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Entre Morros e Capim - Satúrnia-Letras e Estudos Luso-Canadianos

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MANUEL SANTOS CARVALHO<br />

<strong>Entre</strong> <strong>Entre</strong> <strong>Morros</strong> <strong>Morros</strong> e e <strong>Capim</strong><br />

<strong>Capim</strong><br />

Histórias Histórias da da Guerra Guerra Colonial<br />

Colonial


Título:<br />

<strong>Entre</strong> <strong>Morros</strong> e <strong>Capim</strong><br />

(Histórias da Guerra Colonial)<br />

Autor:<br />

Manuel Santos Carvalho<br />

Capa:<br />

Aquartelamento no Norte Angolano<br />

ISBN 978-2-9813189-3-0<br />

Reservados todos os direitos de edição e tradução<br />

2


MANUEL SANTOS CARVALHO<br />

<strong>Entre</strong><br />

<strong>Morros</strong> e <strong>Capim</strong><br />

3


Do autor:<br />

Saga - Editora Peregrinação - 1989<br />

Um poeta no Paraíso - Éditions <strong>Luso</strong> - 1994<br />

Parc du Portugal - Éditions <strong>Luso</strong> - 1997<br />

À beira-Main - Éditions <strong>Luso</strong> – 2003<br />

Ti Vida – Edição do autor – 2012<br />

O homem que falava com as flores - Edição do autor-2012<br />

As belas manhãs de Maria Constança - Edição do autor -2012<br />

Manuel Carvalho nasceu em Cicouro, Miranda do<br />

Douro.<br />

Colares e a Batalha foram lugares que o viram<br />

crescer.<br />

Viveu grande parte da juventude nos Outeiros da<br />

Gândara dos Olivais, nos arredores de Leiria.<br />

Fez a guerra colonial em Angola. Depois, correu<br />

muitas terras até chegar a Montreal, no Canadá, em 1980.<br />

Tem colaboração literária espalhada por diversos<br />

jornais e revistas em Portugal e na diáspora.<br />

É o coordenador da revista on-line "<strong>Satúrnia</strong> - <strong>Letras</strong><br />

e <strong>Estudos</strong> <strong>Luso</strong>-Canadiano<br />

4


5<br />

Às vitimas da guerra


Norte de Angola. Calambata. Tempo de guerra.<br />

O aquartelamento encarrapitado no cimo do morro. A<br />

meia encosta, a sanzala.<br />

Ao redor, a omnipresença dos morros verdes de<br />

capim. Nas vertentes, as manchas escuras e densas da mata.<br />

Finalmente, após longa espera, os maçaricos<br />

chegaram. À porta de armas, uma enorme bandeirola de<br />

pano branco, letras garrafais pintadas em vermelho vivo,<br />

fazia as honras da recepção:<br />

«A RAZÃO DA VOSSA TRISTEZA É A RAZÃO<br />

DA NOSSA ALEGRIA.»<br />

Os velhinhos, em polvorosa, rodearam a coluna.<br />

Troçam, hílares, do ar aparvalhado dos recém-chegados.<br />

- Estes maçaricos ainda cheiram a sal.<br />

- Estávamos com medo que se tivessem perdido na<br />

picada.<br />

- Aqui não podem chamar pela mamã.<br />

Mas logo a saudade desponta. Abruptamente, a<br />

fachada rude esboroa-se.<br />

- Vem alguém de Viana?<br />

- De Chaves?<br />

- De Leiria?<br />

Reencontros. Abraços. Corações a estoirar na boca.<br />

Um tropel de emoções a rasgar caminhos largos de<br />

ternura, a correr como sombras pela imensidão do capinzal.<br />

7


O nosso pelotão ficará alojado naquela caserna -<br />

apontou o alferes Mendonça. - Instalem-se o melhor<br />

possível. Dentro de duas horas o nosso sargento Martins irá<br />

proceder à distribuição de lençóis e cobertores.<br />

Fernandes carregou a mala às costas e seguiu na<br />

direcção apontada pelo alferes.<br />

O interior da caserna apresentava um ar caótico. Os<br />

beliches descarnados, colchões esventrados, bagagens<br />

amontoadas por toda a parte, detritos e papéis pelo chão de<br />

terra batida. Alijou a mala e sentou-se na borda de uma<br />

cama, a abarcar gradualmente a situação.<br />

Maçaricos e velhinhos trocavam galhardetes.<br />

- O que me dás em troca deste armário que eu próprio<br />

fiz?<br />

- Troco esta ração de combate por um maço de<br />

cigarros do puto. Quem quer?<br />

- O que vale este espelho? Um gajo vê-se poucas<br />

vezes ao espelho mas mesmo assim faz jeito.<br />

- Não tens nada para trocar?<br />

Fernandes ergueu os olhos para o velho. Muito alto,<br />

pele e osso no camuflado a cair aos bocados já sem pitada de<br />

cor. Pelos rasgões apareciam bocados de pele espessa e<br />

acobreada, e tufos de pêlos. No rosto acavalado, coberto de<br />

barba duma semana, os olhos eram pestanudos e mansos.<br />

- Trocar por quê?<br />

- Por um cão.<br />

- Um cão?!<br />

O velho nem deu pela estupefacção que causara.<br />

- Sim, um cão inteligente e bonito.<br />

9


Fernandes não sabia de devia rir ou mandar o outro à<br />

merda.<br />

-Mas para que diabo quero eu um cão?<br />

- Tu nem sabes a companhia que faz um cão. Aqui,<br />

neste inferno a companhia dum cão é uma coisa<br />

maravilhosa. Se ficares com o Fantasma vais ver que não te<br />

arrependes.<br />

- Não tenho nada para trocar, pá. Vai chatear outro.<br />

O grandalhão ficou momentaneamente desorientado,<br />

a baloiçar os braços esqueléticos. Mas voltou logo à carga.<br />

- Mas não queres ver o cão? Não perdes nada. É um<br />

bicho muito fino.<br />

- Se é assim tão fino, leva-o contigo.<br />

- Levava, levava, mas é muito complicado. É preciso<br />

uma data de trapalhadas, documentos, vacinas. Podes crer<br />

que o levava, vou ter muitas saudades dele. - A voz<br />

estrangulava-se, os olhos humedeciam. – Sem dono, até são<br />

capazes de matá-lo.<br />

- Deixa lá ficar o cão, homem. Eu trato dele.<br />

O velho quase desatou a chorar. A sua manápula<br />

esmagava o ombro do “maçarico”.<br />

- Eu sabia, pá. Eu sabia que podia confiar em ti.<br />

Nestas coisas, nunca me engano. Vou chamar o Fantasma<br />

para que tu o vejas.<br />

Em dois saltos, atingiu a porta a enfiou os dedos na<br />

boca. O assobio partiu veloz.<br />

- Não tarda nada, está aí.<br />

Mal tinha acabado de falar, um grande cão, branco e<br />

felpudo, irrompeu pela caserna em carreira cega. Atirou as<br />

patorras ao peito do dono, a ganir tristemente. A baba<br />

escorria entre os dentes brancos e aguçados.<br />

- Quieto, Fantasma, quieto.<br />

Na caserna elevou-se um coro de protestos.<br />

- Leva daqui esse hotel de pulgas.<br />

10


- Se ele vem para este lado, dou-lhe um tiro.<br />

- É mais burro do que o dono.<br />

- Senta-te, Fantasma.<br />

O cão obedeceu. A cauda farfalhuda varria o chão, os<br />

botões pretos dos olhos pregados no dono. De quando em<br />

quando, lançava um gemido dolorido.<br />

- A malta gosta do Fantasma. Estas bocas não são do<br />

coração. É bonito, não é? Ficas com ele?<br />

- Que remédio!<br />

- Trata bem dele, ouviste? Dá-lhe banho uma vez por<br />

semana. Não tem uma pulga. Anda mais limpo do que estes<br />

gajos todos juntos.<br />

- É manso?<br />

- É um autêntico cordeiro. Só não gosta dos oficiais.<br />

Ele lá terá as suas razões.<br />

- Assim, fico mesmo com ele. Já tenho alguém que<br />

pensa como eu. - Alçou o indicador para o bicho que o<br />

escutava compenetrado, a língua rosada de fora. - Toma<br />

atenção, pá. Sou o teu novo dono e também não gosto de<br />

oficiais. Vamos dar-nos às mil maravilhas, não é, pá?<br />

11


Costa rodeou uma cama, saltou por cima dum caixote<br />

e conseguiu acercar-se do velho de melenas aloiradas. Este,<br />

sobre a mala a abarrotar, fazia esforços inauditos para fechála.<br />

O suor corria-lhe pelo rosto e pelas costas.<br />

- És o Lopes?<br />

- Sou - respondeu o velho, porfiando no esforço.<br />

- És tu que fazes tatuagens?<br />

- Fazia.<br />

Costa vacilou perante a resposta torta. Ficou<br />

momentaneamente mudo, como que interessado na tarefa do<br />

outro.<br />

- Queres que te ajude?<br />

Lopes olhou-o desconfiado.<br />

- Já agora, dá aqui uma mão - aceitou, por fim.<br />

Com certa dificuldade, lá conseguiram fechar a mala.<br />

- Tens que atar um cordel à volta, quando não<br />

rebenta-te pelo caminho.<br />

- Onde é que eu vou desenrascar um cordel - irritouse<br />

Lopes. - Ninguém tem um cordel a mais? - gritou para a<br />

caserna.<br />

Não obteve resposta.<br />

- Devo ter um em qualquer parte - ofereceu Costa.<br />

Lopes tirou o lenço do bolso e passou-o pelo rosto.<br />

- Afinal, o que queres, pá? - perguntou, a<br />

contragosto.<br />

- Queria que me fizesses uma tatuagem.<br />

- És parvo ou quê? Achas que estou com pachorra<br />

para fazer tatuagens?<br />

- Era simples. Uma coisa rápida.<br />

12


- Vai dar uma volta, pá. Não tens mais nada em que<br />

pensar?<br />

Costa não admitia a ideia de perder aquela<br />

oportunidade.<br />

- Pago-te o que quiseres.<br />

- És surdo ou parvo? Vai chatear outro. - O velho<br />

arredou-o com brusquidão.- Sai da frente que vou beber uma<br />

cerveja à cantina.<br />

Costa seguiu-o para da fora.<br />

- Não te custava nada...<br />

- Olha o que me havia de tocar prá despedida.<br />

- Dou-te cinquenta paus. Dinheiro do puto.<br />

Lopes estacou, sob o céu ardente. Fitou irritado o<br />

outro.<br />

- És um grande teimoso.<br />

Costa ganhou renovadas esperanças.<br />

- Aceitas? Uma nota do puto, nova em folha.<br />

O velho estava irremediavelmente preso ao chamariz.<br />

- Já viste a trabalheira que me vais dar? Sei lá onde<br />

meti as agulhas. Tornar a desfazer a mala...!<br />

- Eu dou-te uma ajuda. Não tenhas problemas.<br />

- És do tipo carraça. Afinal, que tatuagens queres?<br />

- Uma coisa simples. Um coração com uns dizeres.<br />

- Quais dizeres?<br />

Costa enrubesceu.<br />

- Diz lá!<br />

` - Amo-te, Maria da Luz - atreveu-se a confessar.<br />

Lopes largou a rir.<br />

- Só um apaixonado poderia ser tão teimoso. Logo vi.<br />

Bom, vamos beber uma cerveja e depois tratamos disso.<br />

Tens aí os cinquenta paus?<br />

13


O Barão arrumou a mala a um canto, desembaraçouse<br />

das cartucheiras e da G3 e escapuliu-se da balbúrdia da<br />

caserna.<br />

Entrou na cantina. Conseguiu, à força de cotoveladas,<br />

aproximar-se do balcão. A gritaria era ensurdecedora.<br />

- Uma cerveja - pediu.<br />

O seu camuflado novo em folha contrastava<br />

violentamente com os camuflados desbotados e esfarrapados<br />

da maioria dos presentes.<br />

- Tás com sede, maçarico? - arrotou-lhe na cara um<br />

velho de carão avermelhado.<br />

- Tá-se a ver, não?<br />

O cantineiro não tinha mãos a medir.<br />

- Amanhã, não há mama pra ninguém - desabafou,<br />

em jeito de vingança. - Vou fazer o balanço e passar a pasta<br />

ao maçarico.<br />

O Barão agarrou a cerveja de cima do balcão.<br />

- Não tens uma chave para abrir isto? - perguntou ao<br />

cantineiro.<br />

- Para que queres a chave? - riu-se este. Tens a<br />

esquina do balcão ou então os dentes.<br />

- Estes maçarico pensam que estão numa estância de<br />

repouso - riram-se ao redor.<br />

O Barão encolheu os ombros, resignado. Seguiu o<br />

conselho do cantineiro e a espuma jorrou para o chão. Meteu<br />

o gargalo à boca. A cerveja soube-lhe a caldo.<br />

- Não há cerveja fresca?<br />

Novas risadas. Um velhinho grandalhão assentou-lhe<br />

uma palmada nas costas.<br />

14


- Se queres cerveja fresca vai à messe dos senhores<br />

oficiais ou dos sargentos - aconselhou, irónico. - A esses não<br />

falta cerveja fresca. O nosso frigorífico não dá para a<br />

primeira rodada, principalmente hoje.<br />

- E uns gajos tão sabidões como vocês permitem<br />

isso?<br />

- Donde és tu, ó vivaço? - perguntou um tipo<br />

baixote com um grande colar de missangas ao redor do<br />

pescoço bronzeado.<br />

- Lisboa - deixou cair displicentemente o Barão.<br />

Sabes onde fica?<br />

- O Luís? - galhofou uma voz. - Sabe lá onde fica<br />

Lisboa. É de trás do sol posto.<br />

- És de Lisboa? - tornou o velhinho grandalhão. - Eh<br />

Rijo, chega aqui.<br />

O interpelado voltou-se com uma cerveja na mão e<br />

um olhar irónico. Tinha cabelo preto, muito bem penteado,<br />

um bigode aparado a debruar o lábio cheio.<br />

- O que há?<br />

- Tens aqui um conterrâneo.<br />

- És lisboeta? De que zona?<br />

- Alfama.<br />

- Eu sou do bairro da Liberdade.<br />

- Belo - alegrou-se o Barão. - Não se consegue uma<br />

cerveja fresca, pá? Isto sabe a mijo.<br />

- Anda daí.<br />

A noite caíra abruptamente, percorrida por um bafo<br />

escaldante. Na parada, cheia de vozes e sombras, avultavam<br />

as silhuetas das viaturas.<br />

- Ainda há pouco estava sol e já é de noite - admirouse<br />

o Barão.<br />

- Aqui é assim. É a terra do tudo ou nada.<br />

- E sempre assim este calor?<br />

15


- Na época das chuvas é. Quando vier a estação do<br />

cacimbo, lá para Março, arrefece um pouco.<br />

Continuava a balbúrdia nas casernas, montes de<br />

caixotes e malas por todo o lado.<br />

- Hoje ninguém vai dormir - prognosticou Rijo.<br />

- Quem é capaz? - concordou o Barão. - Nem os que<br />

partem nem os que fica.<br />

- Vamos ali, à messe dos sargentos.<br />

- Espreitaram pela janela. A confraternização estava<br />

no auge, as mesas pejadas de garrafas de cerveja, os<br />

cinzeiros a abarrotar de piriscas.<br />

Rijo entreabriu a porta.<br />

- Psst...psst...<br />

Um furriel corpulento aproximou-se, passos incertos,<br />

olhos a transbordar de cerveja.<br />

- Furriel Gomes, arranje aí duas cervejinhas...<br />

- Golpista até ao último minuto, eh Rijo!<br />

- Ande lá, faça esse favor cá ao rapaz. Sempre nos<br />

demos bem...<br />

- Não me atires mais areia prós olhos. Aguenta aí.<br />

- Este é dos porreiros - confidenciou Rijo.<br />

O furriel voltou com as cervejas.<br />

- Tomem lá as meninas.<br />

- Obrigadinho, meu furriel. Vai ganhar o céu.<br />

- Vai bardamerda.<br />

Rijo tornou a cerrar a porta.<br />

- Vamos abancar ali no refeitório. Toma lá a tua.<br />

Estão quase geladas.<br />

Na cozinha, os cozinheiros ultimavam o jantar.<br />

Sentaram-se numa das mesas, a saborear a bebida.<br />

Somente os mosquitos evolucionavam por ali.<br />

- Há aqui mosquitos a dar com um pau - queixou-se o<br />

Barão, às palmadas ao pescoço.<br />

16


- Hoje andam felizes com tanto sangue novo. O<br />

nosso já não lhes sabe a nada.<br />

O Barão olhou o serrilhado dos morros esbatidos<br />

contra o céu para lá do arame farpado. Uma dor arrepanhoulhe<br />

o peito.<br />

- Isto vai custar...<br />

Rijo deu-lhe uma palmada nas costas.<br />

- Não te armes em herói, bebe umas cervejas, arranja<br />

uma lavadeira que te lave também os tomates e daqui a dois<br />

anos estarei em Lisboa à tua espera. Já acabaste a cerveja?<br />

Agora vamos até à messe dos oficiais dar o golpe àqueles<br />

mecos.<br />

17


O capitão Anselmo refastelou-se no sofá.<br />

- Que horas são? - perguntou, num bocejo.<br />

- Quatro da madrugada - respondeu o capitão<br />

Rosado, consultando o relógio.<br />

Estavam sós na messe dos oficiais, naquela hora<br />

morta.<br />

- Bom, agora que concluímos a transferência da<br />

Companhia, bem merecemos um copo. Aceita, Rosado?<br />

- Excelente ideia.<br />

- Uísque?<br />

- De acordo.<br />

Anselmo abandonou a comodidade do sofá e deu a<br />

volta ao balcão do bar. Apanhou a garrafa da prateleira e<br />

retirou dois copos da copa.<br />

- Como?<br />

- Com gelo.<br />

Anselmo encheu os copos até meio. Abriu o<br />

frigorífico e tirou uma cuvete do gelador.<br />

- Felizmente que os senhores alferes ainda nos<br />

deixaram algum gelo. - Pôs a cuvete debaixo do fio de água<br />

da torneira. – Quantos cubos?<br />

- Dois, por favor.<br />

Ficaram a bebericar de pé, cada qual do seu lado do<br />

balcão.<br />

` À terceira golada, Anselmo pousou o copo.<br />

- Permite-me alguns conselhos, Rosado?<br />

- Até lhos agradeço.<br />

- Vamos, então, sentar-nos.<br />

Acomodaram-se no sofá.<br />

18


- Sabe qual foi o meu maior problema? A disciplina.<br />

Não a disciplina dos quartéis da metrópole: formaturas<br />

impecáveis, botas engraxadas, cabelo cortado. Aqui é<br />

diferente. Não podemos transigir é em aspectos como<br />

rondas, reforços, limpeza, entre outras coisas.<br />

- Tenho a experiência da Guiné.<br />

- Na Guiné é diferente. Como estamos numa zona de<br />

passagem, pode-se passar a comissão sem contacto directo<br />

com o inimigo e, irresistivelmente, há a tendência para o<br />

abandalhamento. É esse abandalhamento que é perigoso.<br />

Quando menos se conta, pumba, levamos uma porrada<br />

tremenda. Olhe, se quer ter os homens na mão, seja<br />

intransigente nos pormenores, faça-os sentir que não podem<br />

andar à balda. Eu não permitia troncos nus, exigia que o<br />

subir e arrear da bandeira fossem feitos a preceito, não<br />

prescindia das formaturas antes das refeições. Tudo isto<br />

pode parecer irrisório mas, mais lá para a frente, verá como<br />

tem importância. Estou a aborrecê-lo?<br />

- Nem por sombras, é muito interessante o que está a<br />

dizer.<br />

O capitão Anselmo sorriu e esticou as pernas.<br />

- Eu estou a falar-lhe disto porque teria gostado que o<br />

meu antecessor me tivesse alertado também. Ter-me-ia<br />

evitado muitos dissabores. Dou-lhe um exemplo: eu vinha<br />

cheio de belos planos. Nada de messes, comida igual para<br />

todos. Passados oito dias, os soldados já davam palmadas<br />

nas costas dos furriéis e dos alferes, pouco faltava para os<br />

tratarem por tu. Já não havia ordem que não fosse discutida.<br />

Estávamos quase inoperacionais. Vi-me grego. Fui obrigado<br />

a tomar medidas radicais. Uma messe para os oficiais, outra<br />

para os sargentos, refeitório para o resto da malta. Daí para a<br />

frente tudo começou a correr lindamente. Se você falar com<br />

o pessoal, todos me consideram um bom tipo. - Riu-se. - E<br />

19


sabe porquê? Porque também nunca deixei acabar a cerveja<br />

e o tabaco na cantina. Fixe bem este pormenor, não esqueça.<br />

- Não esquecerei - riu Rosado.<br />

- Vamos beber outro uísque? É quase manhã, nem<br />

vale a pena ir para a cama.<br />

- Isso é lá consigo. Pela minha parte, vou ter dois<br />

anos para pôr o sono em dia.<br />

- Passe cá o copo.<br />

Enquanto vertia o uísque, Anselmo mudou<br />

subitamente de assunto:<br />

- E lá pela metrópole? A malta continua a fazer<br />

encontros regularmente?<br />

Quando Rosado respondeu, já Anselmo se instalara<br />

de novo a seu lado.<br />

- Sabe, Anselmo, está cada vez mais generalizada a<br />

ideia de que esta guerra não tem solução militar. Os capitães<br />

estão fartos de fazer comissões no ultramar, de queimar a<br />

juventude longe da família e dos amigos.<br />

- Só há uma solução. Todos nós sabemos isso. -<br />

Anselmo bebeu uma golada sequiosa e olhou o camarada<br />

nos olhos. - É preciso derrubar este regime e mudar as regras<br />

do jogo. E só nós o poderemos fazer.<br />

- Nos encontros, já toda a gente compreendeu isso,<br />

poucas vozes discordantes se ouvem.<br />

- Se assim é, está para breve o grande dia. Ainda me<br />

dá mais vontade de chegar o mais depressa possível a<br />

Lisboa.<br />

Calaram-se. A noite começava a diluir-se. Já se<br />

ouviam vozes à solta pela parada.<br />

20


Após alguns dias de sobreposição, os velhinhos<br />

acenaram efusivos adeus e treparam para as viaturas que<br />

logo se perderam a roncar picada abaixo, envoltas em<br />

nuvens de poeira, com pressa de chegar a Luanda.<br />

Ficou um silêncio de confins do mundo. Ao redor, a<br />

muralha dos morros, as manchas misteriosas das matas, o<br />

azul esbranquiçado do céu.<br />

Foi então que toque do clarim, anunciando o<br />

almoço, serpenteou parada além, despertou a bandeira que<br />

desfalecera no mastro, ricocheteou nos telhados de zinco das<br />

casernas, para logo ser engolido pela bocarra abrasadora do<br />

sol a pino.<br />

- Toca a formar - gritava o alferes Vasconcelos.<br />

Quebrado o torpor, todos se apressaram a entrar nas<br />

casernas à procura de pratos e talheres.<br />

- Onde raio meti eu o garfo - lamentava-se o Barão,<br />

revolvendo o armário.<br />

- Sabes lá tu onde cabeça, quanto mais o garfo –<br />

troçou Américo.<br />

Ainda pouco afeitos à nova rotina, íam surgindo aos<br />

magotes, aturdidos, para a fritadeira da parada, engrossavam<br />

lentamente a formatura. Já os faxinas, comandados pelo<br />

furriel vagomestre Máximo, numa azáfama, colocavam as<br />

terrinas da sopa sobre as mesas.<br />

- Mande entrar a malta, meu alferes - lamentou-se<br />

alguém. - O sol derrete.<br />

- Ainda falta gente.<br />

O Barão bamboleava-se parada adiante.<br />

- Corre, cabrão - gritaram-lhe.<br />

21


- Gajos destes só à porrada.<br />

- A tiro.<br />

- Tão com pressa de meter o focinho na gamela? -<br />

perguntou, sarcástico, o Barão, entrando calmamente na<br />

cauda da formatura.<br />

- A primeira fila pode entrar - ordenou o alferes<br />

Vasconcelos. - Em fila indiana, sem abandalhamentos.<br />

- Hoje temos feijão frade com atum ou atum com<br />

feijão frade? - troçou o Barão.<br />

- Estás com sorte, Barão - ripostou o alferes -,<br />

qualquer dia vais ter feijão frade com feijão frade.<br />

22


Nunes fazia a distribuição da comida.<br />

- Já todos têm ovo? – perguntou.<br />

- Eu ainda não - queixou-se o Barão.<br />

- Deixa-te de brincadeiras, pá. Põe lá o ovo no prato.<br />

Américo olhava abstracto os pedaços rosados de<br />

atum encarrapitados no monte de feijões. Num ápice, o<br />

Pacaça surripiou-lhe o ovo.<br />

- Passem cá os copos pra eu dividir o vinho - ordenou<br />

Nunes.<br />

Dezenas de olhos seguiam, solenes, a cascata roxa do<br />

vinho.<br />

- Queres mais vinhos, Pacaça? - ofereceu Mendes. -<br />

Podes ficar com o meu.<br />

O Pacaça levantou os olhos do prato, agradecido.<br />

- Deixa cá ver, pá. - Os dois copos, atestados lado a<br />

lado, encheram-lhe o coração de alegria.<br />

- Dizem que este vinho tem uns pozinhos de<br />

perlimpimpim para tirar a tesão à malta – insinuou o Barão.<br />

- Se tens medo, dá cá o teu.<br />

- Furriel Pinho - chamou um cabo na 2ª mesa -, não<br />

há mais comida? Não chegou para todos.<br />

- Vou saber à cozinha.<br />

- Falta um ovo nesta mesa – protestaram lá para o<br />

fundo do refeitório.<br />

O Fantasma passeava por entre as mesas.<br />

- Hoje não levas nada, Fantasma. Nem os cães<br />

tragam isto.<br />

Na 3ª mesa acendeu-se calorosa discussão por causa<br />

do vinho. Houve insultos, histerismos, iam jogando à<br />

23


porrada, mas tudo acabou por se resolver. O furriel Máximo,<br />

a parlamentar com os cozinheiros nem chegou a a intervir.<br />

Um faxina trouxe mais feijão para a 2ª mesa.<br />

- E atum? – perguntou candidamente o cabo.<br />

- Atum? Vai pescá-lo.<br />

- A tua irmã é que eu pescava.<br />

A 1ª mesa terminou a refeição.<br />

- Podemos sair? - perguntou Nunes.<br />

O furriel Máximo inspeccionou se estava tudo em<br />

ordem: os restos nas terrinas, a mesa limpa.<br />

- Podem sair.<br />

Mendes acendeu um cigarro.<br />

- Não vens? – perguntou-lhe Américo.<br />

- É só acabar este cigarro.<br />

- Fico contigo. Dá cá lume.<br />

Ficaram a fumar calmamente, um diante do outro, os<br />

cotovelos apoiados na mesa.<br />

- Ficam para o jantar? – troçou o faxina que<br />

levantava os tabuleiros e as terrinas.<br />

- Vai lavar a loiça e não nos chateies - despachou-o<br />

Américo.<br />

Amontoados à porta de armas, à torreira do sol, a<br />

garotada da sanzala esperava pacientemente a chegada do<br />

jipe do lixo para depois irem à lixeira recolher as magras<br />

sobras da refeição.<br />

- Em que pensas?<br />

Mendes apontou o magote das crianças.<br />

- Será para isto que andamos para aqui nesta guerra?<br />

- Se começas a preocupar-te com essas coisas vais<br />

dar em doido ou na cadeia. É perigoso pensar certas coisas,<br />

quanto mais dizê-las, bem sabes. O que eu quero é acabar a<br />

comissão. Na minha terra diz-se que na tropa não devemos<br />

ser muito espertos nem muito burros.<br />

24


- Vou falar ao capitão - decidiu Mendes. - Os garotos<br />

poderiam pelo menos vir aqui recolher a comida antes de ser<br />

atirada para a lixeira.<br />

- Vê lá no que te metes.<br />

- O capitão parece-me bom tipo.<br />

Levantaram-se. A parada estava branca de tanta luz.<br />

Sem vivalma. A bandeira desfalecera no mastro, ansiosa pela<br />

brisa da tarde.<br />

- Vou falar com o capitão - repetiu Mendes. - E tu?<br />

- Vou escrever à família.<br />

25


Mendes entreabriu a porta da messe dos oficiais. A<br />

sala estava deserta, envolta numa penumbra fresca.<br />

- Queres alguma coisa, pá?<br />

Estremeceu àquela voz inesperada. Semicerrou os<br />

olhos e conseguiu focar o vulto do Malacão, regaladamente<br />

estendido no sofá.<br />

- O nosso capitão?<br />

- Pode falar comigo que é a mesma coisa.<br />

- Deixa-te de parvoíces. Sabes dele ou não?<br />

- Tá no gabinete.<br />

- Obrigado.<br />

Ia cerrar a porta quando Malacão o chamou.<br />

- O que há?<br />

- Vem cá para te passar uma carta de apresentação.<br />

Malacão ria como um perdido até que se engasgou e<br />

começou a tossir.<br />

- Vê lá, não vomites o osso que os teus donos te<br />

deram ao almoço.<br />

Malacão, passado o ataque de tosse, veio à porta<br />

ripostar:<br />

- É melhor comer os ossos dos oficiais do que feijão<br />

frade com atum, meu palerma.<br />

Aliviado, tornou a refastelar-se no sofá, a digerir o<br />

bife com ovo a cavalo e as duas cervejas geladas do almoço.<br />

- Palerma - ainda grunhiu antes de cerrar os olhos.<br />

*<br />

- O meu capitão dá licença?<br />

` - Entra.<br />

26


O capitão Rosado olhou-o, intrigado, por detrás da<br />

secretária. As bolsas, sob os olhos azuis, meio turvos,<br />

estavam roxas.<br />

“O capitão mama uisque como quem bebe água”,<br />

propalava-se pelo aquartelamento.<br />

- Há problemas?<br />

- Queria falar pessoalmente com o meu capitão sobre<br />

um assunto.<br />

- Despacha-te lá, tenho mais que fazer.<br />

De pé, decidido, Mendes enfrentou o superior.<br />

- Tenho observado o que se passa e é um crime atirar<br />

com tanta comida para o lixo quando na sanzala há crianças<br />

a morrer de fome.<br />

O capitão espalmou as mãos na secretária e ergueuse,<br />

furioso.<br />

- Quem és tu para vires para aqui com essa conversa?<br />

Estás a armar em esperto ou a provocar-me?<br />

- Longe de mim tal ideia, meu capitão. - O tom de<br />

voz era conciliante. - Seria uma obra de caridade ajudar<br />

esses infelizes.<br />

O capitão deixou-se cair na cadeira. Passou a mão<br />

cansada pelo rosto e pelos cabelos.<br />

- Isso é outro falar. Vai lá embora que eu vou pensar<br />

no assunto.<br />

- As crianças poderiam vir ao refeitório recolher as<br />

sobras, depois das refeições.<br />

- Já compreendi, basta. - Os olhos cansados mediram<br />

Mendes de alto a baixo. - Não gostas muito desta guerra,<br />

pois não?<br />

- Confesso que gosto mais de mulheres.<br />

Rosado soltou uma risada, divertido.<br />

- Podes ir. Obrigado pela ideia.<br />

Mal Mendes partiu, Rosado retirou a garrafa de<br />

uísque da gaveta da secretária e sorveu uma longa golada.<br />

27


- Cabrões ! - Com um piparote bem medido, Américo<br />

espalmou o mosquito contra o pescoço. - Já não me lixas<br />

mais.<br />

Sentia-se chegar ao limite da resistência, os<br />

tornozelos e os nós dos dedos dolorosamente inchados de<br />

tanta ferroada. Prestes a desatar aos berros.<br />

Ao redor do aquartelamento, à volta dos postes de<br />

iluminação, os mosquitos saíam da noite em hordas cerradas.<br />

"Maldita terra, malditos mosquitos. Não bastava este calor<br />

de morrer."<br />

Pousou a G3 no parapeito do posto de vigia e pôs-se<br />

a espiar o negrume. Múltiplos ruídos, indestrinçáveis, de<br />

todos os timbres, elevavam-se para além do anel de luz das<br />

lâmpadas da periferia do aquartelamento. Era um bramar<br />

soturno, hostil, prenhe de suspeições.<br />

Por instantes esqueceu-se dos mosquitos, percorrido<br />

por um arrepio. Mas o ressonar dos dois camaradas de posto,<br />

mesmo a seus pés, serenou-o.<br />

"Se estivesse sozinho morria de cagaço."<br />

Olhou o relógio de pulso. Os ponteiros fosforescentes<br />

indicavam as três horas da madrugada. Dentro de três<br />

quartos de hora despertaria o Mendes para o render. Seria a<br />

sua vez de ferrar o galho, se fosse capaz.<br />

Apetecia-lhe fumar um cigarro mas a imagem<br />

ameaçadora do capitão sobrepôs-se ao desejo. Não lhe<br />

apetecia mesmo nada apanhar uma porrada e ir parar ao<br />

Leste, que era bem pior do que o Norte, segundo diziam.<br />

- Sentinela, eh sentinela !<br />

28


Emaranhado nos seus pensamentos, levou tempo a<br />

recompor-se.<br />

- Estavas a dormir, logo na primeira noite?<br />

Pela voz, reconheceu o furriel Neves.<br />

- Aqui no poleiro, não dá o sono a ninguém, meu<br />

furriel.<br />

- Podia passar por aqui um regimento de turras que<br />

não davas por nada. Vamos lá a ver se abres mais os olhos.<br />

Américo sentiu os passos do furriel perderem-se na<br />

noite. Enervado, tornou a olhar o relógio. Estava na hora.<br />

Até já passavam cinco minutos.<br />

- Acorda, Mendes, está na hora.<br />

O camarada soergueu-se da enxerga, estremunhado.<br />

- Já ? Não me estás a tramar ?<br />

- Vá, levanta-te. Não acordes o Fernandes.<br />

- Logo agora que estava a sonhar com uma miúda<br />

muito boa lá da terra. Vou convidá-la para ser minha<br />

madrinha de guerra.<br />

- Mas já tens três ou quatro.<br />

- Quantas mais melhor. Tens um cigarro?<br />

- Cuidado com o capitão!<br />

- O capitão que vá bardamerda. Dá cá o cigarro.<br />

O clarão do fósforo iluminou dois rostos terrosos.<br />

Depois, ficou a ponta vermelha do cigarro a fazer<br />

arabescos na noite.<br />

- Não te deitas?<br />

- Não tenho sono. Fico contigo um bocado.<br />

- Saudades? Deixa lá que qualquer dia já chega o<br />

correio.<br />

Falavam em surdina, para não acordar o Fernandes.<br />

Os mosquitos tinham acalmado e para além dos<br />

morros começava a assomar o clarão da madrugada.<br />

29


- Sabias que o meu filho fez ontem um ano? - disse<br />

Américo, com tremuras na voz. - É verdade, fez ontem um<br />

ano que ele nasceu em França.<br />

- Tu estavas na França, não é? Que maluqueira foi<br />

essa de voltares para fazer a tropa?<br />

- Sei lá! Comecei a pensar que nunca mais poderia<br />

regressar a Portugal, que o meu filho nunca poderia conhecer<br />

os avós. A mulher também se sentia triste sem a família.<br />

Resolvemos regressar. Mas quando acabar esta<br />

merda, volto para a França.<br />

- Dizes bem, esta merda.<br />

Subitamente, um estampido acordou a noite.<br />

- Ouviste?<br />

- Foi no posto 3.<br />

Soou outro tiro, logo seguido duma rajada.<br />

O aquartelamento encheu-se de sobressalto : luzes,<br />

vozes alteradas, correrias, o latir do Fantasma.<br />

- Será um ataque? aventou Américo de dedos<br />

crispados na G-3.<br />

Fernandes despertara.<br />

- O que é que a gente vai fazer?- balbuciou.<br />

A pergunta fê-los sentir como galinhas aprisionadas.<br />

- Terá morrido alguém?<br />

- E nós aqui sem saber de nada.<br />

- Que porra de situação.<br />

- Calma - aconselhou Mendes. - Não me parece coisa<br />

grave.<br />

- Sentinela! - gritaram lá de baixo.<br />

- Quem está aí? - perguntaram em coro.<br />

- É o furriel Meneses. Estejam tranquilos que ainda<br />

não é desta que vão morrer. Foi o parvo do Costa que julgou<br />

ter ouvido um ruído estranho e desatou às rajadas como um<br />

maricas. Algum javali.<br />

30


- Que cagaço, meu furriel! - Américo soltou uma<br />

risada nervosa. - Já pensávamos que os turras tinham<br />

atacado.<br />

- Ponham-se mas é a pau com os ataques dos<br />

mosquitos.<br />

- Que susto aquele gajo nos pregou - desabafou<br />

Fernandes. - Ia-me borrando todo.<br />

- O furriel disse que eram os javalis mas podiam<br />

muito bem ter sido os turras.<br />

- Nunca se sabe.<br />

- Afinal, quem é que está de sentinela? Eu ou vocês?<br />

- galhofou Mendes.<br />

A parada enchia-se de vida com as primeiras<br />

pinceladas da manhã.<br />

O segundo pelotão vai sair para a mata - suspirou<br />

Fernandes. - Já é de dia.<br />

- Graças a Deus - benzeu-se Américo, olhos postos<br />

na luminosidade que acobreava o dorso dos morros.<br />

31


Noite de consoada. Pouco passava das dez horas da<br />

noite e na caserna do 1o pelotão já se bebera até chegar<br />

como o dedo. Fernandes sacou do realejo e largou a tocar<br />

modinhas do Minho. Todos se puseram a dançar, os dorsos<br />

nus cheios de reflexos acobreados.<br />

- Puxa pela garganta, Fernandes. Mostra a esta malta<br />

quem são os nortenhos - gritou o Pacaça. Levou uma cerveja<br />

à boca e a maçã-de-adão começou a subir e a descer no<br />

pescoço de touro.<br />

- Cinco segundos, hem! Quem é capaz de fazer este<br />

tempo? Alguém tem peneiras? - desafiou ao redor, de olhos<br />

envinagrados.<br />

Mas ninguém lhe ligou. Dançava-se e bebia-se por<br />

entre guinchos ululantes. O odor dos corpos suados<br />

misturava-se com o cheiro azedo da cerveja entornada. O<br />

Pacaça agarrou outra cerveja e recomeçou a sua corrida<br />

contra o tempo: um.. . dois. . . três... quatro segundos.<br />

Ufano, os olhos negros incendiados, desafiava a<br />

malta.<br />

- Hei-de chegar aos três segundos ainda esta noite -<br />

taramelava, numa dança de ébrio.<br />

O Barão começou a cantar:<br />

«Estou farto deles»<br />

E o pelotão acompanhou-o em coro:<br />

«Da chicalhada,<br />

Esses pançudos,<br />

Que não fazem nada».<br />

32


Américo segurou Mendes por um pulso.<br />

- Quero-te mostrar uma coisa - ciciou-lhe ao ouvido.<br />

Nos olhos já lhe bailavam meia dúzia de cucas.<br />

- Anda daí.<br />

A malta continuava a cantar:<br />

«Vai prá mata<br />

Ó meu malandro.<br />

Por tua causa<br />

É qu’eu aqui ando».<br />

Mendes acabou de beber a cerveja e deixou-se<br />

conduzir. Américo tirou a mala de debaixo da cama e abriua.<br />

- Olha! Tá lindo, não tá?<br />

Mendes pegou na fotografia. O rosto traquinas do<br />

filho do Américo fê-lo engolir em seco.<br />

- Tá lindo, não tá? - insistia a voz cheia de lágrimas<br />

do Américo.<br />

«Abre a cantina,<br />

Ó cantineiro,<br />

Anda co’a malta<br />

Caga no Primeiro».<br />

- Quando penso que hoje é noite de consoada! -<br />

soluçava Américo.<br />

O Fernandes estava fantástico nessa noite, quase<br />

fazia o realejo falar. Os corpos contorciam-se, alucinados,<br />

ululantes. O Barão saltou para cima duma cama:<br />

- Meus senhores, vamos beber em honra da malta que<br />

está nos postos de sentinela esta noite.<br />

Foi então que uma ideia genial chispou naquele mar<br />

de álcool.<br />

33


- E se lhes fôssemos levar uma pinga? - juntou uma<br />

voz.<br />

Como que por magia, uma garrafa de bagaço nasceu<br />

das mãos do Pacaça.<br />

- Em frente, marche! - comandou o Barão.<br />

À aproximação daquele mar proceloso, as sentinelas<br />

gritavam, alarmadas:<br />

- Quem vem lá?<br />

- É o pai Natal que te traz um presente - respondialhe<br />

o pelotão.<br />

E sem tempo para uma resposta, a garrafa de bagaço<br />

começava a gorgolejar garganta abaixo dos felizes<br />

contemplados.<br />

34


O Pacaça esqueceu-se que era um grande bebedor. Já<br />

nem mesmo uma boa partida de lerpa o fazia esquecer a<br />

imensidão exasperante dos dias.<br />

- É um caso perdido - comentava, descorçoado o<br />

Barão. - Eu que tinha tantas esperanças neste rapaz!<br />

O Pacaça sorria, o carão inundado por um fogaréu<br />

que lhe crescia nas entranhas.<br />

Impreterivelmente, todas as noites, antes de se<br />

escapulir do quartel para a cubata de Maria, passava pela<br />

cozinha buscar os restos do jantar.<br />

- Lá vem o rapa-tachos - galhofavam os cozinheiros.<br />

Quando havia faltas, chegava ao ponto de repartir<br />

com a rapariga a sua ração. Estirado no catre, qual ritual,<br />

gostava de vê-la comer, silenciosa, cheia de olhares<br />

idólatras.<br />

No final, olhos semicerrados, o rosto crispado de<br />

desejo, chamava-a:<br />

- Anda cá.<br />

Naquela noite estranhou-a. Não lhe achou o ardor<br />

habitual. O olhar turvou-se-lhe ciumento.<br />

- O que tens?<br />

- Nada - respondeu Maria, abraçando-o.<br />

O Pacaça repeliu-a com brutalidade.<br />

- O que tens? - repetiu, sondando-lhe os olhos baixos.<br />

– Andas com outro?<br />

- Tenho um filho na barriga - anunciou, com<br />

simplicidade, Maria.<br />

- Um filho!? - gritou o Pacaça, sentando-se de<br />

repelão no catre. - Meu!?<br />

35


Apanhou as calças e vestiu-as atabalhoadamente.<br />

Sentia o estômago às reviravoltas como quando estava com a<br />

ressaca.<br />

Maria continuava sentada na beira do catre, esfíngica<br />

estátua de ébano.<br />

O Pacaça calçou as botas e pegou na camisa.<br />

- Um filho!?<br />

Velou noite fora.<br />

“Um filho!?”.<br />

Era algo de insólito que se incrustara subrepticiamente<br />

no seu mundo simples e que, à traição, o<br />

socara no estômago, como um copo de bagaço em jejum.<br />

Ouvia o ressonar dos camaradas. A lua ocupou,<br />

gorda e enfarinhada, o rectângulo da janela, pincelando a oca<br />

a caserna. Depois, tranquilamente, desapareceu.<br />

“Que diabo posso fazer? Levar o garoto comigo?<br />

Abandoná-lo?”<br />

A esta última alternativa. o coração confrangeu-selhe.<br />

Na sanzala, em todas as sanzalas por onde passava, as<br />

crianças mulatas constrangiam-no.<br />

- Eh filho duma lata de conserva!<br />

- Eh café com leite!<br />

Nunca deixara de repreender os camaradas, quando<br />

estes troçavam dos garotos.<br />

Certa vez ia jogando à porrada com o Barão. Não<br />

tinha estômago para ouvir aquelas coisas.<br />

“Iria o seu filho ser um dia alvo de troças idênticas?”<br />

Sentia-se acalorado. Com os pés. atirou o lençol para<br />

o fundo da cama, indiferente aos mosquitos.<br />

“E se ficasse em Angola?”<br />

Arrepiou-se e cobriu-se de novo com o lençol.<br />

Na sanzala, os galos já cantavam. Em breve<br />

despontaria a alba.<br />

36


Passou ao de leve pelo sono. Um sono prenhe de<br />

pesadelos e de reviravoltas na cama. A uma reviravolta<br />

maior a espertina regressou. Contou os meses pelos dedos.<br />

“No fim da comissão já o miúdo teria um ano. Já lhe<br />

chamaria pai.”<br />

A ideia de ficar, qual monstro libidinoso, enroscouse-lhe<br />

no cérebro.<br />

“E por que não? Já ouvira dizer que davam terras lá<br />

para o sul. Não tinha medo ao trabalho. Afinal, se<br />

regressasse, não teria também que ir cavar o seu pão na<br />

Alemanha ou na França? Pelo menos em Angola<br />

compreendia as pessoas, falava-se língua de gente. Por que<br />

não? Ficar com a criança, com Maria”.<br />

O Pacaça sorriu e fechou os olhos, apaziguado. Não<br />

tardou a adormecer. Pela janela já escorria uma claridade<br />

diáfana.<br />

37


A mensagem, captada pelo pessoal do posto de<br />

transmissões, propalou-se rapidamente pelo aquartelamento:<br />

"Caiu uma catrefada de turras nas armadilhas do<br />

trilho Luvo."<br />

As casernas esvaziaram-se e a parada encheu-se de<br />

frenesim. Os cozinheiros largaram os tachos e correram a<br />

engrossar os magotes efervescentes. O pessoal da limpeza<br />

desenvencilhou-se das vassouras e embicou direito ao posto<br />

de transmissões. Para aumentar a balbúrdia, o jipe da água<br />

com o autotanque a reboque irrompeu pela parada a grande<br />

velocidade, quase cilindrando um dos grupos.<br />

- Querem trancar o jipe? - refilou o condutor, envolto<br />

numa nuvem de poeira.<br />

O furriel mecânico Reis apercebeu-se do incidente e<br />

saiu disparado da messe dos sargentos, de rosto apopléctico<br />

por quatro ou cinco nocais.<br />

- O que há?<br />

- Estes gajos atravessaram-se diante do jipe -<br />

desculpou-se o condutor.<br />

- Quantas vezes já te disse para andares mais devagar<br />

dentro do aquartelamento? - gritou o furriel, assanhado.<br />

O condutor achou por bem bater em retirada e o jipe<br />

começou a rastejar de rabo entre as pernas para a cozinha.<br />

Só então o furriel Reis se apercebeu da agitação<br />

reinante.<br />

- Passa-se alguma coisa? - perguntou ao redor.<br />

- Parece que caiu um exército de turras nas nossas<br />

armadilhas - respondeu-lhe o básico Malacão, feliz por<br />

esclarecer um furriel.<br />

38


*<br />

O furriel Meneses estava estendido na cama,<br />

embrenhado na leitura duma revista quando se levantou a<br />

balbúrdia. Depois ouviu o derrapar do jipe.<br />

''São os fângios do Reis” pensou, mas como a<br />

agitação persistia pousou a revista e foi abrir a porta.<br />

- O que há? - perguntou ao Reis que regressava<br />

agitadíssimo à messe.<br />

- Caíram uns gajos nas armadilhas do Luvo.<br />

- Nossos?!<br />

- Turras, parvo.<br />

Meneses começou a ver tudo à roda. Parada, homens,<br />

casernas, céu, bandeira, num turbilhão alucinante. Encostouse<br />

à parede para não cair.<br />

- Sentes-te mal, pá? - assustou-se Reis.<br />

Lentamente, tudo foi reocupando o seu devido lugar.<br />

Ficou só o coração a estraçalhar o peito.<br />

- Queres um copo de água?<br />

Meneses abanou a cabeça.<br />

- Não, obrigado. Já estou bem.<br />

- Devias ir medir a tensão, aconselhou Reis. Deves andar<br />

a precisar duns copos. Anda dai.<br />

- Vai tu. Já estou bem.<br />

Reis ainda duvidava.<br />

- Vê lá se te dói alguma coisa.<br />

Meneses reentrou na camarata. Atirou-se para cima<br />

da cama.<br />

“Caídos nas armadilhas que ele e o alferes<br />

Vasconcelos tinham montado.”<br />

Vozes, saídas das próprias entranhas esmagavam-lhe<br />

as têmporas.<br />

“Assassino... Assassino...”<br />

Afundou a cara na almofada, as mãos crispadas nos<br />

ferros da cama.<br />

39


Um rugido animal subiu-lhe à garganta. As lágrimas<br />

saltaram, por fim, a ferver, rosto abaixo.<br />

40


Na messe dos oficiais, a digestão do jantar estava<br />

demorada.<br />

Malacão sentia-se ferver por dentro. Combinara com<br />

o Pinto ir à sanzala e a oficialada não dava sinais de se<br />

apressar, pregados às cadeiras, a palrar pelos cotovelos.<br />

- Serve-nos o café, Malacão - ordenou o capitão<br />

Rosado. – Inesperadamente teve um ataque de generosidade:<br />

vai ao meu quarto e trás a garrafa de napoleão que lá tenho<br />

aberta, estás a ouvir?<br />

- Ena! - exclamou, atónito o alferes Silva. - Perdeu a<br />

cabeça?<br />

- É para não me chamarem sovina, pelas costas.<br />

- Deviam ser duas garrafas - insinuou o alferes<br />

Vasconcelos. - Uma em exclusivo para mim. Afinal, não sou<br />

eu o herói? Digam lá quem é que montou as armadilhas para<br />

os patos? Já pensou em me propor para uma medalha,<br />

capitão Rosado? Ou quer os louros só para si?<br />

O capitão estava capaz de encaixar tudo e mais<br />

alguma coisa.<br />

- Pela minha parte, enchia-lhe o peito de medalhas -<br />

replicou, sorridente. - Só que não o vejo com arcabouço para<br />

tanto peso.<br />

Nesse instante, Malacão chegou com a bandeja dos<br />

cafés e a garrafa.<br />

- Ainda precisam de mim? - perguntou, esperançoso,<br />

colocando tudo sobre a mesa.<br />

- Já te queres pirar? - carregou o sobrolho o capitão.<br />

Malacão bateu as pálpebras, impregnado de<br />

ingenuidade.<br />

41


- Eu, meu capitão!? - exclamou, magoado. Os seus<br />

olhitos esverdeados escorriam mel. - Tenho de ir à sanzala<br />

saber se as lavadeiras já têm pronta a roupa do senhores<br />

oficiais. É por isso que estou tão apressado.<br />

- À grande Cheveik! - gargalhou o alferes Coelho,<br />

sorvendo o café. - És impagável. És o melhor faxina do<br />

mundo.<br />

- Vai lá, salafrário - assentiu o capitão.<br />

Malacão pisgou-se lestamente, não sem antes<br />

envolver a garrafa num olhar amoroso.<br />

“Logo, no regresso, vou-te dar uma arrombadela.<br />

Contando que estes filhos da puta não a espremam até à<br />

última gota. Capazes disso são eles.”<br />

42


A coluna chegou cedo a S. Salvador, mal passava das<br />

dez horas da manhã.<br />

- Meus senhores, regressamos à Calambata às quatro<br />

horas da tarde. Às três e meia quero-vos a todos em cima das<br />

viaturas. Aviso-vos de que se causarem problemas não terei<br />

contemplações com ninguém. Alferes Vasconcelos, já<br />

montou o sistema de guarda às viaturas?<br />

- Já sim, meu capitão. Ficam dois homens de guarda,<br />

rendidos de hora a hora.<br />

- Óptimo. Ah, outra coisa, sempre de quicos na<br />

cabeça e camisa abotoada. O nosso comandante do sector<br />

não perdoa. Já muito menino apanhou uma porrada das<br />

grossas por muito menos. Também estou a ver alguns de<br />

vocês com os camuflados muito rasgados. Vejam se, pelo<br />

menos quando vêm a S. Salvador remendam as roupas. Não<br />

quero que considerem o pessoal da Calambata um bando de<br />

maltrapilhos. Podem destroçar. E juízo!<br />

S. Salvador era pouco mais do que a rua principal.<br />

Nela se congregava toda a vida da cidade: estabelecimentos<br />

comerciais, cafés, cinema, correios, serviços administrativos,<br />

umas tantas ou quantas vivendas. Ao redor, os<br />

aquartelamentos e a sanzala. E, como um anel estragulador,<br />

para nao esquecer a guerra, arame farpado e postos de<br />

sentinela.<br />

O pessoal dispersou rapidamente. Alguns apressaram<br />

o passo logo direitos ao café onde os esperava um mar de<br />

cerveja gelada. Outros, olhar transtornado, encaminharamse,<br />

furtivos, para o local, numa rua mais disfarçada, onde lhe<br />

constava ter chegado uma puta branca vinda de Luanda.<br />

43


*<br />

Costa não perdeu tempo e entrou rapidamente no<br />

estúdio fotográfico.<br />

- As fotografias do furriel Reis já estão prontas? -<br />

disparou.<br />

O fotógrafo levantou a cabeça calva do jornal. Tinha<br />

faces cavadas e amareladas pelos trópicos e uns olhos azuis<br />

amargurados.<br />

- Da Calambata.<br />

- Ah, já me lembro.<br />

Tirou da prateleira um envelope.<br />

- Foi ele que o mandou cá vir buscá-las?<br />

- Foi sim. Aqui tem um bilhete.<br />

Costa tirou o papel do bolso da camisa.<br />

- Veja.<br />

O homem fez um gesto de enfado e ignorou o bilhete.<br />

- Tudo bem.<br />

Costa, mal se apanhou na rua, abriu o envelope e<br />

pôs-se a folhear as fotografias. Riu-se, baboso, quando<br />

encontrou a que procurava. Ficara porreiro, com a a jibóia<br />

que o Pacaça matara, enrolada à volta do pescoço. Grande<br />

fotografia aquela! Iria fazer pelo menos cinco cópias para<br />

enviar para Portugal. Aquela já iria direitinha numa carta<br />

para a Maria da Luz.<br />

A caminho dos correios, a passo estugado, ia<br />

mastigando a prosa que acompanharia o retrato. Talvez<br />

assim: “Aqui te envio a fotografia da jibóia que matei à<br />

catanada numa operação. Estava de sentinela durante a noite<br />

e pressentia quando ela se preparava para atacar a tenda de<br />

três camaradas. Se não tivesse agido rapidamente não sei o<br />

que seria. Nem quero pensar nisso. Uma menina destas<br />

quando se enrosca num um homem já não há nada a fazer. É<br />

trigo limpo, os ossinhos todos partidos...”<br />

44


Os três unimogs voavam na picada. O capitão<br />

andava sempre a martelar: nada de velocidade excessiva,<br />

nunca perder de vista a viatura da retaguarda. Mas qual quê,<br />

o acelerador era para ser pisado, desdenhavam os<br />

condutores. Principalmente nestes regressos de S.<br />

Salvador, com a cerveja a fazer das suas.<br />

A secção do furriel Neves viajava na viatura da<br />

retaguarda, a comer com a poeira toda em cima.<br />

- Afasta-te mais, gritou o furriel Neves ao condutor.<br />

- O quê?<br />

- Afasta-te por causa do pó - repetiu o furriel.<br />

O condutor rodou a cabeça para gritar.<br />

- O nosso capitão não gosta disso - lembrou mas<br />

desacelerando de imediato.<br />

- O nosso capitão que vá ter um menino - gracejou o<br />

cabo Madeira.<br />

- Se precisarmos de ajuda, mandas logo um verylight,<br />

não é verdade, ó Madeira? Deve ser para o que essa<br />

merda serve.<br />

O cabo Madeira acusou mais uma vez o toque. Era o<br />

seu ponto fraco. Enquanto a outra malta empunhava as<br />

esbeltas G3, ele andava sempre com o morteiro às costas,<br />

além das munições que lhe vergavam a espinha.<br />

- Só espero que nunca precisem de mim.<br />

- Távamos bem tramados.<br />

- Pacaças! - gritou o Costa, apontando o dedo.<br />

- Pára, pára - gritou o furriel Neves, às sapatadas às<br />

costas do condutor.<br />

45


O unimog, com os travões a fundo, arrastou-se na<br />

picada como uma jibóia até se imobilizar.<br />

- Onde estão?<br />

- Ali, ali - apontava o Costa, vermelho de excitação.<br />

- Não vejo nada.<br />

- Ali, ali, junto às árvores.<br />

- Já vejo...já!<br />

- Porra, ainda não vejo nada...<br />

- Grande cegueta...<br />

- Já vejo...já vejo.<br />

Encavalitavam-se nos bancos, aos empurrões. Pouco<br />

a pouco, todos foram avistando os bichos. Eram duas<br />

pacaças. Pastavam, pachorrentas, a cerca de duzentos metros<br />

da picada, num vale de capim rasteiro e verdejante..<br />

- Vão três gajos comigo - ordenou o furriel Neves,<br />

saltando lesto do unimog.<br />

- E a coluna? – inquietou-se o condutor.<br />

- Que esperem.<br />

*<br />

O capitão, que viajava no unimog do meio, ao lado<br />

do transmissões, regulava laboriosamente a distância entre as<br />

viaturas.<br />

- Mais depressa.<br />

- Mais devagar.<br />

- Façam sinal à viatura da frente para abrandar.<br />

- Transmissões, comunica a nossa posição para a<br />

Companhia.<br />

-Eh pá, põe a arma em cima dos joelhos, pensas que<br />

isso é um cajado?<br />

Numa curva, perdeu de vista a viatura da retaguarda.<br />

Esperou pela recta seguinte para ver se a avistava, mas nada.<br />

Eclipsara-se.<br />

- Façam sinal à viatura da frente para parar.<br />

46


Nos primeiros tempos da comissão fazia logo o<br />

pessoal descer das viaturas para o capim. Era uma estopada<br />

fazer uma coluna com ele. Presentemente, já estava um<br />

pouco mais razoável.<br />

- Onde se terão metido?<br />

- Devem-se ter atrasado, por causa do pó - opinou o<br />

alferes Mendonça.<br />

Têm muito medo do pó, esses meninos. Quando<br />

chegar a época do cacimbo é que vão saber o que é pó. Já<br />

comunicaste com a Companhia? - perguntou ao operador de<br />

transmissões.<br />

- Não respondem.<br />

- Patrão fora, dia santo na loja.<br />

- Vamos ver o que se passa? - sugeriu o alferes<br />

Mendonça, já apreensivo.<br />

Um tiro, logo seguido por um cacharolete deles,<br />

ecoou pelos morros. Depois, mais um tiro solitário e o<br />

silêncio.<br />

- Vamos voltar atrás - ordenou o capitão.<br />

Os unimogs roncaram nervosos na manobra. O<br />

Fantasma levantou a cabeça e latiu, inquieto, de orelhas<br />

espetadas.<br />

- Mais depressa.<br />

Cobriram seguramente dois quilómetros de picada<br />

sem encontrar vivalma.<br />

- Vamos voltar, não podem estar mais para trás -<br />

disse o capitão, com voz insegura.<br />

A estupefacção pincelava todos os rostos. Ninguém<br />

se atrevia a aventar qualquer explicação.<br />

- Inverter a marcha - ordenou o capitão.<br />

Os unimogs tornaram a roncar. Todos se seguravam<br />

com força aos bancos para não serem cuspidos.<br />

Fernandes deu um pontapé ao Fantasma, que não<br />

parava de latir.<br />

47


O cão ganiu dolorido e enfiou-se debaixo dos bancos,<br />

junto ao caixote das fitas de balas da metralhadora.<br />

- Parece bruxedo - exclamou, banzado, o Fernandes.<br />

Os unimogs voavam, de prego a fundo.<br />

Um quilómetro a frente, Mendes, que seguia no<br />

primeiro unimog, ao lado do condutor, julgou aperceber-se<br />

de qualquer coisa estranha mais à frente. Soergueu-se no<br />

banco, para fixar melhor, e só teve tempo de soltar um grito<br />

de alerta:<br />

- Trava!<br />

O condutor esmagou o travão e a viatura foi da rastos<br />

uma dúzia de metros. Imobilizou-se, por fim, a dois dedos<br />

travessos do unimog desaparecido que, vindo do capim,<br />

reentrava tranquilamente na picada. Logo depois, surgiu o<br />

unimog do capitão também na eminência de se enfeixar nos<br />

outros. Ficou atravessado na picada, num arremedo de pião.<br />

Os insultos choveram de todo o lado.<br />

- Cabrões!<br />

- Iam-nos matando a todos.<br />

- Bando de inconscientes.<br />

- Filhos da puta.<br />

O capitão saltou do unimog e correu, a espumar, para<br />

os prevaricadores.<br />

- Quem comanda esta viatura? - disparou.<br />

- Eu - respondeu o furriel Neves, calmamente.<br />

- Você vai ter de achar uma boa explicação, caso<br />

contrário vou tramá-lo, sem dor nem piedade.<br />

O pessoal já descobrira a pacaça morta em cima da<br />

viatura. A excitação era uma onda avassalante.<br />

- Fizeram para a coluna por causa duma pacaça? -<br />

continuou, encolerizado o capitão. - É o cúmulo da<br />

bandalheira. Alferes Mendonça, é esta a disciplina do seu<br />

grupo?<br />

48


O capitão apercebeu-se de que estava a falar para o<br />

boneco. Em catadupa, contavam-se detalhes da caçada.<br />

- Caiu que nem um tordo! Tenho a certeza que foi o<br />

meu tiro.<br />

- Deixa-te de bazófias. Toda a gente viu que foi o<br />

meu.<br />

- A bala no coração é minha, apostava a vida.<br />

- A outra também levou chumbo.<br />

- Vai morrer lá mais à frente.<br />

- Grande bicho. Custou a subi-la para o unimog.<br />

- O nosso furriel vagomestre Máximo é que vai<br />

gostar.<br />

- Todos para as viaturas. No aquartelamento tratamos<br />

do caso - concluiu, impotente, o capitão, com a voz já<br />

amolecido pela certeza dumas boas arrobas de carne fresca.<br />

49


Américo pensava no filho quando a explosão o<br />

atirou ao ar. Caiu de costas na cama fofa do capim.<br />

Por um bom lapso de tempo não conseguiu<br />

raciocinar, os ouvidos numa zoada tremenda. Gradualmente,<br />

foi recuperando a lucidez.<br />

“Meu Deus! O que teria sido? Meus Deus, meu Deus,<br />

devo estar ferido. Será grave?”<br />

Vozes alvoroçadas subiam ao redor.<br />

“Meu filho, nunca mais te torno a ver”.<br />

Após mais uns minutos de imobilidade, apercebeu-se<br />

que não sentia dores. Ousou mexer um pé, depois o outro, as<br />

mãos, o pescoço, o suor a cegá-lo. Sentou-se.<br />

“Meu Deus, estou vivo”.<br />

Pôs-se de pé. A zoada nos ouvidos parou.<br />

Finalmente, compreendeu que não estava ferido.<br />

Na picada sobrepunham-se ordens, gritos, correrias.<br />

“Foi uma mina, foi uma mina. Onde estará a minha<br />

G3? Se o capitão me apanha sem a arma dá-me uma<br />

descasca.”<br />

Reentrou na picada.<br />

- Há feridos?<br />

Ninguém lhe respondeu. O capitão, na berma da<br />

picada, acocorado sobre o rádio de transmissões,<br />

comunicava com a Companhia, numa voz<br />

despropositadamente alta. O Barão fumava um cigarro, com<br />

a G3 a servir de cajado. O enfermeiro punha um penso na<br />

testa do Costa.<br />

- Estou muito ferido? - perguntou este, pálido como<br />

um cadáver.<br />

50


- Nem deita sangue. Feriste-te numa folha de capim.<br />

- Qual folha de capim, qual carapuça, isto foi um<br />

estilhaço, bem senti.<br />

O unimog atingido afocinhara, com os pneus da<br />

frente rebentados. Um cheiro intenso a borracha queimada<br />

pairava no ar.<br />

- Vem já aí o 2° pelotão socorrer-nos - anunciou o<br />

capitão, largando o rádio. - Alferes Mendonça, mande já os<br />

homens sair da picada e monte a segurança. Que bandalheira<br />

é esta?<br />

Só então Fernandes sentiu a falta do Fantasma.<br />

- O Fantasma? Onde tá o Fantasma?<br />

- Cagou-se todo com o medo e cavou por esses<br />

morros acima - troçou o Barão.<br />

Fernandes emitiu um assobio e esperou. Nada, do<br />

Fantasma nem sombras.<br />

- O Fantasma tá aqui. Em cima do unimog.<br />

Fernandes correu para a viatura danificada. Um<br />

grande novelo, branco e peludo, jazia sob os bancos.<br />

O animal não se moveu.<br />

- Fantasma! - tornou o dono, a voz sumir-se.<br />

Pegou-lhe por uma pata inerte e puxou-o. Estava<br />

morto. Um estilhaço perdido fizera um rombo na caixa da<br />

viatura e perfurara-lhe o peito, ao nível do coração.<br />

Fernandes continuou a puxar e o corpo tombou na<br />

picada com um baque surdo. Uma roseta de sangue alastrava<br />

pelo peito do cadáver, humedecia a terra esfarelada.<br />

Mendes pousou a mão no ombro do Fernandes.<br />

- Tem calma. .<br />

- O que há aí? - interpelou-os o capitão. - Não<br />

ouviram as ordens?<br />

- O Fantasma morreu - disse Mendes.<br />

- Atirem-no para o capim. Antes o cão do que um<br />

homem. Mexam-se.<br />

51


- Ficaste viúvo, Fernandes - troçou o Barão.<br />

Surdo a tudo, Fernandes debruçara-se sobre o corpo<br />

do animal, os lábios lívidos agitados numa prece.<br />

52


- João Moreira.<br />

- Pronto!<br />

- Carlos Afonso.<br />

- Estou aqui.<br />

Empoleirado numa mesa do refeitório, qual deus<br />

louco, o cabo-cripto Ruivo semeia, às mãos-cheias, a alegria<br />

e a tristeza, as lágrimas e os risos.<br />

- Pedro Antunes.<br />

- Eu...<br />

- José Fernandes.<br />

- Dá cá.<br />

Mãos nervosas como gadanhas. Dedos hirtos que se<br />

engalfinham nas cartas e aerogramas.<br />

Ruivo era o tipo mais importante da Companhia. Ou,<br />

pelo menos, assim o cria.<br />

Na verdade era ele que estava incumbido da<br />

distribuição do correio que o avião trazia duas vezes por<br />

semana de S.Salvador, juntamente com os frescos.<br />

O avião chegava geralmente por volta das onze horas<br />

da manhã e rasava duas ou três vezes o aquartelamento, com<br />

as goelas abertas, a dar tempo que se montasse a segurança à<br />

pista.<br />

Enquanto o furriel vagomestre Máximo procedia à<br />

conferência da carne e do peixe, o Ruivo recebia das mãos<br />

do piloto o saco do correio. Aquele saco era um coração<br />

gigantesco, palpitante, poderoso. O principal sustentáculo da<br />

Companhia.Mais do que as G3 e a cerveja, as metralhadoras<br />

e os cigarros, os morteiros e as negras da sanzala.<br />

- Hoje pesa - dizia invariavelmente o piloto.<br />

53


- Deve vir cheio de cornos - gracejava por sua vez o<br />

Ruivo.<br />

Concluída a transacção do correio e dos frescos, a<br />

D.O. começava a deslizar pela pista e dentro em pouco não<br />

era mais do que um mosquito zumbidor rumo a S. Salvador.<br />

O pessoal da segurança saía do capim e saltava lesto<br />

para o unimog que arrancava de prego a fundo para o<br />

caldeirão ao rubro do aquartelamento.<br />

- Américo Pereira.<br />

- Aqui.<br />

- Carlos Marecos.<br />

- Viva!<br />

Restam três cartas. As unhas cravam-se nas palmas<br />

das mãos. Os rostos contorcem-se em esgares doloridos.<br />

Ruivo passeia um sorriso displicente por aquele mar<br />

de olhos esgrouviados e acaricia o magro monte de<br />

correspondência que resta com<br />

artifícios de amante sabido.<br />

- Despacha-te... pá!<br />

- Calminha..., tens tempo de saber que o teu filho já<br />

chama pai a outro.<br />

- Vai gozar com a tua avó.<br />

O litúrgico deu lugar ao burlesco. Ruivo procura<br />

escamotear o tempo, prolongar o seu reinado.<br />

- Daqui a nada tás a apanhar um borracho nos óculos.<br />

Atingido o ponto crítico de ruptura. É perigoso ir<br />

mais além.<br />

- José Mendonça.<br />

- Até que enfim.<br />

- Pedro Moreira.<br />

- Uf...!<br />

- Manuel Augusto.<br />

- Mas... não há mais nada...? - pergunta uma voz<br />

incrédula.<br />

54


- Nada mais. Começa a procurar outra que essa já te<br />

pôs os cornos.<br />

Há rostos lívidos de angústia, sorrisos rasgados de<br />

orelha a orelhas, dorsos quebrados de solidão, olhos<br />

refulgentes de alegria.<br />

“Sou o tipo mais importante da Companhia” -<br />

conclui, mais uma vez, Ruivo.<br />

55


- Acorda, Mendes, acorda!<br />

Como que vinda de muito longe, uma voz agreste,<br />

misturada com o ruído da chuva e o ressonar da caserna,<br />

martelava-lhe o cérebro.<br />

- Acorda, pel’amor de Deus.<br />

Voltou-se para o outro lado e meteu a cabeça debaixo<br />

da almofada.<br />

- Acorda, acorda!<br />

Só quando se sentiu violentamente sacudido é que<br />

emergiu do sono, atarantado.<br />

- Acorda, Mendes!<br />

Finalmente, reconheceu a voz do Américo. Uma voz<br />

trémula, cheia de maus presságios.<br />

- Deixa-me dormir, pá. Vai chatear outro.<br />

- Mendes, vem depressa. É o Fernandes.<br />

Sentou-se na cama, num repente, assaltado por<br />

negros pressentimentos. Na escuridão, adivinhou o rosto<br />

transtornado do Américo, cheirou a tragédia.<br />

- O que foi?<br />

- O Fernandes está doido, quer matar o capitão.<br />

- O que é feito dele?<br />

- Sei lá! Levou a G3. Está perdido de bêbado.<br />

- Grande maluco.<br />

Às apalpadelas, enfiou as calças e calçou as botas.<br />

- Vamos depressa.<br />

A parada era um mar de lama. Na messe dos<br />

sargentos ainda havia luz. Deviam estar a jogar ao póquer ou<br />

simplesmente a embebedarem-se.<br />

56


Agachados, encharcados até aos ossos pela chuva<br />

que tombava em catadupa, rodearam o pavilhão da<br />

enfermaria, cosidos à parede. A correr, atravessaram o<br />

descampado até ao edifício dos oficiais. A violência da<br />

chuva fazia-os bailar.<br />

Américo perdeu uma bota e ficou a praguejar, ao pécoxinho,<br />

até que lá conseguiu encontrá-la. Quando a enfiou<br />

no pé, a lama espichou por todos os lados.<br />

Do quarto do capitão não se soltava o mínimo sinal.<br />

Devia estar a dormir a sono solto.<br />

- Onde estará metido o gajo?<br />

- Vamos pelas traseiras - opinou Américo.<br />

Tornearam o edifício. Finalmente, avistaram o vulto<br />

do Fernandes, espalmado contra a parede, junto à janela do<br />

quarto do capitão.<br />

- O que fazes aqui, pá? - interpelou-o Mendes, em<br />

surdina.<br />

- Girem - ordenou Fernandes.<br />

- Separava-os uma distância de três metros.<br />

- Vai-te deitar, Fernandes - gemeu Américo.<br />

- Desapareçam!<br />

Mendes fez menção de avançar. Fernandes deu um<br />

salto felino para o lado e alçou a arma.<br />

- Se dás mais um passo, estoiro-te os miolos.<br />

- Não te desgraces - implorou Américo.<br />

- Vão - se embora, isto não é da vossa conta.<br />

- Nós somos teus amigos, só queremos o teu bem -<br />

continuou Américo.<br />

Subitamente, deixou de chover. Ficaram as cascatas<br />

de água a jorrar dos telhados.<br />

- O capitão não é o culpado da morte do Fantasma -<br />

insistiu Américo.<br />

- Não teve nenhum respeito pela sua morte. Vai<br />

pagar por isso.<br />

57


- Estás a ver mal as coisas.<br />

Mendes avançou mais um passo. Já distinguia, com<br />

nitidez, o vulto transtornado do Fernandes.<br />

- Nem mais um passo.<br />

Fernandes fez um gesto brusco e desequilibrou-se.<br />

Mendes não perdeu a oportunidade e atirou-se. Gritou de dor<br />

quando o ombro chocou contra a G3. Mesmo assim<br />

conseguiu filar a camisa do outro.<br />

- Vou-te matar, maldito - rosnou Fernandes.<br />

Rolaram na lama. Mendes sentia o hálito azedo do<br />

Fernandes escaldar-lhe o rosto. O ombro doía-lhe<br />

terrivelmente e já lhe faltavam as forças para afastar as mãos<br />

que lhe buscavam o pescoço como víboras.<br />

Nos baldões da luta, Fernandes escarranchara-se-lhe<br />

em cima. Mendes estrebuchou, tentava desalojar o<br />

adversário mas a lama não o deixava aplicar toda a sua força.<br />

A tenaz, à volta do pescoço, apertava cada vez mais.<br />

Subitamente, as mãos afrouxaram a pressão. Depois,<br />

Fernandes caiu para o lado, como um gemido débil.<br />

- Estás bem?<br />

Mendes abriu os olhos e compreendeu. Américo<br />

ainda conservava na mão o toro de madeira com que<br />

derrubara o Fernandes.<br />

- Levanta-te, este brutamontes quase te ia asfixiando.<br />

No quarto do capitão acendeu-se a luz.<br />

- Estamos perdidos - gaguejou Américo.<br />

Mendes recuperou imediatamente, não havia tempo a<br />

perder.<br />

- Vamos embora daqui. Vamos carregar o gajo. Não<br />

te esqueças da G3. Pega-lhe pelos ombros que eu pego pelos<br />

pés.<br />

Já se ouviam passos no quarto.<br />

- Rápido!<br />

58


Fernandes, coberto de lama era uma autêntica enguia.<br />

Aos tropeções, lá o foram arrastando. Mal tinham dobrado a<br />

esquina, a janela abriu-se e a voz do capitão esbofeteou-os.<br />

- Quem está aí? Está aí alguém?<br />

Os segundos escorriam como horas. Finalmente,<br />

sentiram o ruído da janela a fechar-se. Deixaram o corpo<br />

tombar como um saco e, amparados à parede, escorregaram<br />

até ao chão.<br />

A água da chuva já não jorrava dos telhados e as<br />

estrelas brilhavam. Uma paz cálida cobria tudo.<br />

- Que grande sarilho. - Mendes sorriu. - Quem é que<br />

depois iria tocar realejo nas nossas farras?<br />

59


A canícula calcinava. A luz crua do dia reverberava<br />

no capim, feria os olhos.<br />

A patrulha serpenteava morro acima. Era penoso. Por<br />

vezes, o capim, grosso como canas, encobria os homens e só<br />

se ouvia o espadanar da catana rasgando caminho.<br />

Chegados ao alto do morro, toucado por árvores<br />

raquíticas, o alferes Mendonça deu voz de descanso. Os<br />

homens, arfantes, olhos congestionados, cegos pelo suor,<br />

desenvencilharam-se das mochilas e estenderam-se sobre o<br />

capim aqui mais ralo.<br />

- Vamos almoçar aqui. Passem a palavra.<br />

- Um rumor de regozijo percorreu o grupo. Todos<br />

procuraram as magras sombras. As rações de combate<br />

surgiam do fundo das mochilas.<br />

- Quem quer trocar lata de sardinhas? - perguntou o<br />

Barão, abrindo o saco.<br />

- Vai chatear a tua avó - respondeu uma voz agreste.<br />

- Duas latas de sardinhas por uma de chouriço -<br />

reforçou o Barão.<br />

- Passa cá - aceitou o Pacaça.<br />

- Quando chegar a Portugal, nunca mais quero ouvir<br />

falar de conservas - lamuriou-se outro.<br />

- Cala a cloaca! Na tua terra só comias bolota -<br />

troçou o Barão.<br />

- Vamos lá calar - admoestou o furriel Neves. - Isto<br />

não é um bordel.<br />

- Antes fosse - suspirou Fernandes.<br />

- Cardoso! - chamou o alferes.<br />

- Diga, meu alferes.<br />

60


- Quando acabares de comer, comunica com o<br />

aquartelamento.<br />

- Ok, meu alferes.<br />

- Pede que mandem um helicóptero com duas grades<br />

de cerveja fresquinha...<br />

- E umas garotas...<br />

- Leão...leão...águia chama. Leão...leão...águia<br />

chama. Diga se me ouve. Escuto.<br />

- Estão a dormir a sesta.<br />

- Leão...leão...<br />

À medida que iam acabando a refeição, cada qual se<br />

estendia para o seu lado, a cavaquear e a fumar.<br />

- ...Águia chama. Diga se me ouve. Escuto.<br />

- Deixa lá, Cardoso. Tornas a chamar mais tarde -<br />

decidiu o alferes.<br />

- Como queira.<br />

O alferes encostou-se a uma árvore e pôs-se a estudar<br />

a carta.<br />

As vespas zumbiam, em nuvem, ao redor das latas<br />

vazias. Uma águia planava lá no alto.<br />

- Cinco minutos para preparar - bradou o alferes.<br />

- Quem é que teria inventado a guerra? - filosofou<br />

uma voz aborrecida.<br />

De má vontade, puseram-se a apertar as bocas dos<br />

sacos e a afivelar as cartucheiras.<br />

Sacos às costas, as G3 no ombro, davam as últimas<br />

fumaças.<br />

- 1ª secção à frente - ordenou o alferes.<br />

Começaram a descer o morro. A meia encosta<br />

principiava a mata que debruava o rio, segundo a carta e as<br />

contas do alferes. Em breve, o calor ficou para trás, sob o<br />

tecto verde. Era uma transição brusca, de quem passa<br />

subitamente do inferno para o céu. A princípio, foi preciso<br />

cortar algumas lianas mas logo o caminho ficou<br />

61


desimpedido, as árvores mais espaçadas, o chão atapetado de<br />

folhas mortas. Alguns rasgos no tecto verde entremostravam<br />

o céu azul, puro, distante. Pairava no ar um ténue cheiro a<br />

matéria em decomposição.<br />

O rio, corria gordo, turvo, largo. Na outra margem, a<br />

mata era cerrada, insondável.<br />

*<br />

Seguiam ao longo do rio, sem pressas. Por vezes era<br />

preciso tranpor um ou outro riacho que vinha desaguar no rio<br />

e aproveitavam pata atestar os cantis e para refrescar os<br />

rostos.<br />

À cabeça da coluna, o Pacaça, de catana em punho,<br />

por desenfado, cortava uma ou outra liana mais atrevida que<br />

tombava das árvores. Sentia-se a rebentar de energia, a<br />

passada larga.<br />

- Mais devagar, Pacaça - implorou Fernandes.<br />

O Pacaça deitou-lhe uma mirada trocista e abrandou<br />

o passo. Inclinou-se para a frente para vencer uma pequena<br />

elevação. Ao chegar ao alto, arregalou os olhos,<br />

boquiaberto. Lançou-se imediatamente ao chão. Bateu com o<br />

queixo no manobrador da G3 e engoliu a dor. Sentiu a<br />

restolhada do pelotão imitando-o.<br />

O alferes Mendonça rastejou até junto dele.<br />

- O que há?<br />

- Veja.<br />

Lá à frente, numa clareira mais folgada, sob o<br />

cerrado tecto das copas de árvores de grande porte,<br />

amontoavam-se meia dúzia de palhotas. Ao redor, uma<br />

pequena plantação de mandioca e de tomates. Não se<br />

vislumbrava vivalma, num silêncio sem pássaros. A separálos,<br />

por entre juncos, corria um ribeiro manso a caminho do<br />

rio.<br />

O furriel Meneses juntou-se-lhes.<br />

62


- Há problemas?<br />

O alferes limitou-se a esticar o queixo.<br />

- Não se vê ninguém, o que vamos fazer? - ciciou<br />

Meneses.<br />

- Por precaução, o melhor é uma secção ir fazer o<br />

envolvimento - decidiu o alferes. Não estejam os gajos<br />

emboscados do outro lado. Nós ficamos a protegê-los.<br />

Avance com a sua secção.<br />

Meneses retrocedeu até junto dos seus homens. Uma<br />

mescla de ansiedade e curiosidade saltava de todas as caras.<br />

- Há um acampamento ali à frente. Parece<br />

abandonado mas, por questão de segurança, a nossa secção<br />

vai fazer o envolvimento.<br />

Os homens do furriel Neves tomaram posição,<br />

cosidos às irregularidades do terreno, as armas apontadas ao<br />

acampamento.<br />

- Preparados? Vamos! - ordenou Meneses.<br />

Correram agachados, ziguezagueantes, por entre as<br />

árvores, os dedos a formigar nos gatilhos. Ao chegarem ao<br />

regato, hesitaram, alapardaram-se nos juncos.<br />

- Vamos atravessar por equipas. Primeiro a tua,<br />

Nunes - comandou Meneses.<br />

Os homens entraram na água, resolutos. A meio do<br />

leito, a água dava-lhe pelos joelhos. Costa escorregou numa<br />

pedra, deu três ou quatro passos em falso e foi-se<br />

esborrachar contra as costas graníticas do Pacaça.<br />

- Queres uma bóia, pá? - troçou este.<br />

Chegados à outra margem, espalharam-se, cosidos às<br />

árvores. Nunes fez sinal à outra equipa para avançar.<br />

A pequena plantação de tomateiros estendia-se até às<br />

palhotas, vinte passos adiante. Tudo estava calmo, num<br />

sereno contraste de luz e sombras. Os tomates<br />

avermelhavam na ramagem verde. Para a esquerda, as<br />

folhas serrilhadas do mandiocal vergavam-se frescas para o<br />

63


chão. Por um rasgão no tecto vegetal, o sol jorrava poalhas<br />

de ouro na prata do ribeiro.<br />

- Como isto é tranquilo - embebeu-se Américo, a<br />

arma apontada ao bojo da mata.<br />

*<br />

Passaram as palhotas a pente fino.<br />

- Deserto! - desabafou, desapontado, o alferes<br />

Mendonça que chegara com os restantes homens do pelotão.<br />

A tensão acumulada começou a esboroar-se e as<br />

conversas irromperam em balbúrdia.<br />

- Calados! - bradou o alferes. - Furriel Neves, espalhe<br />

os homens. - O que vos parece isto? - perguntou, dirigindose<br />

aos furriéis.<br />

- Parece-me que isto é um acampamento de<br />

passagem - disse Neves. - Estava abandonado quando<br />

chegámos, não há indícios de fuga precipitada. Não há<br />

pegadas frescas.<br />

- Acampamento de passagem? - estranhou Meneses.<br />

- Uma espécie de estalagem a meio da viagem -<br />

esclareceu Neves. - descansam aqui e prosseguem a viagem.<br />

Mendonça levantou os olhos para o tecto vegetal.<br />

- Os aviões podem passar por aqui milhares de vezes<br />

que não topam nada - observou.<br />

Costa aproximou-se, esbaforido.<br />

- Meu alferes, descobrimos um trilho.<br />

- Vamos ver.<br />

Atravessaram a lavra de tomates a correr. Os tomates<br />

esparramavam-se em manchas sanguinolentas.<br />

- Veja, veja! – dizia Costa, agitado.<br />

Na verdade, um trilho bastante batido, saía da mata<br />

para o capinzal.<br />

64


- Isto deve levar a algum lado - entusiasmou-se o<br />

alferes. - Barão, Fernandes, deitem fogo às palhotas. Rápido<br />

que vamos prosseguir.<br />

- Vai ser um espectáculo em grande - rejubilou o<br />

Barão. - Vai dar para assar sardinhas como na noite de S.<br />

António.<br />

- Qual é o seu plano? - desconfiou o furriel Neves. -<br />

Devíamos comunicar com a Companhia e explicar o que se<br />

está a passar.<br />

- Quem é o comandante do pelotão? Eu o vocês? -<br />

Havia um brilho estranho nos olhos do alferes.<br />

Neves voltou costas, desabridamente.<br />

As chamas irrompiam, vermelhas, tentaculares, num<br />

estrelejar de ramos e folhas secas. Envoltos na fumarada,<br />

archotes em punho, o Barão e o Fernandes saltavam de<br />

palhota em palhota.<br />

- Quem quer estrelar ovos? - ouvia-se a voz do<br />

Barão.<br />

- Saiam daí, seu burros - gritou-lhes o furriel<br />

Meneses -, ainda acabam feitos frangos de churrasco.<br />

Os incendiários emergiram do braseiro,<br />

chamuscados, a tossicar.<br />

Quem não tem fósforos pode aproveitar para acender<br />

o cigarro - ainda teve forças para pilherear o Barão.<br />

Primeira secção à frente. Vamos seguir o trilho -<br />

gritou Mendonça.<br />

*<br />

- Avança, rebenta-minas - troçou o Barão.<br />

Pacaça investiu trilho fora. Sentia-se fresco, estuante<br />

de força. A balançar contra a coxa, o cantil atestado de água<br />

fresca, redobrava-lhe o vigor.<br />

65


A meio da coluna, atrás do transmissões, Américo<br />

cismava na quezília do alferes Mendonça com o furriel<br />

Neves. Dava razão ao furriel. Era, na verdade, um suicídio<br />

seguir o trilho.<br />

Lá mais para diante, a luz intensa indicava que em<br />

breve sairiam da mata para o inferno do capinzal. Foi<br />

quando a explosão estrugiu os ares. O Barão sentiu um bafo<br />

quente aflorar-lhe o rosto e qualquer coisa, talvez um seixo,<br />

bateu-lhe no peito. Atirou-se ao chão como os demais. Lá à<br />

frente reinava a confusão.<br />

- Enfermeiro! Ó Grilo! - gritavam.<br />

Américo levantou-se e correu para a cabeça do<br />

pelotão. Um pouco ao lado, o buraco da mina anti-pessoal<br />

ainda fumegava. O Grilo chegou nesse instante.<br />

- Afastem-se! Deixem o rapaz respirar - ordenou,<br />

alijando rapidamente a mala dos medicamentos.<br />

O alferes Mendonça, pálido, olhar alapardado,<br />

começou a dar ordens, raivoso:<br />

- Vocês dois, montem a segurança ali à frente.<br />

Vamos a dispersar, grande corja. Aqui não há maricas.<br />

- É grave? - perguntou Américo ao enfermeiro.<br />

O Pacaça gemia, desfalecido.<br />

- Se é grave? Tem os pés esfacelados. Vou-lhe fazer<br />

torniquetes para estancar a o sangue. Segurem-me aqui no<br />

frasco do soro.<br />

Meneses voltou-se resoluto para o alferes.<br />

- Peça imediatamente a evacuação do rapaz. Não há<br />

tempo a perder. - Antes que o alferes ripostasse, ordenou. -<br />

O Cardoso que venha imediatamente aqui.<br />

Cardoso acorreu, meio desequilibrado pelo sacolejar<br />

do rádio. Ajoelhou-se e alijou o aparelho do ombro.<br />

Mendonça sentiu que o comando lhe estava a<br />

escorregar das mãos. Ia repor tudo nos eixos, relembrar a<br />

66


hierarquia mas o olhar feroz do furriel Neves secou-lhe as<br />

ordens na garganta.<br />

- Certo - concordou. - Contacte a Companhia,<br />

Cardoso.<br />

- Leão...leão...diga se me ouve, escuto.<br />

- Que tal está ele? - voltou a interrogar Américo.<br />

Grilo abanou a cabeça, descoroçoado.<br />

- Tá a perder muito sangue. Vai ser difícil estancá-lo.<br />

- Leão...leão...águia chama.<br />

- Vais aguentar, não é Pacaça? - encorajou Américo.<br />

O ferido sorriu, lívido.<br />

- Não me dói muito...é grave?<br />

- Qual quê! Estás para lavar e durar.<br />

Pacaça cerrou os olhos, inane.<br />

- Aqui não consigo apanhar a Companhia - queixouse<br />

Cardoso. - Tenho que sair da mata.<br />

Mendonça aquiesceu com um aceno de cabeça.<br />

- Meneses, acompanhe o Cardoso com a sua secção.-<br />

Rascunhou a mensagem codificada numa ponta de papel. -<br />

Rápido.<br />

*<br />

- Consegui - rejubilou Cardoso, limpando com as<br />

costas da mão o suor que o cegava - Atenção, leão, tenho<br />

uma mensagem urgente. Mandem cerveja, temos sede.<br />

Na mata, Grilo afagava a cabeleira empapada em<br />

suor do Pacaça.<br />

- Aguenta, rapaz, aguenta...<br />

Apertou os torniquetes e passou uma gaze embebida<br />

em água pelo lábio ressequidos do ferido.<br />

- Põe o frasco do soro mais alto, cabrão - gritou para<br />

o Costa.<br />

Américo tirou a faca de mato da bainha e pôs-se a<br />

rasgar a casca duma árvore. Rasgões profundos e longos por<br />

67


onde escorria uma seiva escura. Como sangue. Estremeceu e<br />

embainhou a faca, com dedos trémulos.<br />

O alferes Mendonça passeava para trás e para diante.<br />

O olhar do furriel Neves perseguia-o, feroz.<br />

- Então? - perguntou, detendo-se junto do ferido.<br />

- Está com o pulso muito fraco - murmurou Grilo.<br />

- Mantém-no vivo, homem. Faz o impossível.<br />

A restolhada da secção do furriel Meneses<br />

sobressaltou-os.<br />

- Vão enviar um helicóptero - anunciou o furriel<br />

Meneses com uma pincelada de esperança na cara.<br />

- Vamos sair da mata - comandou o alferes. -<br />

Improvisem uma maca para o ferido.<br />

- Já não é preciso, meu alferes - soluçou Grilo. - Já<br />

não é preciso.<br />

Mendonça ficou boquiaberto, um braço petrificado<br />

no ar.<br />

- Cabrões, apareçam - ululou Américo. - Alçou a G3<br />

e despejou-a, de rajada, para o ventre da mata. - Covardes!<br />

Venham lutar cara a cara. - A baba escorria-lhe pelos cantos<br />

da boca contorcida. A mata uivou ferida de mil ecos.<br />

Esvaziado o carregador, atirou a arma contra uma árvore e<br />

lançou-se ao chão com um urro feroz.<br />

Ninguém se mexia. Como se o tempo se tivesses<br />

esvaído naquele recanto do mundo. Por fim, o Barão<br />

enfrentou a morbidez do instante:<br />

- Merda, somos algumas crianças? Parece que nem os<br />

temos no sítio.<br />

68


Malacão entrou no gabinete do capitão para dar a<br />

habitual sacudidela à poeira.<br />

- Dá licença, meu capitão?<br />

Sentado à secretária, o capitão Rosado não despregou<br />

os olhos da fotografia que segurava na ponta dos dedos.<br />

- Entra.<br />

Espicaçado pela curiosidade, Malacão rodeou,<br />

dissimuladamente, a secretária. O rosto bonito da mulher<br />

incendiou-lhe os olhos de gato com cio.<br />

- Malacão!<br />

- Diga, meu capitão.<br />

- Esta semana vais fazer uma limpeza geral ao meu<br />

quarto. Uma limpeza esmerada, ouviste. - Os olhos dos dois<br />

homens continuavam pregados no rosto fresco do retrato. –<br />

Na próxima semana a minha mulher chega à Calambata e<br />

quero tudo a brilhar. Estás a ouvir?<br />

- Sim, meu capitão – assentiu Malacão sem mexer<br />

um músculo do rosto afilado. Só os olhitos faiscavam.<br />

*<br />

Malacão entrou na cantina, sem fôlego.<br />

- O que vens aqui cheirar, pá? - estranhou o Chico<br />

cantineiro. Tens a cerveja fresca que queres lá na messe.<br />

- Mete a tua cerveja no cu - ripostou Malacão<br />

escostando as costas arfantes ao balcão. Espraiou o olhar<br />

pela malta que beberricava, amorfa, as nocais e as cucas<br />

meio chocas. Tudo malta que lerpara. Aqueles que tinham<br />

recebido correio estavam a estas horas nas casernas, cada<br />

qual no seu casulo, a ler e a reler os aerogramas.<br />

69


- Quem não recebeu carta não precisa de ficar com<br />

essa cara de batata esborrachada - mofou. - Tenho notícias<br />

frescas, muito melhores do que as da santa terrinha. Até vão<br />

saltar. Só vos peço cuidado para não furarem o tecto com os<br />

cornos.<br />

- Não tarda nada tás com uma garrafa na fuça -<br />

ameaçou um tipo do 4º pelotão.<br />

- Então segurem-se com força. Prá semana vamos ter<br />

a visita duma senhora branca, de carne e osso, boa com’o<br />

milho.<br />

Num repente, Malacão viu-se envolvido por uma<br />

dúzia de caras atónitas.<br />

- Ah, conta...conta.<br />

- Diz, pá, diz...ui...se tás a reinar rebento-te a mona.<br />

- Poça! Isto é melhor do que receber dez cartas.<br />

Chico meteu uma cerveja gelada nas mãos do<br />

Malacão.<br />

- Bebe, bebe que bem mereces.<br />

- Deixem-me ganhar fôlego - pediu Malacão,<br />

saboreando a cerveja. - Todo eu tremo.<br />

- Não é para menos. Uma branquinha! Ui, Jesus!<br />

Malacão pousou a cerveja no balcão e desafiou:<br />

- Adivinhem quem é!<br />

- Mau! A malta conhece-a?<br />

- Não me digas que é a Flora, aquela valente puta<br />

velha de S. Salvador?<br />

- Essa já aviou cem batalhões.<br />

- Com aquele bandulho já deve ter feito para cima de<br />

mil abortos.<br />

- Qual Flora! Frio, muito frio.<br />

- Deixa-te de rodeios e diz lá quem é.<br />

Malacão tornou a pegar na cerveja. Bebeu uma<br />

valente golada e percorreu as caras com os olhitos<br />

amarelados a transbordar de luxúria.<br />

70


- Meus senhores, brevemente teremos cá, na<br />

Calambata, a mulher do capitão.<br />

O grupo ficou de olhos arregalados, os pedregulhos<br />

das palavras atravessados nas gargantas, incapazes de sair.<br />

- A...<br />

- A mulher...<br />

Malacão acabou de sorver a cerveja antes de atirar<br />

para o ar mais um punhado de detalhes.<br />

- O capitão mandou limpar o quarto a preceito para<br />

quando ela chegar. Disse-me: quero tudo a brilhar.<br />

- E és tu que vais fazer a cama todos os dias?<br />

- Pois.<br />

- Vais mexer nos lençóis onde ela se deitou?<br />

- Vê-la descascada...<br />

- Até talvez te peça para lhe esfregar as costas depois<br />

do banho...essas senhoras são assim...<br />

Malacão crescia como um deus.<br />

- Que sorte.<br />

- Nem me obriguem a pensar nessas coisas, até se me<br />

turva a vista.<br />

Chico saiu de trás do balcão e esgueirou-se para a<br />

porta, a mão na algibeira.<br />

- Eh, onde vais Chico?<br />

Uma onda de risadas acompanhou-o até à porta.<br />

- Mais um aborto, eh Chico!<br />

71


Mendes contemplava, babado, a fotografia da oitava<br />

madrinha de guerra, acabada de chegar.<br />

- Para que queres mais uma madrinha? - estranhou<br />

Fernandes. - Dizias que era uma para cada dia da semana e,<br />

que eu saiba, a semana só tem sete dias.<br />

- Mendes beijou o retrato, regalado.<br />

- Sempre é bom ter uma suplente - esclareceu. Supõe<br />

tu que uma delas morre. Ficava descalço.<br />

- Tás mesmo cacimbado.<br />

*<br />

Costa recebera carta do irmão. Ficou inquieto,<br />

vagamente perturbado. O irmão não era homem para lhe<br />

escrever, só por escrever. Alguma coisa séria seria.<br />

Sentou-se no beliche e rasgou o envelope, ansioso.<br />

Mal leu as primeiras frase, as mãos começaram a tremer-lhe,<br />

os olhos a saltar as linhas, cegos de lágrimas:<br />

“Querido irmão, peço a Deus que te encontres de<br />

boa saúde, nessas terras do diabo.<br />

Resolvi escrever-te para te contar certas coisas tristes<br />

que por cá se passam, pois é melhor ser alguém da família a<br />

a contar-to do que um estranho. A tua mulher, a Maria da<br />

Luz, não se tem portado nada bem. Anda de cabeça perdida<br />

desde o teu embarque, metida com um gajo casado, lá na<br />

fábrica...”<br />

Amarfalhou a carta, o peito esmagado por uma mão<br />

enorme que apertava, apertava, a cabeça a chocalhar, tudo a<br />

girar em turbilhão.<br />

72


A carta soltou-se dos dedos enferrujados. Tombou na<br />

cama e enterrou a cabeça na almofada, numa quietude de<br />

morto.<br />

*<br />

O Barão lerpara mais uma vez. Com um cigarro nos<br />

lábios, deambulava pela caserna, envenenado.<br />

- Eh Mendes, essa madrinha de guerra tem cara de<br />

bota da tropa.<br />

- Ó Américo, o teu filho já chama pai a outro?<br />

Ao rés da cama do Costa, a carta amarrotada<br />

despertou-lhe a atenção. Deu uma olhadela intrigada ao<br />

Costa, que continuava imóvel, e agachou-se para apanhá-la.<br />

Afastou-se um pouco, por precaução, e alisou<br />

meticulosamente a folha antes de a começar a ler. Um<br />

sorriso sardónico atravessou-lhe a cara de orelha a orelha, os<br />

olhos a saltarem das órbitas, os lábios a enrolarem<br />

gulosamente as palavras. Deus dois saltos para o meio da<br />

caserna.<br />

- Prestem atenção, meus senhores - bradou como um<br />

arauto. – Tenho a honra de vos anunciar que o nosso querido<br />

pelotão tem mais um cornudo nas suas fileiras. Prestem<br />

atenção, por favor: querido irmão, peço a Deus que te<br />

encontres...Aiiii!<br />

O uivo medonho do Barão rasgou os ouvidos atentos<br />

do pelotão, ribombou pelo telhado de zinco, rastejou parada<br />

fora, sobressaltou as sentinelas nos postos de vigilância.<br />

Com o Costas às cavalitas, caiu de joelhos, a grunhir como<br />

um porco na matança. A carta planou por instantes e aterrou<br />

suavemente na cama do Fernandes.<br />

- Ai que ele mata-me..ai...ai...acudam-me.<br />

Costa não deixava a presa, os dentes bem cravados<br />

no pescoço do adversário.<br />

73


- Ai Jesus - gemia o Barão, lavado em lágrimas -,<br />

este gajo mata-me. Ai..ai...<br />

Ninguém dava mostras de intervir, as gargalhadas a<br />

estoirar por todos os cantos, até que, por fim, Mendes pôs<br />

cobro ao espectáculo:<br />

- Deixa-o, Costa! Larga o gajo.<br />

Costa rilhou os dentes com um rugido feroz e soltou<br />

a presa, por fim. Mudo, correu para a cama e voltou à<br />

letargia anterior.<br />

Barão gemia lastimosamente, agarrado ao pescoço.<br />

Mendes ajudou-o a erguer-se e arrancou-lhe a<br />

camisa. A mordidela saltou sanguinolenta.<br />

- Isto está feio, vai já à enfermaria.<br />

- Tás tramado, pá. O Costa tá com a raiva.<br />

E as gargalhadas tornaram a rebolar caserna fora.<br />

74


- Sinto-me o culpado da morte do rapaz. Foi um<br />

capricho meu, uma birra de criança. É um loucura rematada<br />

seguir um trilho do inimigo, até os manuais mais rascas<br />

dizem isso. Não chego a perceber o que me passou pela<br />

cabeça.<br />

- Esquece - atalhou Vasconcelos, pegando na<br />

ballantines e tornando a encher os copos.<br />

Já passava da meia-noite e o aquartelamento<br />

mergulhara no silêncio. Só estavam os dois na messe. O<br />

capitão recolhera cedo ao seu quarto. O alferes Coelho<br />

andava no mato. E o alferes Silva estava acamado com um<br />

forte ataque de paludismo.<br />

Com o uísque a roer as inibições, Mendonça<br />

experimentava um desejo galopante de desabafar, de<br />

desenterrar fantasmas.<br />

- Até ando com medo de me deitar. Na escuridão<br />

começo a pensar no rapaz, a bombardear-me com perguntas.<br />

- Já te passou pela cabeça que também me posso pôr<br />

as mesmíssimas perguntas?<br />

- Não percebo.<br />

- Os gajos das armadilhas.<br />

- Isso é outra história. Morreram quatro gajos, é<br />

verdade. Mas eram inimigos. Além disso, nunca os viste<br />

nem mais gordos nem mais magros. Nunca lidaste com eles,<br />

nunca lhes falaste. É como ler no jornal a notícia da morte<br />

duma centena de pessoas num cataclismo qualquer. Não nos<br />

afecta praticamente nada. O meu problema é diferente. Eu<br />

conhecia o pacaça, tinha-o como um excelente rapaz, era<br />

uma força da natureza. Não preciso esforçar-me muito para<br />

75


econstruir a sua imagem. E isso dói. Não percebo como<br />

procedi daquela maneira. Havia qualquer coisa malígna a<br />

empurrar-me. O próprio furriel Neves estranhou a minha<br />

atitude e eu, sem lhe der ouvidos, cheguei até a irritar-me<br />

com as suas reticências. Nem tenho coragem de enfrentar o<br />

pelotão. Todos me consideram o culpado. Sinto os olhos<br />

cheios de rancor daquela malta a rasgar-me cá por dentro. A<br />

nossa relação futura nunca mais será a mesma. Tudo será<br />

diferente doravante.<br />

Mendonça calou-se. Encostou a nuca à parede e<br />

fechou os olhos.<br />

- Passo horas seguidas a tentar interpretar a minha<br />

reacção - prosseguiu depois. - Era óbvio que aquela decisão<br />

era uma loucura e eu não me vi, estava cego.<br />

Vasconcelos desabotoou a camisa, acalorado,<br />

acariciou o estômago. Um sorriso perverso alongou-lhe o<br />

bigode.<br />

- Queres que te faça o diagnóstico?<br />

Mendonça continuava encostado à parede, agora com<br />

os olhos fixos no tecto.<br />

- Mais uma brincadeira das tuas? Mas diz lá.<br />

- Há quanto tempo não estás com uma mulher?<br />

Mendonça endireitou-se, irritado.<br />

- A que propósito vem isso?<br />

- Na mouche! - A palmada na mesa fez saltar os<br />

copos. – Aí está a causa de toda essa impulsividade.<br />

- Qual causa?<br />

Vasconcelos bebeu o uísque dum trago e afagou o<br />

bigode antes de cravar o olhar trocista no outro.<br />

- Perturbações psíquicas causadas pela ausência<br />

prolongada de relações sexuais. Terapêutica: uma hora na<br />

palhota duma preta.<br />

- Queres acabar com a brincadeira?<br />

76


Vasconcelos soltou uma gargalhada. Deu mais uma<br />

palmada na mesa.<br />

- Acertei mesmo no alvo, certo?<br />

Mendonça levantou-se com brusquidão.<br />

- Se preferes continuar nesses termos, vou-me deitar.<br />

Não estou para te aturar.<br />

- Eu não digo? Como explicas essa irritação crónica?<br />

- Queres conversar a sério ou não?<br />

Mendonça tinha-se levantado, crispado.<br />

- Senta-te, estava a reinar. Ainda não acabámos o<br />

uísque.<br />

Mendonça aquiesceu. Reatou a conversa.<br />

- Vou alterar as minhas férias. Quero gozá-las o mais<br />

depressa possível. Em Lisboa, longe disto tudo, talvez me<br />

consiga reencontrar.<br />

- Fazes bem, quando regressares já muita água terá<br />

corrido. Esta solidão, no meio de muita gente, é terrível,<br />

deixa as pessoas confrontadas com as suas contradições. Põe<br />

a nu a pergunta crucial: o que fazemos aqui? Faz-nos<br />

compreender o absurdo desta guerra.<br />

Inesperadamente, Vasconcelos desistiu de encher os<br />

copos.<br />

- Vou-me deitar. Não bebo mais. Merda pró uísque.<br />

- Eu vou fazer a ronda - disse Mendonça com voz<br />

tremida.<br />

O facto não passou despercebido ao outro.<br />

- Problemas?<br />

- Não...não é nada. Vai lá deitar-te.<br />

Vasconcelos insistiu:<br />

- Queres que te acompanhe?<br />

Mendonça enrubesceu, a boca arrepelada num tique.<br />

- Se queres...<br />

- Se começas a recear os teus homens dessa maneira,<br />

estás liquidado.<br />

77


Mendonça enterrou a cara nas mãos.<br />

- O que queres que faça? É superior às minhas forças.<br />

Quando me aproximo dos postos de sentinela estou sempre à<br />

espera dum tiro. Não consigo controlar-me. Começo a<br />

pensar: esta malta odeia-me, à mínima oportunidade<br />

espetam-me um tiro. Não consigo arrancar esta obsessão da<br />

cabeça.<br />

- Que porra esta! Estou a ver que nem a terapêutica<br />

da preta te pode valer. Estás metido numa grande alhada.<br />

78


A noite estava negra. As nuvens negras e pesadas. De<br />

tempos a tempos, ouvia-se o ribombar dum trovão lá longe.<br />

Fugazes relâmpagos recortavam contra o horizonte as<br />

silhuetas das casernas. O calor, carregado de humidade,<br />

asfixiava, fazia as têmporas latejar.<br />

Mendonça saiu do quarto furtivamente. Passou rente<br />

à messe dos sargentos, rodeou o edifício da enfermaria<br />

esbatido contra o céu de chumbo como um pagode e<br />

aproximou-se do posto de sentinela.<br />

- Sentinela – chamou.<br />

Lá do alto, chegou-lhe um arrastar de pés pouco<br />

apressados.<br />

- Hei! Quem vem lá?<br />

É o alferes Mendonça. É para te avisar que vou à<br />

sanzala.<br />

- Compreendido. Não há problemas.<br />

Mendonça enrubesceu no escuro. Deplorou o tom<br />

cúmplice que a voz do soldado velava.<br />

- Vou falar com o soba.<br />

- Comigo não há problemas. – retorquiu, embrulhada<br />

numa pequena gargalhada, a voz lá do alto.<br />

Mendonça sentiu-se impotente para ripostar.<br />

Embrenhou-se na noite. Mais do que uma vez teve a<br />

tentação de retroceder para o quartel que, envolto pela<br />

iluminação periférica, era rutilante jóia engastada na noite.<br />

Reminiscências fustigavam-no: farrapos de juras de<br />

fidelidade feitas à namorada, estilhaços de normas morais<br />

que pertenciam a outro mundo, tão distante e brumoso.<br />

79


` Entrou na sanzala. Novelos de fumo subiam dos<br />

telhados. Sombras, vozes, percorriam a noite. Um cão pôsse<br />

a ladrar. Procurou a cubata de Ana. Uma pálida claridade<br />

coava-se pelas frinchas da porta desconjuntada. Hesitou.<br />

Coseu-se à parede..<br />

O ridículo da situação incutiu-lhe coragem.<br />

Tamborilou na porta.<br />

- Quem é?<br />

- Alferes Mendonça.<br />

O vestido escarlate de Ana recortou-se no umbral.<br />

` - Posso entrar?<br />

O assentimento veio mudo.<br />

Um candeeiro a petróleo bruxuleava, cobrindo de<br />

sombras as paredes descarnadas de adobes.<br />

Mendonça sentou-se no catre, na rigidez do colchão<br />

de capim. No chão, de terra batida, ainda fumegavam uns<br />

restos de lume. A um canto um monte de camuflados sujos à<br />

espera dos braços da lavadeira.<br />

- Vim-te fazer uma visita. Senta-te junto a mim.<br />

Ana obedeceu às ordens do alferes, com um olhar<br />

manso. O vestido subiu mostrando as coxas fortes e jovens.<br />

A mão do rapaz acariciou a coxa, tacteou o ventre, subiu ao<br />

encontro dos seios.<br />

- Despe-te.<br />

O corpo nu da rapariga era uma estátua esculpida em<br />

ébano. Mendonça despiu-se rapidamente e estendeu-se ao<br />

lado dela.<br />

Foi quando a imagem do Pacaça se entrepôs.<br />

- Veste-te!<br />

Um esgar de contrariedade arrepelou o rosto de Ana.<br />

Enfiou o vestido com mal contida irritação.<br />

- O nosso alferes tá a brincar.<br />

- Se eu te explicasse não compreenderias.<br />

80


Mendonça vestiu as calças. Sacou da carteira e tirou<br />

uma nota.<br />

- Toma!<br />

- Não quero.<br />

- Não precisas de dinheiro?<br />

Amuada, Ana não respondeu. Sentou-se na cama.<br />

De pé, Mendonça passeou o olhar pela miséria que o<br />

rodeava. Pousou-o no vulto silencioso da lavadeira.<br />

- Ouve, Ana, gostas de cá estar?<br />

- Não, lá para o sul, na nossa terra, era melhor. Por<br />

que nos trouxeram para aqui?<br />

Mendonça pensou, constrangido, em toda aquela<br />

gente arrancada brutalmente às suas terras ancestrais e<br />

espalhada, como gado, pelas diferentes sanzalas: Calambata,<br />

Madimba, Tamboco, Cuimba... Sob o pretexto de os furtar à<br />

influência dos movimentos independentistas.<br />

- É a guerra, Ana.<br />

- Nós não fizemos mal a ninguém.<br />

- Aqui estão protegidos dos terroristas.<br />

Logo se arrependeu de ter proferido tais palavras<br />

capciosas. Com certeza Ana tinha amigos, familiares, talvez<br />

o noivo entre os guerrilheiros. Era ridículo falar-lhe em<br />

protecção, em terroristas. Olhou-a nos olhos e, pela primeira<br />

vez, viu um estendal de privações a bailarem-lhe nos olhos.<br />

Atirou a nota para cima da cama.<br />

- Sabes, Ana, no fundo, embora não pareça, estamos<br />

no mesmo barco. Um barco em risco de ir ao fundo. Com a<br />

diferença de que eu viajo nos camarotes e tu no porão.<br />

No regresso ao quartel, a decisão estava tomada. Já<br />

não regressaria das férias. O salto para França, os caminhos<br />

do exílio esperavam-no de braços abertos.<br />

81


Pinto mastigava lugubremente o guisado. Nos<br />

últimos tempos, a alegria de viver parecia abandoná-lo. Já<br />

nem mesmo o privilégio de ser faxina na messe dos<br />

sargentos lhe levantava a moral. A cerveja sabia-lhe a mijo e<br />

os bifes a sola. Estava no ponto de invejar os operacionais.<br />

Pelo menos esses andavam no mato, visitavam outros<br />

aquartelamentos. Desopilavam. E ele? Era como se estivesse<br />

numa prisão. Os dias eram intermináveis e das noites nem<br />

era bom falar.<br />

- Tás cacimbado de todo - atiçava-o Malacão.<br />

- Não posso continuar assim - resmungou, afastando<br />

da frente o prato quase intacto. Descascou uma manga e<br />

enterrou os dentes na polpa resinosa. Os fios da manga<br />

enredaram-se –lhe nos dentes e, chateado, atirou o fruto para<br />

o balde do lixo. Com a ponta da faca, pôs-se a palitar os<br />

dentes.<br />

O monte de loiça suja atulhava o lava-loiça.<br />

“O Malacão não pense que vou lavar esta tralha<br />

sozinho.”<br />

Na verdade, nos últimos dias, mal acabava de servir<br />

o almoço aos oficiais, o Malacão eclipsava-se sem comer<br />

nada. Só reaparecia passado um bom pedaço, silencioso,<br />

esbranquiçado, com um apetite voraz como nunca tivera.<br />

Atirava-se à comida a ponto de rapar o fundo aos tachos.<br />

Para o obrigar a levantar da cadeira e colaborar na lavagem<br />

da loiça era um castigo. Só à força de palavrões.<br />

- Andará o gajo a pirar-se para a sanzala? - cogitava.<br />

- Mas assim à luz do dia?<br />

82


Nesse instante, Malacão entrou sorrateiro como uma<br />

sombra. Agarrou o tacho e vazou o guisado para o prato.<br />

Começo a engolir fartas colheradas. A maça de adão subia e<br />

descia vertiginosamente.<br />

- Queres que vá à cozinha buscar outra tachada? –<br />

troçou Pinto, começando a lavar a loiça.<br />

Malacão nem levantou os olhos do prato.<br />

- Outra tachada? - repetiu. Depois compreendeu: Vai<br />

bardamerda.<br />

Continuou a devorar o guisado.<br />

- Estou à tua espera para lavar a loiça.<br />

- As cadelas apressadas parem os filhos mortos ou<br />

malucos.<br />

- A tua mãe devia ser das apressadas.<br />

- Já tu não tens problemas desses, foste feito dum<br />

monte de merda.<br />

Pinto alvejou-lhe a cabeça com o esfregão. Malacão<br />

esquivou-se e o projéctil esparramou-se contra a parede.<br />

- Cegueta.<br />

Pinto bufava, congestionado`.<br />

- Tás a ficar cacimbado de todo – comentou Malacão<br />

com um olhar compreensivo, sem deixar de mastigar. –<br />

Tens falta de uma coisa que eu cá sei.<br />

- Se és tão esperto, diz lá o que é?<br />

- Chicha.<br />

- E tu, não tens?<br />

- Eu? Eu...pois claro...ou julgas que sou de pau?<br />

- Onde costumas ir à hora à hora do almoço, mal sais<br />

da messe? – não deixou arrefecer Pinto, com um ar velhaco<br />

no carão bonacheirão.<br />

Malacão encolheu-se como um coelho bravo.<br />

Suspendeu a colher entre o prato e a boca aberta.<br />

- Que paleio é esse?<br />

83


Pinto compreendeu que jogara uma cartada certeira e<br />

abocanhou logo a oportunidade.<br />

- Sei tudo - martelou.<br />

- Tudo...o quê?<br />

- Tudo.<br />

A colher regressou cheia ao prato.<br />

- Tudo!- repetiu Pinto.<br />

- A gaja é mesmo boa – confessou Malacão.<br />

Pinto teve a percepção de que estava no limiar duma<br />

descoberta mirabolante. Enxugou as mãos e sentou-se<br />

defronte do camarada.<br />

- Conta lá.<br />

- E tão branquinha!<br />

O sangue tingiu o rosto redondo do Pinto.<br />

- Tu...tu andas com a mulher do capitão!?<br />

Só então Malacão compreendeu que caíra numa<br />

esparrela.<br />

- Não sabes de nada – gritou, furioso. - Estiveste a<br />

tirar nabos da púcara. - Vai lá lavar a loiça e deixa-me em<br />

paz.<br />

Pinto regressou ao lava-loiça, cabisbaixo. Os olhos<br />

matreiros do Malacão perseguiam-no.<br />

- Se continuares a lavar a loiça sozinho, talvez um dia<br />

te conte tudo. Já agora, traz-me um café e um conhaque.<br />

84


- Traz-me uma cerveja, Pinto - berrou o furriel<br />

Magalhães.<br />

- Há mais arroz? - perguntou o sargento Martins.<br />

- Não há, não, meu sargento.<br />

- E na cozinha? - insistiu o sargento.<br />

- Eu queria trazer mais, mas o cozinheiro não deixou<br />

– explicou Pinto. - Só quando chegar o 3º pelotão da<br />

Madimba é que sabem se sobra ou não.<br />

- Ó Máximo, você está a cortar a ração?<br />

- Só assim é que ele pode comprar um carro quando<br />

chegar à metrópole - espicaçou o furriel Reis.<br />

O furriel Máximo ficava fulo com estes apartes. O<br />

suor borbutava-lhe na fronte e os olhos verdes agitavam-se<br />

nos óculos de míope. Ripostou com voz trémula:<br />

- O que me consta é que tu tens intenção de levar um<br />

unimog. Os unimogos estão sempre avariados porque estão a<br />

desaparecer peças constantemente.<br />

- Mais vale isso do que matar a malta à fome.<br />

- Lá isso é verdade – corroborou o furriel Magalhães.<br />

- Olha quem fala. Ainda esta manhã não havia<br />

nenhum rádio operacional para o 3º pelotão sair -<br />

intrometeu-se o furriel Pinho.<br />

A discussão generalizou-se a toda a messe. A eterna<br />

guerra entre operacionais e especialistas. Gritava-se e<br />

gesticulava-se o que deu tempo para o Pinto emborcar uma<br />

cerveja.<br />

- Vocês, os operacionais só servem para andar com a<br />

mochila às costas - gritava exasperado o furriel Reis.<br />

85


- Cala-te, rodinhas. És mecânico porque tiveste uma<br />

cunha maior do que uma berliet. Nunca tinhas visto um<br />

motor na tua vida. Vocês são todos meninos das cunhas.<br />

- E vocês nem essa esperteza tiveram - saltou o<br />

furriel enfermeiro Ribeiro.<br />

- Deus me livre de um dia cair doente. Este seringas<br />

era carniceiro na vida civil.<br />

Pinto já não estava a gostar nada da brincadeira.<br />

Aproveitara para dar um espreitadela à messe dos oficiais e<br />

estes estavam prestes a terminar a refeição. A mulher do<br />

capitão até já pedira o café.<br />

“Mau, mau, se estes gajos não se largam, tou<br />

tramado”, cogitava, apreensivo, vendo a discussão cada vez<br />

mais acesa.<br />

Logo quando, vencendo medos e fantasmas, decidira<br />

avançar com o arrojado plano de apanhar o Malacão e a<br />

mulher do capitão em flagrante delito.<br />

Quando já via tudo perdido, Malacão veio em seu<br />

socorro. Avançou messe dentro em passo desenvolto, com o<br />

ar circunspecto que sempre afivelava em tais circunstâncias.<br />

- Meus senhores - bradou. - O nosso capitão pede o<br />

favor de fazerem menos barulho.<br />

- Vêm? - exasperou-se o 1º sargento Matos. - Estão<br />

sempre a dar oportunidades aos oficiais de nos pregarem<br />

raspanetes.<br />

- Eles que vão à merda - resmungou o furriel<br />

Máximo, ainda exaltado.<br />

- Ouvir raspanetes de garotos - lamentava-se o 1º<br />

sargento. - Tenho filhos mais velhos do que eles.<br />

Malacão piscou um olho ao Pinto.<br />

“Nem sabes o que te espera, grande sacana” - sorriu<br />

este. - Hoje não escapas.<br />

*<br />

86


Teresa despira-se a aprontava-se para se estender na<br />

cama. Habitualmente, aproveitava aquela paz depois do<br />

almoço, enquanto o marido e os alferes ficavam na messe a<br />

beber e a fumar, para saborear uma boa hora de repouso.<br />

Aquela incursão no teatro da guerra, que a princípio<br />

tanto a excitara, estava a tornar-se fastidiosa. O único<br />

atractivo que ainda perdurava naquela aventura era o prazer<br />

de ser o centro das atenções, de se sentir cobiçada por<br />

centenas de olhos esfomeados.<br />

- Isto é um campo de concentração - desabafava para<br />

o marido.<br />

- Eu bem te avisei. Mas não me deste ouvidos.<br />

- Sou caprichosa, bem sabes.<br />

- Foi isso que me atraiu em ti.<br />

Sorriu à evocação do galanteio do marido quando,<br />

repentinamente, a porta escancarou-se e um soldado com o<br />

quico enterrado até aos olhos esgazeados irrompeu quarto<br />

dentro.<br />

- Ei, o que é isto? - exclamou assustada, cobrindo-se<br />

com o lençol.<br />

Pinto estacou como um boi na arena. Resfolegava,<br />

desorientado, alagado em suor.<br />

- Quem é o senhor? - tornou Ana, já recomposta.<br />

Pinto soltou um urro de animal ferido de morte e<br />

fugiu, tombando na carreira cega, uma cadeira que se lhe<br />

atravessou no caminho.<br />

Teresa franziu a testa, intrigada, e foi cerrar a porta.<br />

“Há cada coisa!”.<br />

*<br />

Empoleirado na sanita, recomposto da estupefacção<br />

inicial, Malacão estava prestes a rebentar de riso. Pulmões<br />

em brasa, as lágrimas saltavam-lhe dos olhos em catadupa.<br />

“Ai que eu rebento, ai que eu rebento”<br />

87


“Por fim, a gargalhada explodiu em ondas fragorosas<br />

que lhe deixaram as pernas a tremer como vimes.<br />

Pelo orifício, que abrira na parede entre a casa de<br />

banho e o quarto do capitão, por onde todos os dias<br />

espreitava a mulher, assistira, do princípio ao fim, ao<br />

monumental espectáculo do Pinto.<br />

Indefeso, deixou-se submergir por nova avalanche de<br />

hilaridade.<br />

“Ai que eu rebento, ai que eu rebento.”<br />

No quarto, de olhos arregalados, assustada, Teresa<br />

vestiu-se apressadamente e correu a refugiar-se na messe<br />

onde os oficiais travavam animada partida de póquer.<br />

88


Formada na parada, a Companhia derretia sob a<br />

explosão do sol a pino. Tudo era branco, duma brancura que<br />

entrava pelos olhos e fritava os miolos.<br />

- Que será desta vez? - interrogavam-se todos. -<br />

Coisa boa não é.<br />

O sol mordia as costas e o suor encharcava as<br />

camisas.<br />

Os alferes e os furriéis passeavam frente à formatura<br />

com caras de caso. Até o primeiro-sargento Matos levantara<br />

o nariz dos calhamaços da contabilidade e seguia o decorrer<br />

dos acontecimentos encostado à ombreira da porta da<br />

secretaria. Só o alferes Vasconcelos é que arvorava um<br />

sorriso trocista, francamente divertido com o espectáculo.<br />

Centenas de olhos permaneciam cravados na porta do<br />

gabinete do capitão, ansiosos por vê-lo surgir.<br />

- Tá a fazer render o peixe - murmuraram na última<br />

fila.<br />

- Silêncio - berrou o alferes Silva.<br />

- O chicalhão tá a precisar dum aperto - rosnou uma<br />

voz.<br />

Contudo, a expectativa suplantava todos os rancores.<br />

Para o capitão ter mandado formar a companhia o caso devia<br />

ser grave. Ninguém escapara, desde os cozinheiros aos<br />

enfermeiros, passando pelos básicos e faxinas. Somente as<br />

sentinelas permaneciam nos postos.<br />

Quando todos já começavam a desesperar, o capitão,<br />

irrompeu do gabinete em passo marcial. Sob a boina,<br />

apercebia-se o rosto severo, impenetrável.<br />

89


- Atenção, Companhia, senti..DO - rugiu o alferes<br />

Silva.<br />

- Mande descansar - sibilou o capitão.<br />

- Companhia, descan..SAR! À vontade.<br />

O capitão postou-se frente aos homens, verrumandoos<br />

um a um.<br />

- Meus senhores, a primeira coisa a dizer é que me<br />

sinto profundamente magoado. Há entre vós gente que não<br />

soube merecer a confiança que vos concedi. É a pior ofensa<br />

que me podiam ter feito.<br />

A Companhia não piava, esquecida a voracidade do<br />

sol. O capitão deu dois ou três passos, rodou nos tacões e<br />

prosseguiu a sua diatribe:<br />

- Ontem, alguém se introduziu nas instalações dos<br />

oficiais com ignóbeis intuitos. - Alçou o dedo - Quero o<br />

culpado. Terá este a hombridade de dar um passo em frente?<br />

Quem foi?<br />

Ninguém se moveu. Os olhos do capitão passeavam,<br />

perfurantes, pelos rostos congestionados.<br />

- Ninguém se apresenta? Pensei que estava a lidar<br />

com homens mas enganei-me. Já que é assim, ficam desde já<br />

suspensas as colunas a S. Salvador e proibidas as visitas à<br />

sanzala. E a ração de cerveja será cortada para metade. Até<br />

ao fim da comissão, se for preciso. Podem estar certos de<br />

que o culpado não irá escapar. Mande destroçar, alferes<br />

Silva.<br />

- Ai, Jesus - gemeu Malacão.<br />

Apesar do calor, os dentes do Pinto batiam como<br />

castanholas.<br />

- Atenção, Companhia, direita...ER - grasnou o<br />

alferes. - Destro...ÇAR.<br />

90


A malta ficou surpreendido com a inesperada entrada<br />

do alferes Mendonça na caserna.<br />

- Boa noite.<br />

Ninguém se mexeu, as conversas adiadas nos lábios.<br />

Mendonça aventurou-se até ao meio da caserna,<br />

vigiado por olhares de soslaio. Largou em chorrilho as<br />

palavras estudadas:<br />

- Como devem saber, por em breve para férias. Não<br />

quero partir sem vos dar uma explicação, esclarecer certas<br />

coisas. - As palavras pareciam esmagar-se contra os rostos<br />

sombrios, precocemente adultos. – Quero, em primeiro<br />

lugar, dizer-vos que lamento tanto ou mais do vocês a morte<br />

do...vosso camarada...do Pacaça.<br />

- Lamentar não chega - falou Mendes, logo<br />

coadjuvado por um murmúrio cavo.<br />

Mendonça atirou-se com sofreguidão àquela brecha:<br />

Como vos queria dizer, não me limito a lamentar. Sei<br />

que não poderei restituir a vida ao vosso camarada mas irei<br />

fazer os possíveis por atenuar o meu erro. Era isto que vos<br />

queria dizer.<br />

- Fazer o quê? – tornou Mendes.<br />

Já havia rostos interessados, olhares curiosos.<br />

- Mal chegue à metrópole, irei procurar de imediato<br />

os pais dele. Sei que vivem com dificuldades mas a minha<br />

família é, felizmente, bastante abastada e poderá apoiá-los<br />

nesta situação tão difícil.<br />

Mendonça olhou ao redor, com as lágrimas nos<br />

olhos.<br />

91


- Talvez vos custe a a acreditar mas tenho-vos em<br />

grande estima. Foi no vosso convívio que compreendi<br />

muitas coisas. Recebi grandes lições. Nunca, nunca mais<br />

poderei esquecer o tempo que passámos juntos. Brevemente,<br />

compreenderão melhor o sentido das minhas palavras.<br />

Fernandes saiu do seu canto com uma garrafa nas<br />

mãos.<br />

- É bagaceira do Minho. Beba que é de estalo.<br />

Mendonça abraçou-o.<br />

- Obrigado. Obrigado por tudo..<br />

- Eh, meu alferes, não beba tudo, deixe uma pinga<br />

prá malta - alarmou-se o Barão, saltando da cama.<br />

E logo a caserna explodiu em algazarra.<br />

92


Para espanto geral, Pinto passou a usar óculos de sol<br />

e deixou crescer um bigode que lhe dava um ar façanhudo<br />

que desvirtuava completamente a sua índole de pacato<br />

aldeão minhoto.<br />

- Mas, ó Pinto, até de noite? - estranhavam.<br />

Pinto desfazia-se em explicações, evocava a sua<br />

galopante alergia à luz, à mais ténue claridade.<br />

- Andas a treinar para toupeira? - ria Malacão.<br />

- És o culpado de tudo - enfurecia-se Pinto. - Nunca<br />

mais te hei-de perdoar.<br />

- Deixa lá que ela já vai embora dentro de dias. -<br />

acalmava-o Malacão. - Pelo que oiço lá na messe, só olhou<br />

para a tua ferramenta em pé. Não tenhas medo que não te<br />

poderá reconhecer.<br />

Logo uma gargalhada irreprimível o sacudia de alto a<br />

baixo e lhe enchia os olhos de lágrimas.<br />

Pinto ficava com vontade de lhe saltar em cima mas<br />

logo o medo de dar nas vistas reprimia o impulso.<br />

Aconchegava os óculos na cara e rosnava por baixo do<br />

bigode:<br />

- Ainda mas hás-de pagar.<br />

Malacão fazia-lhe peito, destemido, ameaçador.<br />

- Queres que dê com a língua nos dentes? Já te<br />

esqueceste que é por tua causa que a malta não pode ir à<br />

sanzala nem a S. Salvador? Que é por tua causa que<br />

andamos todos com as mãos gastas de tanto esfregar o pau?<br />

- Fala mais baixo - assustava-se Pinto. - Olha que te<br />

podem ouvir. Sempre fomos amigos.<br />

93


Apaziguados, lá iam beber mais uma cerveja que,<br />

criteriosa e alternadamente, carregavam na conta quer dos<br />

sargentos quer dos oficiais.<br />

- A gaja é mesmo boa - suspirava o Malacão.<br />

Pinto acariciava o bigode, sonhador e, sem palavras<br />

para exprimir o que lhe lavrava a alma, deixava a cerveja<br />

escorrer garganta abaixo a acalmar o fogo que lhe devorava<br />

as entranhas.<br />

94


Teresa e Mendonça partiram para Luanda no mesmo<br />

táxi-aéreo.<br />

À última hora, tiveram um inesperado companheiro<br />

de viagem: o Barão, a contas com uma hepatite de quatro<br />

cruzes.<br />

- Tens que nos dizer como isso se arranja, ó Barão -<br />

despediam-se os camaradas.<br />

Pela primeira vez, desde que se conheciam, o Barão<br />

não teve forças para ripostar. Limitou-se a um simulacro de<br />

sorriso amarelado.<br />

No dia seguinte, inesperadamente, num acesso de<br />

brandura, o capitão Rosado levantou o racionamento da<br />

cerveja e a proibição de irem à sanzala. A Companhia<br />

reencontrou rapidamente a rotina habitual: patrulhas,<br />

bebedeiras, caçadas, paludismo, saudades, solidão. Os dias<br />

as esgotarem-se lentamente na clepsidra daquele tempo<br />

suspenso.<br />

A época do cacimbo estava à porta. Mais clemente o<br />

calor e amansadas as chuvas, os morros começavam a<br />

amarelecer, à espera das queimadas que iluminavam as<br />

longas noites estreladas dos trópicos.<br />

95


ENTRE MORROS E CAPIM<br />

O aquartelamento encarrapitado no cimo do morro. A<br />

meia encosta, a sanzala.<br />

Ao redor, a omnipresença dos morros verdes de capim.<br />

Nas vertentes, as manchas escuras e densas da mata.<br />

Finalmente, após longa espera, os maçaricos chegaram. À<br />

porta de armas, uma enorme bandeirola de pano branco, letras<br />

garrafais pintadas em vermelho vivo, fazia as honras da recepção:<br />

«A RAZÃO DA VOSSA TRISTEZA É A RAZÃO DA<br />

NOSSA ALEGRIA.»<br />

Os velhinhos, em polvorosa, rodearam a coluna. Troçam,<br />

hílares, do ar aparvalhado dos recém-chegados. -<br />

- Estes maçaricos ainda cheiram a sal.<br />

- Estávamos com medo que se tivessem perdido na picada.<br />

- Aqui não podem chamar pela mamã.<br />

Mas logo a saudade desponta. Abruptamente, a fachada<br />

rude esboroa-se.<br />

- Vem alguém de Viana?<br />

- De Chaves?<br />

- De Leiria?<br />

Reencontros. Abraços. Corações a estoirar na boca.<br />

Um tropel de emoções a rasgar caminhos largos de<br />

ternura, a correr como sombras pela imensidão do capinzal.<br />

ISBN 978-2-9813189-3-0<br />

96

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