15.04.2013 Views

O QUE É A FILOSOFIA?

O QUE É A FILOSOFIA?

O QUE É A FILOSOFIA?

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

com que coinseri-lo? Que conceito é preciso inserir ao lado deste, e que componentes em cada um? São as<br />

questões da criação de conceitos. Os pré-socráticos tratam os elementos físicos como conceitos: eles os<br />

tomam por si mesmos, independentemente de toda referência, e procuram somente as boas regras de<br />

vizinhança entre eles e em seus componentes eventuais. Se variam em suas respostas, é porque não<br />

compõem esses conceitos elementares da mesma maneira, por dentro e por fora. O conceito não é<br />

paradigmático, mas sintagmático; não é projetivo, mas conectivo; não é hierárquico, mas vicinal; não é<br />

referente, mas consistente. <strong>É</strong> forçoso, daí, que a filosofia, a ciência e a arte não se organizem mais como os<br />

níveis de uma<br />

119 ▲<br />

mesma projeção e, mesmo, que não se diferenciem a partir de uma matriz comum, mas se coloquem ou se<br />

reconstituam imediatamente numa independência respectiva, uma divisão do trabalho que suscita entre elas<br />

relações de conexão.<br />

<strong>É</strong> preciso concluir, daí, por uma oposição radical entre as figuras e os conceitos? A maior parte das<br />

tentativas de determinar suas diferenças exprimem somente juízos de humor, que se contentam em<br />

desvalorizar um dos dois termos: ora se dá aos conceitos o prestígio da razão, enquanto as figuras são<br />

remetidas à noite do irracional e a seus símbolos; ora se dá às figuras os privilégios da vida espiritual,<br />

enquanto que os conceitos são remetidos aos movimentos artificiais de um entendimento morto. E todavia<br />

inquietantes afinidades aparecem, sobre um plano de imanência que parece comum(5). O .pensamento<br />

chinês inscreve sobre o plano, numa espécie de ir e vir, os movimentos diagramáticos de um pensamento-<br />

Natureza, yin e yang, e os hexagramas são os cortes do plano, as ordenadas intensivas destes movimentos<br />

infinitos, com seus componentes em traços contínuos e descontínuos. Mas tais correspondências não<br />

excluem uma fronteira, mesmo que difícil de discernir. <strong>É</strong> que as figuras são projeções sobre o plano, que<br />

implicam algo de vertical ou de transcen-<br />

(5) Certos autores retomam hoje, sobre novas bases, a questão propriamente filosófica, liberando-se dos<br />

estereótipos hegelianos ou heideg-gerianos: sobre uma filosofia judaica, os trabalhos de Lévinas e em torno<br />

de Lévinas (Les cahiers de Ia nuit surveillée, n° 3, 1984); sobre uma filosofia islâmica, em função dos<br />

trabalhos de Corbin, cf. Jambet (La logique des Orientaux, Ed. du Seuil) e Lardreau (Discours philosophique<br />

et dis-cours spirituel, Ed. du Seuil); sobre uma filosofia hindu, em função de Masson-Oursel, cf. a<br />

aproximação de Roger-Pol Droit (Uoubli de 1'Inde, P.U.F.); sobre uma filosofia chinesa, os estudos de<br />

François Cheng (Vide et plein, Ed. du Seuil) e de François Jullien (Procès ou création, Ed. du Seuil); sobre<br />

uma filosofia japonesa, cf. René de Ceccaty e Nakamura (Mille ans de littérature japonaise, e a tradução<br />

comentada do monge Dôgen, Ed. de Ia Différence).<br />

120 ▲<br />

dente; os conceitos, em contrapartida, só implicam vizinhanças e conjugações sobre o horizonte. Certamente,<br />

o transcendente produz por projeção uma "absolutização da imanência", como François Jullien já o mostrou<br />

quanto ao pensamento chinês. Mas inteiramente diferente é a imanência do absoluto que a filosofia<br />

reivindica. Tudo o que podemos dizer é que as figuras tendem para conceitos a ponto de se aproximar<br />

infinitamente deles. O cristianismo dos séculos XV ao XVII faz da impresa o invólucro de um conceito, mas o<br />

conceito não tomou ainda consistência e depende da maneira pela qual é figurado ou mesmo dissimulado. A<br />

questão que retorna periodicamente: "há uma filosofia cristã?" significa: o cristianismo é capaz de criar<br />

conceitos próprios? A crença, a angústia, o pecado, a liberdade...? Nós o vimos em Pascal e Kierkegaard:<br />

talvez a crença não se torne um verdadeiro conceito senão quando ela se faz crença neste mundo, e se<br />

conecta em lugar de se projetar. Talvez o pensamento cristão não produza conceito senão por seu ateísmo,<br />

pelo ateísmo que ele secreta mais que qualquer outra religião. Para os filósofos, o ateísmo não é um<br />

problema, a morte de Deus menos ainda, os problemas só começam a seguir, quando se atingiu o ateísmo<br />

do conceito. Estranha-se que tantos filósofos ainda assumam como trágica a morte de Deus. O ateísmo não é<br />

um drama, ele é a serenidade do filósofo e a conquista da filosofia. Há sempre um ateísmo por extrair de uma<br />

religião. Já era verdade para o pensamento judaico: ele empurra suas figuras até o conceito, mas só o atinge<br />

com Espinosa, o ateu. E se as figuras tendem assim para os conceitos, o inverso é igualmente verdadeiro, e<br />

os conceitos filosóficos reproduzem figuras toda vez que a imanência é atribuída a algo, objetidade de<br />

contemplação, sujeito de reflexão, intersubjetividade de comunicação: as três "figuras" da filosofia. <strong>É</strong> preciso<br />

ainda constatar que as religiões não atingem o conceito sem se renegar, tal como as filosofias não atin-<br />

121 ▲<br />

gem a figura sem se trair. Entre as figuras e os conceitos há diferença de natureza, mas também todas as<br />

diferenças de grau possíveis.<br />

Pode-se falar de uma "filosofia" chinesa, hindu, judaica, islâmica? Sim, na medida em que o pensar

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!