendente). Neste entusiasmo trata-se, todavia, menos de<br />

uma separação entre o espectador e o ator, que de uma distinção, na ação mesma, entre os fatores históricos<br />

e "a névoa não-histórica", entre o estado de coisas e o acontecimento. A título de conceito e como<br />

acontecimento, a revolução é auto-referencial ou goza de uma auto-posição que se deixa apreender num<br />

entusiasmo imanente, sem que nada, nos estados de coisas ou no vivido, possa atenuá-la, sequer as<br />

decepções da razão. A revolução é desterritorialização absoluta no ponto mesmo em que esta faz apelo à<br />

nova terra, ao novo povo.<br />

A desterritorialização absoluta não existe sem reterritorialização. A filosofia se reterritorializa sobre o<br />

conceito. O conceito não é objeto, mas território. Não há Objeto, mas um território. Precisamente por isso, ele<br />

tem uma forma passada, presente e talvez por vir. A filosofia moderna se reter-<br />

(13) Kant, Le conflit des facultes, II, § 6 (este texto reencontrou toda a sua importância hoje pelos comentários<br />

muito diferentes de Foucault,<br />

131 ▲<br />

ritorializa sobre a Grécia como forma de seu próprio passado. São os filósofos alemães, sobretudo, que<br />

viveram a relação com a Grécia como uma relação pessoal. Mas, justamente, eles se viviam a si mesmos<br />

como o avesso ou o contrário dos gregos, o simétrico inverso: os gregos mantinham bem o plano de<br />

imanência que eles construíam no entusiasmo e na embriaguez, mas eles precisavam procurar com quais<br />

conceitos preenchê-lo, para não recair nas figuras do Oriente; enquanto que nós, nós temos conceitos, nós<br />

acreditamos tê-los, depois de tantos séculos de pensamento ocidental, mas não sabemos de modo algum<br />

onde colocá-los, porque carecemos de um verdadeiro plano, desviados que somos pela transcendência<br />

cristã. Numa palavra, sob sua forma passada, o conceito é o que não era ainda. Nós, hoje, temos os<br />

conceitos, mas os gregos não tinham ainda; eles tinham o plano, que nós não temos mais. <strong>É</strong> por isso que os<br />

gregos de Platão contemplam o conceito, como algo que está ainda muito longe e acima, enquanto que nós,<br />

nós temos o conceito, nós o temos no espírito de uma maneira inata, basta refletir. <strong>É</strong> o que Hõlderlin exprimia<br />

tão profundamente: o "chão natal" dos gregos é nosso "estrangeiro", o que nós devemos adquirir; enquanto<br />

os gregos, ao contrário, tinham de adquirir nosso chão natal como seu estrangeiro(14). Ou então Schelling: os<br />

gregos viviam e pensavam na Natureza,<br />

(14) Hõlderlin: os gregos possuem o grande Plano pânico, que eles partilhavam com o Oriente, mas eles<br />

devem adquirir o conceito ou a composição orgânica ocidental; "entre nós, é o contrário" (carta a Bõlhen-dorf,<br />

4 de dezembro de 1801, e os comentários de Jean Beaufret, in Hòl-derlin, Remarques sur Oedipe, Ed.<br />

U.G.E., Col 10-18, pp. 8-11; cf. também Philippe Lacoue-Labarthe, Uimitation des modernes, Ed. Galilée).<br />

Mesmo o texto célebre de Renan sobre o "milagre" grego tem um movimento complexo análogo: o que os<br />

gregos tinham por natureza, nós não podemos reencontrá-lo senão pela reflexão, confrontando um

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