O QUE É A FILOSOFIA?
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consistência. Quanto ao outro aspecto, enunciação de criação ou de assinatura, é certo que as proposições<br />
científicas e seus correlatos não são menos assinadas ou criadas que os conceitos filosóficos; falamos de<br />
teorema de Pitágoras, de coordenadas cartesianas, de número hamiltoniano, de função de Lagrange, tanto<br />
quanto de Idéia platônica ou de cogito de Descartes, etc. Mas os nomes próprios aos quais se vincula assim a<br />
enunciação, malgrado serem históricos, e atestados como tais, são máscaras para outros de-vires, servem<br />
somente de pseudônimos a entidades singulares mais secretas. No caso das proposições, trata-se de<br />
observadores parciais extrínsecos, cientificamente definíveis com relação a tal ou tais eixos de referência, ao<br />
passo que, para os conceitos, são personagens conceituais intrínsecos que impregnam tal ou tal plano de<br />
consistência. Não se dirá somente que os nomes próprios têm usos muito diferentes nas filosofias, ciências e<br />
artes: o mesmo acontece para os elementos sintáticos, e notadamente as preposições, as conjunções, "ou",<br />
"pois"... A filosofia procede por frases, mas não são sempre proposições que se extraem das frases em geral.<br />
Por enquanto, dispomos apenas de uma hipótese muito ampla: das frases ou de um equivalente, a<br />
filosofia tira conceitos (que não se confundem com idéias gerais ou abstratas), enquanto que a ciência tira<br />
prospectos (proposições que não se confundem com juízos), e a arte tira perceptos e afectos (que também<br />
não se confundem com percepções ou sentimentos). Em cada caso, a linguagem é submetida a provas e<br />
usos incomparáveis, mas que não definem a diferença entre as disciplinas sem constituir também seus<br />
cruzamentos perpétuos.<br />
EXEMPLO I<br />
<strong>É</strong> necessário de início confirmar as análises precedentes tomando o exemplo de um conceito filosófico<br />
assinado, dentre os mais conhecidos, ou seja, o cogito cartesiano, o Eu de Descartes: um conceito de eu.<br />
Este conceito tem três componentes: duvidar, pensar, ser (não se concluirá daí que todo conceito seja triplo).<br />
O enunciado total do conceito, enquanto multiplicidade, é: eu penso "logo" eu sou; ou, mais completamente:<br />
eu que duvido, eu penso, eu sou, eu sou uma coisa que pensa. <strong>É</strong> o acontecimento sempre renovado do<br />
pensamento, tal como o vê Descartes. O conceito condensa-se no ponto E, que passa por todos os<br />
componentes, e onde coincidem E' — duvidar, E" — pensar, E'" — ser. Os componentes como ordenadas<br />
intensivas se ordenam nas zonas de vizinhança ou de indiscernibilidade que fazem passar de uma à outra, e<br />
que constituem sua inseparabilidade: uma primeira zona está entre duvidar e pensar (eu que duvido não<br />
posso duvidar que penso), e a segunda está entre pensar e ser (para pensar é necessário ser). Os<br />
componentes apresentam-se aqui como verbos, mas isto não é uma regra, basta que sejam va-<br />
riações. Com efeito, a dúvida comporta momentos que não são as espécies de um gênero, mas as fases de<br />
uma variação: dúvida sensível, científica, obsessiva. (Todo conceito tem, portanto, um espaço de fases, ainda<br />
que seja de uma maneira diferente daquela da ciência.) O mesmo vale para os modos do pensamento: sentir,<br />
imaginar, ter idéias. O mesmo vale para os tipos de ser, coisa ou substância: o ser infinito, o ser pensante<br />
finito, o ser extenso. <strong>É</strong> de se observar que, neste último caso, o conceito do eu não retém senão a segunda<br />
fase do ser, e deixa fora o resto da variação. Mas esse é precisamente o sinal de que o conceito se fecha<br />
como totalidade fragmentária com "eu sou uma coisa pensante": não se passará às outras fases do ser senão<br />
por pontes-encruzilhadas que levam a outros conceitos. Assim, "entre minhas idéias, eu tenho a idéia de<br />
infinito" é a ponte que conduz do conceito de eu àquele de Deus, este novo conceito tendo ele mesmo três<br />
componentes, que formam<br />
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