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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
TRABALHO, GÊNERO E LINGERIE: TRADIÇÃO E
TRANSFORMAÇÃO NAS TRAJETÓRIAS DAS COSTUREIRAS DE
ROUPAS ÍNTIMAS DE NOVA FRIBURGO-RJ.
Wecisley Ribeiro do Espírito Santo.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2009.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
TRABALHO, GÊNERO E LINGERIE: TRADIÇÃO E
TRANSFORMAÇÃO NAS TRAJETÓRIAS DAS COSTUREIRAS DE
ROUPAS ÍNTIMAS DE NOVA FRIBURGO-RJ.
Wecisley Ribeiro do Espírito Santo.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte
dos requisitos necessários para a obtenção do título
de Mestre em Antropologia Social.
Orientador: Prof. Dr. José Sérgio Leite Lopes.
Rio de Janeiro.
Fevereiro de 2009
ii

“Na esteira, havia um grupo de máquinas enfileiradas, de um lado e de
outro da esteira eletrônica e tinha uma seqüência de produção, do
primeiro ao último processo. No início da esteira ficavam, obviamente,
os primeiros processos que seguiam até a última máquina. Daí as caixas
já passavam para a mesa, para inspeção de qualidade, este tipo de
coisa. Era um processo de produção fordista mesmo! E cada costureira
recebia a gratificação por produção conforme a sua própria produção.
Havia processos em que ela conseguia uma produção maior, outros
processos um pouco menos, mas o que ela fazia, pouco ou muito, era
dela, não tinha divisão, não tinha influência na remuneração de outras
costureiras. Depois que passou pra célula mudou. A produção passou a
ser em conjunto. O que o grupo conseguir em produção corresponde a
um valor na gratificação que todas ganharão igualmente. No sistema de
célula os supervisores definem uma meta de produção. Quando a equipe
está atingindo aquela meta, eles aumentam a meta. A célula tem que
produzir sei lá, duas mil peças por dia. Quando você chegou a atingir as
duas mil passa pra duas e quatrocentas, chegou nas duas e quatrocentas
passa pra duas e quinhentas. Se chegou nas duas e quinhentas faltando
dez minutos pro fim do expediente passa pra duas e quinhentas e
cinqüenta. Só que aí você já está estourada. Até dois meses atrás nós
tínhamos dez por cento dos empregados da empresa afastados por LER.
Tendinite, problema na coluna, etc. Eu fui uma das vítimas, tive que
fazer uma cirurgia na coluna por causa da pressão do sistema de célula
por cada vez mais produção”. (Luzia, presidente do Sindicato dos
Vestuários de Nova Friburgo).
iii

SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.--------------------------------------------------------------------------------------1.
Alguns problemas da investigação.---------------------------------------------------------------1.
Aspectos gerais do campo.--------------------------------------------------------------------------7.
Breve esboço cartográfico das fábricas de moda íntima de Nova Friburgo.------------11.
Genealogia do pólo industrial de moda íntima da região.----------------------------------15.
A memória como objeto da história, ou confissões de um nativo aprendiz de
etnógrafo.---------------------------------------------------------------------------------------------31.
Problemas de terminologia.-----------------------------------------------------------------------39.
CAPÍTULO 1 – As transformações do processo produtivo e suas repercussões.------41.
Um episódio de conflito entre as costureiras.--------------------------------------------------41.
O cotidiano tradicional de uma sala de costura e o processo produtivo
individualizado.--------------------------------------------------------------------------------------45.
As alterações da década de 1990.----------------------------------------------------------------66.
“Benefícios sociais” e hegemonia relativa da Triumph International sobre as demais
fábricas do município.------------------------------------------------------------------------------80.
Diferenças entre gerações e diferenças de reações à mudança no processo produtivo:
individualização ou re-configuração dos vínculos operários?------------------------------90.
CAPÍTULO 2 – Duas histórias de vida.-------------------------------------------------------102.
Vânia.------------------------------------------------------------------------------------------------104.
Íris.----------------------------------------------------------------------------------------------------115.
Duas noções de trabalho fabril; duas visões de escolarização.---------------------------122.
CAPÍTULO 3 – Moda íntima e vida privada: um relato sobre a esfera doméstica.-125.
Considerações sobre a residência operária.--------------------------------------------------125.
O corpo como elo entre a moda “íntima” e a esfera “privada”.-------------------------131.
Gênero e estruturas temporais.-----------------------------------------------------------------137.
O caráter polimórfico do sistema de “facção”.----------------------------------------------141.
iv

Lazer, gênero e desemprego: agência, governo feminino da casa e dominação
masculina.-------------------------------------------------------------------------------------------148.
A centralidade dos Filhos.-----------------------------------------------------------------------156.
CONSIDERAÇÕES FINAIS.-------------------------------------------------------------------162.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.-------------------------------------------------------169.
ANEXO.---------------------------------------------------------------------------------------------174.
v

Alguns problemas da investigação.
INTRODUÇÃO.
Este texto constitui o resultado de um exercício de sistematização, sob a forma de
relato etnográfico, de dados empíricos ainda muito incipientes. Trata-se de um conjunto de
informações que registrei, por cerca de oito meses, referentes à vida “das costureiras” da
indústria de “moda íntima” 1 de Nova Friburgo, município situado na região Serrana do
Estado do Rio de Janeiro.
Estas informações eu as tenho coletado por meio de diversos procedimentos de
investigação. Os recursos à pesquisa de campo etnográfica, à entrevista aberta que
freqüentemente se confunde com uma conversação livre, à observação direta (sempre que
esta foi possível) de certos aspectos da cultura operária, são certamente os mais importantes
deles. Tive a oportunidade, ao longo do tempo de investigação, de realizar nove entrevistas
– duas com a presidente do Sindicato dos Vestuários de Nova Friburgo, uma com uma
representante do SEBRAE no “Conselho da Moda” de Nova Friburgo, outra com uma
consultora do SENAI, responsável por auxiliar a classe patronal nas questões de
produtividade, e cinco com operárias. Além disso, debrucei-me mais detidamente no
registro de duas histórias de vida de costureiras com as quais eu já mantinha relações de
amizade antes do trabalho de campo 2 . Por outro lado, conforme se poderá notar nesta
introdução, procurei recorrer complementarmente aos procedimentos investigativos
1 As aspas aqui servem para indicar formas especificamente nativas de falar, bem como termos ou trechos
citados de referências de autores. Neste último caso, as notações bibliográficas serão devidamente
discriminadas entre parênteses. No caso específico da expressão “as costureiras”, trata-se de uma forma
particularmente local de falar que pode obliterar a presença de homens que recentemente vêm se
incorporando a este setor de costura de lingerie. “Moda Íntima”, por seu turno, é uma expressão empregada
localmente para referir-se aos produtos produzidos pelo setor – a saber, peças de lingerie. Embora esta
classificação nativa seja frequentemente equacionada com lingerie ou roupas íntimas, creio que ela constitui
uma categoria mais restrita. Trata-se, conforme argumentarei mais à frente, de uma estratégia empresarial
para conferir “distinção”, no sentido de Bourdieu (1979), aos seus produtos pela via da exaltação estética
que organiza o campo da Moda. Voltarei a estes pontos ulteriormente.
2 A respeito das relações de amizade, em campo, Florence Weber faz uma distinção entre dois estilos,
segundo ela, “incompatíveis” de relações com os nativos: “une collaboration amicale avec des alliés et une
relation plus distante et plus orthodoxe (entretiens non directifs, longs et repetes) avec des enquêtés”
(Weber, 1989: 32). Segundo esta distinção as relações de aliança constituiriam um elemento impeditivo à
realização de inquéritos mais sistematizados, com perguntas, respostas, registro das notas ou gravações. Por
conseguinte, os aliados se encontrariam fora do campo de observação do etnógrafo (ibidem: 32). De minha
parte tendo mais a concordar com Mintz (1982), para quem a amizade estabelecida entre ele próprio e Don
Taso não constituiu um obstáculo epistemológico à elaboração de uma história de vida. Voltarei, ainda
nesta introdução, a este ponto.

pertencentes também ao campo da pesquisa historiográfica de um duplo modo. Por um
lado, fontes documentais encontradas no Sindicato dos Trabalhadores do Vestuário de
Nova Friburgo 3 e registros escritos provenientes de entidades patronais (tais como as
entidades pertencentes ao sistema FIRJAN e o SEBRAE); por outro, genealogias e
memórias encarnadas nas tradições culturais dos operários 4 . Por fim, de um modo
subsidiário, alguns poucos dados estatísticos foram compilados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) e do site do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e
Comércio Exterior como forma de completar algumas eventuais lacunas do relato.
Este amálgama de procedimentos investigativos, que poderíamos chamar com
Neiburg (2000:8) de “ecletismo metodológico”, talvez seja melhor justificado em
decorrência das dificuldades que encontrei na observação direta da vida das costureiras.
Dificuldades engendradas no entrecruzamento de aspectos diversos. Em primeiro lugar, a
“pressão ”5 exercida sobre as costureiras pelas estruturas temporais específicas de seu
3 Entretanto, a maior parte das informações recolhidas nos arquivos sindicais, sobretudo atas, panfletos e
recortes de jornal – referentes ao que se poderia chamar de “a formação” (Thompson, 1987) da categoria
operária do vestuário friburguense – não foram incorporados a este trabalho. Por conseguinte, espero poder
sistematiza-los sob a forma de texto, em um futuro próximo.
4 Esta abordagem histórica que, em certa medida, se confunde com a pesquisa antropológica foi inspirada pelo
seguinte trecho de Leite Lopes, referindo-se á relação entre Antropologia e História, no trabalho de Marshal
Sahlins:
“Desde 1981, Sahlins, explicitamente, com o texto ‘Metáforas Históricas e Realidades Míticas’, faz um
trabalho histórico junto a grupos polinésios que estudou anteriormente como antropólogo, com trabalho de
campo, etc. Recupera a documentação da administração colonial e também recupera uma série de mitos
que ele trabalhou para, através dessa dupla via, entender a história do capitão Cook, a história da própria
colonização, do contato entre colonizador e colonizado, e como o colonizado reelabora, na sua cultura
específica, esse próprio contato e como essa reelaboração tem uma importância grande na história mesma
da colonização”. (Leite Lopes, s.d.: 84, grifo meu).
Trata-se, também aqui de tentar reconstituir certos eventos históricos pela dupla via da pesquisa documental e
da memória operária.
5 O termo “pressão” constitui uma categoria nativa não apenas muito recorrente nas declarações das
costureiras, como também bastante expressiva das relações entre capital e trabalho na industria de moda
íntima friburguense. A “pressão” a que se referem repetidamente as costureiras de lingerie de Nova
Friburgo parece assumir um sentido amplo que resulta da soma de variadas modalidades de pressão – as
várias formas de pressão patronal (por produção, por qualidade, pelo rebaixamento dos salários) mais a
pressão exercida pelo tempo, pela dupla e eventualmente tripla jornada de trabalho, etc. Embora esta seja
também uma categoria própria das ciências sociais, em especial daquelas áreas mais ligadas às relações de
trabalho, por exemplo, em Cottereau (1983), emprego aqui este termo em virtude de sua recorrência no
discurso nativo, que guarda certas coincidências com a acepção técnica da antropologia e da sociologia
operárias. Por exemplo, o equacionamento entre a pressão produtivista e a noção de “usura no trabalho” –
de um desgaste físico tanto quanto emocional que concorre para a debilitação da saúde da classe operária –
tal qual desenvolvida por Alain Cottereau. O que, de fato, se coaduna com o contexto no qual a noção de
“pressão” é empregada pelas operárias de lingerie de Nova Friburgo, conforme se pode observar na epígrafe
deste trabalho, onde a presidente do sindicato atribui a ocorrência dos casos de LER à intensa pressão
produtivista. Para um debate sobre a incidência da pressão produtivista e da noção de “usura no trabalho”
7

“padrão de vida” 6 . As estruturas temporais socialmente produzidas no encontro entre
diversos aspectos da vida das costureiras, especialmente entre as relações de produção e as
relações domésticas, têm por característica fundamental a pressa e a urgência. A este
respeito é bastante expressivo do universo social investigado o fato de eu não ter
conseguido em um primeiro momento, em que pese minhas inumeráveis tentativas,
estabelecer interações com as operárias. E, em um segundo momento, obter interações
muito curtas. A pressa talvez seja a marca mais perceptível da maneira como agem as
costureiras de lingerie de Nova Friburgo, especialmente aquelas que trabalham nas grandes
empresas do município. O trecho seguinte faz parte de minhas anotações em caderno de
campo, no primeiro dia da investigação, 1 de Abril de 2008. Por esta ocasião, eu ainda não
tinha entabulado conversa com nenhuma das costureiras. O trecho refere-se ao horário do
fim do expediente da Filó S.A., a maior empresa de lingerie da região.
“Pareceu-me que as operárias que possuem filhos na creche da
fábrica apressam-se de um modo mais vigoroso que as demais operárias,
por ocasião do fim do expediente. Elas são amiúde as primeiras a sair
pelo portão, caminhando a passos largos, em direção ao lado oposto da
rua, onde se encontra o prédio que reúne vários dos “benefícios”
oferecidos pela empresa – o refeitório, as quadras esportivas, o salão de
jogos e, evidentemente, a creche, de fundamental importância para os
operários tanto quanto para os patrões (por motivos diferentes
certamente). As funcionárias da creche procuram facilitar ao máximo a
tarefa das operárias de encontrar seus respectivos filhos, em meio ao
grande número de crianças. De modo que auxiliam as mães indicando as
crianças com o dedo ou mesmo conduzindo-as pelo braço. Parece existir
um acordo tácito entre costureiras e trabalhadoras da creche no sentido da
máxima agilização da retirada das crianças.
no contexto específico da exploração da força-de-trabalho feminina ver Cottereau, Alain. 1983, “Usure au
travail, destins masculins et destins féminins dans les cultures ouvrières, en France, au XIX siècle.” In Le
moviment sociale. Número 124. Paris.
6 Sobre as controvérsias em torno do caráter subjetivo da noção de “padrão de vida” ver Thompson, E.P.
1987. A formação da classe operária inglesa. A maldição de Adão (Vol.2) Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Diferentemente da acepção positivista da expressão, calcada em uma matriz estatística, que Thompson
critica emprego-a aqui como uma mera variação da expressão antropológica “modo de vida”.
8

A saída do expediente parece acompanhar o ritmo frenético da
produção no sistema de “célula”. A impressionante afobação com a qual
atravessam o pavimento principal da fábrica não pode deixar de acarretar,
eventualmente, um esbarrão ou outro entre as costureiras. Tudo se passa
como se a jornada de trabalho diária não tivesse efetivamente chegado ao
fim. Com efeito, observando-as correr com tamanho açodamento não
pude evitar pensar na questão da dupla jornada de trabalho que as
mulheres comumente enfrentam diariamente.”
Já aqui está colocada a pressão do tempo doméstico, freqüentemente um segundo
local de trabalho. Encontrei ainda outras dificuldades na investigação de campo, igualmente
significativas de certas relações sociais imanentes à vida da maioria das costureiras de
lingerie de Nova Friburgo. Dificuldades relacionadas a questões de identidade de gênero. O
fato, por exemplo, de o pesquisador ser do sexo masculino em um ambiente profissional
predominantemente feminino acarretou, neste contexto, alguns problemas de interação. Um
destes problemas diz respeito também às relações conjugais entre as costureiras casadas.
Assim, à pressão do tempo, à imposição da urgência na vida das costureiras de lingerie –
imposição que, obviamente, concede pouco espaço a entrevistas antropológicas –, importa
adicionar a questão das relações conjugais características das famílias operárias. Também
no caso particular das trabalhadoras da roupas íntimas de Nova Friburgo deparei-me com
um padrão de relações conjugais mais difundidos nos meios operários, já largamente
registrado pela bibliografia especializada 7 . Trata-se da dominação masculina sobre o direito
feminino de se comunicar ou não com o mundo exterior à esfera doméstica, contrapartida
de “um dos mais antigos privilégios masculinos” – a saber, segundo Schwartz, “o direito de
sair” (ibidem: 208). Este é um tema de fundamental importância para os propósitos desta
investigação que será retomado no último capítulo deste trabalho. Aqui basta inferir que o
monopólio masculino sobre a maioria das opções de lazer (ibidem: 212), oferecidas fora da
esfera doméstica, sustenta-se no mesmo princípio subjacente às dificuldades que um
pesquisador do sexo masculino encontra em entrevistar as operárias de lingerie de Nova
7 Sobretudo em Schwartz, Oliver. 1990. Le monde prive des ouvriers: hommes et femmes du Nord. Paris:
Quadrige/ Press Universitaires de France.
9

Friburgo – qual seja, o controle seletivo do marido sobre a comunicação da mulher com o
mundo exterior à casa.
Diante destes problemas, fui gradativamente percebendo quanto mais fácil era
abordar as operárias das gerações mais recentes, freqüentemente solteiras, durante seus
horários vagos da jornada de trabalho. Amiúde estas jovens trabalhadoras se enquadram nas
“confecções” 8 pequenas e médias, porquanto a Triumph International 9 – que é também,
como veremos, a fábrica precursora do ramo de lingeries, em Nova Friburgo – completou
em 2008, 18 anos sem abrir contratações de costureiras. Por conseguinte, é sobretudo nesta
última fábrica que podemos encontrar um grupo mais numeroso de costureiras com mais de
vinte anos de profissão. Ocorre que é também aí que o “caráter fechado da fábrica” (Leite
Lopes, 1976: 1) se manifesta em sua forma mais radical (voltarei a este ponto). Este fato me
colocou diante de um novo problema – a saber, como ter acesso às informações referentes
às trajetórias de vida das gerações mais antigas de costureiras? Colocada a dificuldade,
optei por investigar este grupo pela via da esfera doméstica e não na fábrica. Aqui o
acionamento de minhas próprias redes de parentesco no interior desta categoria operária foi
fundamental – entrevistas com primas, tias e, mais freqüentemente, com minha própria mãe
(que, além de ter constituído uma informante privilegiada, foi também a principal via de
acesso ás suas amigas, companheiras de trabalho, que são, em geral de sua mesma faixa
etária). No que se segue, reproduzo um trecho de minhas anotações em caderno de campo,
redigidas no dia 30 de Abril de 2008, que ilustram o momento preciso no qual percebi que
as visitas à Triumph estavam sendo menos profícuas, do ponto de vista da possibilidade de
interações com as operárias, do que a outras fábricas menores:
“Hoje eu optei por visitar uma confecção de lingerie de porte
mediano, situada na região norte de Nova Friburgo, chamada Lucitex.
Pareceu-me que eu deveria realizar uma pequena alteração no locus da
pesquisa. O que a princípio deveria ser meu local de investigação – a
empresa Triumph International – mostrou-se de difícil acesso
8 Confecção” é o nome que é dado a uma fábrica de pequeno ou médio porte. O numero de suas operárias
pode variar entre dez ou quinze até trezentas costureiras.
9 O formato itálico será empregado, neste trabalho, para discriminar palavras e palavras em língua estrangeira,
nomes próprios de empresas, como também aquelas expressões utilizadas por mim que não correspondem
sempre a acepções nativas. Eventualmente também optei pelo formato itálico para registrar documentos
mais extensos do que as citações usualmente encontradas nesta dissertação.
10

inicialmente. Destarte decidi visitar outras fábricas do mesmo ramo no
intuito de cotejar os pontos de vista de operárias de diversas empresas do
setor. Trata-se menos de uma mudança radical no objeto que de um
deslocamento sutil no intuito de contemplar especificidades sub-reptícias
à condição geral das operárias de roupas íntimas do município. Ademais o
convívio inicial com operárias de diversas fábricas menores e mais
acessíveis 10 pode me permitir suprir a carência de interações dialógicas
que tenho sentido na pesquisa com a Triumph”.
Daí que eu tenha então visitado as costureiras da Lucitex em seu
horário de almoço. E, com efeito, somente desta maneira consegui
estabelecer uma conversação efetiva com as operárias. Abordei-as me
apresentando e esclarecendo que estava ali para realizar uma pesquisa
sobre a vida das costureiras de lingerie de Nova Friburgo. Era um grupo
de aproximadamente oito costureiras. Algumas delas estavam sentadas na
calçada à frente do portão de entrada da fábrica, outras estavam em pé.
Pela maneira familiar com a qual se tratavam mutuamente pareciam
trabalhar juntas a muito tempo. Receberam-me com grande interesse e
cordialidade a julgar pelo entusiasmo com o qual começaram a falar logo
que eu disse tratar-se de uma pesquisa sobre a vida delas”.
A pesquisa de campo nas residências concentrou-se sobre as costureiras das
gerações mais antigas; a investigação nas fábricas ficou, portanto, restrita na maior parte do
tempo (mormente a partir do segundo mês de investigação) às “confecções” médias e
pequenas e às gerações mais novas de operárias. Mas aqui também as dificuldades não
deixaram de existir. Algumas confecções têm salas de televisão, salão de jogos de mesa e
outros espaços de lazer que com freqüência faz com que as operárias não saiam para a rua,
em seus horários vagos, o que dificulta minhas tentativas de estabelecer contato com elas.
Estas dificuldades, além do fechamento das fábricas a este tipo de pesquisa, que tornam
parcialmente disponíveis para uma investigação apenas os horários de almoço, constituem
10 Saliente-se que as instalações de lazer da Triumph, bem como os espaços de convívio social mais intenso –
como o refeitório – são todos eles fechados no interior das instalações da fábrica. O que não ocorre com
empresas menores, onde freqüentemente as operárias descansam o almoço sentadas nas calçadas das ruas
ou passeando nos arredores.
11

as justificativas fundamentais dos recursos a outros procedimentos de pesquisa, dos quais
lancei mão.
Aspectos gerais do campo.
Nova Friburgo é um município de cerca de 933 km², com aproximadamente
175.000 habitantes 11 . Estando em qualquer ponto da cidade um visitante não perde de vista
a densa vegetação atlântica e a intrincada cadeia de montanhas que circunda toda a área
urbana, por vezes mesmo invadindo-a e obliterando suas dimensões. A belíssima serra que
é preciso subir para chegar à cidade esconde, como um núcleo celular protegido pela
membrana, um esplendido vale que é banhado pelas águas dos rios Macaé, Rio Bonito, do
Rio Cônego, e do Rio Santo Antônio. Estes dois últimos, por seu turno, fundem-se entre si,
no centro da cidade, formando o Rio Bengalas – já por demais poluído, em grande medida,
por causa dos dejetos industriais despejados em seu leito.
A esta incrível onipresença da diversidade biológica na região vem se unir um outro
fenômeno de ordem social que perpassa, em igual medida, toda a materialidade urbana e
todas as representações ideais da cidade. Trata-se da realidade (não apenas econômica, mas
também social, cultural, estética) onipresente da moda íntima, com suas indústrias, lojas,
desfiles de moda, imagens, etc.
No que diz respeito à dimensão econômica, a indústria de lingerie, com larga
margem de vantagem sobre as demais, compreende o maior ramo do setor produtivo tanto
quanto do comércio friburguense. Em certos setores profissionais, especialmente aqueles
ligados à moda e ao turismo comercial, a cidade é conhecida como “a capital nacional da
moda íntima”. Certamente a dimensão publicitária não tem um papel menor na produção
deste imaginário nativo de “capital nacional”. Uma espécie de cooperação promocional
entre os setores púbico (prefeitura, secretaria de turismo) e privado plasma, por assim dizer,
uma certa identidade oficial da cidade. Abstraídos os eventuais exageros de marketing
envolvidos numa tal classificação, o município é certamente um pólo importante neste
domínio.
A classe burguesa friburguense que, de algum modo, mantém relações com o setor,
tem trabalhado fortemente no sentido da expansão de seu domínio econômico. Por
11 Dados referentes ao censo realizado pelo IBGE, em 2003.
12

exemplo, em 25 de fevereiro de 2005 diversas entidades empresarias, como o SEBRAE,
FIRJAN, SENAI e o SINDVEST – NF (Sindicato patronal das Indústrias do Vestuário de
Nova Friburgo), além da UERJ 12 – todos integrantes do chamado “Conselho da Moda” do
município – assinaram um acordo para a formação de um “Arranjo Produtivo Local” (APL)
de “Confecção” de Nova Friburgo. O objetivo era ampliar a produção e o comércio dos
produtos de roupas íntimas de toda a Região Centro Norte Fluminense e, por conseguinte,
as taxas de lucro de seus produtores. Desta APL de Confecção, cujo município principal é
Nova Friburgo, fazem parte também as cidades contíguas de Bom Jardim, Cordeiro,
Cantagalo e Duas Barras. A região contava, no mesmo ano, cerca de 700 empresas voltadas
para o setor de “moda íntima”, sendo deste montante 500 formais e 200 informais. Também
em 2005 os empresários deste setor, na Região Centro Norte Fluminense, eram detentores
de 25% do mercado de lingeries nacional, sendo também responsáveis pela exploração da
força de trabalho de cerca de 20.000 trabalhadores.
Há que se salientar a curiosa cooperação das esferas municipais, estaduais – como é
o caso da UERJ, já citada como integrante do “Conselho da Moda” – e federais do Estado,
de algum modo ligadas ao setor industrial e que freqüentemente constituem, por assim
dizer, o braço estatal 13 da burguesia empresarial nacional e multinacional. No mesmo ano
de 2005, por exemplo, foi noticiado, em 21 de Junho, pelo Ministério do Desenvolvimento,
Indústria e Comércio Exterior, a implementação de um Projeto de Extensão Industrial
Exportadora (PEIEx) no Arranjo Produtivo Local de Nova Friburgo. Trata-se, segundo as
informações veiculadas na página do próprio ministério, de um projeto que visa formar
consultores para auxiliar as indústrias do setor de moda íntima, na região, a “detectar
dificuldades e fornecer soluções”. Muitas destas “dificuldades” parecem se referir ao
declínio das taxas de lucro do Capital, no setor, em decorrência do crescimento de empresas
12 As informações aqui registradas podem ser originalmente encontradas no site do Ministério do
Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior: http://www.desenvolvimento.gov.br
13 Esta cooperação entre Estado e Capital não é, entretanto, tão curiosa assim, senão que ela parece ser
imanente, ainda que sub-reptícia, ao próprio funcionamento do modo de produção capitalista. E mesmo a
noção de um mercado “auto-regulável” que constitui a ideologia declarada deste sistema não pode
prescindir deste suporte estatal:
“Como Polanyi mostra em The Great Transformation, a emergência de mercados nacionais não é o
resultado mecânico da extensão gradual das trocas, mas o efeito de uma política de Estado deliberadamente
mercantilista que visa aumentar o comércio interno e externo: vendo no desenvolvimento econômico o
melhor apoio do seu poder, os Estados favoreceram a comercialização da terra, do dinheiro e do trabalho”.
(Bourdieu, 2001: 277).
13

ivais, em especial, sob o ponto de vista patronal, as Chinesas 14 . Complementarmente, a
maioria das “soluções” formuladas sob os auspícios do sistema FIRJAN, do SEBRAE e do
referido Ministério, conforme tentarei demonstrar ao longo deste trabalho, coadunam-se
com as novas formas de organização pós-fordista (Budgen, 2000: 151) do trabalho. Por
conseguinte, nos deparamos com noções como “trabalho em equipe”, “polivalência”, etc.
Parte destas estratégias supõe um processo de doutrinação dos trabalhadores no sentido de
que estes, a despeito das reais relações de exploração a que são diariamente submetidos, se
sintam parte de uma equipe que é a empresa. Nesse sentido, os diversos consultores
formados pelo PEIEx freqüentemente são contratados pelas fábricas de lingerie da região
para ministrar “palestras motivacionais” para os operários. A estes últimos é sugerido que
participem dos processos de “controle de qualidade”, de “gerenciamento participativo” –
que, no caso das costureiras se resume a uma inspeção mútua sobre os trabalhos das colegas
– de “integração de tarefas”. A respeito destas novas “soluções” para as dificuldades da
empresa (isto é, dispositivos de reestruturação produtiva, que no caso das fábricas de
lingerie foram batizados com o nome de sistema de “célula”), eu pude registrar a seguinte
declaração em uma entrevista com uma destas consultoras:
“Então tem este esquema de célula que você premia o grupo.
Então pra mim é importante que o pedido da loja Líder esteja pronto. Não
me interessa se alguma costureira não foi bem, eu quero que todo mundo
se esforce no mesmo limite. Então assim: umas adoram; outras detestam.
Porque aquela que ganhava cento e vinte por cento de produção, ela era
acima da média, ela não gosta. Porque ela teve que diminuir o ritmo dela
pra ajudar a companheira que não era tão boa quanto ela, né. Então existe
uns atritos assim. Mas depende também de como se implementa este
processo, né. É uma mudança muito grande na vida dessa costureira, né.
Ela tem uma rotina e, de uma hora para a outra, passa a trabalhar em
grupo. Então depende de quem implanta isso, de fazer um trabalho
motivacional, que eu vou trabalhar com minha companheira, pensar no
14 O discurso crítico acerca da exploração da mão de obra barata dos operários chineses é, com freqüência,
instrumentalizado pela classe patronal, como forma de formular uma justificação (Boltanski, 1990) para
rebaixar os salários das costureiras friburguenses. Uma versão local do “Novo espírito do capitalismo”
(Boltanski e Chiapello, 2002.) Voltarei a este ponto, na conclusão deste trabalho.
14

ideal da empresa, porque pra eu receber meu salário no final do mês essa
empresa tem que estar bem financeiramente”. (Coordenadora do Núcleo
Moda do SENAI/Nova Friburgo e consultora das empresas de moda
íntima da região, grifos meus).
Estes dispositivos motivacionais e a campanha ideológica que pinta a imagem da
fábrica como uma equipe de interesses convergentes, parecem ser similares àqueles
descritos por Boltanski e Chiapello (S.D) como sendo característicos d“O Novo Espírito do
Capitalismo”. Por vezes estes dispositivos lançam mão, como estratégia de legitimação da
dominação, de ideários historicamente coadunados com os grupos contestatários da ordem
estabelecida, tais como a noção de “cooperação” 15 explicitamente evocada pelo sistema de
produção em “célula” – na prática, um estopim de individualização. Tudo isso, entretanto, é
dissimulado pela classe patronal por intermédio de irrisórias concessões monetárias que,
por um lado, visam adormecer o movimento operário no que se refere às reivindicações por
aumento salarial e por melhores condições de trabalho; e, por outro, pretendem estimular a
auto-exploração do operário. Por seu turno, as costureiras demonstram uma consciência
transparente do antagonismo de sua posição relativamente à da classe patronal 16 e, por
conseguinte, não objetam às gratificações apenas na medida em que estas permitem, de sua
parte, operar de maneira mais autônoma o seu “cálculo econômico” 17 . Assim a elevada
15 Refiro-me à importância assumida pela noção de cooperação no interior de certos setores dos movimentos
sociais. Por exemplo, em minha experiência como militante do movimento estudantil de Educação Física
lembro-me que era evocada como estratégia de contraposição à competitividade do discurso liberal. Ver a
este respeito Brotto, Fábio Otuzzi. 1999. Jogos cooperativos: o jogo e o esporte como exercício de
convivência. Campinas: Unesp. Historicamente o cooperativismo dos trabalhadores, como é o caso das
sociedades de auxílio mútuo, pode constituir um exemplo da importância da cooperação entre a classe
operária. Por outro lado, é preciso lembrar, conforme Marx o demonstrou no capítulo XI d’O Capital que a
noção de cooperação é central também à concepção burguesa do mundo e ao modo de produção capitalista.
16 Transcrevo aqui um trecho de minhas anotações em caderno de campo do dia 30 de abril de 2008, no qual
uma operária formula, em termos claros, a noção de um antagonismo entre patrões e empregados: “‘Olha,
garoto, aqui não tem benefício mesmo, não tem creche, como tem na Filó; não tem cesta básica.’ –
continuou uma das mais falantes do grupo – ‘mas se você quiser se informar mais é melhor você falar com
a Léia’. Perguntei então quem era Léia e obtive a resposta de que ela era uma das donas da fábrica. Disselhes
que meu objetivo era compreender as concepções e impressões das operárias elas próprias e não dos
patrões. A reação a este meu comentário foi altamente reveladora de uma consciência transparente das
relações de conflito que se processam na esfera da fábrica – ‘Isso mesmo, tem que ficar do nosso lado; não
tem nada que ficar do lado do patrão não!’”
17 “Designamos aqui por ‘cálculo econômico’ as operações mentais dos operários, ligadas á sua prática
econômica cotidiana, pelas quais eles se orientam para tomar atitudes referentes à inter-relação entre o
tempo de trabalho e o esforço despendido durante esse tempo, por um lado, e, por outro lado, a sua renda e
sua subsistência (que se constituem do salário do operário, mas também das ‘concessões não monetárias’ de
que usufruem ou podem vir a usufruir). Assim, algumas estratégias possíveis podem ser efetivamente
15

produtividade das costureiras é remunerada com uma “gratificação por produção”; a alta
qualidade, por sua vez, é gratificada com um “prêmio extra por qualidade”. O que
obviamente não deixa de ser acompanhado de um rebaixamento dos salários fixos 18 . Este
trabalho está largamente concentrado sobre certos processos de mudança e continuidade
nas relações de produção que parecem simultaneamente incidir sobre a vida e as práticas de
sociabilidade das costureiras de lingerie também fora da esfera profissional.
Breve esboço cartográfico das fábricas de roupas íntimas de Nova Friburgo.
Nova Friburgo possui um eixo central de características tipicamente urbanas, que
corta o território transversalmente da região Sul até a região Norte da cidade, onde se
encontram as principais instalações industriais de moda íntima. Na periferia deste eixo
encontram-se, amiúde, áreas com características mais rurais. Para os objetivos deste
trabalho importa considerar fundamentalmente este eixo urbano, porquanto é nele que se
desenrolam as atividades que conferem à cidade a título de “capital nacional da moda
íntima”. No mapa 1 do anexo é possível visualizar este eixo urbano representado pela
numeração de 1 a 4, que identifica os principais bairros industriais do município. Estas são
também, pelo mesmo motivo, as localidades mais populosas de uma maneira geral, e onde,
com exceção do Centro, se localizam as principais zonas residenciais da classe operária, em
particular. Não é possível aqui, por motivos óbvios, oferecer uma cartografia completa de
todas as cerca de 700 fábricas e “confecções” de roupas íntimas da região. Nesse sentido,
este esboço não pretende senão situar, em linhas gerais, o leitor adventício, no cenário das
principais empresas.
Considerando-se o sentido Rio de Janeiro/Nova Friburgo a chegada ao município se
dá pela região Sul. Precisamente nesta parte da cidade encontra-se o grande centro
realizadas pelos operários no que diz respeito a tal inter-relação...” (Leite Lopes, op. cit: 75). No caso das
costureiras de moda íntima de Nova Friburgo o cálculo econômico não diz respeito, à princípio, à relação
entre salário e concessões não monetárias, mas entre salário e gratificações por produção e prêmios por
qualidade – ambos monetários. As concessões não-monetárias poderiam entrar no cálculo na consideração
dos casos particulares. Desta maneira, algumas operárias da Filó, por exemplo, podem considerar que a
existência de uma creche na fábrica signifique economia na receita familiar. De todo modo, se os
trabalhadores do açúcar descritos por Leite Lopes, particularmente os “profissionistas”, se caracterizam pela
sua condição de “contadores de horas”; as operárias da moda íntima friburguense, por seu turno, podem se
caracterizar por sua condição de “contadoras de peças”.
18 “A empresa vem perpetrando, a uns oito ou nove anos, um processo de rebaixamento do salário dos
empregados” (Luzia, costureira aposentada e atual presidente do Sindicato dos Vestuários de Nova
Friburgo).
16

comercial de “moda íntima” friburguense. Antes mesmo de chegar a este local impressiona
ao visitante a grande profusão, ao longo da serra, de outdoors publicitários das empresas e
lojas de lingeries, exibindo sempre lindíssimas modelos vestindo lingeries de equivalente
beleza. Este shopping representa, por assim dizer, um pórtico, uma sala de recepções onde
se é informado da chegada ao pólo de “moda íntima” local. Tanto mais pela extraordinária
concentração de outdoors no perímetro urbano do bairro que constitui sua sede – a Ponte da
Saudade. O mapa 2 do anexo fornece uma cartografia aproximada da distribuição de
outdoors publicitários de moda íntima por todo o eixo urbano de Nova Friburgo.
Seguindo-se em direção ao norte o bairro imediatamente posterior à Ponte da
Saudade, chamado Bairro Ypú, recebe o nome de uma das maiores empresas da história de
Nova Friburgo, a fábrica Ypú. Em seguida, chega-se ao Centro da cidade. É aqui que
encontramos as instalações da principal empresa de lingerie da região – a Triumph
International, com uma área industrial de cerca de 43.000 m2, onde diariamente são
explorados aproximadamente 1.500 trabalhadores. No anexo, fotografia 1, esta fábrica pode
ser vista discriminada pelo número 1.1. Número que também encabeça a fotografia da visão
ampliada desta mesma empresa, bem como de algumas de suas principais edificações
“sociais”.
O bairro no qual encontram-se localizados estes prédios chama-se Lagoinha e fica a
uns dez minutos de caminhada do Centro. Depois de aproximadamente uns quinze minutos
andando pelo local, pode-se, mais do que apenas ver, sentir o que é estar plenamente
pisando o chão do que a bibliografia especializada chama de “vila operária” 19 . Embora
estando em um espaço público tudo se passa como se estivéssemos, efetivamente, em
propriedade da fábrica. Mais que isso, como se estivéssemos na própria fábrica. De um lado
da rua, a megalomania dos pavilhões de produção (discriminados na foto 1.1 com um
círculo vermelho), o barulho das máquinas, as várias portarias de acesso diferencial
destinado ao pessoal de diferentes posições na estrutura hierárquica da empresa. Do outro
lado da rua, as casas da vila operária (destacados pela letra b, na mesma foto). Todas
padronizadas, enfileiradas, quase que evocando as estateladas posições dos operários na
esteira de produção. Mais á frente, o refeitório (marcado pela letra a) exatamente ante a
19 Leite Lopes (1988.). O sistema “fábrica com vila operária” é uma modalidade importante de legitimação da
“dominação total” dos patrões sobre os trabalhadores.
17

portaria dos operários, provavelmente para que não se perca tempo no período de almoço.
Uma rua à direita deste prédio conduz os trabalhadores á um conjunto de três quadras, duas
poli-esportivas e uma destinada á prática do tênis. Tais quadras localizam-se exatamente
atrás do prédio onde se encontra o refeitório e no qual também se pode ver um salão de
jogos de mesa – ping pong, “totó” e sinuca. As instalações da fábrica também contam com
um mediano campo de futebol (letra c), localizado ao lado dos pavilhões de produção, no
interior dos muros da fábrica; convivendo lado a lado o vestiário dos atletas e um
gigantesco tanque de combustível utilizado provavelmente na caldeira da fábrica. Ao
Nordeste dos pavilhões de produção, encontramos um dos clubes da fábrica – o Esporte
Clube Filó (letra d). Por fim, completando o complexo industrial da “Filó”, conforme é
chamada a fábrica da Triumph em Nova Friburgo, há no conjunto de suas propriedades um
belíssimo parque aquático (destacado pela letra a da fotografia 1) com três piscinas, duas
saunas, um outro campo de futebol, uma quadra gramada para voleibol e um admirável
parque esplendidamente arborizado e inteiramente gramado. Denominado clube “Olifas”,
este centro de lazer industrial é destinado aos funcionários da empresa mediante o desconto,
em folha de pagamento, de R$18,00 mensais. Há também que se destacar a proximidade
entre o complexo industrial da Triumph e o clube social do SESI (marcado com a letra b, na
fotografia 1), que constitui igualmente um espaço de lazer bastante freqüentado pelas
costureiras.
Passando pelo Centro e seguindo a principal rodovia local na direção Norte é
possível chegar ao outro extremo da parte urbana de Friburgo – Conselheiro Paulino
(discriminado no mapa 1 pelo número 2 e visualizado na fotografia 2). Este constitui,
juntamente com o bairro de Olaria, o conjunto dos dois maiores bairros operários de Nova
Friburgo. É também aqui que encontramos a segunda maior empresa de lingeries da região,
responsável pela exploração da mão-de-obra de cerca de 200 operárias – a Lucitex (número
2.1 da fotografia 2, com vista ampliada na fotografia 2.1), com 18 m2 de área industrial.
Duas outras grandes fábricas merecem também, por suas dimensões, ser destacadas – a
saber, a confecção Soraya Lingeries (localização 2.2 da fotografia 2 e vista ampliada na
fotografia 2.2), com cerca de 50 operárias, e a fábrica Cor da Pele S.A. (localização 2.3 da
fotografia 2 e vista ampliada na fotografia 2.3), com aproximadamente 90 operárias.
18

Precisamente entre o bairro do Centro e o extremo Norte do bairro de Conselheiro
Paulino encontram-se localizadas duas outras grandes empresas que juntas perpetram a
expropriação do trabalho de cerca de 300 costureiras de roupas íntimas – são elas a Jescri e
a Delfree. Estas duas fábricas, que convivem lada a lado em uma mesma rua da localidade
chamada Duas Pedras (área 3 do mapa, fotografia 3), perfazem – juntamente com a
Triumph e a Lucitex – o grupo das principais fábricas sobre as quais me concentrei, durante
o trabalho de campo.
Exatamente no pólo oposto ao de Conselheiro Paulino, ao Sul do eixo urbano que
corta transversalmente o município, nos deparamos finalmente com o outro grande bairro
operário da região – qual seja, o bairro de Olaria. Muitas são as empresas desta localidade e
certamente elas se locupletam sobre o trabalho de um percentual não minoritário de
costureiras de Nova Friburgo. Entretanto, por questões práticas (de localização, sobretudo)
estas fábricas não foram contempladas na presente pesquisa. De modo que me contento a
apenas indicar duas das inumeráveis “confecções” de lingeries ali sediadas. São elas a
Natula lingeries e a Eunytex, ambas destacadas na fotografia 4 com pequenos círculos
vermelhos.
Após tentar precariamente dar conta da distribuição da área fabril no espaço, eu
gostaria de situar meu objeto no tempo. Isto é, tendo procedido a uma descrição sumária da
geografia industrial da “moda íntima” de Nova Friburgo, passemos agora ao relato breve da
história da formação do pólo de lingerie da região. Trata-se de uma história que reúne
arbitrariamente fatos que culminaram, de um modo também acidental e não teleológico, na
proliferação de um número extraordinário de fábricas de médio e pequeno porte
especializadas na produção de lingerie feminino.
Genealogia do pólo industrial de moda íntima da região.
“A formação do pólo de confecções de moda íntima em Nova Friburgo” 20 tem por
principal precursora a empresa Triumph International. No ano de 1926 a Fábrica de Filó
S.A. (antigo nome da Triumph, ainda largamente empregado, como nome de fantasia, pela
população nativa) – até então sediada em Plauen, na Saxônia – instalou-se no município de
20 Teixeira, Renato Cortes. 2004. A formação do pólo de confecções de moda íntima em Nova Friburgo.
Dissertação de mestrado. Niterói: UFF. Salvo nos trechos discriminados, a maioria das informações
históricas presentes neste tópico foram extraídas deste texto.
19

Nova Friburgo. O proprietário da Filó, Gustav Carl Siems, após ser convencido por seu
filho Ernest Otto Siems, decidiu transferir sua industria têxtil para a cidade da região
Serrana do estado do Rio de Janeiro em decorrência, sobretudo, da crise econômica e social
que se instalou na Alemanha no período compreendido entre as duas guerras mundiais.
Ernest era técnico de tecelagem, sobretudo na fabricação de filó. Em 1925 ele fazia um
cruzeiro marítimo onde se encontrou com um empresário cuja fábrica estava sediada em
Nova Friburgo – Julius Arp. Este último relatou ao filho de Gustav o excelente negócio que
fizera ao alojar a fábrica de fiação Arp&Cia na serra Friburguense.
Para migrantes alemães, o frio município apresentava um clima sobremodo
convidativo. Com efeito, no ano de 1824 migrara para a região uma colônia de 342
alemães. Cem anos depois esta colônia havia crescido e se desenvolvido cultural e
economicamente. Destarte, por ocasião do encontro de Julius Arp com Ernest Otto Siems, a
comunidade proveniente da Alemanha atravessava uma formidável fase, com a presença de
fábricas germânicas e a chegada de pessoal qualificado na indústria para a ocupação dos
cargos de diretores e técnicos de produção. Ademais ao desenvolvimento econômico e
cultural seguiu-se a construção de uma Igreja Luterana, uma escola para os descendentes da
colônia, clubes esportivos e de lazer, etc. Some-se a isso o fato de que a região contava com
certos insumos indispensáveis ao ramo da tecelagem, como os fios que começavam a ser
produzidos pela Fábrica de Rendas Arp. Dadas estas condições – e considerando o fato de
que a fiação e o setor de bordados da empresa de Julius Arp lucraria tanto quanto a
tecelagem de Gustav Carl Siems caso esta última se instalasse em Nova Friburgo 21 – parece
não ter sido tarefa muito difícil para Ernest convencer seu pai a transferir a Filó S.A. para o
Brasil.
A história desta mudança é um capítulo na história do papel das relações de
afinidade e parentesco 22 entre empresários alemães para a fundação das principais
indústrias do município. De algum modo, as conexões entre a instalação da Filó S.A. e a
21 “Julius Arp inaugurara, há poucos anos, na sua fábrica, o setor de produção de bordados. A importação de
filó tornava mais dispendiosa ainda a produção, tendo assim todo o interesse da fabricação desse artigo no
Brasil. Por outro lado poderia fornecer-lhe o ‘fio’ que começava a produzir sem os custos de transporte”.
(Ibidem: 31).
22 Este aspecto do papel fundamental das relações de afinidade e parentesco no processo de industrialização
de Nova Friburgo foi primeiramente apontado por Raimundo, João. 1992. Nova Friburgo: O processo de
urbanização da Suíça Brasileira. Dissertação – UFF.
20

colônia alemã em Nova Friburgo parecem ter concorrido para um “padrão pessoalizante” 23
das relações industriais, no município, em especial, para os propósitos deste trabalho, entre
os grupos Arp&Cia e Filó S.A. Forte indício deste tipo de relação é a maneira pela qual a
sociedade anônima da Fábrica de Filó S.A. foi montada. O capital inicial da empresa foi
avaliado em 3.000.000$00 (três mil contos de réis). Este montante foi fragmentado em
3.000 ações no valor de 1.000$00 (um conto de réis) cada uma. O sócio majoritário era
evidentemente Gustav Carl Siems, com 1629 ações. Em seguida vinha o Deustsch
Sudamerikanishe Bank (Banco germânico da América do Sul), com 328 ações. E, na
terceira posição, o grupo Arp&Cia, com 275 ações. Saliente-se que o presidente do
Deustsch Sudamerikanishe Bank era genro do empresário Julius Arp e, ulteriormente, veio
a dirigir de igual modo a empresa de seu sogro. De maneira que as relações de afinidade,
amizade e parentesco parecem ter incidido fortemente na fundação da Filó S.A., bem como
no circuito econômico que se instalou entre ela e a empresa Arp&Cia.
“A Filó S.A., sem ações na bolsa, era, provavelmente, mais uma sociedade anônima
típica desse momento no Brasil, constituída, na verdade, por um grupo de famílias
relacionadas entre si até em graus de parentesco e identificadas pela mesma nacionalidade.”
(Teixeira, op. cit.: 32).
Estes eventos de fundação da Filó S.A. constituem somente alguns poucos capítulos
da epopéia industrial alemã, em Nova Friburgo, que já encontrava-se em pleno curso desde
o período anterior à Primeira Guerra Mundial. Em 1882 Peter Julius Arp havia chegado ao
Brasil para então trabalhar no comércio exportador de café em São Paulo. Poucos anos
23 Caniello (2003: 33) define o padrão pessoalizante das relações sociais, característico das cidades pequenas
– o que, em princípios do século XX, condiz certamente com as dimensões populacionais de Nova Friburgo
– como se segue neste trecho:
“As ‘cidades pequenas’ são contextos em que a sociabilidade é largamente condicionada pela pessoalização
porque os indivíduos estão incluídos em um ambiente social em que o alto grau de proximidade produz o
que definimos em outra ocasião de ‘visibilidade inevitável’: os sujeitos são reconhecidos uns pelos outros
em virtude de suas marcas pessoais, e o mapeamento da rede que produz essas marcas é amplamente
dominado pela coletividade.”
A fortiori este tipo de relação pode estar presente no interior de um grupo de empresários alemães
fortemente corporativo que, diferentemente das colônias, suíça e alemã, vindas para Nova Friburgo em
princípios do século XIX, vieram, em fins do mesmo século e princípios do seguinte, para a região em
condições profissionais privilegiadas. Neste caso, as “marcas pessoais” parecem se converter em qualidades
profissionais e administrativas dos membros do grupo corporativo. Sobre as péssimas condições sob as
quais migraram para Nova Friburgo as famílias suíças e alemãs – as primeiras amiúde camponesas, as
segundas qualificadas freqüentemente como “trabalhadores”: “ourives, oleiro e funileiro” (Jaccoud, 1999:
298) – ver, sobretudo o excelente relato de Jaccoud, Raphael Luiz de Siqueira. 1999. História, Contos e
Lendas da Velha Nova Friburgo. Nova Friburgo/RJ: Múltipla Cultural.
21

mais tarde, já no Rio de Janeiro, ele fundou, juntamente como seu sócio José Ribeirão de
Araújo, a sociedade comercial Arp&Cia, cujos objetivos consistiam em importar, dentre
outros produtos, máquinas de costura. Suas redes comerciais se confundiam, por assim
dizer, com suas relações de amizade entre os membros das colônias alemãs em diversas
regiões do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Santa Catarina. Assim em 1900 Julius Arp
estabelece, em Joinville, relações comerciais com Ottamer Kaiser, cônsul honorário da
Alemanha e dono de uma fábrica de meias de nome Kaiser&Cia. Este talvez tenha sido o
primeiro contato de Julius com o setor de produção têxtil. Ali também ele conheceu o
futuro gerente e procurador do grupo Arp&Cia, Markus Singer, que também se tornou
ulteriormente seu sócio na Fábrica de Rendas Arp, em Nova Friburgo. Este município, por
sua vez, lhe foi apresentado por um outro amigo pessoal, Maximiliano Falck que, de modo
similar, se tornaria seu sócio em outra das grandes fábricas instaladas ali – a Fábrica Ypú.
Se, como vimos até aqui, as relações de parentesco
foram determinantes para a formação da classe
burguesa friburguense; por seu turno, a classe
operária da região formou-se, também ela, sobre a
base das relações familiares. Aqui indicarei apenas
um pequeno exemplo etnográfico, fornecido por
Vânia 24 , uma de minhas principais informantes.
Na primeira década do século XX(Vânia não soube precisar a data) nascia Feliciana
Siqueira, sua avó e a primeira pessoa da família a trabalhar como cerzideira para a então
Fábrica de Filó S.A. Ela foi contemporânea de uma época em que a Filó produzia rendas e
pagava cerzideiras para, em suas próprias casas, fecharem os buracos que, eventualmente,
danificassem a produção. Por ocasião do casamento de Paulino Siqueira, pai de Vânia, com
Odette Marques, sua mãe, esta – obedecendo à tradição de patrilocalidade de então –
migrou do município de Duas Barras, onde trabalhava no campo, para Nova Friburgo.
Dona Feliciana, por sua vez, introduziu Odette na função de cerzideira conduzindo-a, por
conseguinte, a trabalhar igualmente para a Filó. Além disso, outras tias e primas (além de
um primo que trabalhou no estoque da fábrica) de Vânia foram gradativamente se
incorporando ao trabalho fornecido pela fábrica. Uma irmã de seu pai, duas irmãs de sua
mãe e, mais tarde – já em uma ocasião posterior à compra da Filó S.A. pela Triumph
International e, conseqüentemente, com a mudança da produção de rendas para a de
24 Todos os nomes de operários eventualmente mencionados aqui são fictícios.
22

lingerie – uma filha da irmã de seu pai e quatro primas maternas, uma de cada uma das
quatro irmãs de sua mãe. Por fim, empregou-se na empresa a irmã de Vânia e, em seguida,
ela própria. A simples enunciação deste legado profissional de Feliciana Siqueira
demonstra como trabalho e parentesco apresentam relações estreitas na história de cidades
pequenas como Nova Friburgo. O quadro a seguir representa esquematicamente esta
dinâmica de recrutamento da mão-de-obra. As únicas exceções (isto é, aqueles familiares
de Vânia que não vieram a ser operários da Filó) encontram-se discriminadas com um
círculo. O interesse desta representação reside na gestalt que ela proporciona na
visualização do papel do parentesco no recrutamento fabril 25 .
25 Os arquivos patronais e sindicais a que tive acesso, bem como os depoimentos de costureiras mais antigas,
não revelam, entretanto, até o presente momento de minha investigação nenhum indício que permita uma
análise mais completa deste fenômeno. Não posso, por conseguinte, aventar nenhuma hipótese a este
respeito. Por exemplo, se este seria um caso homólogo ao ocorrido em uma outra fábrica têxtil
contemporânea da Filó S.A., a Companhia Têxtil de Paulista, onde, para suprir a demanda por mão-de-obra
feminina – historicamente vinculado aos setores de tecelagem e fiação – recrutavam-se famílias inteiras
para o trabalho fabril. A este respeito ver Alvim, Rosilene & Leite Lopes, José Sérgio. “Famílias operárias,
famílias de operárias”, in Revista Brasileira de Ciências Sociais, número 14, ano 5, outubro de 1990, ISSN
0102-6909.
23

A dinâmica de recrutamento por parte da Filó, bem como a maneira pela qual os
ofícios tanto quanto os cargos foram sendo transmitidos aos novos operários, encontram-se
ambas envolvidas em relações de parentesco tanto quanto o estão os setores patronais. É
verdade que a formação de mão-de-obra especializada não está mais concentrada sobre a
família hodiernamente. O SENAI, vinculado ao sistema FIRJAN, é certamente a instituição
patronal responsável, em larga medida (pelo menos no que diz respeito ao ramo de moda
íntima local) pela dimensão técnica da reprodução da força de trabalho. Não obstante, a
prioridade no ingresso dos cursos do SENAI é concedida ainda com base no parentesco. De
maneira que, freqüentemente são os filhos de operários aqueles que recebem os maiores
estímulos (uma pequena remuneração, acrescida de almoço), inclusive mediante uma
24

campanha ideológica contundente 26 , para matricularem-se nesta instituição. De maneira
semelhante, o recrutamento de pessoal – embora esteja sustentado em um padrão mais
difundido de relações de patronagem e clientelismo, disfarçado de afinidade – baseia-se
fundamentalmente ainda em relações de parentesco, sendo a referência de um parente, uma
boa precondição para a contratação de um novo operário. Evidentemente este padrão de
relações de produção que se baseiam sobre relações de parentesco e afinidade não é
apanágio exclusivo de Nova Friburgo. O deslocamento dos assuntos públicos para a esfera
privada e a “cordialidade” nas interações humanas que o acompanha é um aspecto cultural
mais generalizado do país, magistralmente descrito em “Raízes do Brasil” 27 . Entretanto,
esta dinâmica mais geral é evocada aqui apenas para aludir às estratégias de recrutamento
familiar desta indústria têxtil – dinâmica já apontada em outros contextos, pela bibliografia
especializada.
A Filó S.A. não constitui, portanto, exceção a esta dinâmica de entrelaçamento das
relações de afinidade e parentesco com as atividades econômicas do município – tanto no
setor patronal quanto entre a classe operária. Assim, em 1950, por ocasião da publicação de
um livro comemorativo dos 25 anos de fundação desta fábrica em Nova Friburgo, os
principais acionistas têm seus nomes exaltados logo nas primeiras páginas. Um leitor que
tenha em mãos este volume certamente notará, ao primeiro correr dos olhos, uma ilustração
desta característica fortemente corporativa dos empresários oriundos da colônia alemã, em
Nova Friburgo.
“A Filó S.A. foi fundada a 26 anos. Foram os seus fundadores o Sr. Carl Siems,
Conselheiro Julius Arp e Carl Ernest Otto Siems. Este último, técnico versado na
fabricação de filó e indústrias correlatas, dedicou-se integralmente a este grande
26
Em meados da década de 1990 o discurso patronal a este respeito procurava convencer os trabalhadores de
que o SENAI era a “faculdade dos pobres”.
27
Holanda, Sérgio Buarque de. 1995. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. Com efeito, a
dissimulação das relações de produção sob a forma de relações de afinidade e parentesco parece ser
equivalente, no plano do mercado, às relações estatais que o funcionário público “patrimonial” (Ibidem:
146) entabula com sua função – deslocando questões públicas para interesses privados. A cordialidade é,
por conseguinte, um fenômeno ambíguo. Mesmo nos trechos em que Holanda emprega adjetivos
tradicionalmente tidos por positivos para caracterizar o brasileiro – como este, “A lhaneza no trato, a
hospitalidade, a generosidade...” (ibidem: 146) – a ambigüidade não é anulada. Acerca dos modos de
dominação baseados na dádiva e na reciprocidade (onde amiúde lhaneza, hospitalidade e generosidade são
características presentes) Bourdieu (2002: 205) diz o seguinte:
“Portanto, convém evitar ver uma contradição no fato de que a violência simbólica é tanto mais presente
quanto mais mascarada”.
25

empreendimento, dirigindo e orientando a firma até hoje. Graças à colaboração eficaz
principalmente dos seus colaboradores mais próximos, os diretores Willy Drescher e
Frederico Schirnhofer e do gerente técnico Arthur Hintze (...) conseguiu criar e desenvolver
uma fábrica moderna e importante”. (Edição comemorativa dos 25 anos da fábrica Filó
S.A., 1950:10).
Importa destacar o tratamento reverente dispensado
a Peter Julius Arp, já aqui tratado como
“conselheiro” 28 . Com efeito, a apreciação detida do
discurso patronal registrado neste livro pode ser,
talvez, um exercício ilustrativo de certos aspectos
ainda hoje presentes nas relações de produção
estabelecidas no âmbito do setor industrial de moda
íntima friburguense, bem como da maneira pela
qual os acionistas buscam legitimar sua presença e
sua exploração da mão de obra de seus operários.
Assim é que a Introdução do referido volume
justifica sua publicação mesma em decorrência de
um suposto interesse dos habitantes do município
em conhecer o trabalho “tão incrível e
extraordinário”, “tão importante e modelar sob os
mais diversos aspectos, tanto econômicos como
sociais” (idem: 3), realizado pelos empresários
fundadores da Filó S.A.. Esta mesma curiosidade da
população em conhecer as dependências da fábrica
não havia podido ser contemplada até a data da
referia publicação que se propunha a satisfazer esta
demanda.
“É compreensível, pois, que inúmeras pessoas desejem conhecer de
perto a Fábrica de Filó S/A., e não se cansem de pedir autorização
para visitar as suas dependências, não obstante o conhecido aviso
fixado na entrada: ‘Deixe-nos trabalhar! É um erro supor que os
industriais podem consagrar o seu tempo a palestras...’” (Idem: 3).
Aviso este que é uma variação daquela clássica
frase alocada à entrada de uma fábrica inglesa – “No
admittance except on business” (Marx, citado por
Leite Lopes, op.cit: 1) – e que, segundo Leite
Lopes, ilustra “o caráter fechado da fábrica”
(Idem:1). Com efeito, este aspecto de fechamento é
uma característica perene, que perpassa todo o
espaço/tempo que perfaz a distância entre as
28 De fato, este empresário foi imortalizado com o batismo de uma das principais vias rodoviárias da cidade,
com o nome de “Avenida Conselheiro Julius Arp”. Cabe registrar que o grupo Arp&Cia teve participações
em todas as empresas fundadas em Nova Friburgo entre os anos de 1910 e 1930. Vemos, pois, como a
história oficial da cidade tenta plasmar uma imagem heróica de seus primeiros capitalistas.
26

fábricas inglesas do pós-revolução industrial, a
usina de açúcar de Pernambuco investigada por
Leite Lopes na década de 1970, a Filó S/A.da Nova
Friburgo dos anos 1950, e a Triumph International
dos dias atuais. Nas linhas seguintes, reproduzo as
anotações em caderno de campo que fiz no dia 29
de Abril de 2008, e que, segundo vejo, ilustram a
maneira pela qual este fechamento da fábrica incide
sobre a presente pesquisa.
“Encaminhei-me a algum tempo para a portaria pela qual entram os
operários da empresa Triumph International, no intuito de solicitar uma
entrevista com o responsável pelo processo produtivo. Naquela ocasião, o
funcionário da portaria telefonou para um certo setor e, em seguida, me
colocou em contato com uma secretária da pessoa em questão. Ela me
disse então que era necessário marcar hora para a entrevista, mas não
naquele dia, posto que a secretária responsável pela marcação de horários
não se encontrava presente. A isso se seguiram, em dias distintos, mais
duas tentativas malogradas de marcar a referida entrevista. Retornei, pois,
hoje, pela quarta vez, no intuito de marcar uma hora para a entrevista. Eu
pretendia, na verdade, ouvir a versão da empresa sobre o processo
produtivo denominado “célula”, o qual substituiu o antigo sistema
fordista de esteira de produção. Propositadamente eu optei por investir
em outra portaria, desta vez – a portaria de acesso do pessoal dos quadros
administrativos da empresa. O que, por um lado, não se revelou uma
opção melhor porquanto teve como resultado, mais um embargo de minha
entrada na fábrica e, não obstante, pelo mesmo motivo, o episódio foi
bastante esclarecedor de como a distribuição hierárquica do espaço da
fábrica é um fenômeno sutil que inclui, modos diferentes de abordagem e
de recepção. O trabalhador da recepção, desta feita, não ligou para o setor
responsável pela produção, mas para a secretária do superintendente geral
da empresa. Não pediu para marcar um horário de entrevista, mas
perguntou quais eram os procedimentos para que eu pudesse marcar a
entrevista mesma. Disse-me que não sabia se o pessoal responsável pela
supervisão de produção estaria autorizado a me fornecer as informações
27

sobre o processo produtivo. De maneira que me instou a transformar o
documento de apresentação que eu lhe ofereci em um ofício endereçado
ao superintendente da empresa. Estes dois episódios demonstram, parece-
me, formas distintas de recepção das portarias de acesso diferencial dos
trabalhadores e dos setores administrativos. Um sistema maior de
burocratização nesta última que parece funcionar como um sistema de
proteção dos interesses dos donos da empresa. Tudo se passa como se
existisse um conhecimento do caráter conflitivo das relações entre
classes, no processo produtivo, incorporado na maneira de agir do
funcionário da portaria”.
Seguindo na apreciação do discurso manifesto no livro comemorativo dos 25 anos
da Filó S.A. em Nova Friburgo é possível avaliar o lugar absolutamente central que é
concedido a uma série de “benefícios sociais” – já apontados pela bibliografia especializada
como uma forma eficaz de legitimação da dominação patronal sobre os operários 29 – já que
eles são evocados logo nas primeiras linhas. Certos trechos, além disso, atribuem um
caráter quase heróico às realizações empreendedoras do “primeiro grupo de homens que se
salientaram nas atividades econômicas e sociais do país” (idem: 1). Eis como o primeiro
parágrafo da obra faz o amalgama deste heroísmo empreendedor e “social”:
“Quem conheceu, em 1925, aquela parte pantanosa da ‘Vila Amélia’,
em Nova Friburgo, Estado do Rio de Janeiro, que se avistava da estrada
de Teresópolis, um brejo imprestável para edificação, jamais teria
imaginado que esse mesmo terreno pudesse apresentar-se, somente 25
anos mais tarde, ocupado por imponente e moderna fábrica, cortada por
extensas ruas de casas para trabalhadores, um moderníssimo edifício
social, parque recreativo com piscina, campos de esporte, passeios, bem
como de majestosas florestas de eucaliptos, pinheiros e madeiras de lei,
modificando por completo o panorama da região”. (Filó S.A., Op. cit: 1,
os grifos são meus).
29 Sobre o patrocínio patronal de certos “benefícios sociais” no contexto de uma forma específica de
dominação que inclui também moradia operária como forma de legitimação da dominação mesma ver Leite
Lopes (op.cit).
28

O caráter heróico destes empresários é aqui caracterizado por uma diversidade de
artifícios literários que nem sempre correspondem adequadamente à realidade. As
“extensas ruas de casas para trabalhadores”, ainda hoje, não são senão duas pequenas vias
que compreendem pouco mais de trinta casas. Outros artifícios descritivos enfatizam o
caráter quase impossível das obras realizadas – em “um brejo imprestável para edificação”
– bem como tempo recorde deste entrementes de realizações – “somente 25 anos mais
tarde”. Há ainda que se registrar um discurso marcadamente colonial, de extensão da
civilização a um local “atrasado” como Nova Friburgo, materializado na megalomania e na
idéia de modernidade – “ocupado por imponente e moderna fábrica”.
Os “benefícios sociais”, ou “as obras sociais da fábrica” – conforme eles são
denominados na edição aqui analisada – patrocinados e acompanhados de perto pela classe
patronal são largamente exaltados ao longo de todo o volume. As práticas esportivas
parecem ser aqui um caso privilegiado de aproximação clientelista entre dirigentes e
operários.
“O esporte clube Fábrica Filó, cujo presidente de honra é o Sr.
Frederico Schinhofer, diretor da fábrica, clube este que, além de futebol,
terá futuramente também equipes de vôlei, basquete, ping-pong, etc. com
competições e campeonatos. Tudo isto sendo realizado para garantir o
bem-estar do operariado e desenvolver as grandes possibilidades
esportivas, físicas, sociais e culturais dos nossos empregados e
operários”. (idem: 11, grifos meus).
Este trecho, bastante expressivo daquele caráter ambíguo da cordialidade a que aludi
páginas acima, no qual o presidente de honra do clube esportivo é também um dos diretores
da empresa, assume um caráter quase tutorial bem expresso na última frase da citação. Aqui
parece mesmo existir sub-repticiamente a influencia de um legado do movimento médico-
higienista, de um desenvolvimento das possibilidades físicas e de um enquadramento
moral 30 do operário, como modo de reprodução da força-de-trabalho. Contrapartida da
30 Leite Lopes inicia também o capítulo 5 da “Tecelagem” apresentando os pressupostos subjacentes ao
patrocínio patronal de certos “benefícios sociais”, que parecem se aproximar dos pressupostos do
movimentos médico-higienista europeu, no século XIX:
“A expressão ‘física e moral’ utilizada acima se refere à expressão e conteúdo a ela subjacente, de uma
concepção psico-fisiológica das relações sociais, usual na literatura sobre classe operária, prevalecente na
Europa do século XIX e início do século XX, e de largo uso também no Brasil” (Leite Lopes, op. cit: 169).
29

denegação do papel das condições de trabalho na debilitação da saúde do trabalhador
(Cottereau, op. cit.: 86). Parece similarmente haver aqui, embora não explicitamente, a
incidência de um “discurso da falta”, segundo o qual os trabalhadores careceriam a priori
das condições necessárias ao desenvolvimento autônomo de suas “possibilidades
esportivas, físicas, sociais e culturais”. Oblitera-se, portanto, o fato de que as relações de
produção sob as quais o operário vive usurpam, além de seu trabalho, as condições ideais
de um tal desenvolvimento.
A legitimação da dominação patronal frente ao operário, ilustrada no documento
aqui considerado pela figura do Esporte Clube Fábrica Filó, do Centro recreativo com
piscina, dentre outros dos “benefícios” arrolados; esta legitimação é complementada por um
outro dispositivo legitimador frente à sociedade civil – a saber, o trabalho de
reflorestamento do entorno da fábrica. A tabela 1 é uma reprodução dos números
apresentados em um quadro da página 27 da edição que estou considerando. Este quadro
aparece encabeçado por uma gravura do Conselho Florestal Federal, comemorativa do dia
da árvore, 21 de setembro, com a seguinte frase: “Cada árvore que se plante é um presente
para o Brasil”.
30

Tabela 1:
ANO NÚMEROS
DE ÁRVORES
PLANTADAS
1935 58.000
1936 71.500
1937 31.500
1938 11.000
1939 48.000
1940 36.500
1941 4.200
1942 74.000
1943 139.000
1944 63.400
1945 49.000
1946 67.000
1947 63.000
1948 65.000
1949 71.000
1950 30.000
Um esforço de reflorestamento desta magnitude talvez signifique menos um desejo
de presentear prodigamente o Brasil, do que tornar as terras pantanosas da Vila Amélia
adequadas para edificação. Tanto assim que o grosso destas árvores é constituído de
eucaliptos, cuja característica fundamental de interação com o solo consiste em absorver o
excesso de umidade. Acrescente-se a isso a formidável estratégia de legitimação, frente à
sociedade civil, que um tal empreendimento pode significar. Tanto mais pelo fato de que,
ao que parece, por ocasião do período em questão, o modelo de reflorestamento ideal,
defendido por ambientalistas, era precisamente o do plantio de eucaliptos 31 .
31 Esta informação me foi gentilmente cedida pela professora Diana Antonaz a quem eu agradeço as
inestimáveis contribuições críticas feitas a este trabalho. Contribuições, entretanto, que não eliminam minha
inteira responsabilidade pelas fragilidades desta dissertação.
31

O Estado, por seu turno, teve certamente também
sua parcela de contribuição no sentido da
legitimação da dominação perpetrada pelos diversos
“benefícios sociais” patrocinados pela Filó S.A.. Em
26 de Novembro de 1950, por ocasião da
inauguração do Edifício Social da Filó, onde até
hoje funciona o refeitório, o então presidente da
República, Eurico Gaspar Dutra, conferiu ao
presidente da fábrica, Carl Ernest Otto Siems, um
diploma de Menção Honrosa em decorrência de
“suas atividades econômicas e sua ação social”
(idem: 8).
Quando, em 1968, passou da produção de filó e rendas para a de lingeries, por
ocasião de sua compra pelo grupo internacional de capital alemão Triumph (Teixeira, op.
cit.: 42), a Filó S.A. se tornou a primeira e, durante muito tempo, a única fábrica de moda
íntima do município. Seu monopólio se estendeu, com efeito, até fins da década de 1980.
Com o advento das novas formas de acumulação do capital e, em sua esteira, um processo
de demissão em massa que dispensaria cerca de 600 operárias, muitas das então recém
desempregadas voltaram-se para empreendimentos pessoais e montaram pequenas
confecções de moda íntima (tendo aprendido o ofício de costureiras na Triumph) que se
desenvolveram ao longo da década de 1990.
Há, nesse capítulo da história recente do setor vestuário friburguense, alguns
indícios que demonstram a perpetuação das relações corporativas patronais. Consideremos
mais de perto estes fatos. Ao longo da década de 1990 a Triumph International entra em
uma fase de reestruturação produtiva, de inspiração pós-fordista, similar à que se processou
nos países do Norte, nos anos 1980. Essas mudanças, como se sabe, tinham por objetivo
fundamental retomar as taxas de lucro do Capital que gradativamente declinaram durante o
período em que vigorou (parcialmente, no caso de países do Sul em situação homóloga ao
Brasil) o chamado Estado de Bem-Estar Social 32 . De maneira que, em linhas gerais, elas
consistiram em reduzir os custos do Capital com o pagamento dos direitos que a classe
32
A respeito da polêmica sobre a existência plena da social-democracia o trecho seguinte é particularmente
esclarecedor:
“É possível objetar que esse Estado social-democrata “não existe”. De fato, sob essa forma, é um tipo ideal.
A França nunca foi, verdadeiramente, uma social-democracia, ao passo que os países escandinavos e a
Alemanha, por exemplo, eram muito mais. Mas também os Estados Unidos eram menos ou não eram nada
social-democratas. Isso significa que, independentemente da realização do tipo, existem traços dessa forma
de Estado que se encontram sob configurações mais ou menos sistemáticas em constelações sociais
diferentes”. (Castel, 2001: 499, grifo do autor).
32

operária conquistou na fase anterior. A terceirização de certas operações do processo
produtivo foi, no caso da Triumph, uma das medidas nesse sentido. Concretamente isso
resultou no fechamento de um percentual expressivo de salas de costura da fábrica e, por
conseguinte, na demissão de cerca de 600 33 costureiras.
A produção correspondente ao trabalho dessas operárias foi transferida para o
sistema de “facção” – termo nativo que designa o contrato de terceirização do trabalho. Tal
sistema consiste no estabelecimento de um contrato entre a Triumph e algumas
“confecções” menores para que as últimas dêem conta do que antes era produzido no
interior das salas de costura da primeira. Destarte a Triumph International fica liberada de
arcar com os custos dos direitos trabalhistas, além de economizar em energia elétrica,
manutenção das máquinas, etc.
Se olharmos este processo mais de perto podemos testemunhar fenômenos que
testificam a perpetuação das relações corporativas entre os grupos patronais de Nova
Friburgo – como vimos, um elemento fundamental do processo de industrialização do
município. Em termos bastante simplificados, estes fenômenos consistem no seguinte: com
a demissão massiva das costureiras da Triumph (muitas delas com mais de 20 anos de
experiência com o trabalho da fábrica), um quantitativo formidável de mão-de-obra
qualificada segundo os critérios de qualidade da própria empresa foi jogado na ociosidade.
Certamente as confecções contratadas pela Triumph para produzir no sistema de “facção”
deveriam, também elas, se enquadrar nesses padrões de qualidade. Diante disso, um rico
comerciante local, o Sr. Silvio Montechiari, criou pessoalmente um sistema de
financiamento para que as então recém demitidas costureiras, com larga experiência e
formidável qualificação, pudessem comprar as também recém ociosas máquinas da
Triumph. Este crédito, portanto, possibilitou – juntamente com o dinheiro das indenizações
por demissão – que algumas dessas ex-operárias montassem, por conta própria, suas
pequenas “confecções”. Possivelmente algumas delas entraram no sistema de “facção” da
Triumph. Outras “confecções” já existentes adequaram-se, também por sua vez, aos
padrões de produção daquela multinacional. Estes eventos parecem encontrar-se na raiz
33 Esta cifra consta nos dados oficiais de instituições, de algum modo, vinculadas aos setores patronais, como
o SEBRAE e o sistema FIRJAN, por exemplo. De modo que, na prática, o número de demissões pode ter
sido superior.
33

genealógica 34 do pólo de “moda íntima”, em Nova Friburgo. Há também que se registrar
um dado, até aqui obliterado, não menos importante do ponto de vista das redes
corporativas patronais – a saber, o fato de que o Sr. Silvio Montechiari é proprietário de
uma das maiores firmas comerciais de tecido de Nova Friburgo. Suas relações comerciais
com o setor industrial de vestuário são, portanto, anteriores a este episódio.
Uma outra medida de reestruturação produtiva adotada pela Triumph International
foi a implementação, nas salas de costura que foram preservadas, de um sistema de
produção que, a um só tempo, reduziu as gratificações e aumentou a produtividade. Trata-
se da passagem de um sistema de gratificações por produção individualizada, na esteira de
produção, a um sistema de gratificação coletiva denominado “célula”. Obviamente as
“confecções” contratadas pela Triumph para o sistema de “facção”, em um primeiro
momento, bem como o conjunto das empresas de lingerie de Nova Friburgo, em um
segundo momento, precisaram também se enquadrar no mesmo processo de produção, sob
pena de falência. É que a Triumph International dispõe, como veremos no devido
momento, de uma hegemonia relativa sobre todo o setor de vestuário íntimo do município.
Há a este respeito umas poucas empresas que não aderiram atualmente ao sistema de
“célula” permanecendo, portanto, no regime de produção individualizado. As implicações
desta mudança no interior de uma sala de costura, bem como, suas repercussões sobre as
práticas de sociabilidade e demais aspectos culturais da vida das costureiras constituem o
objeto principal deste trabalho.
No capítulo 1, tentarei relatar de maneira tão clara quanto posso o processo destas
alterações, no interior de uma sala de costura. Este é um exercício muito difícil,
considerando-se que eu não tive acesso direto a nenhuma dessas salas – nem na Triumph,
nem nas demais fábricas. O cotidiano e a dinâmica produtiva deste cenário não me foram
apresentados senão de forma indireta, por relatos, entrevistas e interações dialógicas com as
próprias operárias, na pesquisa de campo. Conforme indiquei acima, estas interações
34 A noção de genealogia, referida à reflexão histórica, está sendo empregada aqui no sentido estrito em que
ela aparece nesta passagem de François Châtelet:
“Par la notion de généalogie (empruntée à M. Foucault), je veux fermement marquer que les connotations
d’ordre causaliste ou d’ordre biologique, qui indexent les conceptions de l’histoire de la pensée, ont été
abandonées.” In: Châtelet, François. “La question de l’histoire de la philosophie aujourd’hui”, in Châtelet,
François et al. 1976. Politiques de la philosophie. Paris: Figures Grasset.
Embora Châtelet esteja se referindo especificamente à história do pensamento, a noção de genealogia
permite-me também aqui falar de uma história sem conotações causalistas entre os eventos, por
conseguinte, abandonando uma concepção teleológica da história.
34

freqüentemente se reduziam aos horários de almoço. Momentos nos quais eu visitei os
portões de diversas fábricas ao longo de oito meses, sob condições por vezes adversas a
estas interações 35 . Em que pese tais dificuldades, as diferenças entre os processos
produtivos anterior e atual; as práticas de sociabilidade, as diferenças internas aos grupos de
operárias serão consideradas neste capítulo.
O capítulo 2 é uma tentativa de compreender as diferentes formas de reagir a estas
mudanças, segundo as gerações e os locais de trabalho, a partir de duas histórias de vida
privilegiadas a este respeito. A condição de caso privilegiado é aqui definida por dois
aspectos principalmente. Em primeiro lugar, a diferença de gerações. Em seguida, como
corolário deste primeiro aspecto, a trajetória profissional associada ao sistema de produção
por esteira, no caso das gerações mais antigas – de modo que as operárias deste grupo
trabalharam tanto no antigo quanto no novo sistema –; e unicamente ao sistema de
produção por “célula”, no caso das gerações mais novas. A comparação destas duas
trajetórias pode iluminar diferenças e semelhanças nas tradições coletivas de ambos os
grupos de operárias. A hipótese aqui é que tais diferenças podem concorrer para conferir
inteligibilidade às reações diversas (positiva ou negativa) frente à implementação do
sistema de célula.
O capítulo 3 – que se concentra especialmente sobre o caso das gerações mais
antigas de operárias e, complementarmente, sobre as relações conjugais – compreende um
relato da vida das operárias de moda íntima, com o foco sobre o “esfera doméstica” 36 . A
contigüidade semântica entre moda “íntima” e a esfera “privada” da casa é abordada sob
uma perspectiva do corpo feminino como elo de ligação entre estes dois aspectos. Trata-se
de problematizar o corpo como uma instância primeira do privado. O corpo constitui
igualmente aqui uma superfície de registro das estruturas temporais específicas da
exploração da mão-de-obra feminina. Isto é, a pressa e a urgência (poucas vezes
verbalizadas pelas operárias, mas passíveis de ser observadas no plano da prática cotidiana
e, portanto, da ação corporal) parecem constituir um corolário da “incorporação das
35 A este respeito remeto o leitor ás páginas 2, 3, 4, 5 e 6 acima.
36 A expressão “esfera doméstica” é aqui empregada sob uma perspectiva ampliada de seu campo semântico,
com base na formulação de Brenner (1998), que inclui algumas atividades tradicionalmente equacionadas,
no ocidente, com a esfera pública, especialmente com o campo da economia. Sob este ponto de vista, a
dicotomia público/privado assumirá, em certos momentos desta dissertação, um valor meramente
heurístico. Voltarei a este debate no capítulo 3.
35

estruturas sociais sob a forma de estruturas cognitivas” (Bourdieu, 2001), do que a dupla
jornada de trabalho feminina é apenas o exemplo mais conhecido. Há nesse sentido, casos
particulares (mas particularmente freqüentes, como diz Bourdieu) de triplas jornadas de
trabalho femininas. Exemplificarei isso com o caso do sistema de “facção” que é, de um
lado, uma atividade profissional com caráter de complemento salarial, invariavelmente
informal e, de outro, uma espécie de “Travail à-côté” (Weber, op. cit); uma atividade que
confere sentido à vida das operárias. O terceiro capítulo ainda aborda a divisão sexual da
“autoridade” e do “governo” (Schwartz, op. cit.) no interior da casa, sob um formato local
cujas especificidades decorrem da relativa (e ambígua) estabilidade profissional das
costureiras de moda íntima na região. Bem como a centralidade que os filhos assumem na
vida destas trabalhadoras.
A memória como objeto da história, ou confissões de um nativo aprendiz de etnógrafo.
Compreender é primeiro compreender o campo
com o qual e contra o qual cada um se fez. 37
Por puro medo da acusação de narcisismo ou “complacência” 38 – além do receio em
relação às críticas próprias do campo antropológico referentes a uma tradição prescritiva do
“exotismo antropológico” 39 que certamente não se coaduna com uma etnografia at home,
como é o caso aqui – eu relutei em inserir este tópico que poderia ser precariamente
comparado a um exercício de auto-objetivação. Por fim, ao cabo de uma série de
considerações críticas à versão preliminar desta dissertação, feitas por um grupo de quatro
37
Bourdieu, Pierre. 2005. Esboço de auto-análise. São Paulo: Companhia das Letras.
38
Na nota à edição francesa de “Esboço de auto-análise” é possível ler o seguinte acerca de Bourdieu:
“Ele sabia que, tomando a si mesmo como objeto, corria o risco não apenas de ser acusado de
complacência, mas também de dar armas a todos os que ficam só aguardando a ocasião para negar,
justamente em nome de sua posição e de sua trajetória, o caráter científico de sua sociologia...” (p. 22).
Talvez minha relutância deva-se também ao medo de revogar, com minhas confissões, “o caráter científico”
de meu relato – possivelmente marca inconsciente de um habitus encarnado, legado a mim por uma
epistemologia positivista, por ocasião de minha graduação.
39
A este respeito eu sempre me lembro de uma passagem de Nicholas Thomas na qual ele, de maneira
contundente, coloca este exotismo em questão:
“... the presentation of other cultures retains canonical status within the discipline. That is, despite a
plethora of topics and approaches, there are still strong prescriptions that certain anthropological projects
(such as those dealing with tribal religions) are more anthropological than others. The arguments here
deploy this stereotypic construct, even thought it is partly a misunderstanding prevalent outside the
discipline, and partly something that practitioners continue to impose upon themselves and most
particularly their graduate students”. (Thomas, 1991: 308).
36

ilhantes professores 40 que me concederam o privilégio de me auxiliar nesta investigação,
fui persuadido da necessidade destas reflexões.
Como falar de “entrada no campo” quando, na realidade, este campo constitui um
dos cenários principais da história de vida do próprio pesquisador? Pode-se falar, com
efeito, no máximo em uma re-entrada no campo que seria melhor definida como um re-
encontro com um universo social do qual se saiu parcialmente, por ocasião da socialização
no universo social da academia. Este é o caso da minha relação com o tema de pesquisa
aqui apresentado. Minha condição de etnógrafo se revela aos meus olhos sob a imagem de
um corolário deste afastamento primeiro da condição de “nativo”, que corresponde à
entrada na universidade 41 . Considerando-me sob a perspectiva nativa, minha condição é
certamente de proximidade e familiaridade com os problemas e a luta cotidiana das
costureiras. Mais que isso, minha relação com tais questões envolve afeto, amor e uma
preocupação militante com a causa destas operárias. Este é um tema que me é muito caro
do ponto de vista autobiográfico. Minha mãe foi, por muito tempo, costureira da Triumph;
além disso, possuo uma prima e uma tia que são igualmente operárias desta empresa. Ao
longo de muitos anos pude experimentar – indiretamente é certo – os crônicos problemas
decorrentes das relações de dominação e exploração desta empresa, senão entre os
membros da categoria operária do setor vestuário como um todo, ao menos no caso
específico de minha casa e de minha família. Parentesco, trabalho, reflexão teórica e certa
dose de indignação se interpenetram, pois, neste estudo.
Nesse sentido, espero manter, por assim dizer, um bom senso epistemológico que,
em um caso como esse no qual o objeto de investigação é simultaneamente parte da
experiência biográfica do investigador, deve ser redobrado como antídoto contra uma
leitura exacerbadamente afetada.
A opção por um tal tema, que me afeta de forma direta – tanto política como
emotivamente – constitui, por princípio, uma recusa do postulado segundo o qual a
antropologia não deve se ocupar do “nós”, mas do “eles”. A perspectiva segundo a qual
40 São eles o professor José Sergio Leite Lopes, meu orientador nesta investigação, e os professores Fernando
Rabossi, Diana Antonaz e Caetana Maria Damasceno. Aproveito aqui a oportunidade para agradecê-los
pelo interesse em me ajudar. O que, saliente-se uma vez mais, não anula minha inteira responsabilidade
pelos equívocos deste relato.
41 Este afastamento foi tanto social quanto geográfico, porquanto minha graduação se deu a 200 Km de
distância de minha residência.
37

deve haver uma objeção (note-se que esta palavra tem a mesma raiz de “objeto”), um
“princípio de estranhamento” 42 entre o antropólogo e seu informante, esta perspectiva não é
consensual no interior do campo da antropologia. Mintz nota, com certo espanto, que
curiosamente a perspectiva de um estranhamento supõe, sem nenhum indício sólido, que
relações sem afeto conduzem necessariamente a resultados mais objetivos, porquanto delas
decorrem maior honestidade do que nas relações afetivas.
“Por trás disso há, a meu ver, a suposição de que qualquer
movimento de igualdade entre informante e etnógrafo não tem sentido.
Certamente, se partimos da crença de que o etnógrafo esta para o
informante assim como o psicanalista esta para o analisado, então o nível
de estranhamento deve ser alto”. (Ibidem:52).
Segundo esse ponto de vista, o fato de ser filho de costureira (isto é, de uma nativa
do grupo social investigado) e, mais que isso, o fato de considerá-la uma informante
privilegiada no processo de investigação anularia a pretensão de verossimilhança de meu
relato etnográfico. De fato, é ainda Mintz quem corrobora o caráter equívoco desta
premissa:
“A grande insistência quanto á utilidade de não se criar amizades
numa situação desse tipo – como se isso fosse um princípio primeiro e
inviolável – surpreendeu-me quando a li pela primeira vez e ainda hoje
minha reação é a mesma. (...) De fato, a perspectiva do estranhamento
excluiria, certamente, parentes e amigos – e talvez fosse mais próxima da
relação entre psiquiatra e paciente”. (Ibidem:52).
Compartilhando do mesmo espanto de Sidney Mintz não vejo porque um
empreendimento científico, especialmente no caso das ciências sociais, possa ser
prejudicado do ponto de vista de seu potencial interpretativo pelo estabelecimento de
vínculos emocionais com membros do grupo investigado. Não há a meu ver nenhum
critério objetivo pelo qual se possa supor a existência de um obstáculo epistemológico em
relações desta natureza.
Não desconheço, todavia, que uma pesquisa etnográfica seja algo diferente de um
panfleto político em defesa da categoria profissional de eventuais parentes do etnógrafo.
42 Para uma crítica ao chamado “princípio de estranhamento” ver Mintz (op. cit).
38

Obviamente pretendo me precaver contra este tipo de prática panfletária, embora não
pretenda camuflar minhas convicções políticas e meu desacordo com um regime de
exploração que claramente atravessa meu campo de pesquisa.
Com estas considerações quero, por um lado, enunciar certos constrangimentos que,
segundo me parece, a investigação proposta deverá sofrer e, por outro, iniciar a discussão
sugerida para este tópico rejeitando enfaticamente o chamado princípio de estranhamento.
Ao declarar meu parentesco e legado biográfico com a categoria operária aqui em foco
quero, com isso, chamar a atenção (sobretudo talvez de mim mesmo) para o alerta de
Bourdieu (1997: 708) sobre a necessidade da auto-objetivação do pesquisador. Isto é, para a
objetivação das estruturas sociais que condicionam a maneira pela qual o pesquisador ele
mesmo conduz seu trabalho.
Antes, pois, de falar dos constrangimentos sociais que incidem sobre o trabalho de
campo em um contexto do qual eu fiz e faço parte; antes de falar desta re-entrada no campo
eu gostaria de abordar a fase anterior de afastamento deste universo social, por ocasião de
minha entrada na graduação. Começarei, portanto, este exercício seguindo o roteiro
proposto pelo próprio Bourdieu. Isto é, com uma reflexão sobre o “campo” acadêmico no
interior do qual me inseri, por ocasião de minha graduação.
Antes de encetar o trabalho de campo meu tema de investigação referia-se à questão
do lazer entre as costureiras de roupas íntimas de Nova Friburgo. A escolha deste tema do
lazer está intimamente relacionada com minha formação universitária inicial. Em
decorrência de uma série de fatos desarticulados entre si optei por ingressar no curso de
Licenciatura em Educação Física da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Em
primeiro lugar, por conta de um histórico de envolvimento com as práticas esportivas. Em
seguida por desejar trabalhar no campo da educação. Este segundo fator talvez guarde
relações tácitas com um envolvimento com o movimento estudantil secundarista, no
interior do qual tive, pela primeira vez, contato com os debates referentes à política
educacional, por exemplo.
O ingresso em uma universidade cujo movimento estudantil era vigorosamente
atuante, incluindo o Diretório Acadêmico de Educação Física, pôs-me rapidamente em
contato com uma produção acadêmica, marginalizada no interior do campo, que bem
39

poderia ser denominada de teoria crítica da educação física 43 . Em seu conjunto,
resguardadas as divergências teóricas, estas formulações faziam a crítica à subordinação da
educação física escolar aos interesses de três instituições fundamentalmente – as
instituições médica, militar e desportiva. Autores como Valter Bracht (apenas para citar o
mais badalado no interior do campo) haviam feito cursos de pós-graduação na Alemanha
sob uma perspectiva fortemente orientada pelo neomarxismo frankfurtiano de Adorno,
Hokheimer et al. Esta perspectiva concorreu para a formulação de análises da educação
física que a caracterizavam como profundamente atrelada a projetos políticos hegemônicos
que operavam em nome dos interesses do poder.
Segundo este grupo de teóricos, no contexto brasileiro, desde o Império, a educação
física vinha sendo prescrita, pelos médicos higienistas (herdeiros do movimento higienista
europeu) como uma prática de assepsia social, de formação de hábitos de vida saudáveis
que afastassem os trabalhadores dos vícios, concorrendo destarte para uma boa reprodução
da força de trabalho (Guiraldelli Jr, op. cit). A partir do golpe de Estado de 1937 e a
instauração do Estado Novo, um discurso militarizante logrou hegemonia no interior das
revistas especializadas em educação física. Os objetivos da disciplina a partir de então
deveriam estar vinculados à formação de um cidadão forte e obediente aos seus superiores,
passível de ser rapidamente mobilizado para a defesa da pátria. Vigiar e punir de
Foulcault 44 , particularmente o capítulo sobre os “corpos dóceis”, é largamente citado por
esta bibliografia. A partir de 1945, mas, sobretudo depois de 1964, com o golpe militar, um
discurso esportivizante, atrelado à representação do Brasil na Sociedade do espetáculo 45
ocupa igualmente um lugar central no interior do campo.
Diante deste histórico traçado pela teoria crítica da educação física (sumariado aqui
de forma hiper-simplificada), a conclusão a que a maioria de seus formuladores chegou foi
de que o campo sempre esteve subordinado a interesses utilitaristas, vinculados à
instituição médica, à militar e à desportiva, a serviço de projetos hegemônicos de poder.
Por conseguinte, a proposição que disto decorreu foi que uma prática contra-hegemônica da
43 Alguns destes inumeráveis trabalhos, tomados um tanto arbitrariamente, são: Melo, Victor Andrade de.
2004. “Cultura e educação física escolar: uma relação clara?”, in Anais do VIII ENFEFE, Rio de Janeiro:
UFF; Bracht, Valter. 1992. Educação física e aprendizagem social./ Porto Alegre: Magister; Guiraldelli Jr.,
Paulo. 1988. Educação física progressista./ São Paulo: Loyola Ed.
44 Foulcault, Michel. 1977. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes.
45 Debord, Guy. 2003.A sociedade do espetáculo. 4º reimp. Rio de Janeiro: contraponto. Esta é outra obra
bastante citada por uma bibliografia marginal do campo acadêmico da educação física.
40

educação física deveria abandonar o discurso utilitarista e investir em uma teoria e uma
prática do/para o lazer. Um texto fundamental aqui foi particularmente A busca da
excitação 46 , onde a opção por um “tema menor” 47 , muito característica da obra de Norbert
Elias, é justificada à luz do utilitarismo supostamente presente na produção sociológica
filiada ao estrutural funcionalismo de Talcott Parsons 48 .
Pesquisadores como Victor Melo investiram, a partir da década de 1990, em
pesquisas filiadas à escola dos chamados cultural studies (Melo, op. cit.), e na formulação
de propostas de “animação cultural” em educação física e lazer 49 . Foi precisamente a partir
de meu contato com o professor Victor Melo, e de meu ingresso no grupo “ANIMA –
Lazer, Animação Cultural e Estudos Culturais”, em 2004, que comecei a me interessar pela
pesquisa antropológica em lazer. Por conseguinte, eu diria que este primeiro contato com
uma teoria do lazer, por ocasião de minha graduação, pode ser apontado como uma das
raízes genealógicas de meu tema inicial de pesquisa.
Ocorre que este tema do lazer não assumiu, na fala nativa, a centralidade que eu lhe
concedi por ocasião da elaboração do projeto da pesquisa ora relatada. Ao longo da
investigação, os indícios de um modo de vida centrado na urgência e a centralidade que o
trabalho foi ocupando nos depoimentos recolhidos me obrigaram, senão a uma mudança de
itinerário, pelo menos a tomar o caminho mais longo – iniciar a investigação (e o relato)
pelos fenômenos ligados ao processo produtivo e, eventualmente, os aspectos articulados
com a sociabilidade operária. Com efeito, as práticas de sociabilidade e de lazer não se
encontram ausentes nem da vida das costureiras elas próprias, nem de meu relato sobre
elas. Ocorre que a pesquisa de campo etnográfica obrigou-me a visualizar o complexo
intrincamento existente entre estas duas esferas da vida das operárias – o trabalho e o lazer
– além de outras, é claro. Por conseguinte, pareceu-me que a categoria lazer, além de
constituir um elemento alienígena ao universo social investigado, era também do ponto de
vista das ciências sociais uma abstração.
46 Dunning, Eric & Elias, Norbert. 1992.A busca da excitação. Lisboa: Memória e sociedade.
47 Leite Lopes, J. S. “Esporte, emoção e conflito social” In Mana: estudos de antropologia social. Rio de
janeiro: contra-capa, 1995. 1(1), ISSN 0104-9313. p. 141-165.
48 Para uma crítica de Elias à Talcott Parsons ver particularmente a Introdução de 1968 in Elias, Norbert.
1994. O processo civilizador. volume 1: uma história dos costumes.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
49 Ver a este respeito a página virtual do grupo ANIMA – lazer, animação cultural e estudos culturais, na
seguinte página: http://www.lazer.eefd.ufrj.br.
41

Esta fluidez das fronteiras entre lazer e trabalho constitui apenas um dos muitos
aspectos desconsiderados naquele primeiro projeto. Desconsiderações que tem à ver com
meu afastamento do universo social das costureiras. Assim sendo, muitos dos problemas
relacionados a minha inserção como etnógrafo, no grupo das operárias de lingerie de Nova
Friburgo, são também problemas ligados a uma certa desfiliação anterior pela qual passei.
Com efeito, os primeiros passos desta investigação consistiram fundamentalmente
em reencontrar antigos companheiros de militância política (sindical e estudantil); em
acionar minhas próprias redes de parentesco; em visitar “lugares de memória” que
relembram, antes de qualquer coisa, certos eventos biográficos. Uma sensação crônica de
retorno às origens me acompanhou ao longo de todo o trabalho de campo, fazendo-me
lembrar recorrentemente da “incompatibilidade prática” que Bourdieu (2005: 37) identifica
entre os universos sociais da academia e das classes populares.
Essa incompatibilidade experimentei-a, eu mesmo, muito antes de ser formulado
este programa de pesquisa. O contato com o pensamento crítico da cultura universitária, por
ocasião da graduação (e antes mesmo que eu pudesse cogitar a hipótese de me inscrever em
um programa de pós-graduação em Antropologia Social), conduziu-me a um
estranhamento dos hábitos culturais (embora, naquele momento eu não formulasse a coisa
deste jeito) por mim compartilhados ao longo dos vinte primeiros anos de minha vida. Este
estranhamento, esta autocrítica que, em determinado momento materializou-se sob a forma
de uma crítica dura e dogmática sobre meus familiares, marcou um processo de desfiliação
de um nativo: rito de passagem para um aprendiz de etnógrafo. Por vezes, nesta primeira
fase crítica de minha formação, eu me peguei magoando meus próprios pais, banhando com
uma chuva verbal exacerbadamente ácida seus hábitos de vida que eram também, a um só
tempo, os meus. Críticas aos programas televisivos prediletos, críticas às visões de mundo
ou às concepções políticas – uma encarnação daquela “incompatibilidade prática”.
Ilustração existencial do esvaziamento de uma “memória encarnada” (Nora, 1993:
14) perpetrado pela socialização na razão historiográfica. Historiografia aqui diz respeito
menos à disciplina em si do que a uma metáfora, emprestada de Pierre Nora, de toda a
razão crítica acadêmica. “A história, porque operação intelectual e laicizante, demanda
análise e discurso crítico” (ibidem: 8). Eis a “incompatibilidade prática” de Bourdieu: a
memória é viva, incorporada, presente e, como tal, dispensa os “lugares de memória”; a
42

história, por seu turno, exila a memória do presente e do corpo, desencarna-a e caracteriza-a
como evento superado para engendrar artificialmente um “imaginário de substituição”
(ibidem; 28). Esse o processo de desfiliação pelo qual parecem passar todos os ex-nativos
desnativizados pelo banho ácido da razão crítica acadêmica. Um processo ritual estruturado
segundo o mito do “homo academicus”.
Contar, portanto, a história dos hábitos culturais das costureiras de lingerie é – a
exemplo do que faz Hoggart (1973), transformando suas próprias memórias em material de
análise – evocar certas lembranças (que continuam vigorosamente presentes) de minhas
relações de família. E não apenas isso. Entrevistar sindicalistas desta categoria é
reencontrar antigos companheiros que conheci quando era militante do movimento
estudantil e filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT), então referência de esquerda entre os
partidos políticos e, por conseguinte, nosso local de encontro.
Ademais, minha própria naturalidade – nasci e vivi, durante os 20 primeiros anos de
minha vida em Nova Friburgo – faz de mim, de algum modo, um nativo. Se, por um lado,
como sugeri, meu afastamento temporário deste universo social, por ocasião de minha
graduação, concorreu para que eu ignorasse certos aspectos importantes do modo de vida
das costureiras friburguenses, por outro, minha condição parcial de nativo me impôs
também um esforço intelectual rigoroso no sentido de objetivar fatos muito familiares, que
por isso mesmo me pareciam naturais. O exemplo mais paradigmático disso foi o
tratamento da categoria nativa “moda íntima”. Foi só muito tardiamente – faltando cerca de
um mês para o encerramento da pesquisa –, e mediante o importante alerta crítico dirigido a
mim pela professora Caetana Maria Damasceno, que consegui objetivar as implicações
subjacentes à noção de “moda íntima”. Por vezes mesmo, nos trabalhos de fim de curso que
redigi para as disciplinas do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do
Museu Nacional da UFRJ, a expressão “moda íntima” não foi devidamente problematizada.
Este modo nativo de se referir aos produtos da indústria de lingerie é evocado pela
classe patronal (e endossado invariavelmente pelos cidadãos friburguenses, em geral)
possivelmente para conferir a tais produtos o caráter de “distinção social” (Bourdieu, op.
cit.) que o setor da Moda e do Estilismo evoca, por meio da exaltação estética da
vestimenta. Como nativo de Nova Friburgo, isso até bastante tardiamente me passou
43

despercebido. De modo que nos trabalhos precedentes que elaborei a categoria nativa
“moda íntima” aparece invariavelmente como um dado naturalizado.
Outro ponto importante. A maior fábrica do setor de vestuário de Nova Friburgo – a
Triumph International – teve suas dependências por mim freqüentadas ao longo de dois
anos, quando então lá eu almoçava. Igualmente de lá eu recebia uma bolsa de estudos de
meio salário mínimo para cursar mecânica geral, no SENAI. O refeitório, o pavilhão central
(onde ficava a agência bancária na qual eu recebia a tal bolsa), os espaços de lazer (as
quadras, o salão de jogos de mesa, o parque aquático) – todos monumentos de uma história
viva; encarnada também na lembrança recorrente ao longo desta investigação das festas do
dia das crianças patrocinadas pela empresa, nas quais eu sempre ganhava formidáveis
brinquedos, quando, antes mesmo de eu cursar o SENAI, minha mãe sempre me levava
desde muito cedo. Festas a respeito das quais hoje eu posso refletir com ferramentas
analíticas mais adequadas ao entendimento do dispositivo de legitimação da dominação que
a elas estava subjacente. Se os “lugares de memória” constituem as armas na luta contra o
nivelamento da história universal (Nora, op. cit: 13); então, no concreto destas edificações
da fábrica eu reconheço alguns tijolos necessários à edificação de meu esboço biográfico.
Episódios que a história tardia de minha iniciação acadêmica concorreu para, durante
algum tempo, obliterar. Evocar agora essas memórias como material de investigação
etnográfica é um procedimento que precisa passar pelo crivo desta auto-objetivação
preliminar.
Problemas de terminologia.
Por fim, cabe aqui um breve comentário acerca das dificuldades terminológicas com
as quais por vezes me deparei neste trabalho. Os vários aspectos da vida das costureiras que
precisam ser seriamente considerados neste relato impuseram-me limitações lingüísticas
difíceis de superar. Não é fácil encontrar termos adequados para descrever muitos destes
aspectos. Um exemplo talvez ilustre melhor estas dificuldades. A questão das complexas
relações entre a realidade do desemprego e o gênero é a este respeito um caso privilegiado.
Diante do desemprego em Nova Friburgo o setor de roupas íntimas constitui uma
possibilidade sui generis de trabalho para ambos os sexos. De maneira que crescentemente
os homens desempregados, com dificuldades de enquadramento profissional em outros
44

setores, têm se integrado ás fileiras produtivas das fábricas e confecções de lingerie. Este
fato gradualmente vem alterando a distribuição sexual do trabalho historicamente
consagrada. Distribuição que faz do setor de vestuário um local de exploração da força-de-
trabalho fundamentalmente feminina.
Não obstante, o modo nativo de referência aos quadros desta categoria profissional
oblitera este fenômeno recente de re-configuração do mercado de trabalho friburguense. As
referências dos habitantes à categoria do vestuário local são freqüentemente marcadas por
expressões como “as costureiras”, sempre no feminino. Subverte-se, por conseguinte, a
regra gramatical segundo a qual a presença simultânea de ambos os gêneros deve ser
referida pela predominância do gênero masculino. Trata-se de uma gramática etnográfica,
por assim dizer. Ou mais precisamente da predominância de um “habitus” incorporado –
isto é, da reprodução simbólica da marca tradicional deste setor produtivo como um campo
de trabalho feminino – sobre a lógica gramatical. Uma alteração do “campo” (como a
entrada de homens em um setor historicamente feminino) não necessariamente provoca
uma mudança instantânea do “habitus ”50 (como a tendência dos moradores nativos a se
referirem a este setor no feminino).
Certamente este fenômeno lingüístico deposita sobre os homens, costureiros de
roupas íntimas, um peso moral que eventualmente pode acarretar uma experiência subjetiva
vexatória e desmoralizadora de seu orgulho pessoal. Daí a dificuldade posta diante do
etnógrafo de encontrar um vocabulário adequado para descrever este universo social sem,
contudo, corroborar atitudes que possam suscitar tais experiências degradantes do orgulho
destes trabalhadores. Não obstante, na falta de um tal vocabulário, optei aqui por manter a
forma de referência nativa dos habitantes do município, registrando, nestas notas, a
presente ressalva.
Finalizadas estas linhas introdutórias, que pretenderam delinear o cenário, sua
gênese, certos traços gerais dos personagens protagonistas deste texto, bem como alguns
aspectos de minha relação com eles, adentraremos, neste primeiro momento em uma sala
50 “Ademais, mesmo que as disposições possam se depauperar ou se enfraquecer por uma espécie de ‘usura’
ligada à ausência de atualização (correlata, sobretudo, de uma mudança de posição e de condição social) ou
pelo efeito de uma tomada de consciência associada a um trabalho de transformação (como a correção dos
sotaques, das maneiras, etc.), existe uma inércia (ou uma hysteresis) dos habitus cuja tendência espontânea
(inscrita na biologia) consiste em perpetuar estruturas correspondentes às suas condições de produção.” In
Bourdieu, Pierre. 2001. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. (p. 196).
45

de costura. Local de trabalho, de relações assimétricas de poder, de exploração, mas
igualmente de resistência, de sociabilidade, de organização dos trabalhadores e também –
em que pese a vigilância patronal e a lógica utilitária do Capital – de ludicidade.
46

CAPÍTULO 1
As transformações do processo produtivo e suas repercussões.
Um episódio de conflito entre as costureiras.
Quando no final de 2005, ao cabo de nove anos de implementação do processo
produtivo batizado de “célula”, o cotidiano das salas de costura da Triumph International
aparentava ter reassumido um estado de normalidade (depois de ter ocorrido conflitos
sérios entre costureiras), foi possível ouvir, de todos os cantos de uma dessas salas, a
explosão arrebatada de Lúcia – uma costureira polivalente com treze anos de serviços
prestados à empresa. A data precisa deste arroubo de cólera se perdeu da memória de minha
entrevistada. “Eu não gosto nem de lembrar daquele dia!”, afirma.
Lúcia se incorporou ao trabalho da Triumph no ano de 1992, como costureira da
máquina de Travet – uma etapa do processo produtivo que, como veremos, não dispõe de
muito prestígio no interior de uma sala de costura. Ao longo dos quatro primeiros anos, ela
me contou que foi muito feliz com sua nova vida de costureira da maior empresa de lingerie
de Nova Friburgo.
“Primeiro que eu gostava de fazer o que eu estava fazendo. A
máquina de Travet não paga bem como outras máquinas, mas ela não dá
dor de cabeça. É mais fácil porque você só reforça uma parte que já está
costurada ou então prega o lacinho. Ela é uma máquina rápida. Então, na
esteira 51 agente tinha um bom prêmio de produção. Além disso, as
meninas eram mais amigas, sabe! Não tinha essa fiscalização de uma com
a outra. Agente tinha um grupo bom, que saia junto, que ia pro Olífas, que
ia uma na casa da outra”. (Depoimento de Lúcia durante uma entrevista a
mim concedida).
Com efeito, aos “benefícios sociais” oferecidos por esta fábrica – que, por suas
dimensões, são sui generis, no município – deve-se acrescentar suas maiores remunerações
comparativamente às demais fábricas do setor (entre 1992 e 1996, saliente-se, e não
atualmente), na consideração da satisfação de Lúcia com sua vida, naquele primeiro
momento. Ocorre que Lúcia, mesmo gostando de trabalhar na máquina de Travet, com a
implementação, em 1996, do sistema de “célula” (e o advento, no interior das salas de
51 Alusão ao processo produtivo individualizado onde, como veremos mais à frente, cada costureira recebe
gratificações por sua produção individual.
47

costura, do discurso da polivalência), precisou ser socializada na costura de outras etapas da
produção de lingerie. Simultaneamente ela foi percebendo que cada vez mais seu cansaço
físico e emocional, bem como o de suas colegas, acarretou uma gradativa redução de suas
antigas atividades de lazer realizadas em conjunto pela equipe de trabalho. Acrescente-se
ainda o fato de que, com o deslocamento das gratificações individuais para os prêmios
coletivos, a produtividade – antes exigida pelos supervisores, porta-vozes patronais na sala
de costura – passava, a partir de então, a ser cobrada pelas próprias colegas de costura. As
meninas, que “antes eram mais amigas”, estavam se afastando, sob o ponto de vista de
Lúcia.
Ela me disse que “nunca funcionou bem sob pressão” e que, quanto maior a
cobrança de suas colegas e dos supervisores, tanto mais difícil era para ela aprender a
realizar os novos processos que lhe estavam sendo impostos. De maneira que, quando lhe
pediam para costurar em certas máquinas mais complexas como a Três Pontos, ela já sentia
seu corpo estremecer com o receio de que suas colegas começassem a lhe apressar da
maneira exacerbada como freqüentemente o faziam. Como repetidamente me dizia, ao
longo de nossa conversa, ela sabia que “poderia aprender a costurar em qualquer máquina
como qualquer uma das meninas”. Mas o problema de Lúcia não era de ordem motora nem
tão pouco cognitiva; sua dificuldade consistia antes em conviver em um ambiente de
intensa “pressão e competição entre as próprias costureiras”.
Com o tempo, diante de suas freqüentes dificuldades com certas etapas do processo
produtivo, acabou pesando sobre ela a força de um estigma nativo que, do tom de
brincadeira inicial, foi assumindo ares de severidade e terminou por marca-la com o signo
da inferioridade profissional. “Ô ‘cabeção’, vê se presta atenção aí, tá errando muito, tá
muito devagar...”, diziam suas colegas. O estigma de “cabeção”, uma marca mais genérica
daquelas costureiras com dificuldades, terminou por se acomodar à identidade profissional
de Lúcia em decorrência de brincadeiras antigas, do período anterior à implantação do
sistema de “célula”.
Por ocasião daquela fase inicial, corria entre as colegas de Lúcia o dito de que ela
era uma pessoa bastante atrapalhada. Entretanto, falava-se disso como quem faz uma
provocação fraterna a uma pessoa querida. Não havia, por conseguinte, conotações de
crítica séria ao jeito “enrolado” de Lúcia. Tratava-se antes, por assim dizer, de um modo
48

debochado de demonstrar carinho da parte de suas colegas. Ela mesma falava largamente
disso sem nenhuma inquietação séria, mas estampava em risadas lembrando de episódios
em que seu embaraço havia lhe colocado em situações cômicas. Nesta mesma época havia
um comercial de televisão que exibia um personagem também muito desajeitado chamado
“Zé Ovinho”. As colegas de Lúcia não tardaram a batizá-la com este apelido. Não obstante,
de modo algum naquele momento, nossa interlocutora interpretou estas brincadeiras como
uma experiência vexatória. Ao contrário, ela mesma assumiu o apelido 52 como um artifício
cômico, para divertir suas colegas, nos momentos de sociabilidade entre elas.
Entretanto, com as alterações estruturais do processo produtivo e mudanças
correspondentes no “habitus” (para empregar uma categoria de Pierre Bourdieu) da equipe
de costureiras, o personagem cômico foi gradativamente se convertendo na presença de um
empecilho ao aumento das gratificações coletivas por produção – e “Zé Ovinho” sofreu
uma metamorfose engendrada no bojo da “célula” de produção, tornando-se “Cabeção”,
isto é, uma costureira marcada com o signo da inferioridade profissional. Desnecessário é
dizer que este estigma, por efeito de contraste, alude ironicamente a supostas inferioridades
intelectuais. Os efeitos desta mudança de relações entre as costureiras foram catastróficos
sobre a vida emocional de Lúcia. Daí que todo o processo tenha culminado no episódio de
sua explosão de fúria:
“Elas tanto me chamaram de “mole”, e não sei o quê, e não sei o que lá, e
ficavam falando e me imprensavam. E tinha dias em que a máquina
estava ruim e eles achavam que eu estava de sacanagem. E eu agüentei
isso durante nove anos! E um belo dia eu joguei a caixa para o alto, as
peças, me estressei e comecei a chorar. E sai gritando que queria ser
mandada embora. Fui direto para o escritório pedir as contas. Minha
vontade era jogar a caixa na cara de uma colega”. (Entrevista com Lúcia).
Atualmente Lúcia trabalha em casa, no sistema de “facção” com a máquina Três
Pontos – precisamente uma das mais difíceis de se aprender. No sistema de “facção” a
costureira recebe, em sua própria casa, uma máquina emprestada pela fábrica para que ela
possa realizar uma etapa do processo produtivo. Aqui a remuneração se dá também por
produtividade, mas a “facção” paga R$0,10 por peça, no caso da máquina de Três Pontos.
Isso significa que, para que Lúcia tenha uma remuneração equivalente à que recebia na
52 “Not only men and women of affairs but also ordinary people tell themselves stories about who they are,
what they care about, and how they hope to realize their aspirations. Such stories significantly shape
human conduct. Thus they cannot be ignored by social analysis”. (Rosaldo, 1989: 129-130).
49

fábrica ela precisa ter uma produtividade formidável, em casa. Esta constatação corrobora,
portanto, a fala repetida de nossa interlocutora, segundo a qual ela sabia que poderia
aprender, tão bem quanto qualquer uma de suas colegas, qualquer etapa do processo
produtivo.
A consideração apressada deste episódio de conflito entre as costureiras da Triumph
International, poderia nos conduzir à conclusão, questionada por Florence Weber (1991:
179-189), de que as novas formas assumidas pelo capitalismo contemporâneo conduzem a
classe operária a um processo de “privatização” (Schwartz, op. cit.) ou de
“individualização” (Terrail, citado por Weber, op. cit: 180 e seguintes), isto é, a uma quebra
dos antigos laços de solidariedade operária acima descritos. Não obstante, há neste caso
certas regularidades e homogeneidades que nos desautorizam inferir precocemente
qualquer hipótese que extrapole o âmbito restrito do grupo de costureiras do qual Lúcia
fazia parte. Em primeiro lugar, a relativa homogeneidade de geração – a maior parte das
colegas de Lúcia tem mais de 45 anos; em segundo, o tempo de experiência no trabalho
como costureira – todas elas possuem mais de 15 anos na costura de lingerie. De modo que
estas operárias experimentaram ambos os sistemas de produção de roupas íntimas – o
sistema de esteira e o sistema de “célula”. Há que se considerar aqui não apenas a dimensão
técnica da confecção do lingerie, mas mais fundamentalmente ainda as tradições culturais
encarnadas, incorporadas nos hábitos destas operárias e que foram profundamente abalados
pelas alterações nas estruturas objetivas de seu trabalho.
Mas até que ponto estes hábitos e estas tradições foram afetados? Terão eles
desaparecido ou se modificado? Como será a repercussão destas alterações no caso de
outras fábricas de roupas íntimas e no caso das gerações de costureiras que não conheceram
o sistema de produção individualizado? Este capítulo tenta dar conta destas transformações
estruturais tanto quanto de suas repercussões no modo de vida das operárias de lingerie em
Nova Friburgo.
O cotidiano tradicional de uma sala de costura e o processo produtivo individualizado.
“Percorrendo-se o corredor central da oficina, é possível
realizar uma vigilância ao mesmo tempo geral e individual;
constatar a presença, a aplicação do operário, a qualidade
de seu trabalho; comparar os operários entre si, classificalos
segundo sua habilidade e rapidez; acompanhar os
50

sucessivos estágios da fabricação. Todas essas seriações
formam um quadriculamento permanente”. 53
A oposição entre o sistema de produção individualizado 54 – que no caso da Triumph
International organizava-se em torno da esteira de produção e, nas demais fábricas do
setor, se configurava por meio de uma organização espacial das máquinas de costuras em
filas – e o sistema coletivo denominado “célula”, não pode ser caracterizada senão
mediante uma superestimação heurística de suas diferenças. Certamente entre um pólo e
outro encontraremos fábricas que adotaram sistemas híbridos, que conciliam propriedades
técnicas e dispositivos de controle social de ambos. Estas variações, entretanto, foram
temporariamente deixadas em suspenso em decorrência dos prazos estabelecidos para o
fechamento desta investigação. Por conseguinte, elas serão retomadas em um momento
oportuno.
As mudanças no processo produtivo do lingerie que se processaram gradativamente
em um grande número de fábricas de roupas íntimas de Nova Friburgo não podem ser
relatadas a não ser de um modo precário. A dificuldade maior diz respeito à necessidade de
conferir à descrição o caráter dinâmico do processo histórico correspondente. Tanto mais
difícil elas aparentam ser em decorrência de estarmos diante de questões ligadas à memória
encarnada de certos grupos de operárias, que mobilizam os eventos ocorridos a mais ou
menos uma década atrás como meio de formular uma crítica às suas atuais condições de
trabalho. De modo que meu contato com esta dinâmica só se deu de um modo indireto, por
meio das interações com estes grupos, na pesquisa de campo. O problema se agrava se
lembrarmos uma vez mais do “caráter fechado” da fábrica e, portanto, do fato de que eu
não pude presenciar diretamente o cotidiano de uma sala de costura. O estilo narrativo
adotado neste tópico e no seguinte é, com efeito, uma contrapartida deste contato
53 Foulcault, Michel. 1977. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes. (p.133).
54 Os termos “individualizado” – que aparece aqui – e “individualização” – no contexto de Terrail, tal qual
citado por Florence Weber a que fiz alusão na página anterior – assumem significados distintos, nesta
dissertação. No primeiro caso, trata-se de uma maneira nativa pela qual os consultores patronais do SENAI
se referem ao antigo processo produtivo de lingerie onde cada costureira recebia estímulos monetários
individualizados à produtividade e ao controle pessoal da qualidade (o modo nativo do grupo de costureiras
mais antigas da Triumph se referirem a este sistema é simplesmente “esteira”). Isto é, gratificações
monetárias calculadas segundo o percentual de produtividade e o nível de qualidade de cada costureira em
particular. No segundo caso, “individualização” refere-se, segundo a leitura de Terrail feita por Weber (op.
cit: 180-181), às alterações ocorridas nas relações entre o “eu” e o “nós” entre os grupos operários.
Alterações que podem ser resumidas precariamente como um deslocamento do primado do “nós” para uma
maior autonomia do “eu”, no interior da classe operária.
51

meramente indireto que estabeleci com este cenário. Trata-se de uma forma descritiva que
conserva uma certa distância que denuncia a pouca intimidade que eu tenho com estas salas
de produção 55 .
Assim espero que o leitor tenha a caridade de me perdoar
a divisão exageradamente didática que julguei ser
necessária para uma apresentação mais clara dos dados
deste capítulo. Reconheço que a caracterização da
passagem de um sistema a outro assemelha-se menos ao
processo histórico dinâmico do que à duas imagens
fotográficas desbotadas em sua impressão de perenidade.
Neste tópico, tentarei esboçar uma imagem do cotidiano
de uma sala de costura organizada segundo o sistema
individualizado para, no item subseqüente, tratar das
alterações propriamente ditas. Creio que estes dados
iniciais são importantes para que as transformações que se
seguiram façam sentido para o leitor. A descrição que se
segue presta-se a fornecer um desenho impreciso da
natureza do trabalho em uma sala de costura, bem como
das relações sociais que se estabelecem em seu interior,
no sistema individualizado de produção. Em outras
palavras, inspirado em Leach (1996), trata-se de proceder
ao relato “como se” (Sigaud, in Ibidem: 34) a realidade
social descrita fosse estável e permanente. E “como se” os
esquemas ideais aqui apresentados correspondessem a
uma realidade, em verdade dinâmica e inconsistente. O
item também fornece uma idéia de quais são os suportes
simbólicos sobre os quais são depositados os significados
das diferenciações internas no sistema de produção
individualizado e, portanto, da maneira como a divisão do
trabalho social era procedida em todas as fábricas do setor
antes da reestruturação produtiva de meados da década de
1990. Não obstante, não são poucas as “confecções”
friburguenses que, ainda hoje, obedecem a uma
classificação de um modo ou outro aproximada das
características aqui apresentadas.
A diferença mais visível aos olhos de um observador
externo entre os dois modelos de produção do lingerie diz
respeito às fronteiras nítidas entre uma especialidade
profissional e outra, no sistema individualizado, e à
fluidez destas fronteiras em decorrência da imposição da
55 Tenho a impressão, a este respeito, que o seguinte comentário de Clifford acerca de Maurice Leenhardt –
sobre o relato redigido pelo último de um ritual melanésio chamado grands pilous – adequa-se a fortiori ao
presente relato e à investigação que o precedeu, dadas as suas condições desfavoráveis.
“A suas evocações falta algo de proximidade, como conseqüências de suas dificuldades em assistir ao
evento...” (Clifford, 2002: 238).
52

polivalência, no sistema de “célula”. É, portanto, sobre o
eixo temático das especialidades que tentarei proceder ao
relato desta primeira parte.
Assim como os setores de fiação e tecelagem 56 a costura –
e uma série de outras ocupações ligadas à indústria de
vestuário – se caracteriza como um ofício marcado pela
exploração da mão-de-obra feminina. O caso específico
da costura de lingerie possui outras peculiaridades
tipicamente femininas. Em primeiro lugar o fato de que a
produção friburguense se concentra esmagadoramente
sobre os modelos de lingerie feminino 57 . Trata-se, pois, de
um produto que diz respeito às mulheres, na produção
tanto quanto no consumo. Acrescente-se uma
correspondência simbólica entre o privado, como esfera
tradicionalmente equacionada com o feminino, e a
natureza mesma dos produtos de lingerie que se
caracterizam pela condição de moda íntima. Tudo isso
exclui a priori os homens como trabalhadores normais
deste ramo da indústria de vestuário, em Nova Friburgo.
As especialidades envolvidas na produção de lingerie são,
por conseguinte, objeto de uma distribuição sexual do
trabalho. Amiúde todos os processos diretamente ligados
à confecção de uma peça são realizados por mulheres,
exceção feita apenas para o caso do corte, um ofício na
maioria das vezes exercido por homens. Um outro
personagem, em geral masculino, indiretamente envolvido
no processo produtivo é o mecânico de máquina de
costura. Além da presença eventual dos patrões
(sobretudo no caso de pequenas e médias confecções) –
que podem ser de ambos os sexos – o pequeno número de
homens em uma sala de costura está freqüentemente
ligado aos ofícios de cortador ou de mecânico 58 .
Embora, para mim, seja muito difícil conseguir uma
declaração direta das costureiras da maneira pela qual os
mecânicos são referidos, nas salas de costura, não há
dúvidas de que estes constituem certamente alvo de
brincadeiras e gracejos, por parte daquelas. Não são
poucas as vezes que minha principal informante menciona
este fato. “O mecânico, coitado, aquele menino sofre nas
mãos das garotas (costureiras). Costureira não é mole não,
56 Alvim & Leite Lopes (op. cit: 8). Sobre a exploração da mão de obra feminina pela industria têxtil desde o
século XIX ver: Thompson op. cit.. Especialmente o capítulo sobre os tecelões.
57 Com efeito, conforme tentarei demonstrar no capítulo 3, a própria noção de “lingerie” só recentemente foi
ampliada para abarcar as roupas íntimas masculinas.
58 A presença recente de homens trabalhando na costura de lingerie propriamente dita – uma presença ainda
minoritária – será considerada em sua especificidade ulteriormente, quando tratarmos das questões de
trabalho e gênero.
53

59 Elias &Scotson, op. cit.
elas dão em cima mesmo” – afirma ela. Diferentemente
do cortador e de algum eventual costureiro, que sempre se
encontram na presença das “meninas”, os mecânicos têm
um caráter itinerante. Freqüentemente eles prestam seus
serviços para mais de uma fábrica ou “confecção”. A
provável única exceção talvez seja a Filó, que possui um
setor de manutenção próprio. Destarte, a relativa distância
que se estabelece entre as costureiras e os mecânicos abre
a possibilidade da erotização de sua figura e, portanto, do
surgimento de brincadeiras com conotação de flerte.
“Na Cor da Pele (nome da confecção) agente fazia muita
brincadeira com o mecânico. Agente dizia: ‘pô, você conserta,
conserta a máquina e ela está sempre ruim’. Ele dizia: ‘minha
filha, essa máquina aí você tem que entregar pra Deus, essa aí
não vale mais nada não. Manda o patrão de vocês comprar uma
nova, ele está cheio da grana’. E agente dizia: ‘vai lá e manda
você!’ ‘Mando mesmo’ – ele respondia. Agora brincadeira de
cantadas claro que tinha, mas agora eu não lembro não. Tinha até
uma lá na Filó que diziam que era amante de um mecânico. Tinha
garotas que diziam que algumas colegas quebravam a máquina de
propósito só para o mecânico ir lá consertar. E eles mesmos
diziam isso também.” (costureira aposentada, 49 anos).
O mecânico permanece presente, sob a forma de
objeto de fofocas e boatos, nas brincadeiras e práticas de
sociabilidade das costureiras mesmo quando não se
encontra efetivamente na fábrica. Sua importância no
cotidiano das salas de costura, como objeto de flerte, por
exemplo, o converte em um tema recorrente nos
momentos de sociabilidade operária.
“Uma coisa que eu percebo, nas visitas que agente faz ás
confecções, é que as meninas (as costureiras) ficam muito
empolgadas quando falam do mecânico. O mecânico é o sonho de
consumo das solteiras. Elas falam do mecânico assim de um
jeito! Porque ele não está sempre lá, né. Ele roda de fábrica em
fábrica e aí, quando ele chega, é aquela coisa”. (Consultora de
moda íntima do SENAI – uma das responsáveis pela concepção
dos modelos de lingerie; freqüentemente visita as confecções
para fazer palestras).
A condição de tema privilegiado nas brincadeiras das
costureiras é, de fato, uma característica própria da
posição que o mecânico ocupa, na figuração 59 social de
uma sala de costura. Essas mesmas brincadeiras e
comentários não costumam ocorrer muito com os
cortadores e eventuais costureiros, em primeiro lugar em
54

decorrência da proximidade 60 entre estes e as costureiras;
em segundo lugar pela especificidade de cada uma das
ocupações.
As brincadeiras entre mecânicos e costureiras são
possíveis pelas mesmas razões pelas quais elas não são
permitidas entre cortadores e costureiras e destas últimas
entre si. A vigilância e a proibição de brincadeiras
inerentes ás relações de trabalho em uma sala de costura
são certamente o corolário da “pressão” por produtividade
e qualidade. Ora, posto que o mecânico é chamado
justamente para consertar uma máquina que
eventualmente quebre, sua presença não apenas se insere
em um regime de exceção, como também a costureira da
máquina em manutenção ela própria encontra-se inserida
neste mesmo regime de exceção. Esta condição
temporária autoriza a conversa e suscita brincadeiras
entre mecânico e costureira. Desta maneira, a distância
entre ambos é – nos momentos de exceção, quando a
máquina quebra – convertida em proximidade. E isso da
mesma forma que a proximidade entre cortador e
costureira é convertida em distância em decorrência do
regime de vigilância.
Certamente a vigilância sobre a costureira não é suspensa
integralmente, por ocasião da manutenção de uma
máquina de costura. O que ocorre é um relaxamento desta
vigilância mesma por parte da supervisora, que
obviamente se concentrará sobre o trabalho das
costureiras em atividade. O relaxamento é, por
conseguinte, um corolário da “pressão” dos supervisores
sobre as costureiras em atividade e abre, destarte, uma
brecha para as brincadeiras entre mecânico e costureira.
A faixa etária dos mecânicos oscila entre 20 e 45 anos,
sendo muito freqüentes, entretanto, os casos em que eles
não passam de 30 anos. Muitos destes formaram-se nos
cursos de mecânica ministrados pelo SENAI, sob os
auspícios das próprias empresas para as quais trabalham.
Embora sua remuneração não seja ruim (considerando-se
que trabalham para várias fábricas) uma parcela
significativa dentre eles encara seu ofício como
temporário. Como, em geral, a jornada normal de trabalho
das fábricas de lingerie se encerra às 17:00 horas, um
grupo crescente de mecânicos vem estudando em cursos
noturnos de graduação, nas universidades do município.
Há também casos de mecânicos que acumulam uma outra
60 A proximidade não existe no caso da Triumph International porquanto os cortadores não trabalham nas
salas de costura, mas em separado. Não obstante, ela ocorre em todas as demais “confecções”.
55

profissão sem abandonar a primeira – mormente em
decorrência da boa remuneração que se pode obter
trabalhando-se para várias fábricas.
“O mecânico da Cor da Pele se formou em Direito. Ele era até
advogado da dona Silésia (dona de outra “confecção”), não sei se
é ainda. Mas ele continuava de mecânico. Não de lá. Ele prestava
serviço para outras confecções. Ele trabalhou na Filó, em outras
confecções. A Cor da Pele era só uma delas.” (costureira
aposentada que trabalhou na Filó e nas duas “confecções” que
menciona, 49 anos).
Considerando o clima lúdico que se estabelece entre o
mecânico e as costureiras, a relativa liberdade e igualdade
de condições na negociação com os patrões que a
condição de prestador de serviço confere a ele, bem como
seus rendimentos mais elevados do que as operárias de
lingerie, ficamos autorizados a supor que o mecânico
desfruta de uma condição relativamente mais confortável
que as costureiras. Por conseguinte, embora ele não esteja
diretamente envolvido na produção fabril de roupas
íntimas, sua participação indireta no processo lhe concede
um lugar elevado na hierarquia social das salas de costura.
Outro personagem masculino presente nas fábricas de
lingerie, também melhor posicionado hierarquicamente,
como vimos, é o cortador. O processo de confecção de
um lingerie se inicia com o corte do tecido segundo um
molde de papel que representa o modelo tal qual
concebido pelo modelista. Geralmente as confecções
menores empregam uma “máquina de disco” que consiste
de uma lâmina quente com uma capacidade de corte mais
limitada em termos numéricos. Quer isto dizer que a
quantidade de tecido passível de ser cortada pela
“máquina de disco” é menor do que quando são
empregadas máquinas maiores e mais eficientes como a
“serra fita”, por exemplo – máquina aplicada no corte de
grandes quantidades de tecido e, por conseguinte,
tipicamente encontrada em fábricas maiores. Em ambos
os casos, entretanto, a máquina apenas secunda o trabalho
humano.
Dentre todos os ofícios envolvidos diretamente na
produção de lingerie o de cortador é certamente o mais
valorizado não apenas economicamente, mas também
socialmente, sob o ponto de vista estritamente patronal.
Não apenas a remuneração do cortador é superior à das
costureiras, como também sua profissão é considerada de
maior responsabilidade. O cortador justifica, com efeito,
seus salários mais elevados não por uma maior
competência técnica – que ele reconhece no caso das
56

61 Leite Lopes, op. cit:26.
costureiras tanto quanto no seu próprio – mas em
decorrência da “responsabilidade” com a qual é investido.
O processo de “enfestar” é um caso privilegiado a este
respeito; nele encontramos um exemplo homólogo ao dos
operários do açúcar, no “Vapor do Diabo”, e seu discurso
da responsabilidade e a preocupação com “não danificar o
material do homem” 61 .
“Enfestar é o processo de empilhar o tecido sobre a mesa. O
tecido é enorme né? De acordo com o molde de papel agente
risca o tecido que ficará por cima das outras camadas. Então
agente coloca o tecido sobre a mesa e vai dobrando várias
camadas de tecido umas sobre as outras. O tecido não pode
enrugar, porque se enrugar a peça sai torta, desperdiça material.
Então tem que fazer isso sempre com uma cantoneira. Às vezes
são várias camadas de tecido; tem tecido verde, amarelo,
vermelho... E vai empilhando um sobre o outro. Às vezes é
preciso colar, por isso que ás vezes a peça vem com esta marca
aqui (me mostra uma marca de cola no tecido). Colando ele fica
esticadinho. Então tem essa responsabilidade de não desperdiçar
o material.” (cortador de serra fita, 38 anos).
O discurso da responsabilidade investida sobre os
cortadores é compartilhado também por costureiras e
patrões e legitima, portanto, a maior valorização
econômica e social (sob o ponto de vista patronal) dos
primeiros. Quanto à valorização social no interior da
figuração específica de uma sala de costura – isto é, a
valorização social sob o ponto de vista das operárias – a
coisa é mais complicada.
No contexto da forte “pressão” patronal por produção e
qualidade o ofício de cortador encontra-se em uma
posição potencialmente colidente com a posição das
costureiras. Os conflitos entre eles ocorrem amiúde em
decorrência dos defeitos que eventualmente apareçam nas
peças. Alguns dos processos de confecção da peça podem
acarretar os mesmos defeitos – por exemplo, o corte e o
overlock, ambos podem “comer a peça” (isto é, cortar o
tecido além do devido, tornando a peça mais estreita do
que o modelo). De maneira que, quando a supervisora
encontra uma peça “comida” ela vai até a overlockista e
mostra o defeito. A costureira, por sua vez, pode se
defender dizendo que o defeito veio do corte. Por seu
turno, o cortador pode alegar o contrário, defendendo-se
igualmente. Como os dispositivos de vigilância não têm a
precisão e a onipresença diante de todas as tarefas dos
operários, mas funcionam antes como instauradores da
57

sensação de vigilância integral segundo o modelo
panóptico (Foulcault, op. cit.) sobre o trabalhador, abrese,
então, a possibilidade de um impasse entre a palavra
do cortador e a da costureira – muitas vezes com o
prestígio do primeiro pesando mais na opinião patronal
que, por sua vez, atribui o defeito ao lado mais fraco, a
saber, às costureiras.
Estão dadas, por conseguinte, as condições sob as quais o
processo produtivo pode incidir nas relações sociais e nas
práticas de sociabilidade entre os operários. Obviamente o
defeito na peça abre a possibilidade de conflito,
condiciona-o, mas não determina que inexoravelmente
haverá desavença entre cortadores e costureiras. Não
obstante, este parece ser um caso particular, “mas
particularmente freqüente”, para empregar, uma vez mais,
a expressão de Bourdieu. As discussões beiram, muitas
vezes, o desrespeito e se caracterizam com freqüência
pela presença de ofensas pessoais. “Tem muita coisa que
rola entre o cortador e a costureira que você não pode
escrever aí não” – adverte-me uma informante – “A coisa
não tem muito respeito não!”.
Voltamos, portanto, ao problema das diferenças entre as
posições relativas do mecânico e do cortador frente ás
costureiras. A distância do mecânico em relação a estas
em decorrência de seu caráter itinerante, se converte em
proximidade por conta do relaxamento da vigilância no
regime de exceção que se instaura por ocasião da quebra
da máquina. Nesse sentido – e considerando-se também
que o mecânico está ali para ajudar a costureira,
consertando sua máquina – as estruturas objetivas da
relação mecânico/costureira condicionam condições mais
favoráveis ao clima lúdico que então se constitui.
Ao contrário, a proximidade entre cortadores e costureiras
é convertida em distância pelo regime de vigilância que
constitui regra nos momentos ordinários do trabalho nas
salas de costura. Esta distância, por seu turno, é
duplamente reforçada pelo caráter mesmo do processo
produtivo de lingerie e pela “pressão” pela qualidade que,
eventualmente, acarreta acusações mutuas entre
cortadores e costureiras. Destarte, as estruturas objetivas
que fazem a mediação das relações de trabalho entre
ambos condicionam, neste caso, condições pouco
favoráveis ao estabelecimento da ludicidade e da
sociabilidade. Entretanto, parece ter ficado evidente que
mecânicos e cortadores compartilham uma característica
estrutural importante – a saber, o fato de que ambos
constituem personagens invariavelmente masculinos e,
58

também invariavelmente, ocupantes de postos mais bem
posicionados na configuração hierárquica de uma sala de
costura relativamente às costureiras.
Entre as próprias operárias, contudo, observamos
diferenciações internas. Mas, neste caso, as diferenças são
de ordem estritamente profissional – ligadas à natureza de
cada especialidade e à menor ou maior valorização
patronal de cada uma delas. Mas dificilmente elas
extrapolam, no processo produtivo individualizado, para o
campo das relações pessoais, como eventualmente pode
ocorrer com os cortadores. A imagem mais regular que eu
posso fornecer da vida cotidiana das costureiras de
lingerie que trabalham no processo produtivo
individualizado é aquela que nos foi apresentada por
Lúcia – de intensos laços de solidariedade operária, de
freqüentes práticas conjuntas de lazer e sociabilidade e
(algo que ela não mencionou) de pequenas associações
temporárias de ajuda mútua. Este é o caso das “caixinhas”
que as costureiras com freqüência organizam. Elas
consistem em arrecadar uma pequena quantia em dinheiro
de cada companheira de trabalho para que, a cada mês,
uma delas possa ter acesso ao valor correspondente à
soma das contribuições. O tempo de duração destas
associações é, portanto, o número de meses
correspondentes ao número de participantes da
“caixinha”. Amiúde este tipo de acordo é feito para
presentear as aniversariantes, para comprar produtos de
beleza, etc. Destarte as diferenças internas entre as
costureiras não parecem incidir de um modo expressivo,
no sistema de gratificações individualizadas, sobre suas
relações de solidariedade e suas práticas de sociabilidade.
Para entendermos em que consistem estas diferenciações
precisamos olhar, uma vez mais para o processo
produtivo.
No processo de produção por gratificações
individualizadas a costureira recebe, além de seu salário,
uma gratificação correspondente ao percentual de
produtividade que ela tenha fornecido ao patrão ao longo
do mês. Teoricamente o máximo é determinado por uma
gratificação de cem por cento de produção. Entretanto,
como veremos, esta gratificação individualizada pode, na
prática, extrapolar os cem por cento, chegando
eventualmente até mesmo a cento e vinte por cento. Além
disso, cada costureira recebe um prêmio extra por
qualidade caso ela não apresente defeitos na sua operação
que extrapolem um número máximo determinado pelos
supervisores. Mas ambas as gratificações são
59

individualizadas e não incidem sobre a remuneração de
outra companheira de trabalho. Na Triumph International
as costureiras se dispõem nas máquinas que ficam
organizadas lateralmente, ao longo de toda a extensão de
uma esteira eletrônica típica dos processos industriais
caracterizados genericamente como fordistas. Ali cada
costureira retira caixas com peças de lingeries nos
estágios de montagem correspondentes a cada
especialidade das costureiras. Nas demais fábricas de
Nova Friburgo não encontramos a esteira eletrônica.
Neste caso as máquinas são dispostas em fila e as caixas
vão passando de mão em mão até o processo final de
confecção do lingerie. Já vimos em que consiste o
trabalho do cortador, a primeira etapa da confecção do
lingerie. Sigamos agora este itinerário das peças, a partir
do trabalho das costureiras 62 .
A montagem da peça de lingerie é feita pela costureira de
máquina de overlock. Aos olhos de um observador
externo este poderia ser considerado um dos
procedimentos mais importantes de todo o processo
produtivo de uma sala de costura. Porquanto é aqui que as
partes soltas do tecido são combinadas, formando a
estrutura básica da peça que, em seguida, carece apenas
da aplicação de elástico e do acabamento. Entretanto, não
é este o caso; em primeiro lugar, de um modo subsidiário,
pela simplicidade 63 do trabalho comparativamente às
62 Embora o percurso descritivo deste itinerário possa dar a impressão do contrário não se tratam, certamente,
de fases que se sucedem em uma escala diacrônica, mas que coexistem sincronicamente na sala de costura.
“A observação de determinado quantum de matéria-prima, por exemplo, de trapos na manufatura de papel
ou de arame na manufatura de agulhas, mostra que ela percorre, nas mãos dos diferentes trabalhadores
parciais, uma seqüência cronológica de fases de produção até chegar a sua figura final. Mas se observarmos
pelo contrário a oficina como um mecanismo global, vemos que a matéria-prima se encontra
simultaneamente em todas as suas fases de produção de uma vez. Com uma parte de suas muitas mãos
armadas de instrumentos, o trabalhador coletivo, formado pela combinação de trabalhadores detalhistas,
estira o arame, enquanto simultaneamente com outras mãos e outras ferramentas o estica, com outras o
corta, o aponta etc. De uma sucessão no tempo, os diversos processos graduais transformam-se em uma
justaposição no espaço.” (Marx, 1983:272-273).
É interessante notar que a caracterização de Marx das especialidades como “trabalhadores detalhistas”
coaduna-se com as definições bem marcadas das fronteiras entre as especialidades, no sistema de produção
individualizado. O que deixa de ocorrer com a coletivização da produção onde as muitas mãos do
“trabalhador coletivo” de Marx passam todas a “organelas” polivalentes de cada “célula” de produção. A
“célula” representa, por conseguinte, uma parte holográfica que ilustra a estrutura da própria sala de
costura. É interessante notar a semelhança desta estrutura com a noção de “rede” (Boltanshi & Chiapello,
2002) que foi incorporada ao discurso empresarial por meio de uma leitura mercadológica do discurso
científico. No caso particular do sistema de produção em “célula” é possível ver semelhanças significativas
com a obra de Fritjof Capra, particularmente em Capra, Fritjof. 1996. A Teia da Vida: uma nova
compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix.
63 As noções de “simplicidade” ou “complexidade” das operações realizadas pelas costureiras de roupas
íntimas apresentam uma certa ambigüidade e dependem do ponto de referência a partir do qual elas são
consideradas. De todo modo, o discurso da simplicidade/complexidade incide muito pouco (salvo no caso
60

tarefas das demais costureiras de acabamento; em
segundo, e mais fundamentalmente ainda, em decorrência
do fato de esta ser uma tarefa ligada à montagem bruta do
lingerie – que se opõe aos processos de acabamento que
agregam a beleza e o luxo da peça. Isso confere um status
social mais elevado às costureiras que trabalham nesta
última etapa da confecção do lingerie.
Se no trabalho do cortador a responsabilidade em não
estragar o tecido, “comendo a peça” se encontra
potencializada pelo risco de danificar uma grande
quantidade de material – visto que, após o trabalho de
“enfestar”, ele corta centenas de peças em uma única
operação; no trabalho da overlockista a responsabilidade
se dissolve pela quantidade de peças que ela produz.
Assim, o risco de danificar o material se reduz ao risco de
“comer” algumas peças, mas não o lote inteiro como pode
ocorrer no caso do cortador. Desta maneira, da mesma
forma que esta operária ocupa um lugar intermediário sob
o ponto de vista estrito do processo produtivo (cabendo a
ela a execução do trabalho que se segue ao corte e que
precede o acabamento), do ponto de vista da hierarquia
social da sala de costura ela se encontra em uma posição
homóloga. Seu status é, portanto, intermediário. Acima
delas, o corte e o acabamento que, por motivos diferentes
(o corte pela “responsabilidade” com a qual é investido; o
acabamento pelo valor, por assim dizer, estético que ele
agrega ao produto) são investidos de maior prestígio aos
olhos do patrão; abaixo, as embaladeiras e as ajudantes,
por sua vez, menos valorizadas na hierarquia fabril.
A costureira de overlock pertence, pois, a um grupo de
trabalhadoras que realizam operações absolutamente
indispensáveis e que, não obstante, não possuem o devido
prestígio. Por ocasião de um período de demissões em
grande escala, as operárias deste grupo estarão certamente
sob um risco mais acentuado que a as costureiras de
acabamento 64 .
Além da montagem da estrutura básica de uma peça pela
costureira de Overlock, o trabalho que precede o
acabamento compreende também as operações da
costureira de Interlock. Trata-se da etapa de aplicação de
elástico no lingerie, um trabalho preliminar ao
da costureira de Travet) na determinação do maior ou menor valor das especialidades, no interior de uma
sala de costura.
64 Não obstante, este não é o único critério para o ordenamento hierárquico das demissões. O tempo de
serviço obviamente é um fator determinante a este respeito.
61

ebatimento na máquina Três Pontos, já considerado uma
intervenção de acabamento.
O que foi dito acerca do status social da costureira de
Overlock serve parcialmente para o caso daquelas
operárias que trabalham na Interlock. Também esta é uma
operação intermediária no processo produtivo tanto
quanto na hierarquia social da sala de costura. Aqui
também o risco de “comer a peça” encontra-se dissolvido
pelo número de peças produzidas. O que não permite às
trabalhadoras deste grupo a evocação do argumento da
“responsabilidade” como mecanismo de negociação
salarial, como o fazem os cortadores. Por outro lado, esta
é similarmente uma parte do processo que precede as
intervenções mais valorizadas de acabamento.
Há, entretanto, um aspecto que diferencia as costureiras
de Interlock das operárias do Overlock. A saber, o fato de
que há modelos de peças que prescindem inteiramente do
trabalho daquelas, permanecendo, por seu lado,
absolutamente indispensável o trabalho da overlockista. É
que no caso particular de certos modelos o elástico é
aplicado diretamente pela costureira da máquina Três
Pontos, acelerando o processo. Há também os casos de
modelos de lingerie que não levam elásticos. Não
obstante, este fato não confere à costureira de Interlock
um status inferior à de Overlock. Curiosamente há mesmo
casos de “confecções” nas quais a interlockista é ainda
mais valorizada que a trabalhadora do Overlock – talvez
em decorrência de sua maior proximidade das tarefas de
acabamento.
“Esta coisa da gratificação e de qual costureira vale mais varia de acordo
com cada confecção. Para dona Silésia (patroa), por exemplo, a
overlockista era a que menos prestava. Ela dizia que costureira de
Overlock se acha em qualquer lugar. As costureiras de Interlock eram
mais consideradas lá.” (Costureira, 35 anos).
Existe, portanto, uma oscilação na configuração
hierárquica de uma sala de costura que corresponde aos
diferentes modelos de lingerie produzidos por cada
fábrica em particular. Confecções que adotem um grande
número de modelos que dispensam a Interlock conferem,
curiosamente, um status homólogo entre as costureiras
desta máquina e a overlockista. Fábricas que privilegiam
modelos com elástico aplicado pela Interlock, por sua vez,
concederão maior prestígio a tais costureiras
comparativamente às operárias de Overlock. Em nenhum
62

caso, entretanto, a overlockista será mais valorizada que a
costureira de Interlock ou qualquer outra costureira.
Em contraposição a este quadro das costureiras de
Overlock e Interlock encontramos os processos
imediatamente posteriores do acabamento. Durante a
maior parte da década de 1990 a operária de maior
prestígio social no interior de uma sala de costura era a
costureira da máquina de Três Pontos. O acabamento de
qualquer modelo de lingerie luxuoso e sofisticado, aquele
produto marcadamente de exportação, era realizado por
esta trabalhadora. A complexidade da operação, e mais
fundamentalmente ainda o valor que ela agregava ao
produto conferiam à costureira de Três Pontos o lugar
mais elevado, dentre as demais operárias, na hierarquia
econômica e social de uma sala de costura.
“Até bem pouco tempo atrás, era muito difícil um patrão demitir uma
costureira de Três Pontos. E ainda hoje ela é muito valorizada”.
(Consultora de moda íntima do SENAI).
Esta condição garantia a ela um poder de negociação
salarial frente aos patrões amiúde mais reduzido entre as
demais operárias (exceção feita para a costureira de
Colarete).
“A costureira de Três Pontos é aquela que, se não estiver satisfeita com
alguma coisa, chega pro patrão e diz que vai embora. Aí ele com certeza
chega pra ela e propõe um aumento no salário. Eu era esta costureira!”
(Costureira aposentada, 49 anos).
Hodiernamente o prestígio da costureira de Três Pontos é
dividido com a costureira de Colarete. Trata-se de dois
modelos distintos de acabamento que se alternam no
mercado como mais valorizados economicamente. O
trabalho da costureira de Três Pontos consiste em
rebater 65 o elástico aplicado na peça pela costureira de
Interlock. Além de dar maior fixação ao elástico a
65 No contexto da exaltação estética do luxo e do acabamento da “moda íntima” friburguense é tentador
especular teoricamente sobre o potencial simbólico do termo “rebater”. Para Deleuze e Guatarri este termo,
tal como traduzido por Georges Lamazière, parece assumir o sentido de uma obliteração da agência humana
– como, por exemplo, quando eles dizem que o capital se “rebate” sobre a produção: “Tudo parece
(objetivamente) produzido pelo capital enquanto quase-causa. Como diz Marx, no começo os capitalistas
têm necessariamente consciência da oposição do trabalho e do capital, e do uso do capital como meio de
extorquir sobre-trabalho. Mas logo se instaura um mundo perverso enfeitiçado, enquanto o capital faz o
papel de superfície de registro que se rebate sobre toda a produção”. In Deleuze, Gilles & Guattari, Félix.
1976. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago Editora LTDA. (p. 24, grifo meu).
Com efeito, a operação de rebater, realizada pela costureira de Três Pontos, consiste em dobrar o elástico
para a parte interna da peça de modo a esconder a costura feita pela interlockista. Ora, de maneira homóloga
ao processo produtivo, o acabamento, o luxo e o valor estético agregados à peça pela costureira de Três
Pontos se rebate sobre o trabalho não apenas da interlockista, mas da overlockista e da costureira de Travet,
concedendo a estas três operárias um mérito inferior na agregação do valor final do lingerie, sob o ponto de
vista patronal.
63

costureira de Três Pontos confere maior beleza à peça por
lhe aplicar uma costura em zig-zag muito valorizada no
mercado da moda. Até aqui o maior prestígio da
costureira de Três Pontos foi considerado como um efeito
do dispositivo de distinção (Bourdieu, op. cit.) que a
exaltação estética do acabamento constitui. Embora este
me pareça um argumento razoável para a interpretação
das hierarquias internas de uma sala de costura, um outro
aspecto, mais confuso, aparece também eventualmente.
Trata-se da questão da complexidade da operação. A este
respeito o discurso das costureiras parece apresentar
certas ambigüidades.
Entrevistador: “O trabalho na Três Pontos é mais difícil que nas
demais máquinas?”
Entrevistada: “Não, se a costureira tem prática, não é mais difícil
não. Você diz para aprender?”
Entrevistador: “Sim”.
Entrevistada: “É, para aprender é mais difícil, porque nas outras
máquinas têm três agulhas também, mas é tudo na parte de cima.
Na Três Pontos, têm uma agulha embaixo. Você tem que saber
regular bem a máquina porque senão a linha arrebenta toda hora.
Tem que ter uma mão boa também para passar a costura sobre o
elástico. Então, para aprender é mais difícil sim”.(Entrevista com
uma costureira polivalente – cortadora, overlockista,
interlockista, e costureira de Três Pontos.).
A ambigüidade da resposta, segundo a interpretação da
própria entrevistada, corresponde à variação de pontos de
referência a partir dos quais a pergunta pode ser feita. Se
perguntarmos sobre a complexidade da costura de Três
Pontos tendo por referência o processo em si mesmo,
então a resposta é sim, o processo é mais difícil de
aprender. Mas, do ponto de vista da produção, “se a
costureira tem prática”, a operação é como as demais. Não
ser mais complexa que as demais, neste último sentido,
quer dizer que a costureira de Três Pontos pode dar tanta
produtividade quanto as outras. Ou melhor, ela pode dar
uma produção sobremodo superior em termos
quantitativos que certas costureiras, em especial a
costureira de Overlock. Desta maneira, quando a
entrevistada afirma que o processo não é mais complexo
que os outros, podemos interpretar esta declaração como
uma desautorização das maiores gratificações concedidas
a esta operação. Com efeito, ela continua:
“Se uma confecção tem uma máquina de Três Pontos, uma
Interlock e uma Travet, então ela vai ter que ter umas seis
máquinas de Overlock para dar conta de toda a produção. O que
64

uma overlockista produz em um dia inteiro, a costureira de três
pontos rebate em uma hora.” (ibidem).
Desta forma a exaltação estética que valoriza o luxo e
o acabamento converge com outros interesses patronais.
Por exemplo, o interesse em reduzir ao máximo o salário
da overlockista por tratar-se da especialidade com maior
número de operárias em uma sala de costura. A
entrevistada defende, pois, a igualdade de complexidade
entre as várias operações como um meio de questionar
estes interesses patronais. Nesse sentido preciso, ela
parece mobilizar, em sua fala, toda a sua “competência”
(Boltanski, 1990, op. cit.) técnica para a formulação de
uma “justificação crítica” (ibidem) de seu ponto de vista,
segundo o qual as maiores gratificações para as
costureiras de acabamento não se justificam sob nenhum
aspecto. Daí a ambigüidade de seu discurso que, apesar de
tudo, reconhece a maior dificuldade no aprendizado da
costura de Três Pontos, mas que uma vez aprendido, é
como os outros ou até mais fácil (leia-se mais rápido) do
ponto de vista da produtividade que a costura de
Overlock, por exemplo. A operação da overlockista é,
desta maneira, mais simples, mas igualmente mais
demorada. Sob o ponto de vista operário, um processo
mais demorado deveria ser premiado com uma
gratificação por produtividade mais elevada; na lógica
patronal, entretanto, processos mais lentos implicam em
um quantitativo maior de operárias naquele processo
mesmo e, por conseguinte, em precarização do trabalho
daí decorrente.
O prestigio das costureiras de lingerie aos olhos
patronais está subordinado às oscilações do mercado da
moda – por sinal, um setor sobremodo volúvel. O único
aspecto relativamente constante a este respeito é que
aqueles processos ligados ao acabamento da peça são
tidos por mais nobres que os demais. Desta forma, se tudo
que foi dito acerca do status social da costureira de Três
Pontos serve similarmente para a costureira de Colarete
há, entretanto, que se considerar uma ligeira alternância
assimétrica entre o prestígio de ambas, com uma
vantagem desta última nos dias de hoje. Esta alternância
corresponde a uma inconstância bi-polar do mercado da
moda no que diz respeito á valorização de dois modelos
de acabamento do lingerie. Se este mercado concede
maior valor ao acabamento em zig-zag (como era o caso
durante a década de 1990) disto decorre uma leve
preeminência da costureira de Três Pontos; por outro lado,
se o chamado “sanduíche” constitui o modelo de
65

acabamento de maior prestígio entre os estilistas e
compradores, segue-se que a costureira de Colarete passa
a ser “a menina dos olhos do dono da confecção”:
“O valor social de cada costureira depende da tendência do mercado da
moda, de que tipo de modelo está em alta. Hoje em dia, a ‘menina dos
olhos’ do dono de uma confecção é a costureira de Colarete”.
(Consultora de moda íntima do SENAI).
A costureira de Colarete trabalha sobre os modelos de
lingerie que não levam elásticos. Portanto, há uma relação
de status inversamente proporcional entre ela, por um
lado, e as costureiras de Interlock, por outro. Em períodos
de grande valorização de modelos com acabamento em
“sanduíche” estas últimas podem freqüentemente ser
deslocadas para as máquinas de Overlock ou alguma outra
função no interior da sala de costura.
O trabalho da costureira de Colarete consiste em
aplicar uma bainha de malha na peça. O tecido da bainha
é dobrado sobre os dois lados (interno e externo) das
extremidades do lingerie lembrando o formato de um
sanduíche, daí o nome com o qual este acabamento é
batizado. Conforme indicado nas linhas precedentes, as
operárias de “moda íntima” tendem a enfatizar, em suas
descrições dos processos produtivos, menos a
complexidade da operação que sua maior velocidade ou
morosidade na execução. O seguinte trecho constitui a
resposta de uma costureira de Colarete à minha questão
sobre a complexidade de seu trabalho.
“Depois que se aprende, todo processo é a mesma coisa. Não tem um
mais difícil que o outro. A Colarete, como a Três Pontos, tem suas
dificuldades para se aprender. A Colarete não tem que colocar a caixa de
bobina em baixo como a Três Pontos, mas tem que tomar cuidado para
não franzir a peça contra a parede da máquina. Então você tem que ter
uma mão boa para regular a costura certinho, né. Mas depois que se
aprende não tem processo mais difícil que o outro. Tem processo mais
demorado, como o Overlock, isso tem.” (Costureira da Filó, 45 anos).
Vê-se, pois, que a forte “pressão” patronal por produtividade marca a maneira pela
qual as costureiras interpretam seu próprio trabalho. Destarte, a complexidade constitui um
problema reduzido ao momento da aprendizagem do ofício, e deixa rapidamente de o ser
66

frente ao problema constrangedor da necessidade em se fornecer cem por cento de
produtividade. Também a este respeito a costureira de Colarete é beneficiada
comparativamente à costureira de Overlock, porquanto (lembremos o depoimento de uma
costureira polivalente registrado na página 59 que, embora referindo-se à máquina de Três
Pontos, serve inteiramente também para a Colarete) o montante de peças que a primeira
produz em uma hora corresponde a um dia inteiro de trabalho da última. É verdade que a
soma de peças correspondentes a cem por cento de produtividade varia conforme a
velocidade de cada operação. Desta maneira, se uma costureira de Overlock leva um dia
inteiro para produzir o que sua colega da Colarete produz em uma hora o montante de peças
equivalentes a cem por cento para a produção desta última deverá ser oito vezes maior que
o da primeira. Contudo, conforme podemos ver no depoimento que serve de epígrafe a esta
dissertação, o cálculo matemático referente à determinação da produtividade tem uma
margem de imprecisão que freqüentemente beneficia os processos mais velozes. Por vezes,
as costureiras de Overlock têm maior dificuldades em atingir uma produção de cem por
cento. De modo que a costureira de Colarete além de ter determinado em seu favor uma
alíquota de gratificação mais elevada, tende a encontrar dificuldades menores para alcançar
a gratificação máxima.
Por fim, ao cabo dos processos de acabamento
mencionados, o lingerie entra em sua última etapa
de confecção com a costureira de Travet. Amiúde as
confecções de roupas íntimas de Nova Friburgo
estabelecem uma alíquota de gratificação baixa para
a costureira da máquina de Travet. Os motivos que
justificariam este fato, sob o ponto de vista patronal,
precisam ser investigados com base nos critérios
que até agora orientaram as interpretações
precedentes. E, não obstante, tais critérios não
parecem apontar nenhuma possibilidade
interpretativa coerente. Vejamos em que consiste o
trabalho destas operárias.
É possível fazer fundamentalmente duas
operações na máquina ora referida: 1-reforçar a
costura de certas partes do lingerie – uma
intervenção vinculada á montagem bruta da peça; 2-
aplicar o lacinho 66 que freqüentemente
66 Há também, com freqüência, uma maquina específica para a aplicação do lacinho. Mas esta operação é
também amiúde feita pela própria costureira de Travet. Pelas semelhanças do modo de execução e pelas
67

complementa os demais processos de acabamento
da maioria das peças. No primeiro caso, estamos
lidando certamente com uma função de reduzido
valor social e, conseqüentemente, econômico, sob o
ponto de vista dos critérios patronais apresentados.
No último, seria coerente supor, com base nos
mesmos critérios, que a referida operação de
acabamento tenderia a ser gratificada com uma
alíquota equivalente aos processos da montagem do
lingerie considerados mais nobres. Ocorre que a
lógica do Capital não obedece aos mesmos critérios
de não-contradição que fundamentam a lógica
clássica. Aqui uma mesma operação, sob certas
condições e conforme os interesses patronais, pode
ser, a um só tempo, nobre e grosseira.
Nesse sentido, é o argumento da complexidade
– que até aqui desempenhou um papel subsidiário
(subordinado à exaltação estética que confere maior
valor às atividades de acabamento) às demais
justificativas patronais – o que justifica a
desvalorização do trabalho da costureira de Travet.
E isso tanto do ponto de vista da velocidade do
processo – isto é, de seu potencial produtivo –;
quanto da perspectiva da socialização da operária –
ou seja, de seu aprendizado. Sob ambos os aspectos,
o trabalho na máquina de Travet é considerado de
relativa simplicidade no conjunto das operações que
lhe são inerentes.
Destarte, a lógica argumentativa sub-reptícia de
justificação do baixo valor social da costureira de
Travet não se coaduna com nenhuma das linhas de
legitimação tácitas das hierarquias internas de uma
sala de costura. Se, por um lado, não se trata aqui da
responsabilidade que, por exemplo, confere um
elevado status ao ofício de cortador, por outro, o
risco de “comer a peça” não é menor entre as
costureiras de Travet do que entre qualquer outra
operária. Ademais, embora a aplicação de lacinho
constitua um mero complemento dos processos de
acabamento mais apreciados no campo da moda,
nem por isso ela deixa de ser uma operação ligada à
fase de acabamento da peça. Por outro lado, as
baixas gratificações desta operária não acompanham
a lógica da precarização do trabalho que parece
equivalências de prestígio julguei que uma descrição da costureira da máquina de lacinho seria redundante
neste relato.
68

subjazer à reduzida remuneração da overlockista – a
saber, a lógica segundo a qual quanto maior a
demanda de operárias de uma certa especialidade,
tanto menor deverá ser a alíquota de sua
gratificação. Sob este ponto de vista, as condições
das costureiras de Overlock e Travet diferem entre
si – no primeiro caso nos deparamos com a
especialidade mais numerosa (por isso mesmo
desvalorizada) de uma sala de costura, no segundo,
trata-se de uma função que não excede em nada o
quantitativo das especialidades modais. O caso da
costureira de Travet constitui, por conseguinte, um
paradoxo se o cotejamos com as demais operações
de acabamento (melhor posicionadas na
configuração hierárquica de uma “confecção”),
tanto quanto relativamente às especialidades a esta
equivalentes em prestigio social, como a
overlockista.
Completando o quadro das trabalhadoras de uma
sala de costura de lingerie encontramos, em último
lugar na distribuição assimétrica de status, as
ajudantes e embaladeiras. Embora o caso destas
últimas operárias não constitua objeto fundamental
desta investigação, importa esboçar rapidamente sua
condição no interior de uma sala de costura.
Notadamente, porque é a posição destas operárias o
que justifica minha caracterização anterior das
costureiras de Overlock, Interlock e Travet, como
ocupantes de uma posição intermediária na
configuração hierárquica de uma fábrica de lingerie.
É em relação àquelas que estas últimas desfrutam de
uma condição mais confortável no interior deste
universo social, encontrando-se, contudo, abaixo de
todas as demais especialidades.
Não obstante, mesmo aqui esta condição mais
cômoda das operárias de Overlock, Interlock e
Travet não é absoluta. Mormente em decorrência da
condição de aprendiz que freqüentemente
caracteriza a categoria das ajudantes e embaladeiras.
Amiúde estas trabalhadoras são de uma faixa etária
menor que as costureiras, até mesmo na Filó, que
passou dezoito anos sem abrir contratações para
profissionais da costura. De maneira que, muitas
operárias ingressam em uma “confecção” como
ajudantes ou embaladeiras no intuito de aprenderem
o ofício de costureira. Destarte, uma ajudante da
costureira de Três Pontos, por exemplo, pode muito
69

em aprender as operações específicas desta
especialidade e, eventualmente, ascender na
hierarquia social da fábrica para além da posição
das costureiras de Overlock, Interlock ou Travet. A
respeito da condição de aprendiz das embaladeiras e
ajudantes – como também das costureiras, já que há
uma tendência crescente ao estímulo da polivalência
e, portanto, ao aprendizado de todas as
especialidades de costura por parte das operárias de
lingerie – o discurso nativo apresenta também um
componente moral muito marcado.
“Têm muita ajudante que eu conheci que era mais velha
que eu. Que passou a vida como ajudante. Agora, se a
pessoa tiver boa vontade pra aprender, ela aprende.
Normalmente as ajudantes que querem, passam a
costureiras. Como as costureiras também, se quiserem
aprender a trabalhar em várias máquinas elas aprendem.
Mas tem que ter boa vontade”.(Costureira polivalente 35
anos, ex-embaladeira, os grifos são meus e correspondem
às entonações marcadas de minha entrevistada.).
O discurso da “boa vontade” aparece como
argumento de legitimação e de auto-valorização do
trabalho das costureiras como também de seus
maiores rendimentos comparativamente às
ajudantes. Em linhas gerais, estas últimas recebem
um salário mínimo, com pequenas variações de uma
fábrica para a outra. Muitas, entretanto –
especialmente aquelas de faixas etárias mais baixas
– não se interessam em aprender o ofício de
costureira por encarar seu trabalho como
temporário.
Com efeito, algumas delas empregam-se neste
ramo, como meio exclusivo de arcar com as
despesas de uma graduação nas universidades
privadas locais. Similarmente ao caso do mecânico
e, certamente também, de certas costureiras das
gerações mais recentes, amiúde as ajudantes e
embaladeiras trabalham para custear seus estudos.
Este é, de fato, um fenômeno crescente no
município de Nova Friburgo em decorrência de dois
aspectos desarticulados entre si: 1- o relativo amplo
espectro de postos de trabalho no setor de moda
íntima local 67 ; e 2- um crescimento significativo de
vagas em universidades privadas, nos últimos anos.
67 A ampla oferta de empregos pelo setor de “moda íntima” e o ambíguo discurso empresarial da
“empregabilidade” das costureiras que o acompanha será tematizado ulteriormente.
70

Há, portanto, diferenças significativas entre a
condição das ajudantes e embaladeiras, por um lado;
e das costureiras de lingerie, por outro – de faixa
etária, de remuneração, de status no interior da
configuração hierárquica de uma sala de costura e,
mais fundamentalmente ainda, do sentido que cada
uma delas conferem ao seu trabalho (as primeiras,
ao contrário das últimas encarando sua condição
como temporária). De maneira que um relato
consistente sobre as ajudantes mereceria um
trabalho à parte. Por conseguinte, estas notas
doravante estarão concentradas exclusivamente
sobre o caso das costureiras de lingerie.
Esta longa descrição das etapas do processo
produtivo no sistema de produção individualizado
se presta a um objetivo simples. Evidenciar que, a
despeito de toda diferenciação interna do grupo de
costureiras de roupas íntimas – diferenciações de
prestígio que, entretanto, se plasmam a partir do
ponto de vista patronal – as relações de
sociabilidade operária descritas por Lúcia não
parecem ser significativamente afetadas, no sistema
de produção individualizado. Mas este fato só ficará
suficientemente claro quando o material apresentado
aqui puder ser cotejado com as reais práticas de
sociabilidade que serão apresentadas no fim deste
capítulo.
A individualização aqui não apenas difere da
acepção de Tarrail referida na nota 54 deste
trabalho, mas parece mesmo assumir um sentido
simétrico e inverso. Para Terrail, a individualização
se processa sobre as relações sociais das classes
operárias em decorrência de alterações nas
estruturas objetivas do capitalismo contemporâneo.
Aqui, ao contrário, são as estruturas objetivas do
processo produtivo que, pelo fato mesmo de serem
incorporadas pelas operárias sob uma forma
individualizada, não chegam a repercutir em suas
relações de solidariedade e em suas práticas de
sociabilidade.
Mas em que medida o inverso será verdadeiro? Em
outras palavras, uma coletivização dos dispositivos
de exploração da mão-de-obra das costureiras de
lingerie, tal como materializada no sistema de
“célula”, terá como contrapartida o processo de
“individualização” das relações sociais evocado por
Terrail? Olhemos, pois, primeiramente para tais
71

As alterações da década de 1990.
68 Foulcault, op. cit:131.
“células” de produção para, por fim,
problematizarmos as questões referentes à
“individualização”, à “privatização” ou à
perpetuação das tradições operárias coletivas.
O espaço das disciplinas é sempre, no fundo,
celular. 68
Em meados da década de 1990 uma palavra
começou a tirar o sono daquelas costureiras da
Triumph International que sobreviveram às
demissões de aproximadamente 600 companheiras
de trabalho – “célula”. Logo depois do fechamento
de grande parte das salas de costura de fábrica, as
poucas que sobraram receberam uma longa visita –
de cerca de um mês – dos técnicos de produção do
SENAI. O objetivo, implementar um novo processo
produtivo de “moda íntima” que pretendia, segundo
o vocabulário economicista por eles empregados,
“maximizar a produção e minimizar os custos”.
O primeiro passo destes técnicos foi ministrar
uma palestra para todos os profissionais que
trabalham em uma sala de costura no intuito de lhes
inculcar uma mensagem a um só tempo simples e
aterradora – “esqueçam tudo o que vocês sabem
sobre como funcionam estas salas” (Fala de uma
costureira de Três Pontos reproduzindo uma frase
dos técnicos). No caso específico das costureiras,
uma nova imposição ameaçava aquelas que não
chegaram a aprender a costurar em todas as
máquinas necessárias à confecção do lingerie, a
imposição da polivalência. De agora em diante
todas elas teriam que saber, e bem, realizar qualquer
processo de costura das salas, sob pena de demissão.
O tempo determinado para o aprendizado, as quatro
semanas que se seguiriam à data daquela palestra. O
discurso das costureiras evidencia que havia
ademais um agravante nesta imposição – a presença
dos técnicos do SENAI e seu discurso tecnicista que
expressava menos conhecimento de como funciona
uma sala de costura do que seu caráter pedante.
72

“Eles ficavam em cima da gente dando ordens, nos
apressando, nos corrigindo, falando com aquele ar de superior, com
palavras de efeito. Até as nossas supervisoras falavam baixinho
que eles eram insuportáveis. Então era difícil trabalhar, aprender a
costurar numa máquina como a Três Pontos com aquele pessoal em
cima da gente.” (Costureira da Trumph de 38 anos).
Desta maneira, a presença dos técnicos do
SENAI adicionou à pressão tradicional dos patrões
sobre as empregadas – “pressão” por produtividade
e por qualidade – uma segunda pressão
materializada na exigência de um enquadramento
comportamental das costureiras no interior dos
novos dispositivos de controle de qualidade e
produtividade, eles próprios dispositivos de controle
social. O seguinte depoimento – a mim fornecido
por uma ex-costureira da Triumph e da Cor da Pele
que acompanhou o processo de implementação do
sistema de “célula” pelo SENAI em ambas as
fábricas – sintetiza com clareza meridiana o ponto
de vista das operárias no que concerne à presença e
atuação dos técnicos:
“Primeiro eles fizeram uma palestra para explicar para os
patrões e para os empregados como funciona a ‘célula’. Depois
organizaram as maquinas (fizeram a manutenção, regularam
certinho). Aos poucos foram transferindo as costureiras para as
máquinas. Foram eles que, junto com os patrões, definiram quem
ia ficar em cada ‘célula’. Cronometraram para poder definir o
tempo padrão de cada operação, esta cronometragem nunca
funcionou. Primeiro porque, quando as costureiras chegavam a
atingir os cem por cento de produção o patrão ia lá e aumentava a
meta. Depois porque o pessoal do SENAI cronometrou muita coisa
errada também. Não sei se é errado sabe, é mania de agente de falar
que tava errado. Porque agente acha que atrapalha, porque agente
tá bem, tá numa boa, e chega um pessoal e diz que agente tem que
fazer de outro jeito, pra gente esquecer o jeito antigo de fazer. Aí
eles determinavam um tempo pra gente fazer aquela caixa de
serviço. E diziam que já tinham incluído o tempo pra ir ao
banheiro, o tempo do nervosismo (porque quando tem alguém
cronometrando agente fica nervosa, né), o ‘tempo de fadiga’ –
porque eles diziam que depois do almoço dava fadiga, eles tinham
explicação pra tudo, mesmo quando não sabiam direito do que
estavam falando. Mas o tempo que eles determinavam não dava
nem para fazer a peça. Tanto é que as meninas deixaram de beber
água para não precisar ir ao banheiro”.
Os pressupostos equivocados sobre os quais se
sustentam as estratégias de re-socialização dos
operários sob a perspectiva do novo sistema
73

produtivo têm por corolário a criação de novos
dispositivos de controle social disfarçados sob a
imagem de mecanismos de controle de
produtividade e qualidade. As novas metas de
produção, estabelecidas a partir de sistemas de
medição que desconsideram até mesmo as variações
orgânicas do corpo humano, as quais, por sua vez,
incidem sobre as variações na produtividade,
constituem um exemplo de mecanismos de controle
sobre o comportamento das operárias. Mecanismos
tão poderosos a ponto de eliminar até mesmo o
tempo para beber água e o tempo para ir ao
banheiro. Por sua vez, os mecanismos de controle
de qualidade não apresentam efeitos menos
devastadores sobre as costureiras. O quadro de
registro de qualidade da Triumph é um exemplo
paradigmático nesse sentido:
“Cada célula tem um quadro. Aí se tem um defeito, eles registram
no quadro de vermelho. Aí no outro dia, alguém vai lá olhar,
sempre vai alguém olhar, porque já está todo mundo sob pressão. E
rola aquele suspense – ih, colocaram vermelho na nossa célula.
Quem errou? Quem errou? Aí começa todo mundo a procurar
quem foi que fez aquele processo que está em vermelho. No
quadro não tem o nome de quem fez, mas o grupo sabe quem fez
aquele processo”. (Costureira da Triumph, 49 anos).
E não apenas o grupo sabe quem fez a peça com
defeito, mas similarmente os supervisores, embora
no sistema de “célula” estes últimos não precisem se
mobilizar muito para fiscalizar o trabalho das
costureiras, uma vez que elas próprias se
encarregam disso. Compare-se esta declaração de
minha informante com a seguinte análise
sociológica a respeito de um projeto de controle de
qualidade em empresas de alimento francesas:
“L’invisibilité et l’incertitude de l’effet de l’application d’une règle
comportementale sur la qualité d’un produit alimentaire accroissent
donc, aux sens des opérateurs, la caractère d’imposition sociale de
la règle. Il en résulte que les comportements sont jugés et
sanctionnés en termes de contrôle social plus qu’en fonction de
leurs effets supposés sur la contamination des produits. Tout se
passe comme si les attributs de la règle prenaient la place des
attributs et propriétés des produits.” (Dassa & Dominique, 1996:
31-32, grifo meu).
A declaração da costureira da Triumph ilustra de um
modo transparente a intensa “pressão” (um termo
que, na acepção nativa das costureiras traduz uma
experiência incorporada da exploração) pela
74

manutenção de um alto padrão de qualidade sobre
as costureiras de roupas íntimas. Uma “pressão” que
efetivamente não diz respeito apenas ao controle de
qualidade do lingerie, mas que, para além disso, se
manifesta concretamente sob a forma de um
dispositivo de controle social sobre as operárias.
Esta exigência, por sua vez, não se coaduna com
uma outra cobrança patronal que inexoravelmente
pesa sobre as operárias do setor – a manutenção de
altos índices de produtividade. As costureiras de
roupas íntimas de Nova Friburgo precisam, pois,
operar uma síntese de difícil obtenção – a saber, a
conciliação da quantidade com a qualidade.
“Organisation pour la productivité et organization pour la qualité
ne sont pas encore parvenus à leur totale compatibilité, tout se
passé comme s’il fallait encore choisir entre ces deux modèles. La
qualité n’est pás l’objet d’une priorité absolute. Le projet qualité
s’incrit dans une logique économique et marchande où la
concurrence sur la qualité s’ajoute mais ne se substitue pas à la
concurrence sur les prix”. (Ibidem: 32)
Desnecessário é dizer que a concorrência pelos
preços continua a obedecer à lógica da
produtividade, isto é, à lógica clássica da mais-valia
descrita nos escritos de Marx. E, com efeito, a
“célula” constitui uma tentativa patronal de
conciliar estes dois modelos – o da qualidade e o da
produtividade; o da disputa de mercado pela marca
de distinção característica da exaltação estética do
luxo e do acabamento, e o da “concorrência sobre os
preços”. Este novo método visa, por um lado,
equiparar a produção das diferentes especialidades.
Se uma overlockista não tem como produzir o
mesmo número de peças que uma costureira de Três
Pontos pode fazer, então esta última terá que se
encarregar de produzir a meta de peças diárias da
empresa, na sua própria máquina e, além disso,
complementar, na máquina de overlock, juntamente
com a overlockista, a produção das peças
correspondentes àquela meta.
“Se sou eu que estou trabalhando na máquina que vai ser
cronometrada, os técnicos do SENAI vão cronometrar a mim,
entendeu? Aí se eu fizer o trabalho em um determinado tempo,
vamos supor, dentro de uma hora eu faço tantas caixas. Aí todas as
costureiras vão ser obrigadas a fazer no mesmo tempo que eu
quando vir trabalhar naquela máquina. Aí eles dizem que dão o
desconto de banheiro, disso, daquilo, mas o que vale é o tempo que
você fez, aí você tem que se matar para conseguir fazer aquela
75

quantidade sempre. Aí, vamos supor, a saída de produção de uma
confecção são de dez caixas por dia, mas, de acordo com o tempo
padrão daquela máquina, uma costureira é capaz de fazer sete
caixas por dia. Aí a costureira que está trabalhando na Interlock
logicamente faz mais caixas que a overlockista. Então ela consegue
fazer as dez que tem que sair. Mas a overlockista só consegue fazer
sete. Então a que trabalha na Interlock faz as dez dela, só que ela
depende do trabalho da overlockista e então, no meio do dia, não
tem dez caixas para ela fazer. Ela faz então as dez dela e mais as
três que faltam na overlock. Às vezes uma costureira passa
elástico, ajuda a montar e ainda prega lacinho para completar a
produção dela. Porque como ela trabalha em geral em processos
mais rápidos, o número de operações que ela faz para dar cem por
cento de produção vai ser maior”. (Ex-costureira da Triumph, da
Soraya Lingeries e da Lucitex. Atualmente trabalha em casa pelo
sistema de “facção”).
Por outro lado, o sistema de “célula” objetiva
também, como corolário do processo descrito no
depoimento acima, eliminar a produtividade
excedente de uma costureira acostumada a fornecer
cento e vinte por cento de produção, por
conseguinte, reduzindo suas gratificações. No
sistema de gratificações individualizadas uma
operária poderia produzir quantas caixas
conseguisse, ao longo da jornada diária de trabalho.
Assim, freqüentemente ela recebia uma gratificação
correspondente a mais de cem por cento de
produtividade. Por outro lado, outras operárias
poderiam fornecer uma produção inferior a cem por
cento. Assim o trabalho da primeira, digamos na
máquina de Três Pontos, ficava emperrado porque a
costureira de Travet não dava conta de concluir
todas as peças vindas da primeira. De modo que
algumas caixas ficavam acumuladas para o dia
seguinte. No sistema de célula não é assim que
ocorre. Há uma meta de produção diária para cada
célula, suponhamos dez caixas. Quando a costureira
de Três Pontos chega às dez caixas em sua máquina,
ela para por aí e segue para a máquina de Travet
para ajudar a costureira desta máquina no
fechamento da meta. Desta forma, uma única
costureira pode, com freqüência rodar em três ou
quatro máquinas por dia para complementar a
produção coletiva de cem por cento. Daí a exigência
de que as costureiras sejam polivalentes na costura
do lingerie. Não há, portanto, a menor possibilidade
de uma costureira extrapolar individualmente os
76

cem por cento. E, como temos a oportunidade de ler
na seguinte fala de uma consultora de moda do
SENAI, do ponto de vista patronal este é o ideal que
se ajusta ao princípio mercadológico de
“maximização dos lucros e redução dos custos”:
“Existem fundamentalmente dois sistemas de produção: um que é
o sistema de linha, que é o sistema individual – eu vou ganhar por
aquilo que eu produzo, exclusivamente eu, não dependo de mais
ninguém; e o sistema de célula que é a premiação em grupo. Então
pra eu ganhar o salário X no final do mês eu dependo que você me
abasteça, na produção. Então ou é a premiação individual ou é a
premiação em equipe. Essa é a grande diferença. Individual aquelas
que são as melhores, as mais rápidas não querem nem saber se
você fez ou se você não fez, o importante é que no final do mês eu
vou ganhar. Agora, isso pra empresa não é bom, ela tem três
funcionárias muito boas e o restante não é bom. Então tem este
esquema de célula que você premia o grupo. Então pra mim é
importante que o pedido da loja Líder esteja pronto. Não me
interessa se alguma costureira não foi bem, eu quero que todo
mundo se esforce no mesmo limite. Então assim, umas adoram;
outras detestam. Porque aquela que ganhava cento e vinte por cento
de produção, ela era acima da média, ela não gosta, porque ela teve
que diminuir o ritmo dela pra ajudar a companheira que não era tão
boa quanto ela, né. Então existe uns atritos assim”. (Grifos meus).
Destarte, as alterações efetuadas nos sistemas de produção de lingerie tiveram por
principal objetivo patronal, de um lado, o enxugamento, por assim dizer, das gratificações
excedentes e, de outro, o aproveitamento efetivo de um sobre trabalho não aproveitado no
sistema anterior. Assim uma costureira que dava cento e vinte por cento de produção e que
recebia uma gratificação correspondente a esta produtividade teve que diminuir a produção
em sua própria especialidade para ajudar na produção daquelas colegas mais vagarosas ou
responsáveis por processos mais demorados. No processo de premiação individual o
montante de peças produzido por uma costureira muito rápida não era aproveitado
imediatamente, mas somente na medida em que os demais processos fossem se
completando. Na célula, ao contrário, não existe possibilidade de exceder os cem por cento
(e mesmo este percentual é muito difícil de alcançar) porque o cálculo de produtividade
considera o coletivo e também porque freqüentemente uma costureira não executa apenas
um processo, o que dificulta sua adaptação. De maneira que, na esteira uma costureira
rápida recebia, por exemplo, cento e vinte por cento de produção; na célula ao contrário,
seu sobre trabalho encarnado nos vinte por cento excedentes por um lado, não são
77

premiados, e, por outro, é aproveitado para suprir carências produtivas de outros processos
que, no sistema antigo, emperravam o aproveitamento deste sobre trabalho. Temos, pois,
por assim dizer, uma mais-valia de segundo nível. Isto é, ao processo tradicional de
expropriação de mais-valia, por meio da exploração do trabalho não remunerado pelo
salário, agrega-se um regime de exploração encarnado nas gratificações por produção. Aqui
além da parcela não remunerada do sobre trabalho compreendido pelos cem por cento de
produção, há ainda um trabalho supra-excedente (que supera os cem por cento) que é, a
partir da implementação do sistema de “célula”, empregado para cobrir os buracos deixados
pelas costureiras mais vagarosas. Literalmente certas costureiras trabalham e são
exploradas por duas.
Conforme vimos também, se as gratificações individuais desaparecem de cena no
sistema de “célula”, as gratificações coletivas não conseguem similarmente chegar à meta
de cem por cento. O depoimento arrebatado de Luzia, a presidente do Sindicato dos
Vestuários de Nova Friburgo, que serve como epígrafe a este trabalho já adianta as
estratégias patronais para impedir que as gratificações por produtividade alcancem o
máximo. Sempre que uma célula está atingindo uma meta determinada os supervisores
aumentam, por conta própria, o número de peças correspondentes a cem por cento. Esta
alteração, que não respeita nem mesmo o tempo padrão cronometrado pelos técnicos do
SENAI, pode ocorrer tantas vezes quanto o ritmo das costureiras possa agüentar. Mas isso
não é tudo. Outras estratégias patronais são empregadas no intuito de reduzir ao máximo as
gratificações. Vejamos a continuidade da fala de Luzia cuja primeira parte abre esta
dissertação:
“Por que na medida em que muda o método, na medida em que se
passa a exigir mais, na medida em que a sua necessidade te obriga
a fazer mais porque o salário, obviamente, não é reajustado
conforme o aumento cotidiano do custo de vida (e a empresa vem
perpetrando, a uns oito ou nove anos, um processo de
rebaixamento do salário dos empregados) então você se vê
obrigada a trabalhar cada vez mais pra conseguir suprir as suas
necessidades. E com isso você vai prejudicando sua saúde. E a
empresa não está nem um pouco preocupada com isso. E outro
fator, quando a célula está craque e consegue atingir as metas
determinadas pelos inspetores eles trocam de modelo. Tem umas
cinqüenta células em uma mesma sala. Cada célula tem em torno
de dez a doze empregadas. Aí esta célula conseguiu atingir os cem
por cento na produção, aquela também conseguiu. E aí o quê que
78

faz? Pega o modelo produzido em uma e passa pra outra e viceversa.
E aí obviamente elas vão ralar novamente para se adaptar ao
novo modelo. Se adaptou, troca novamente. Aí as costureiras
conseguem atingir a meta da empresa, mas não a sua meta pessoal
de conseguir uma boa gratificação por produção. As gratificações
por produção na esteira eram muito maiores. Foi uma mudança que
conseguiu aumentar a produção e diminuir as gratificações ao
mesmo tempo. Quem inventou este processo é muito esperto. Esta
é uma forma de controle muito grande da empresa sobre as
operárias. Sem que os patrões precisem se mexer a engrenagem
funciona perfeitamente. Os supervisores não precisam tomar
atitude nenhuma, não precisam chamar a atenção de ninguém
porque os próprios funcionários já se encarregam disso”.
A passagem de um processo produtivo que, para efeito meramente argumentativo,
poderíamos chamar de fordista para um outro que mistura um princípio de fragmentação da
produção por “facção” (que, também precariamente, poderia se chamar toyotista) com um
dispositivo de cooperação compulsória, acompanha-se de um reordenamento espaço-
temporal da produção. “A disciplina procede em primeiro lugar à distribuição dos
indivíduos no espaço”.(Foulcault, op. cit: 130). A fragmentação de uma grande esteira
produtiva, amiúde com mais de cem costureiras, em pequenas células produtivas, com dez
ou doze costureiras em cada uma é um excelente mecanismo de controle das operárias. Não
mais dispostas em filas (um antigo dispositivo espacial de vigilância), ao longo da esteira
de produção, as operárias a partir de agora podem ser identificadas de acordo com seu
pertencimento a uma célula, em meio a muitas. Trata-se, segundo me parece, de uma
classificação – ou da definição de “localizações funcionais” (Ibidem: 131) de acordo com
cada processo de montagem da peça –, de um “esquadrinhamento” e de um
“quadriculamento” (ibidem: 131) do espaço que engendra um inexorável dispositivo
“panóptico”, no interior do qual as operárias se sentem vigiadas durante todo o expediente.
O quadriculamento e a classificação das operárias não se dão apenas na distribuição
espacial da sala de costura. Processa-se igualmente por meio de um equacionamento entre
processos de montagem da peça (overlock, instalação de elástico, de bojo, etc.) e as
costureiras que correspondem a cada um dos processos. Desta forma, quem prega o elástico
é localizada na tabela de registro da produção (a tabela à que a costureira da Triumph se
refere na página 68 e 69) não pelo nome, mas pelo processo que realiza. Opera-se, portanto,
uma classificação no quadro de registro (um “quadriculamento”, segundo Foulcault) de
cada uma das funcionárias da sala de costura.
79

“As costureiras e as supervisoras conhecem todos os processos.
Então, por exemplo, se o defeito for na montagem, elas vão ver
essa parte aqui (me mostra partes do lingerie): o overlock, o fundo
que a overlockista prega. Se for o elástico que está com defeito, é a
interlockista, se for o lacinho, é a costureira de Travet. E assim por
diante. Aí vem um ticket dentro da caixa com tudo, montagem,
elástico, cava, aí uma costureira passa elástico na cintura a outra
passa na cava. Aí cada costureira é identificada por uma parte no
lingerie. Aí você acaba de fazer a caixa você corta o ticket que está
escrito tantos minutos. Vamos supor, às vezes para montar uma
caixa o ticket vem marcando cinqüenta minutos, uma caixa com
cem peças. Aí ali tem um lugar para você botar o nome e tantos
minutos que você tem que fazer aquela caixa. Aí você tem uma fita
adesiva, fininha, e aí arranca o ticket e cola ali, fez outra caixa,
arranca outro ticket e cola ali. No fim do dia você tem que ter
colados um número tal de tickets que corresponde a cem por cento
de produção. Os tickets vem colados em um cartão que vem dentro
da caixa. Aquela caixa passa na mão de todo mundo pra cada um
fazer seu processo. Cada um tira o ticket correspondente ao seu
processo”. (Vânia).
É, pois, por meio deste tickets que, em meio à lógica da polivalência, cada
costureira é identificada pelo processo que realiza. Além disso, como vimos o tempo é
também aí especializado e classificado segundo os processos diferenciais de produção de
partes de uma peça. O “tempo padrão” – ou a “elaboração temporal do ato” (Foucault, op.
cit: 138) – é um tempo ótimo de execução de um processo. A soma dos tempos padrões de
todos os processos de confecção de uma peça corresponde ao tempo padrão de produção de
uma peça. Este tempo, por seu turno, servirá de base para o cálculo do número meta de
peças a serem produzidas por uma célula, ao longo do expediente. O cumprimento da meta
corresponde a cem por cento de produtividade. Obviamente este é um tempo reificado, que
desconsidera variações físicas e emocionais das operárias. Esta elaboração temporal do
trabalho produtivo desconsidera, inclusive, sua própria norma. Daí que, como vimos, o
80

número meta de cem por cento seja alterado ao longo do expediente, caso a primeira meta
seja atingida antes do fim do dia. A extrapolação do número meta, de um ponto de vista
lógico, deveria ser remunerada com uma gratificação equivalente a mais de cem por cento
de produção. Em lugar disso, sob o ponto de vista da lógica patronal, eleva-se a alíquota
correspondente a cem por cento. “Importa extrair do tempo sempre mais instantes
disponíveis e de cada instante sempre mais forças úteis”.(ibidem: 140).
Ora, todo este processo microscópico de
fragmentação, especialização e quadriculamento
espaço-temporal da produção está crivado por
unidades de poder. Este processo é, ele próprio, o
discurso do poder incidindo na materialidade da
produção. É por meio destes dispositivos de poder
que se processa a docilização dos corpos destas
operárias, no tempo e no espaço. Opera-se então,
por meio do discurso da “reengenharia produtiva”,
uma atualização do paradoxo inerente à
modernidade e ao modo de produção capitalista –
qual seja, o liame entre “corpos dóceis” e “corpos
produtivos” (ibidem).
De fato, as alterações do processo produtivo do
lingerie, nas fábricas de Nova Friburgo, foram
inspiradas pelo discurso da “reengenharia
produtiva” pós-fordista. A lógica da reengenharia
evoca uma aspiração antiga, de certo pensamento
reacionário, de organizar as relações humanas por
meio de uma ideologia epistemológica característica
das ciências autoproclamadas exatas. O ideário da
“reengenharia” coaduna-se perfeitamente com as
reestruturações da acumulação flexível que visam
reduzir ao máximo os gastos do capital com a
remuneração da força de trabalho. Com efeito, para
Richard Sennet (2005: 56), “o fato mais destacado
da reengenharia é a redução de empregos”. Como
vimos na introdução deste trabalho uma das
primeiras medidas adotadas pela Triumph
International, em meados da década de 1990, no
sentido de retomar suas taxas de lucro então em
declínio, foi o fechamento de um percentual
majoritário de suas salas de costura e a demissão de
cerca de 600 costureiras.
A mudança mais importante desta versão local
da ideologia da “reengenharia” é a implementação
mesma do sistema produtivo batizado de “célula”. O
próprio processo de implantação deste novo método
81

encontra-se permeado pela aspiração de controle
positivista do comportamento dos operários. A
citação da fala de uma consultora do SENAI na
página 10 desta dissertação evidencia que tal
processo se fez acompanhar de “palestras
motivacionais” para as costureiras se adaptarem ao
novo modelo. Entretanto, o que não está dito é que
este caráter motivacional é perpassado por apologias
que visam inculcar nas operárias dispositivos de
controle de qualidade e de aceleração da produção
que, para serem eficazes precisam se tornar
dispositivos de regulação social. A “reengenharia
produtiva” se acompanhou, no caso específico das
grandes fábricas de lingerie de Nova Friburgo, de
práticas de re-socialização profissional que evocam
a noção comportamentalista de “engenharia de
formação”.
A noção de engenharia, tal qual ela aparece na seguinte frase de Dassa &
Dominique (1996: 27), se coloca nos antípodas das ciências sociais: “Dès lê départ,
l’assiciation de recherche sur l’usine ultra-propre avait accepté de disjoindre une partie
recherche d’explications d’une partie opérationelle en termes de recommandations et
d’ingénierie de formation”. Segundo esta formulação, a idéia de engenharia de formação
encontra-se assentada em quatro pressupostos. O primeiro deles é um “pressuposto
psicossociológico oriundo de uma interpretação empresarial das ciências sociais” (Ibidem:
27), que visa obter a adesão e o engajamento do pessoal chamado a realizar um
determinado projeto que implica em mudança de comportamento da equipe, do qual as
ditas palestras motivacionais constituem um exemplo.
Muitas das declarações fornecidas pelos consultores 69 acerca do processo de
socialização das costureiras ao novo sistema produtivo, bem como um quantitativo não
inferior de depoimentos das operárias que passaram pelo processo de treinamento
ministrado pelos quadros do SENAI; muitas destas falas, eu dizia, ilustram o segundo
pressuposto da noção de “engenharia de formação” – o “pressuposto social de
estigmatização” dos operários. Isto é, as responsabilidades pelas dificuldades na
implementação do sistema de célula são a priori imputadas à “incapacidade” das
costureiras de se adaptarem a mudança, à sua inflexibilidade – em contraposição à tão
69 De minha parte tive a oportunidade de conversar com duas consultoras patronais de moda íntima – uma do
SENAI, outra do SEBRAE.
82

venerada “flexibilidade” pós-fordista – à sua baixa qualificação do ponto de vista das novas
estratégias de produção patronal, etc.
A referida fala da consultora do SENAI a respeito das palestras motivacionais com
as costureiras expressa, de modo similar, a centralidade dos “pressupostos cognitivos”
(ibidem: 28) subjecentes às ações de mudança do processo produtivo – a saber, a tentativa
de fazer com que o operário conheça e, mais que isso, reconheça uma certa “verdade”
segundo a qual ele tem a obrigação de “pensar no ideal da empresa”, “que para eu (o
operário) receber meu salário no fim do mês a empresa tem que esta bem” –; bem como de
seus “pressupostos pedagógicos” (ibidem: 28) – quais sejam, as estratégias patronais de
treinamento de pessoal que se amparam fundamentalmente na idéia de “engenharia” de
formação profissional. Um conceito que pressupõe que as mudanças de comportamento são
ativadas em decorrência do “treinamento” e, quando muito (nos casos menos
comportamentalistas), de uma “tomada de consciência” dos princípios que fundamentam a
mudança. Por conseguinte, a noção empresarial de engenharia de formação ignora um
aspecto fundamental da teoria da ação – a saber, que o comportamento humano não é
guiado meramente (ou nem mesmo majoritariamente) pela ação da consciência, mas
orienta-se pelos aspectos incorporados das estruturas sociais no interior das quais a ação
acontece (Bourdieu, op. cit.).
Há também que se considerar as diferenças significativas que os procedimentos de
mudança produtiva implementados pelas empresas de lingerie de Nova Friburgo
apresentam em relação aos processos classicamente equacionados com o sistema pós-
fordista de produção. Por exemplo, a rigidez de horários claramente conservada – e até
mesmo, em alguns casos, radicalizada – por tais empresas. Assim, a Triumph, dentre o
conjunto de seus procedimentos de reestruturação produtiva, acabou com o sistema de dois
turnos (manhã e tarde) que era muito apreciado por um quantitativo elevado de operárias, e
implantou um único turno que se inicia ás 7:00 e termina às 17:00 horas, com exceção das
sextas-feiras, quando a jornada finaliza às 16:00 horas. Esta estratégia certamente constituiu
um “tiro no pé” da empresa, em seu intuito de mobilizar as costureiras a “vestirem a
camisa” de seu ideal. A queda das gratificações por qualidade e produtividade é outro
aspecto que não se coaduna com as modalidades de estímulo à auto-exploração das novas
formas de exploração da mão de obra operária. A agravamento das formas de vigilância e
83

fiscalização – inclusive mediante inspeção mútua das costureiras entre si – é sem dúvida
mais uma diferença comparativamente ao sistema genericamente chamado de pós-fordista,
posto que “liberdade” é uma palavra de ordem deste novo modelo (Sennett, 2005; Boltanski
& Chiapello, 2002). Trata-se, entretanto de uma “liberdade” que se inscreve no registro da
“flexibilidade”, da “reinvenção descontínua de instituições” (Sennett, op. cit: 55), da crença
empresarial segundo a qual a rotina é profundamente maléfica para os negócios. Este não é
certamente o caso da Triumph International e, menos ainda, das confecções menores de
roupas íntimas de Nova Friburgo. Ano após ano as costureiras – desde o rito de passagem
do sistema de produção individualizado para o sistema de “célula” presidido pelos
“sacerdotes” do SENAI – executam os mesmo pouco variados processos de confecção do
lingerie descritos no item anterior. A única diferença é que agora as cerca de dez a doze
costureiras de cada “célula” executam freqüentemente todos os cinco ou seis processos
indispensáveis à produção do lingerie.
“Hoje estamos numa linha divisória na questão da rotina. A
nova linguagem da flexibilidade sugere que a rotina está morrendo
nos setores dinâmicos da economia. Contudo, a maior parte da
mão-de-obra permanece inscrita no círculo do fordismo”. (Ibidem:
50).
De fato, a exigência por produtividade e qualidade amiúde se acompanha, no
interior deste “novo capitalismo” por características bem diversas das acima apresentadas
referentes às fábricas de “moda íntima” de Nova Friburgo, conforme podemos depreende-
las do seguinte trecho:
“En outre lê personnel ne se mobilise pas sur un projet ou sur une
polique partiels, la mobilisation dans ses conditions et dans ses
effets procède d’un attachement à l’entreprise comme totalité et
découle tout autant, sinon plus, de la politique sociale que de la
seule politique de production et de formation scientifique et
technique. Lês politiques de l’emploi, des salaires, des conditions
de travail et des horaires apparaissent tout à fait importantes
comme facteurs d’implication ou de non-implication du personnel
dans lês objectifs de l’entreprise.” (Dassa & Dominique, op. Cit:
31).
Estas novas marcas do capitalismo atual parecem
ser intrinsecamente ambíguas – de um lado elas
podem parecer, mesmo do ponto de vista operário,
uma melhora das condições de vida dos
trabalhadores, por outro, elas abrem espaço à auto
exploração do trabalhador –; trata-se, segundo a
84

formulação de Bourdieu (Bourdieu, op. cit.), da
“dupla verdade do trabalho”. Ocorre que desta
ambigüidade a industria de lingerie de Nova
Friburgo parece ter aproveitado apenas os novos
dispositivos de exploração e prescindido
inteiramente dos novos dispositivos de legitimação
da dominação.
“Benefícios sociais” e hegemonia relativa da Triumph International sobre as demais
fábricas do município.
Antes de abordar a questão das diferentes reações às transformações acima descritas
– que correspondem como tentarei demonstrar, a diferenças de gerações entre as operárias –
eu gostaria de direcionar rapidamente o foco da argumentação para a questão da hegemonia
relativa que a Triumph International exerce sobre as demais fábricas do setor, na região. É
que as diferenças de gerações coincidem mais ou menos com diferenças importantes entre a
Triumph e as demais fábricas, por um lado, e mais fundamentalmente ainda entre grandes e
pequenas confecções, por outro. Em primeiro lugar, conforme indiquei na introdução,
porque a Triumph, a partir das mudanças ocorridas na década de 1990, não abriu mais
contratações de costureiras a não ser em janeiro de 2008. De modo que, encontramos entre
as costureiras desta indústria uma certa homogeneidade de faixa etária representada por
uma geração mais antiga de operárias e, por conseguinte, com tradições culturais que datam
de antes das novas formas de organização da produção de lingerie. Em segundo lugar,
porque é, sobretudo o conjunto das pequenas confecções que constitui a atual porta de
entrada das jovens gerações de costureiras neste ramo profissional. Estas diferenças de
gerações, coincidentes com diferenças de locais de trabalho, não excluem, contudo,
similaridades que decorrem daquela hegemonia relativa da Triumph International.
Das regularidades passíveis de serem observadas no conjunto das operárias de
roupas íntimas como um todo, as mais evidentes são certamente aquelas vinculadas às
estruturas objetivas das relações de produção. Neste âmbito as diretrizes são ditadas
fundamentalmente pela Triumph. Isso ocorre não apenas em decorrência de sua dominância
de uma ampla fatia do mercado da “moda íntima”, no interior do pólo de lingeries da região
85

tanto quanto mundialmente 70 . Embora este seja um aspecto importante – que lhe concede o
poder de determinação dos preços dos produtos e, por conseguinte, do valor do salário não
apenas de seus trabalhadores, mas do conjunto da categoria do vestuário, no município – as
estratégias de legitimação da dominação por via de “benefícios sociais” talvez constituam
uma dimensão não menos importante a este respeito.
Vejamos, por exemplo, a questão da campanha salarial do setor vestuário como um
todo. Segundo relatos da direção do Sindicato dos Trabalhadores do Vestuário de Nova
Friburgo, a Triumph é a maior responsável pelas derrotas que a categoria em seu conjunto
(e não apenas as costureiras da Filó) tem sofrido, no contexto de suas lutas por melhorias
salariais. Diante de qualquer reivindicação de aumento de salário a Filó ameaça retirar os
“benefícios sociais” que ela patrocina aos trabalhadores – creche, refeitório, etc. – ao que
suas costureiras retrocedem, porquanto, sobretudo a creche parece assumir uma importância
muito grande, na vida de um grande número de costureiras desta empresa. A este respeito
devemos considerar ainda o lugar absolutamente central que os filhos parecem ocupar na
vida e no discurso destas operárias 71 . Um observador que chegue nos portões da Filó às
17:00, por ocasião do fim do expediente quando os operários retiram seus filhos desta
creche, logo notará o quanto ela é importante para um percentual elevado dos empregados.
De modo que a simples ameaça de fechamento da creche como estratégia de chantagem
patronal contra o aumento salarial constitui um eficaz dispositivo de dominação. Por
conseguinte, a maior responsável pelo fato de repetidamente os trabalhadores do setor
vestuário não conseguirem assinar as convenções coletivas sobre salário seria a empresa
Triumph International. Desta forma, por meio de um jogo estratégico de legitimação da
exploração via “benefícios sociais” a Filó, concorre para o rebaixamento salarial de toda a
categoria das costureiras de lingerie de Nova Friburgo, e não apenas de suas próprias
operárias.
Some-se à eficácia dos “benefícios sociais” na manutenção da exploração, o
fenômeno do enfraquecimento do sindicato e mesmo da des-sindicalização. Com efeito,
70 O grupo Triumph International domina amplamente o mercado de “moda íntima” mundial e, segundo as
palavras de David Massena, constitui o maior produtor de lingerie do mundo. Massena, David. 2008. Nova
Friburgo: da geração bendita à capital da moda íntima. Nova Friburgo: Stam.
71 Este é um ponto muito importante, a ser abordado no último capítulo desta dissertação, que constitui
também um elo fundamental para o desdobramento desta investigação em um projeto de pesquisa que
deverá se concentrar na questão da escolarização das famílias das operárias de lingerie.
86

neste ponto os depoimentos da presidente do Sindicato dos Vestuários de Nova Friburgo
coincidem com o ponto de vista de certos autores especializados na antropologia e
sociologia dos trabalhadores. Novamente aqui pode-se citar Terrail (citado por Weber, op.
cit: 180) para quem o fenômeno da “individualização” da classe operária está articulado
com o “enfraquecimento dos grupos primários”, mas também com a “des-sindicalização”
(ibidem: 180). Este ponto de vista converge, de fato, com as críticas sempre contundentes
que Luzia, a presidente do sindicato, dirige ao sistema de “célula”, no interior das quais a
questão da des-sindicalização está contemplada.
“O sistema de célula gerou uma insatisfação e uma cobrança, porque se eu dependo
da sua produção e eu estou vendo que você não está indo muito bem então eu vou te
perturbar. Vou falar pô você tem que andar mais rápido senão a coisa não anda. Pessoas
que às vezes eram amigas passaram a ter rivalidade de ter que estar cobrando da colega, às
vezes até por necessidade, de dar mais produção, de fazer o serviço perfeito. Elas ficam
vigiando não só a produtividade, mas a qualidade porque tem um prêmio extra por
qualidade. Então tem aquela pessoa que está num dia que não é um dos melhores, aí a
colega chama a atenção dela e aí tem o emocional junto e ela fica chateada. Então começou
a criar atrito. Pra você ter uma idéia até a participação no Sindicato diminuiu!” (Luzia).
A questão da des-sindicalização recente das costureiras de roupas íntimas de Nova
Friburgo tem a ver, segundo a leitura de Luzia, com os processos de desagregação dos
grupos operários, depois da implantação do sistema de “célula”. Este é um fenômeno
complexo, de difícil interpretação. Difícil igualmente é questionar a verdade da des-
sindicalização diante do depoimento da própria direção do sindicato responsável pela
categoria operária mais numerosa do município. Precisamos considerar aqui os ataques
sofridos, de uma maneira mais ampla, pelos sindicatos do mundo inteiro na fase recente do
capitalismo 72 . O que, articulado com o aumento do desemprego, fez com que as entidades
72 Já é largamente conhecido o discurso de certos organismos multilaterais, como o Banco Mundial, por
exemplo, no sentido de delegar aos sindicatos operários parte da responsabilidade pela queda das antigas
taxas de lucro do capital. Interessante, entretanto, é notar, com Boltanski & Chiapello, a contribuição que
certos setores do pensamento crítico acadêmico forneceram à elaboração deste discurso ideológico:
“Haciendo esto, y en parte a pesar suyo, esta crítica se prestaba también a una interpretación en términos de
liberación no sólo de las fidelidades personales e institucionales, percibidas desde entonces como
servidumbres sin fundamento que caracterizaban al antiguo orden doméstico en vías de marginalización,
sino también de todas las ‘jerarquías’ y ‘aparatos’, es decir, de ‘los aparatos de Estado’ y, al mismo tiempo,
de los ‘aparatos’ que, como los ‘aparatos sindicales’, habían contribuido a la formación del derecho laboral,
87

sindicais operárias perdessem parcialmente o vigor nos embates trabalhistas. O Sindicato
dos Trabalhadores do Vestuário de Nova Friburgo tem sido a este respeito uma entidade
que sobrevive heroicamente a despeito das investidas patronais contra ele. No que se segue,
reproduzo aqui a leitura de uma carta aberta da atual direção do sindicato aos trabalhadores,
seguida de uma pequena conversa que tive com minha informante, Vânia. Este trecho,
segundo creio, fornece uma idéia aproximada da mistura complexa entre hegemonia
relativa da Triumph, ataques ao sindicato e des-sindicalização – aspectos que concorrem
para a manutenção da dominação da maior indústria de roupas íntimas da região.
“CARTA ABERTA AOS OPERÁRIOS DA CATEGORIA DOS VESTUÁRIOS DE NOVA FRIBURGO.
Cara companheira, hoje você pode contar com a maior estrutura sindical de Nova
Friburgo e região. Tudo isso foi conquistado ao longo dos anos graças à dedicação e
respeito da atual diretoria. No atual processo eleitoral têm umas pessoas se apresentando
como oposição, que é o mesmo grupo que está atrapalhando o trabalho do sindicato, que é
formado e apoiado pelo mesmo grupo que, em 2007, impediu que a convenção coletiva
fosse assinada. Essas pessoas freqüentam as assembléias, mas nunca trouxeram qualquer
reivindicação boa para os trabalhadores, como pedir um aumento de salário maior, por
exemplo. Só apareceram até a presente data para tentar forçar a diretoria do sindicato a
ceder sem nenhum ganho em troca. Usaram sempre a mesma conversa: ‘mas se agente não
aceitar o que a empresa quer dar ela disse que vai tirar a creche, o refeitório, etc’. Ou
seja, sempre tentando nos obrigar a ceder às chantagens da maior empresa do setor.
Incentivaram uma manifestação contra o sindicato em via pública, quando a empresa
ameaçou fechar a creche. Mas esse mesmo grupo nunca deu um paço em direção ao
ministério público do trabalho para denunciar o que a empresa estava fazendo com seus
empregados e sim defenderam sempre os interesses da empresa. Os integrantes da chapa
2, e qualquer um que queira ajudar, entram e saem da empresa todo dia, em horário de
trabalho, para visitar as confecções e tentar fazer os trabalhadores acreditar que quem
não quis assinar a convenção coletiva sobre salário foi o sindicato dos trabalhadores.
al reconocimiento de las clases sociales y al proceso que conduciría a su representación en el Estado”.
(Boltanski & Chiapello, op. Cit: 220).
Sobre o discurso de culpabilização dos sindicatos operários pela crise do capital, nos documentos oficiais
do Banco Mundial ver a coletânea de artigos O Banco Mundial e as Políticas Educacionais. São Paulo/SP:
Cortez, 1998.
88

Hora nenhuma dizem que foram eles, orientados pela empresa, que vieram à assembléia
‘melar’ a assinatura da convenção. O que deixou os trabalhadores da Filó e da cidade
inteira sem aumento nos salários. Francamente, você acha que a empresa que está
pagando R$402,60 está apoiando esta chapa porque? Você já viu algum patrão liberar um
monte de funcionários todo dia, em horário de trabalho só porque estamos em eleição?
Será que se qualquer outro trabalhador precisar sair para levar um filho ao médico terá o
mesmo tratamento por parte da empresa? Como é uma filial da China estão aprendendo
com a matriz a explorar os trabalhadores até a exaustão. E se conseguirem tomar posse do
sindicato que defende os trabalhadores, até direitos adquiridos como vale transporte, hora
extra, piso de categoria, etc., vão tirar. Pois se a chapa 2 ganhar vocês vão ter patrão nas
duas pontas: na empresa e no sindicato. O sonho da direção desta empresa é pagar um
piso máximo de $192,00 dólares, ou R$321,00, para serem competitivos como os
empresários da China, da Índia, do Vietnã, etc”.
“Vânia – Te garanto que quem mandou esse papel aí foi a chapa da
Luzia.
Entrevistador – Foi da Luzia.
Vânia – Ela nunca sai lá de dentro e não faz nada!
Entrevistador – Mas esse outro pessoal parece que é apoiado pela
empresa.
Vânia – Isso aí é ela que está falando, né?
Entrevistador – teve uma vez que eu fui lá na Filó e que tinha uma
faixa escrita assim: ‘queremos assembléia porque o sindicato não
nos ouve’. Eu acho que era esse pessoal.
Vânia – É deve ser desse pessoal da chapa 2 aí. Agora, daí a
confiar na Luíza também é complicado. Ela está lá a mais de dez
anos também e nunca fez nada.
Entrevistador – Mas também é complicado né, porque quem tem
que comparecer às assembléias são os trabalhadores né? O
sindicato não faz nada sozinho.
Vânia – Os trabalhadores não confiam mais neles não! O
trabalhador já desanimou.
Entrevistador – Então não dá pra colocar a culpa na direção do
sindicato. Porque quem faz a luta são os trabalhadores, não é o
sindicato sozinho.
Vânia – Tá, uma vez nós fizemos isso. Fizemos uma greve de três
dias e depois fomos obrigados a trabalhar todos os sábados pra
pagar aqueles dias e não ganhamos o aumento. E muita gente foi
mandada embora. Hoje em dia tem muita negociação patrãoempregado
também, a costureira negocia sozinha com o patrão, se
ela for boa, ganha aumento”.
89

Apesar do ceticismo de minha informante em relação à atuação do sindicato, devo
confessar que, de minha parte, fiquei feliz pela chapa 2 ter perdido as eleições. O contrário
certamente significaria um reforço incalculável do poder e da hegemonia da Triumph sobre
todo o setor. Mas a leitura em si da carta e deste pequeno debate que entabulei com minha
interlocutora deixa claro que não são poucas as investidas da Filó no sentido da ampliação
de seu domínio sobre a região.
Outro exemplo da extensão do poder desta empresa sobre os trabalhadores não
apenas de seus pavilhões de produção, mas similarmente de outras fábricas, é sua
incidência sobre as condições de trabalho de toda a categoria das costureiras. Já vimos
como a Triumph domina a regulação dos salários. Vejamos como ela determina também o
processo produtivo. Do que foi relatado até aqui deve ter ficado evidente que o sistema de
“célula” constitui um modelo de organização da produção que objetiva ampliar, até o limite
físico e emocional, a exploração da força-de-trabalho operária. Trata-se da lógica da mais-
valia levada a seu paroxismo. Dito isto, claro está também que a Triumph, a partir da
implementação deste sistema – juntamente com a terceirização de parte da produção via
sistema de “facção” – ampliou seu domínio sobre a disputa de mercado pela determinação
dos preços, visto que os custos com a produção (sobretudo, com a remuneração dos
trabalhadores) foram drasticamente reduzidos.
Diante disso, as demais fábricas do setor – ou pelo menos as grandes e médias
empresas – se viram obrigadas a aderir ao sistema de produção em “célula”, sob risco de
serem engolidas pela multinacional. Daí que grande parte do pólo de “confecções” de
roupas íntimas friburguense trabalhe atualmente, para o desespero de uma parcela das
costureiras, com o sistema de “célula”.
“Muitas pessoas começaram a pedir as contas quando o sistema de célula
foi implantado. Aí, nas palestras, o pessoal do SENAI dizia que não
adiantava pedir contas porque nós iríamos nos deparar com outra célula
mais à frente. Porque a tendência é de todas as confecções implantarem o
sistema”. (Vânia).
Mesmo para empresas detentoras de um percentual expressivo do mercado de
“moda íntima” regional e nacional, como é o caso da Lucitex, a adesão a este processo foi
90

inevitável. Entretanto, as grandes fábricas têm amiúde seus interesses convergentes com os
da Filó. O corporativismo da classe patronal parece não ter limites, mesmo entre empresas
concorrentes. Encontramos, por exemplo, uma ampla adesão de certas formas de
legitimação da dominação via “benefícios sociais” e seus mediadores, o SESI e outras
entidades do sistema FIRJAN.
As instalações da Lucitex incluem, dentre seus diversos setores, um refeitório, onde
a maioria esmagadora dos operários faz suas refeições. O café da manhã e o almoço são
fornecidos pela fábrica mediante o desconto mensal de R$11,00 em folha de pagamento dos
funcionários. A jornada de trabalho se inicia às 7:00 horas e finaliza às 17:00, à exceção das
sextas-feiras, quando o expediente se encerra às 16:00 horas. O que soma uma jornada
semanal de 44 horas descontando-se os intervalos para o almoço, ou 49 horas se
considerarmos este entrementes como parte integrante do período no qual as operárias
permanecem subordinadas à vontade patronal 73 .
Esta é a primeira fábrica contemplada nesta investigação que conta, dentre os
“benefícios sociais” patrocinados pelo patronato, com uma modalidade educativa. Trata-se
de um sistema de estudo por módulo organizado sob os auspícios do SESI, vinculado ao
sistema FIRJAN. A fábrica disponibiliza uma sala de aula e alguns professores consultores.
As operárias que desejarem dar continuidade aos seus estudos regulares retiram os módulos
correspondentes aos conteúdos de seus respectivos níveis de escolaridade. O sistema
contempla toda a educação básica, isto é, do ensino fundamental ao ensino médio.
Estes dados me foram fornecidos por uma jovem operária com quem conversei
enquanto ela “descansava do almoço”; estávamos ambos sentados na calçada defronte ao
portão de entrada da fábrica, onde pegávamos um sol no intuito de fugir do frio penetrante
que faz em Nova Friburgo, durante o inverno. Nossa conversa foi um misto de entrevista
com bate papo livre. Transitamos desordenadamente de um assunto a outro. Do processo
produtivo ao lazer, por vezes sem muita diferenciação entre tais temas.
Com freqüência, em minhas visitas às fábricas e “confecções”, nos horários de
almoço, surpreendia-me a coexistência de temas tão diferenciados nas falas das operárias –
temas que variavam das péssimas condições de trabalho e das baixas remunerações até
73 Veremos ulteriormente, no relato de um episódio ocorrido na Lucitex, que o horário de almoço está sujeito
a suspensão parcial de acordo com a deliberação patronal. Donde não se pode desconsiderar este período
como tempo entregue ao patrão.
91

incadeiras, sociabilidade e os próprios “benefícios sociais” legitimadores de tais
condições degradantes. Fornecerei aqui apenas um exemplo de diálogo que tive com um
grupo de três costureiras no dia 29 de Maio de 2008, na fábrica Gescri Lingeries.
Obviamente no horário de almoço.
Por esta ocasião, quando cheguei no quarteirão onde se situa a fábrica encaminhei-
me, como de costume, para a calçada na qual as costureiras freqüentemente se sentam para
pegar um sol. Muitas delas, entretanto, saem correndo para resolver qualquer coisa na rua
neste tempo vago, outras ficam dentro da fábrica, na sala de televisão ou no salão de jogos
de mesa. De modo que não é fácil abordar alguém disposto a conversar um pouco. Depois
de algum tempo procurando alguém menos apreçado com quem eu pudesse conversar,
consigo falar com duas meninas bastante simpáticas que permitem a aproximação.
Juntamente com as duas havia uma terceira operária mais afastada e reticente que, por sua
vez, teve uma reação bastante típica às minhas abordagens. Anunciei-me dizendo que fazia
uma pesquisa sobre a vida das costureiras e que gostaria de conversar com elas à respeito.
A referida garota balança então a cabeça negativamente – “Não vai sair coisa boa não” –
diz ela em um tom seco bastante expressivo de um certo ceticismo. A mais simpática dentre
as três começa dizendo que a vida dela consiste em acordar cedo, agüentar a “pressão” e o
estresse da fábrica, voltar para a casa e suportar mais estresse. A mulher que não tinha dito
nada até então mencionou o problema dos serões (horas extras) – “Nossa vida é trabalhar e
fazer serão” – diz ela. Pergunto como é a remuneração dos serões, se o adicional é pago
corretamente, etc. Elas dizem que a remuneração é maior, mas que elas teriam que calcular
sobre a hora normal para ver se a hora extra está de acordo com a lei. Elas afirmam que ali
não paga bem não, que outras confecções são melhores. “É tudo a mesma coisa, toda
fábrica é igual” – diz a mais cética do grupo – “E nem adianta calcular essa coisa de hora
extra, alguém vai reclamar?” – pergunta já se afastando. De maneira que permanecem
apenas as duas moças mais comunicativas.
Pergunto qual é o sistema de produção da fábrica – se por célula ou individual. Elas
respondem que é individual e que cada especialidade recebe um prêmio diferente – “A
costureira de Overlock ganha um tanto, a de três pontos, outro, a Travet, outro, entendeu?”
– explica a mais falante dentre as duas. E continua dizendo que prefere trabalhar na Travet
porque o processo é mais simples, por conseguinte, facilitando a produtividade. “As
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máquinas de ‘sanduíche’, de viés, são processos mais complicados, a produção é mais
difícil, ganha mais, mas é mais complicado” – continua.
Não há uma costureira que seja que não faça uma leitura bastante crítica das
condições sob as quais elas trabalham. Minha interlocutora de hoje expressou sua
insatisfação com o fato de ficar sentada o dia todo. Suas declarações corroboram as críticas
da presidente do sindicato do vestuários em relação aos riscos de LER que as condições de
trabalho das costureiras as expõe.
“Minha tia trabalhou uns quinze anos em confecção, aí começou a sentir
dor nas costas, sentir dor nas costas e descobriu que estava com três
hérnias na coluna. Entrou de INPS, ficou seis meses de licença e aí o
INPS queria tirar a licença dela. Aí ela fez outro exame que mostrou que
ela não podia trabalhar mais. É hérnia e tendinite sempre acontece.”
(costureira de Travet, 23 anos).
Ao fim desta dramática declaração, contudo, as duas meninas, como que tomadas
por uma vontade instantânea de mudar o rumo da conversa, abordam inesperadamente o
tema do lazer. Sem que eu tivesse formulado nenhuma questão a este respeito, minhas
informantes mencionaram o que costumam fazer nos horários de almoço. “Às vezes,
quando está muito frio, agente vem aqui fora para o sol; às vezes agente fica lá dentro
assistindo televisão; tem umas mesas de ‘totó’ lá dentro, às vezes as meninas jogam. É bom
né? Um pouco de lazer, agente trabalha muito”.
Aproveitando o tema, perguntei se elas marcavam alguma coisa para fazer juntas.
Disseram-me que, em geral, as solteiras marcam para sair juntas, etc. Mencionaram
também as meninas que participam do time de futebol da fábrica. “Elas treinam lá no SESI
de Lagoinha e jogam neste daqui (referindo-se ao segundo pólo do SESI do município que
fica próximo à Gescri)”. “Se passar alguma menina do time aqui agente te apresenta ela.” E
logo em seguida sai da fábrica uma das jogadoras do time. “Aí vem ela” – diz uma –
“Priscila, vem aqui? Ó este garoto ta fazendo uma pesquisa sobre a vida das costureiras e
ele queria ver os jogos dos industriários, que dia vocês vão jogar?” “Você sabe que eu não
sei ainda? Eu acho que os jogos começam no mês que vem. Me dá seu telefone – voltando-
se para mim – que quando começar agente te liga.” Pergunto o que ela joga. “Eu jogo
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futebol, meu filho!” – responde. “No ano passado agente ficou em segundo lugar” –
comenta orgulhosa uma outra garota que acompanha a primeira.
Este pequeno relato desta minha visita à Gescri o fiz com o objetivo específico de
direcionar a atenção do leitor para este último tema dos “benefícios sociais” ilustrados aqui
pelo exemplo dos jogos esportivos. Os jogos a que Priscila se refere são os “Jogos dos
industriários”, organizados também sob os auspícios do SESI. Trata-se de mais um
“benefício” oferecido às costureiras, e às demais categorias da classe operária friburguense,
pelo sistema FIRJAN. Este episódio rapidamente relatado acima tem o intuito de
demonstrar que, mesmo em uma conversa rápida – de cerca de vinte minutos – as
denúncias das operárias em relação ás suas condições de trabalho e de remuneração podem
facilmente deslizar para as atividades de lazer e as práticas de sociabilidade. O que, no caso
específico aqui apresentado, coincide com os “benefícios sociais” que se inscrevem num
registro de legitimação das relações de produção como é o caso dos “Jogos dos
Industriários” – um evento que tenta, por assim dizer, conduzir o trabalhador a literalmente
“vestir a camisa da empresa”.
Como vimos no pequeno relato histórico, na introdução deste trabalho, o patrocínio
de tais “benefícios”, foram primeiramente levados a efeito pela Filó S.A. A Lucitex e a
Gescri – duas das maiores empresas do setor de roupas íntimas friburguense – são
exemplos de fábricas que sofrem diretamente a influência da hegemonia que a Triumph
International exerce sobre todo o pólo de “confecções”. Tanto no que diz respeito aos
dispositivos de dominação do trabalhador quanto no que se refere aos estímulos à sua auto-
exploração.
Diferenças entre gerações e diferenças de reações à mudança no processo produtivo:
individualização ou re-configuração dos vínculos operários?
É possível identificar, na bibliografia sociológica e antropológica, duas posições
distintas (a despeito de diferenças internas em ambos os lados) no que diz respeito ao
estado das relações de sociabilidade e solidariedade de classe, no atual estado do
capitalismo. De um lado, aqueles autores que sustentam a existência de um processo de
quebra dos antigos vínculos e a emergência de um certo “individualismo”. Os termos com
os quais este suposto fenômeno é identificado variam conforme os investigadores e suas
94

ases teóricas – “individualização” (Terrail, citado por Weber, op. cit), “Privatização”
(Schwartz, op. cit.), “Quebra da coesão social” ou “desfiliação” (Castel, op. cit.),
“Desencaixe” (Giddens, 1991: 29; Bauman, 1998:30), “Desimpedimento” (MacIntyre,
citado por Bauman, op. cit: 30), “Deriva” (Sennett, op. cit.). De outro lado, encontram-se os
que questionam a força deste processo e o poder que a nova versão do capitalismo teria de
corroer a coesão social da classe operária (Weber, op. cit.; Beaud & Pialoux, 1999; Beynon,
1995). Por fim, entre um lado e outro da controvérsia, há também posições intermediárias
que identificam mudanças e permanências entre os hábitos culturais dos trabalhadores
(Hoggart, op. cit). Obviamente há que se considerar que nenhum destes autores parece
defender posições extremas, mas reconhecem as ambigüidades de um e outro dos pontos de
vista.
Ao fim deste capítulo eu gostaria de abordar esta questão polêmica conquanto eu
não tenha a pretensão de que meu material possa habilitar-me a opinar, de um modo
definitivo a este respeito. Com efeito, creio mesmo que a ambigüidade deste debate está
contemplada no material ao ponto dele poder ser empregado para corroborar ambos os
pontos de vista. Desta maneira limito-me a apresentá-lo e a indicar uma precária impressão
pessoal, restrita ao âmbito de meu campo de investigação.
No que diz respeito à Triumph International, o cotidiano das salas de costura foi,
como vimos, profundamente abalado pelas alterações do processo produtivo perpetradas
pelo sistema de “célula”. Na esteira de produção uma costureira recebia uma gratificação
por produção correspondente ao que ela fazia individualmente. Sua produção individual
não incidia, portanto, na remuneração de suas colegas. Uma eventual queda na produção
individual de uma operária só afetaria seus próprios interesses e os interesses patronais.
Este fato lhes conferia uma relativa autonomia no que diz respeito ao seu “cálculo
econômico” (Leite Lopes, op. cit.) e, por conseguinte, uma certa liberdade para que ela
pudesse conversar, “fofocar”, brincar de formas variadas – dentro dos limites da vigilância
dos inspetores – com suas colegas posicionadas imediatamente atrás ou à sua frente.
Ao contrário, no sistema de produção em “célula”, a coletivização das gratificações
por produção fez com que aquela autonomia com relação ao “calculo econômico” das
operárias fosse reduzida aos interesses do conjunto das costureiras da “célula”. Conforme
mencionado anteriormente um corolário desta mudança – no caso específico da Triumph,
95

saliente-se uma vez mais – foi o aparecimento da fiscalização mútua entre as próprias
colegas de “célula” e a ocorrência de uma série de conflitos, dos quais o caso de Lúcia
constitui apenas um exemplo extremo. Por conseguinte, podemos inferir que as conversas,
as “fofocas”, as brincadeiras tenham sido reduzidas em decorrência do aumento da
“pressão” por produção e qualidade que o sistema de “célula” supõe. Com efeito, a fala de
Lúcia segundo a qual “antes as meninas eram mais amigas”, parece uma confirmação
nativa destas alterações na sociabilidade operária. Entretanto, nada nos autoriza a supor que
uma redução de tais práticas possa ser interpretada como uma destruição das mesmas.
Além da sala de costura, consideremos outros lugares de sociabilidade operária.
O refeitório é certamente um destes lugares. No horário do almoço – ao contrário do
fim do expediente, quando um grande número de operárias corre cada uma em direção ao
seu destino individual – as costureiras saem em direção ao refeitório invariavelmente em
grupos de três ou quatro. O ritmo do caminhar varia intermitentemente, de acordo com cada
grupo, entre apreçado e despreocupado. Não é incomum ouvir uma costureira mais atrasada
em seus passos pedir ao grupo de suas colegas para esperar para que elas possam almoçar
juntas. Alguém que observe os hábitos das operárias, no interior do refeitório, através das
largas janelas de que o prédio social da Filó dispõe 74 , não poderá deixar de notar a prática
cotidiana que elas levam a efeito de juntar duas ou três mesas para que todas as
companheiras possam fazer suas refeições em presença umas das outras. Seriam os
membros destes grupos operárias da mesma “célula”?
“Tem grupos que são de amigas já antigas, que trabalhavam
juntas, mas mudaram de sala. Tem outros, como é o nosso caso,
que são colegas da mesma sala. Tem “célula” mais tranqüila que
almoça junta também. Isso depende muito, sabe? Não tem regra
não, menino”. (Costureira de 51 anos).
Embora, como minha interlocutora diz, não haja regra para a definição de quem
almoça junto, no refeitório, de sua fala também se depreende que o sistema de “célula”
impõe certos constrangimentos a esta prática. Assim, as “células” que almoçam juntas são
aquelas “mais tranqüilas”, isto é, aquelas com menos conflitos. De todo modo, sob meu
74 Infelizmente não me foi permitido, ao longo do trabalho de campo, visitar o refeitório da Filó – outrora por
mim amplamente freqüentado. Minhas observações de longe, entretanto, foram suficientes para demonstrar
que certas práticas de sociabilidade não desapareceram ao longo do tempo.
96

ponto de vista, “individualização”, ou algum outro termo similar que indique desagregação
dos vínculos operários, parece não ser uma maneira muito adequada de descrever as
práticas observadas entre as costureiras no refeitório.
Também na hora do almoço da Triumph, a feirinha que então ali se instala constitui
um outro lugar de sociabilidade operária. Um pequeno grupo de comerciantes informais
encontra-se distribuído pelo espaço que compreende o caminho entre o pavilhão principal e
o pavilhão social, onde se encontra a cozinha e o refeitório. Trata-se de um grupo de
vendedores relativamente homogêneo que comercializam amiúde produtos tipicamente
femininos, mormente roupas, cosméticos e alguns outros itens de beleza. Chama a atenção
a este respeito o elevado número de roupas infantis e de brinquedos 75 .
Minha presença neste local evoca lembranças até então adormecidas na memória.
Lembro-me do quanto eram animados aqueles horários de almoço nos quais me encontrava
com minha mãe para juntos fazermos a refeição na fábrica. Conforme indiquei na
introdução deste trabalho, eu tinha, naquela ocasião, acesso liberado às dependências da
empresa, posto que fazia o curso de mecânica geral no SENAI na condição de bolsista da
Triumph International – o que me dava direito a almoçar e jantar na empresa, além da
remuneração de meio salário mínimo. Lembro-me ainda que, naquela ocasião – o ano era
1994 – havia um quantitativo incomparavelmente maior de vendedores dos que ali estão
atualmente, todos com seus porta-malas abertos e abarrotados de mercadorias. Esta
diminuição poderia espantar se considerarmos isoladamente os índices de crescimento do
trabalho informal, em particular de vendedores ambulantes, entrementes. Não obstante,
importa sopesar este crescimento com o rebaixamento sistemático dos salários das
costureiras da Triumph que se processou no mesmo período (o que certamente significou
uma diminuição de seu poder de compra), bem como com o fechamento de um número
expressivo de salas de costura da Filó. O que, como vimos, resultou na demissão de cerca
de 600 operárias da fábrica. Diante disso é natural que a animação e o número de
vendedores da feirinha tenham se reduzido.
75 Se considerarmos a presença de uma parcela dos filhos das costureiras presente na fábrica em decorrência
da creche, bem como, em um nível mais profundo a centralidade que os filhos parecem ter nas conversas
destas operárias, poderemos então estabelecer uma certa coerência destes fatos com os produtos infantis
comerciados na porta da fábrica.
97

De todo modo, a feirinha constitui ainda um local de passeio de grupos de
costureiras, na hora do almoço. Mais do que isso, em torno da instituição da feirinha as
costureiras desenvolvem outras ações conjuntas. As “caixinhas”, já mencionadas,
constituem a este respeito um exemplo paradigmático. Não são poucas as vezes que um
grupo de costureiras contribui, ao longo de vários meses, com uma certa quantia em
dinheiro para, ao cabo de cada mês, uma delas ter finalmente o valor necessário à aquisição
de certos bens vendidos na feirinha. Amiúde também a compra destes bens, sobretudo
roupas e produtos eróticos, se transforma em um importante evento de sociabilidade.
“Uma coisa que eu observo muito é o horário de almoço delas que,
principalmente nas grandes fábricas, vai muita gente vender doce, roupa,
agora eu estou vendo gente vendendo produtos eróticos. E elas compram
mesmo, tem lista pra pagar no final do mês, tem o caderninho de fiado.
Então é um momento muito importante porque assim, elas chegam às
sete, saem meio-dia para o almoço. Então é uma hora muito importante
no dia a dia delas. Elas almoçam e vão conversar, vão tricotar da novela,
vão ver o que que as pessoas estão vendendo naquele horário de almoço.
E é interessante esses produtinhos eróticos que antes agente não via. A
costureira era uma senhora e essa costureira mudou: é uma jovem e tal,
que sai, vai a forró no fim de semana, vai a pagode, se diverte e tem os
namorados dela, ‘tranqüilona’, moderna e compra os produtos dela”.
(Consultora de moda íntima do SENAI).
Este trecho, retirado de uma entrevista a mim concedida por uma consultora do
SENAI, apresenta um interessante amalgama de aspectos aparentemente antitéticos entre si.
Por exemplo, as práticas de sociabilidade mencionadas por minha entrevistada e a idéia de
modernização expressa na última frase de sua fala. Richard Hoggart, por exemplo,
denunciou o caráter antitético que o par “solidariedade de classe”/“modernização”
freqüentemente assume no discurso publicitário:
“É certo que a publicidade em geral tenta vender a todas as classes as
várias ramificações do individualismo que constituem o seu negócio,
apelando para motivações do estilo de ‘passar à frente do vizinho’, ‘ser
98

moderno’, ‘ser atirado para a frente’, superar os outros”. (Hoggart, op.
Cit: 21).
Entretanto, mesmo no caso das costureiras das gerações mais novas com as quais a
caracterização “moderna” feita por minha entrevistada se coaduna melhor, o individualismo
parece não ser a tônica. Assim, as atividades coletivas que podem ser observadas nas
feirinhas dos arredores da Triumph tanto quanto no entorno de outras “confecções”,
apresentam certas regularidades, por assim dizer, trans-geracionais. Destarte, a
“modernidade” das operárias mais novas não pode ser equacionada com individualização.
Um terceiro lugar de intensa sociabilidade entre as costureiras da Filó é certamente
o ônibus no qual elas retornam para a suas casas. Aqui eu gostaria de relatar os
acontecimentos de um dia no qual eu acompanhei a viagem de um destes ônibus que seguia
para o bairro de Conselheiro Paulino (conforme indiquei na introdução, um dos maiores
bairros operários do município de Nova Friburgo).
As grandes fábricas de Nova Friburgo possuem um acordo com a única empresa de
ônibus local no sentido do fornecimento de linhas específicas de transporte nos horários de
entrada e saída dos trabalhadores. No caso particular da Filó, nem todos os bairros da
cidade são contemplados com linhas diretas. De maneira que, freqüentemente, as operárias
tomam uma condução até a rodoviária urbana, onde é feita a integração entre as diferentes
linhas, para daí pegar o ônibus que as conduzirão até suas residências.
Na parede externa do último pavilhão da fábrica (no sentido de quem chega do
centro em direção ao oeste), ao lado do portão de entrada e saída das operárias, há uma
tabela onde se vê a lista das linhas de ônibus e seus respectivos números: linha 1 –
Centro/Colégio Modelo; linha 2 – Centro (rodoviária); linha 3 – Centro (rodoviária); linha
4 – Olaria; linha 5 – Conselheiro Paulino; linha 6 – Alto de Olaria/Paissandu. Entretanto,
outras linhas de ônibus encontram-se disponíveis além daquelas discriminadas neste
quadro. Talvez seja mesmo o caso de esta ser uma lista extemporânea que não corresponde
às atuais linhas oferecidas pela FAOL (Friburgo Auto Ônibus LTDA). Não sei até que
ponto tais linhas obedecem à configuração habitacional das operárias, isto é, às proporções
operária/bairro de origem majoritárias na empresa. De todo modo, a simples existência
99

destas linhas específicas é encarada, por algumas costureiras, como um benefício em se
trabalhar nas grandes empresas 76 .
Os ônibus rapidamente são ocupados pelas operárias. As brincadeiras, os risos, as
fofocas se interpenetram criando um emaranhado sonoro difícil de distinguir em seu
conjunto. Sento-me na parte de trás do coletivo, quero acompanhar o papo das “meninas da
bundinha”, como elas se denominam fazendo referência ao fundo do veículo. Observei uma
peculiaridade interessante na mulher que se sentou no canto oposto ao qual eu me
encontrava. Ela era de estatura mediana (cerca de um metro e sessenta e cinco), cabelos
ondulados e presos na nuca formando um “rabo de cavalo”. Aparentava ter uns quarenta
anos aproximadamente. Foi a primeira dentre suas colegas a entrar no ônibus e sentar-se.
Quando passou por mim, sua fisionomia causou-me grande impressão – tratava-se de um
rosto de expressão séria, traços bastante fortes, mas de olhos um pouco melancólicos.
Pareceu-me estar cansada e, não obstante, preservava formidável beleza. Eu estava, naquele
momento, pensando sobre os dados que tinha recolhido acerca dos efeitos do sistema de
produção em célula sobre as práticas de sociabilidade entre as costureiras. Confrontava
mentalmente tais dados com as relações concretas que eu estava observando ali.
Contaminado pela idéia fixa segundo a qual o sistema de célula constitui um eficaz
dispositivo de “destruição da classe operária” 77 e, por conseguinte, de individualização, não
pude deixar de pensar – equivocadamente, saliente-se – que a expressão daquela mulher
revelava indícios de uma tristeza e desgaste profundos ao mesmo tempo que recalcados a
bem de sua luta cotidiana.
Contudo, bastou que suas companheiras chegassem ali para que minha primeira
impressão se desfizesse instantaneamente. Em verdade, aquela mulher era das mais
brincalhonas do grupo. Parodiava o jeito de agir das colegas de trabalho, sobretudo de uma
delas que estava aniversariando no dia e que não se encontrava no veículo; fazia piadas,
com talentosa capacidade de improviso, com quase tudo que diziam a ela; caçoava
76 Com efeito, em certos contextos operários, a questão do transporte do trabalhador tem um caráter mais
problemático do que no contexto fabril friburguense, o que justifica parcialmente esta interpretação nativa,
das linhas de ônibus específicas das fábricas como uma vantagem para os trabalhadores eles próprios.
Similarmente esta preocupação com o transporte operário não está ausente da bibliografia sociológica. Ver a
este respeito Leite Lopes, José Sergio et all. “A condução do trabalhador” in Brandão, Carlos Rodrigues.
1999. Pesquisa Participante. São Paulo: Brasiliense.
77 Para um questionamento da suposição segundo a qual as novas formas de exploração do trabalho pelo
capital causam um efeito desruptivo na solidariedade operária ver Beynon, Hun. “A destruição da classe
operária inglesa?” in Revista brasileira de ciências sociais
100

largamente do cobrador do ônibus que, por sua vez, não segurava a seriedade que tentou
inicialmente sustentar e estampava em risadas. “Gente, mas o cobrador é muito baixinho,
nem consegue encostar o pé no chão, coitado.” – começou ela – “Menino, você não sente
dor nas pernas não?” – as meninas desatavam a rir e, junto com elas, o cobrador ele próprio
– “Não, é sério, estou preocupada com a saúde dele ué...” – justificava-se com as garotas,
tentando esconder um riso cordialmente debochado.
Ademais, esta mulher parecia ser uma espécie de líder entre as colegas, ou mais
precisamente uma mestra de cerimônias daquele importante ritual de retorno para a casa –
uma ocasião que parece conferir identidade àquele grupo, vide sua auto-identificação
irônica como “turma da bundinha”. Quase todos os temas de conversa passavam por ela; as
demais meninas (um grupo de quatro mulheres que aparentavam ter aproximadamente a
mesma idade da primeira) voltavam-se todas para ela, ouvindo-a com grande entusiasmo.
Ao cotejar o engano de minha primeira impressão com as atitudes concretas da mulher que
eu estava observando, veio-me à mente uma imagem que parece mais apropriada para
caracterizá-la – a imagem d’A força dos trabalhadores” tal qual evocada por Thompson
(1987) para descrever as reações da classe operária inglesa à exploração do capital.
Observando as brincadeiras e a grande intimidade e fraternidade com as quais estas
trabalhadoras se tratavam, a noção de “individualização” e quebra da coesão de classe não
pôde me parecer mais equivocada para descrevê-las.
Por outro lado, é certo que algumas práticas de lazer que ocorriam no período
anterior à implementação das alterações produtivas aqui relatadas foram quase que
inteiramente eliminadas do cotidiano das costureiras da Triumph. Isto serve inteiramente
para aqueles grupos de colegas que se reuniam para ir ao clube Olífas, onde fica o parque
aquático da empresa. Amiúde estas operárias aproveitavam parte de seu tempo diário não
gasto com o trabalho para tomar um banho de sauna ou piscina. Esta era uma vantagem do
sistema de dois turnos que foi abolido a partir do sistema de “célula”. Aquelas operarias
que trabalhavam de 6:00 às 14:00 horas aproveitavam parte da tarde no parque aquático;
por sua vez, as que iniciavam a jornada de trabalho às 14:00 horas, com freqüência,
aproveitavam uma ou duas horas antes do almoço. Com a adoção do turno único,
entretanto, o dia e o sol das costureiras foram inteiramente surrupiados pelos patrões e
obnubilados pelas paredes dos pavilhões de produção.
101

“Tinha grupos de meninas que saiam ás vezes da fábrica para ir lá
pro Olifas tomar um banho de piscina ou tomar uma sauna, dançar
forró na sexta-feira, etc. E o pessoal saia tão aborrecido por não ter
atingido a produção que estas amizades foram diminuindo. Tanto
que eles abriram o clube para pessoas de fora. Por que as
funcionárias diminuíram a freqüência no clube”. (Luzia, presidente
do sindicato dos vestuários).
Até aqui consideramos as permanências e mudanças
nas relações entre as operárias de moda íntima com
o foco principal sobre as costureiras da Triumph
International. De que modo esta dinâmica ambígua
se manifesta também em outras fábricas do setor?
Em primeiro lugar, há que se considerar o fato de
que amiúde o nascimento da maioria das demais
“confecções” é um evento quase coetâneo ao
aparecimento da própria “célula”. Portanto,
dificilmente podemos encontrar tradições de
sociabilidade entre as operárias destas fábricas que
remontam ao sistema de produção individualizado.
Com exceção daqueles locais onde este sistema
vigora ainda hoje, o tempo de vida da produção
individualizada na maioria das grandes fábricas de
lingerie de Nova Friburgo foi sobremodo curto. Não
houve, pois, tempo suficiente para a constituição de
um habitus sedimentado como ocorreu na Filó. De
maneira que as costureiras destas empresas, em
especial as novas costureiras que não conheceram
outro sistema produtivo senão o sistema de “célula”,
elaboram com freqüência uma leitura menos severa
das condições sob as quais elas trabalham.
No dia 6 de Maio de 2008 eu tive a oportunidade de conversar a este respeito com
uma costureira da Lucitex de 27 anos. Ela me disse que nunca trabalhou como costureira
em outra fábrica. “Depois que eu terminei o curso do SENAI, eu fiz o teste e entrei aqui”.
Perguntei a ela sobre o sistema de produção em célula – tema muito recorrente entre as
costureiras da Triumph International, mas pouco mencionado por operárias de outras
fábricas menores –; sobre o que ela pensava a respeito, se gostava ou não. Ela me disse
então que quando ela começou, a produção já era organizada há cerca de dois anos pelo
sistema de “célula”. É interessante notar que mesmo entre as operárias mais jovens, com
esta (que não trabalhou no processo de premiação individual), o discurso sobre o sistema de
102

célula é, no mínimo, ambíguo 78 . Assim, minha interlocutora afirma que o sistema de célula
“é bom e é ruim”. É bom porque “uma costureira ajuda a outra”.
“Tem um grupo bom na célula. É um grupo de dez colegas, agente marca churrasco
nos fins de semana, marca pra ir a um barzinho, pra beber uma cerveja. Agente costuma se
reunir, pelo menos uma vez por mês pra fazer alguma coisa juntas”.
A célula aparece aqui, contrariamente ao que ocorre com o discurso das costureiras
mais antigas da Triumph International, como um espaço de sociabilidade – e mesmo de
solidariedade (“uma costureira ajuda a outra”) – que extrapola o espaço/tempo da produção
fabril. Esta operária não descarta relações intercélulas, isso também ocorre; mas as relações
parecem ser amiúde mais sólidas no interior de cada célula.
Por outro lado, a célula também é ruim “por causa
da pressão que é o trabalho; é muito corrido”. A
categoria “pressão”, como venho reiteradamente
frisando, é de emprego freqüente entre as operárias
de roupas íntimas de Nova Friburgo, sejam
favoráveis ou contrárias ao sistema de “célula”;
sejam operárias da Triumph International ou de
qualquer outra confecção menor. Parece haver,
também, uma contradição tácita – mais percebida de
maneira, talvez, infra-consciente pelas operárias –
entre duas formas de pressão patronal. Por um lado,
a pressão por aumento de produtividade e pela
manutenção de altos níveis de qualidade; por outro,
a pressão contra o aumento salarial. Há aqui uma
constatação de muitas operárias da contradição entre
a cobrança e o discurso patronal. Se “a coisa está
ruim, e a empresa está a ponto de fechar”, como
afirmam os patrões, então porque a pressa na
entrega dos pedidos? Obviamente porque a coisa
não está tão ruim assim, sendo este discurso um
tergiverso para a manutenção dos baixos salários 79 .
78 O convívio com costureiras mais antigas – por vezes com parentes operárias da roupas íntimas, já que as
relações de parentesco têm freqüentemente um papel importante na iniciação profissional destas
trabalhadoras – e a evocação freqüente que estas fazem de um passado idealizado propicia às neófitas um
conhecimento mínimo sobre a produção individualizada, o que as permite cotejá-la com a produção coletiva
em vigor hodiernamente.
79 O discurso patronal pode, por conseguinte, ser caracterizado como uma fala esquizofrênica, no sentido de
Bateson; ou seja, como uma argumentação marcada pela antítese entre uma asserção primária – por
exemplo, “vocês, costureiras, devem acelerar a produção porque precisamos entregar os produtos aos
compradores” – e uma asserção secundária – como “a situação está feia, não poderemos assinar o acordo da
convenção coletiva sobre aumento salarial”. Em uma palavra, o discurso patronal parece se enquadrar na
categoria analítica de duplo-vínculo batesoniana. In Bateson, Gregory. 1991. A sacred unity: further steps to
na ecology of mind. New York: Cornelia & Michael Bessie Books. Também sobre a relação entre
103

Vemos, pois, por um lado, que as relações de
afinidade e de solidariedade entre as costureiras da
Triumph nem desapareceram e nem continuaram as
mesmas. Por outro lado, em outras fábricas de vida
mais recente, e especialmente entre as costureiras
mais jovens, a “célula” parece não ser um obstáculo
à sociabilidade e seu caráter negativo é associado
menos a um potencial desencadeador de conflitos
do que ao regime de exploração exacerbado que o
sistema de “célula” supõe. Como interpretar estas
ambigüidades então?
Uma via possível seria a de que uma mudança no processo produtivo desencadeou,
no caso das operárias da Triumph, um processo de desagregação, de parte dos antigos laços
de solidariedade. Mas um processo contra o qual foram desenvolvidos outros vínculos de
classe. Esta hipótese, contudo, precisa passar por um escrutínio mais sério baseado na
experiência das costureiras elas próprias. Experiência que não corrobora, senão
parcialmente este ponto de vista. Em primeiro lugar, este constitui um postulado decorrente
das entrevistas realizadas com costureiras que trabalharam muito tempo na esteira e, apenas
muito ulteriormente, na “célula”. Tratava-se, pois, de trabalhadoras com mais de vinte anos
de experiência, todas da Triumph International, que passaram suas vidas acostumadas com
o processo de produção antigo e cujas tradições de sociabilidade encontravam-se
fortemente marcadas por este processo – bem como por seus horários, ritmos de entrada, de
saída, pelas brechas de tempo menos ocupado 80 . Nestas condições, uma alteração tardia do
processo produtivo – acompanhada de mudanças similares nos horários e ritmos de
produção – pode mais facilmente ser experimentada subjetivamente pelas próprias
esquizofrenia e capitalismo ver o instigante livro de Deleuze, Gilles & Guattari, Félix. 1976. O anti-édipo:
capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago Editora LTDA. Em especial, sua definição sumária, mas
apropriada, da teoria batesoniana do double bind: “Bateson chama de double bind a emissão simultânea de
duas ordens de mensagem, das quais uma contradiz a outra (por exemplo, o pai que diz a seu filho: vamos,
me critique, mas que subentende vivamente que toda crítica efetiva, pelo menos um certo tipo de crítica,
será mal recebida). Bateson vê nisso uma situação particularmente esquizofrenizante...” (p. 106-107).
80 O tempo menos ocupado aqui diz respeito a um momento de relaxamento relativo da atenção dedicada ao
trabalho, no interior do próprio expediente. Por exemplo, nos quinze minutos finais da jornada diária,
quando as costureiras desligam as máquinas e iniciam a limpeza das mesmas. Aqui a exigência de atenção
extrema é, de fato, reduzida. Com efeito, desde Marx, a questão da atenção compulsória exigida por certas
atividades produtivas é uma dimensão importante na investigação sobre o maior ou menor contentamento
do trabalhador e, em última análise, sobre a questão do trabalho alienado.
“Essa subordinação não é um ato isolado. Além do esforço dos órgãos que trabalham, é exigida a vontade
orientada a um fim, que se manifesta como atenção durante todo o tempo de trabalho, e isso tanto mais,
quanto menos esse trabalho, pelo próprio conteúdo e a espécie e modo de execução, atrai o trabalhador,
portanto, quanto menos ele o aproveita, como jogo de suas próprias forças físicas e espirituais.” (Marx, op.
cit: 206).
104

costureiras como uma deterioração de suas condições de trabalho. Pode-se mesmo dizer, na
esteira das formulações de Bourdieu, que o “habitus” incorporado por estas trabalhadoras –
isto é, as estruturas sociais das relações de produção incorporadas sob a forma de estruturas
cognitivas – estava em franca dissonância com o novo “habitus” exigido pela nova
configuração social. Nesse sentido, a idealização do passado por parte das costureiras de
gerações mais antigas, quando seu trabalho se organizava em torno da esteira, podem ser
interpretadas menos como expressão de desagregação interna da categoria do que como
uma ativação de sua memória como meio de formular uma crítica ás suas atuais condições
de trabalho. Em um contexto diferente, portanto, nos deparamos com eventos homólogos
aos observados em contextos agrários, na região açucareira do Nordeste brasileiro em
meados dos anos 1950.
“Efetivamente, o morador – e isso não é um privilégio seu – ao referir-se ao
passado, idealiza-o. Mas essa ‘idealização’ é mais do que a simples aposição de um sinal
positivo sobre o que já foi. Trata-se como que da construção de um tipo ideal ‘selvagem’,
em que as regras da coexistência social nos velhos engenhos são dadas em ‘estado puro’ e,
mais ainda, segundo as melhores recomendações weberianas, ‘exageradas’, ‘absolutizadas’
ou ‘levadas às últimas conseqüências’.” (Palmeira, 1977: 103-104).
Por outro lado, em “confecções” e fábricas menores que a Triumph, muitas
costureiras iniciaram sua carreira em períodos posteriores à implantação da “célula” – isto
é, meados da década de 1990 –, o que as permitiu desenvolver relações de afinidade e
práticas de sociabilidade de outra natureza. Vale dizer, as novas estruturas sociais das
relações de produção imprimiram sobre os corpos destas novas operárias estruturas de ação
e estruturas cognitivas menos incompatíveis com as novas condições. Por outro lado, a
experiência comum de exploração pode acarretar novas formas de sociabilidade
compatíveis com as novas condições sociais das costureiras, evitando-se, por conseguinte,
um processo de “destruição da classe operária” ou de quebra da coesão social entre elas,
como seria possível supor em uma apreciação do caso específico da Filó.
Deste modo, uma investigação isolada das
costureiras da Triumph International, que
desconsidere as demais fábricas de roupas íntimas
de Nova Friburgo, pode conduzir o pesquisador a
uma interpretação equivocada dos efeitos do sistema
de “célula” sobre as relações de sociabilidade entre
105

as costureiras. De maneira que me pareceu mais
proveitoso considerar o conjunto das fábricas de
lingerie da região como um sistema integrado.
106

CAPÍTULO 2
Duas histórias de vida.
O propósito fundamental deste capítulo é tentar conferir inteligibildade, por meio de
duas histórias de vida de costureiras de gerações distintas, as diferentes reações às
alterações do processo produtivo relatadas no capítulo anterior. Os procedimentos de
registro dos dados aqui relatados foram variados. No caso da primeira história de vida – de
Vânia – tive acesso mais largamente a leituras e análises de minha própria informante
acerca de sua trajetória. Além disso, pude contar com um pequeno (mas precioso) texto
redigido por ela própria, com duas páginas manuscritas em caderno, que relatam suas
memórias mais importantes. Este texto foi escrito a pedido meu e, obviamente, os vínculos
de amizade recíproca que sustentamos incidiu positivamente para que Vânia atendesse
minha solicitação. Ademais esta talvez tenha sido a única parte da pesquisa de campo na
qual contei com condições privilegiadas de investigação, porquanto Vânia é minha vizinha.
De maneira que eu pude exaustivamente visitá-la sempre que precisei sanar dúvidas ou de
novas informações. Creio mesmo que este processo de pesquisa concorreu para estreitar
nossos laços de amizade e, mais ainda, para o incremento recíproco de nossa formação
intelectual, ética e política.
“A associação entre pesquisa antropológica, história oral e
produção de texto autobiográfico escrito pode assim ter efeitos
interessantes para a produção do conhecimento bem como ser um
instrumento libertador de auto-conhecimento utilizado por
indivíduos peculiares das classes populares, mesmo quando estas
têm fortes dificuldades históricas com a escolarização e a escrita,
como ainda é o caso das classes trabalhadoras brasileiras”(Alvim e
Leite Lopes, 1999:19).
No mesmo espírito desta passagem, acredito firmemente que a escrita de suas
memórias constituiu um exercício salutar para Vânia tanto quanto o foi para mim lê-las.
Pude experimentar, com efeito, um fenômeno amplamente registrado na bibliografia
especializada no tema, segundo a qual os registros autobiográficos constituem fonte de
107

auto-estima e sentimento de valor próprio da classe trabalhadora 81 . Vânia é uma
interlocutora importante em minha pesquisa de campo. É efetivamente uma informante
privilegiada. Com muitos anos de experiência como costureira de roupas íntimas, em Nova
Friburgo, seu círculo de amizades é majoritariamente constituído por colegas de profissão.
Sua incrível sensibilidade a torna uma relatora muito detalhista da “microfísica da tortura”
embutida no sistema de célula. Seus raciocínios são, por vezes, primorosos. Sua
inteligência, extraordinária.
No caso de Íris, embora eu não tivesse condições tão privilegiadas quanto eu
dispunha na primeira história de vida, também não encontrei problemas em entrevistá-la.
Somos, eu e ela, amigos há cerca de quatro anos. Nos conhecemos em um barzinho numa
noite de fim-de-semana, no Centro de Nova Friburgo. Este barzinho se localiza na Rua
Portugal, um importante ponto de encontro da boemia friburguense. Nos conhecemos por
meio de amigos em comum que, por sua vez, freqüentam os mesmos locais de lazer que nós
dois. Desde então, Íris e eu começamos freqüentemente a nos encontrar neste local e
eventualmente em outros, de modo que nossos laços de amizade se fizeram gradativamente
mais estreitos. Íris trabalha na Lucitex. Na minha primeira visita a esta fábrica tive a grata
surpresa de encontrá-la, por ocasião da hora do almoço. Conversamos largamente em
diversas oportunidades acerca de seu trabalho e sobre as possibilidades e limitações que
este punha diante dela e suas expectativas de vida, seus sonhos profissionais, etc. Um certo
dia apresentei-lhe a proposta de escrever sua história de vida. Ela aceitou de bom grado.
Disse-me para telefoná-la quando eu desejasse e então marcaríamos uma “cervejinha” para,
como ela costuma dizer, “molhar a palavra” durante a entrevista.
O leitor deverá depreender que minhas próprias redes de afinidade e amizade se
confundem, portanto, com as de minhas duas informantes. Por motivos de espaço não
entrarei mais em detalhes a este respeito. Também considero que o capítulo 1 tenha dado
conta minimamente de fornecer um contexto para as duas histórias aqui relatadas. Ou seja,
o passado recente e o presente do trabalho das fábricas de roupas íntimas em Nova
81 “They recorded an improvement in the moral and intellectual state of the writer, and they reflected and
helped to create the increasing self-confidence and self-respect of the working class community”. (Burnett,
1984: xvi).
108

Friburgo, bem como o que as costureiras fazem e pensam a respeito 82 . Uma vez observadas
as linhas gerais deste contexto, concentremos-nos agora sobre trajetórias específicas no
interior deste cenário.
Vânia.
Em meados de 2006, Vânia, sentada á mesa da cozinha, de calculadora na mão,
contava seu tempo de “serviço” no intuito de precisar o dia, há muito aguardado, no qual
daria entrada à sua aposentadoria. Sobre a mesa, três carteiras de trabalho já desgastadas
pelo tempo. Já era a terceira vez na semana que fazia aquele cálculo. O medo de equivocar-
se na soma era incomum, sobretudo porque, tendo estudado até a oitava série do ensino
fundamental, ela possuía, entretanto, um admirável talento matemático. Parecia tratar-se,
com efeito, antes de um ritual regular confirmatório da futura conquista, que de uma
operação de genuíno apuramento. Uma estranha insegurança lhe envolvia diariamente,
fazendo-a estremecer com a idéia de não poder aposentar-se em breve.
Este medo, entretanto, não era sem razão e sustentava-se, de fato, em um triste
precedente ocorrido na vida profissional de Vânia. Tratava-se da reforma da previdência
levada á cabo no primeiro governo Fernando Henrique Cardoso à qual fez com que nossa
interlocutora trabalhasse por cinco anos adicionais. No mesmo período as condições de
trabalho de Vânia segundo sua própria interpretação se deterioraram – período que coincide
com as alterações do processo produtivo do lingerie encarnadas no sistema de “célula”.
Pelo menos nos últimos vinte anos Vânia foi funcionária da indústria de “moda
íntima” do município de Nova Friburgo na região Serrana do estado do Rio de Janeiro.
Tendo residido por toda a sua vida nesta cidade, esta incansável trabalhadora passou por
algumas das principais fábricas de roupas íntimas da região nos últimos anos de sua
carreira. Entretanto, a maior delas foi sem sombra de dúvidas a indústria Triumph
International, a multinacional sediada no município que foi, como vimos, a grande
precursora do ramo de lingeries local.
82
Esta noção mínima do que venha a ser o contexto das protagonistas de minhas duas histórias eu a extraí de
Mintz (1960: 8):
“Chapter 2 provides some background for the story of Taso’s life: the past and the present in Barrio Jauca
and what people do and think there”.
109

Tendo que suportar uma carga semanal de 44 horas de trabalho, sentada á frente de
uma máquina de costura e recebendo aproximadamente um salário mínimo e meio,
acrescido de gratificações por produtividade e qualidade, Vânia esteve, entretanto, satisfeita
com sua vida na Triumph durante a maior parte dos sete anos que trabalhou na
multinacional. A maioria de suas amigas eram também companheiras de trabalho. Desde o
início de sua vida como operária, com efeito, as fábricas pelas quais passou constituíam um
importante espaço de sociabilidade e uma oportunidade para estabelecer laços de amizade
que extrapolavam amiúde os muros das empresas. Essa leitura da fábrica como locus de
sociabilidade Vânia a contrasta com suas lembranças do tempo de escola. Acompanhemos,
pois, mais de perto sua trajetória.
No dia 10 de Dezembro de 1958, Vânia nascia em casa pelas mãos de uma parteira,
após sua mãe, dona Odette Marques – então cerzideira da Filó S.A. – ter fugido da
maternidade municipal em decorrência da demora no atendimento. A casa tinha dois
cômodos, um quarto e uma cozinha, sendo o banheiro uma edificação á parte. O chão era
de terra batida, as paredes de tijolo, sem reboco. Esta a casa na qual Vânia viveu durante os
dez primeiros anos de sua vida.
Sua família, em seguida, mudou-se para uma região mais central do mesmo bairro
de Conselheiro Paulino. A exemplo da primeira residência, esta segunda casa foi construída
também pelas mãos de Paulino Siqueira, seu pai. O novo endereço oferecia certas
facilidades em decorrência de sua maior proximidade com o comércio local, mas, sobretudo
com a escola estadual do bairro, onde Vânia estudou por cerca de cinco anos. O restante de
seus estudos, que no conjunto perfizeram todas as oito séries do ensino fundamental, foi
concluído em uma escola municipal da mesma localidade.
A experiência da escolarização foi vivida por Vânia como um momento repleto de
contradições. De um modo recorrente, ela destaca as dificuldades com a dinâmica
curricular da escola. Seu embaraço diante da necessidade eventual – e mesmo da imposição
arbitrária de certos professores, na infância – de falar em público, em sala de aula. Por
vezes, ela me relatou as manobras corporais que lhe pareciam necessárias fazer, no banco
escolar, no intuito de escapar do ângulo de visão dos professores evitando, por conseguinte,
que algum deles lhe solicitassem uma leitura ou uma resposta qualquer, em voz alta. A
timidez de minha amiga, durante todo o período de sua escolarização, parece corresponder
110

a uma diferença entre as formas de conhecimento, os valores estéticos e os padrões
gramaticais próprios de seu universo cultural, por um lado, e aqueles valorizados pela
instituição escolar, por outro. De maneira que a incompatibilidade entre seus saberes
nativos e o conhecimento escolar elevado ao status de “capital cultural” 83 (Bourdieu, 1999)
parece ser, em larga medida, responsável pelo fato de Vânia amiúde se referir à escola
como um lugar onde a sociabilidade era sempre mais problemática do que na fábrica. Os
valores arbitrários do cânone escolar, as atitudes sub-repticiamente etnocêntricas em
relação aos gostos populares que amiúde encarnam-se no “currículo implícito” 84 parecem
ter concorrido para uma certa aversão de Vânia ao ambiente escolar e, simultaneamente,
para a amplificação de sua timidez, neste ambiente.
A experiência do trabalho, ao contrário, sempre pareceu a Vânia, menos
problemática. Três aspectos fundamentais, distintivos entre a escola e a fábrica, emergem
dos depoimentos de minha informante a este respeito. Em primeiro lugar, o caráter
emancipador que o trabalho apresentou em curto prazo, na vida desta operária. Ou seja, o
fato de que, com o trabalho ela passou a dispor de um poder de consumo até então
absolutamente inexistente em sua vida.
“Eu comecei a trabalhar com 13 anos e meio na Rendas Arp. Na
verdade eu entrei em Agosto e ia fazer catorze em Dezembro. Naquela
época tinha o ‘salário do menor’, até a carteira era assinada como menor.
Mas só podia assinar quando fizesse catorze anos. Eu comecei a trabalhar
porque eu não tinha nada. Ninguém podia me dar nada aí eu fui trabalhar
para poder comprar as coisas que eu queria. Naquela época não tinha
muito isso de ser um dever ir para a escola. Normalmente, com treze,
83 Sobre a maneira pela qual o capital cultural é monopolizado pelos “herdeiros” das classes dominantes em
seus estados “incorporado”, “objetivado” e “institucionalizado” – o contato com o segundo concorrendo
para a ampliação do primeiro e para um investimento mais eficaz sobre a aquisição do terceiro – ver
Bourdieu, Pierre. 1999. “Os três estados do capital cultural”. In Escritos de educação. Petrópolis: Vozes.
84 “Muitos anos depois de seu tempo de escola, Mary Douglas viria a endossar com entusiasmo as idéias de
um sociólogo da educação, Basil Bernstein, que estabeleceu uma clara distinção entre os currículos
implícito e explícito das instituições de ensino. O currículo explícito é o que concerne àqueles que fazem
lista das coisas a serem ensinadas às crianças. O currículo implícito está implicado na maneira como se
ensinam essas coisas, em que meio educacional mais amplo, e quais são as relações sugeridas entre os
elementos do currículo explícito por seu contexto de transmissão. O currículo implícito fornece o contexto
da pedagogia explícita e é predominantemente responsável pela importância atribuída ao que é ensinado”.
(Fardon, 2004:56, grifo meu).
111

quatorze anos, a maioria das pessoas começava a trabalhar mesmo”.
(Vânia).
O segundo aspecto é a caracterização da fábrica como um local de sociabilidade em
torno da qual são mediados conhecimentos amiúde menos abstratos do que aqueles da
instituição escolar. Os temas de conversa giram amiúde em torno das questões ligadas ao
próprio cotidiano de trabalho ou do universo cultural nativo e menos ao redor de conteúdos
desprovidos de significação, no interior deste universo mesmo. Esse ponto não é formulado
nestes termos por Vânia, mas podemos inferi-lo, por efeito de contraste, pelas declarações
que ela faz acerca da escola em comparação com a fábrica.
“Na escola eu cumprimentava as pessoas, tinha colegas, mas não
eram amigas como eu tive na fábrica. Eu não me lembro de sair pra baile,
pra noite, com ninguém da escola. Porque eu era muito tímida, tinha
vergonha de falar na escola. Quando eu fui estudar à noite, já era mais
velha, a coisa melhorou um pouco. Mas mesmo assim, eu saia mesmo era
com as colegas da fábrica”. (Ibidem).
O terceiro aspecto com o qual a vida de Vânia nos confronta é o caráter pedagógico
que, no contexto dos anos de 1970 e 1980, a condição de operária fabril apresentava. Muito
do talento matemático de minha interlocutora a que me referi acima se deve menos a sua
experiência escolar do que a sua experiência operária, no cálculo cotidiano de
produtividade, de remuneração, na contagem de peças confeccionadas, etc. Mais que isso,
larga parcela de seu treinamento matemático decorreu de maneira autodidata, por meio da
elaboração de cálculos sobre os direitos trabalhistas, valores a serem recebidos do PIS,
fundo de garantia, horas-extras, tempo de serviço para aposentadoria, etc. Vânia demonstra
sobre todos estes assuntos um conhecimento formidável e, mesmo nunca tendo sido
sindicalizada formalmente, conhece uma serie de leis sindicais que dizem respeito mais de
perto a sua condição de costureira. Minha informante parece, por conseguinte, demonstrar
uma eficaz “incorporação prática” 85 dessas leis sindicais.
“Eu tava contando os dias para me aposentar pela lei antiga,
quando agente podia se aposentar com 25 anos de serviço. Aí o Fernando
85 “En reconstituant l’histoire incorporée de groupes ouvriers contemporains, à partir de l’étude directe de
terrain et de l’obtention d’éléments systématisés de leur mémoire collective, ces études peuvent conduire à
des pistes plus générales sur l’íntériorisation pratique de ces lois”. (Leite Lopes, 1991 : 75).
112

Henrique tirou esse direito e eu tive que trabalhar os 30 anos. Eles tão
querendo tirar todos os direitos do trabalhador mesmo. Eu lembro que o
Dornelles, que sempre é bem votado em Friburgo, também queria acabar
com a CLT. Aí entrou o Lula e ninguém falou mais nisso. Graças a Deus
agora se mudar eu já estou fora dessa (risos)”. (ibidem).
A experiência formativa na trajetória de Vânia está, como se vê, muito ligada a sua
condição de operária. Condição que só começou a lhe parecer problemática a partir das
alterações produtivas relatadas no capítulo 1. As relações de exploração que se processam
na esfera da fábrica são, pois, sob o ponto de vista de minha informante, menos
problemáticas do que as relações etnocêntricas estabelecidas na escola em torno dos
conhecimentos e dos valores curriculares. Vânia parece constituir um exemplo de operária
das décadas de 1970 e 1980, quando parecia haver possibilidades de construção de uma
narrativa biográfica pessoal baseada na vida profissional (Sennet, op. cit). De fato, certas
passagens de seus escritos auto-biográficos evocam esta narrativa profissional de um modo
idealizado e retrospectivo que podem ser lidas como formulações críticas ao presente.
Vejamos um trecho paradigmático a este respeito.
“Minha vida profissional foi boa. Teve momentos bons e alguns momentos
atribulados, mas nada que viesse a me atrapalhar. Trabalhei em alguns outros tipos de
empresas antes de chegar á moda íntima. Por exemplo, a Fábrica de Rendas Arp (que era
têxtil), uma fábrica de compassos (que era metalúrgica), uma fábrica de calçados e uma
confecção de roupas jeans chamada KEPPS. A KEPPS foi uma das empresas em que eu
mais gostei de trabalhar. Fiquei seis anos. Lá eu aprendi a trabalhar no corte, eu era
cortadora de tecido. Isso me ajudou mais tarde em uma confecção de lingerie, onde eu tive
a oportunidade de trabalhar no corte também, porque eu já sabia como fazer 86 . Nessa fase
86 Reproduzo aqui uma citação de Linhart (1980: 8-9) feita por Leite Lopes na página 53 da “Tecelagem”,
acerca de casos, semelhantes a este, de aproveitamento do conhecimento profissional prévio do operário
pelo capitalista em novas operações, “sem, no entanto, reconhecer isso em termos de qualificação e salários
menos baixos” (Leite Lopes, op. cit: 53):
“(...) A qualificação é o conhecimento mercantil de um savoir-faire. Cada vez que a correlação de forças o
permite, esse savoir-faire é utilizado pelos capitalistas sem ser reconhecido sob a forma de qualificação:
caso freqüente para as frações mais vulneráveis da força de trabalho – mulheres, imigrantes rurais, etc.
(Utilizar-se-á assim, sem reconhecê-la, a habilidade manual de um artesão de aldeia imigrante para a seção
de pintura na indústria automobilística, a precisão de uma costureira para a montagem na indústria
eletrônica, as qualidades de um agricultor para a vigilância de um processo na indústria de cimento, etc.).
Existe portanto, entre os operários, um conhecimento da produção mais importante que aquele oficialmente
reconhecido e pago pelo patronato”.
113

da KEPPS eu fiz muitos amigos lá. Mas o trabalho em si era legal também. Eu gostava de
fazer modelos, eu desenhava alguns modelos e isso me agradava muito.
Mais tarde aprendi a costurar e fui trabalhar com moda íntima. A KEPPS trocou de
dono e então o ambiente passou a não me agradar. Então eu pedi para sair. Nessa época a
Filó estava anunciando no rádio que estava contratando costureiras com ou sem prática.
Então eu fui fazer uma ficha lá. Fiz a ficha, fui chamada e comecei a fazer o treinamento
que a Filó estava dando para aquelas meninas que não sabiam costurar. Era um pessoal
do SENAI que estava fazendo o treinamento na própria fábrica. Então foi assim que eu
aprendi a costurar. Trabalhei sete anos lá e depois passei por outras fábricas de moda
íntima da cidade.
Mas uma das empresas que eu mais gostei de trabalhar foi a Filó mesmo. Lá eu fiz
grandes amizades que conservo até hoje. Às vezes nos reuníamos umas nas casas das
outras, tipo para bater papo.
Agora uma em que eu não gostei de trabalhar foi a confecção Soraya Lingerie. Lá a
dona da confecção parecia gostar de humilhar as funcionárias. Ficava também instigando
as costureiras a mentir umas para as outras. Ela dava um aumento em uma e em outra
não. Aí ela pedia para agente não falar nada pra ninguém. Isso não me fazia bem, assim
como a outras pessoas também.
Olhando para trás eu acho que as empresas em que eu fiz mais amizades foi a
Rendas Arp e a Filó. Foi onde eu tive mais momentos de diversão com minhas amigas.
Agente ia pra boites e shows, cachoeiras. Foi uma época muito boa na minha vida. E foi da
minha adolescência até a maturidade”. (Notas auto-biográficas manuscritas de Vânia).
A evocação de um passado idealizado coincide, no caso de Vânia, com o período
anterior às alterações da década de 1990. Suas amizades que permanecem até hoje são
majoritariamente provenientes deste período. A fábrica de Rendas Arp, a KEPPS, e a Filó –
todas empresas caracterizadas positivamente por minha amiga e que correspondem ao
período de sua vida profissional compreendido entre as décadas de 1970 e 1980, até
meados dos anos 1990. Este foi, com efeito, um período no qual o setor fabril apresentava
Ora, o aproveitamento do savoir-faire do ofício do corte de modelos de roupas jeans em uma nova operação
de corte de roupas íntimas, tal qual ocorrido na trajetória de Vânia, constitui um caso particular desta
dinâmica mais geral caracterizada por Linhart. Tanto mais porque, conforme diz minha interlcutora, a
confecção onde ela trabalhou como cortadora de lingerie (o nome desta fábrica se perdeu de sua memória, o
que não deixa de ser expressivo) foi uma das piores de sua vida profissional em termos de remuneração.
114

amplas ofertas de trabalho estável – o que liberava os membros da classe operária de certas
preocupações com o futuro, com a subsistência dos filhos, etc. Vemos a este respeito que a
socialização de Vânia no trabalho com lingerie se deu sob os auspícios da própria Triumph
– foi lá que ela aprendeu o ofício de costureira, que ela exerce até hoje. Este fato nos traz
um elemento novo que até então não havia aparecido nos demais depoimentos das
costureiras até aqui relatados – a saber, o fato de que a Triumph International concorreu
decisivamente para a formação de uma mão de obra qualificada na costura de lingerie em
Nova Friburgo. Isso corrobora a interpretação de que o período anterior às alterações aqui
relatadas apresentava possibilidades estáveis de trabalho para a classe operária. Mediante
inclusive o investimento fabril em qualificação.
Foram talvez estas possibilidades de estabilidade no trabalho fabril o que tornou
menos dramático o episódio da gravidez inesperada de Vânia aos 21 anos. A juventude de
minha amiga é por ela caracterizada como uma fase de grandes alegrias, na qual o trabalho
desempenhava a função de prover, sobretudo suas diversões. Por esta ocasião, ela
trabalhava em uma fábrica de compassos até às 17:00 horas e, à noite, seguia para uma
escola municipal de Conselheiro Paulino, para cursar a oitava série de ensino fundamental.
Aos fins de semana ela se reunia com suas amigas de trabalho para ir até uma das
incontáveis cachoeiras que embelezam a paisagem friburguense, ou para sair à noite para
algum barzinho ou boite. Também nessa época Vânia começa o namoro com seu futuro
marido, a quem conheceu em uma destas ocasiões nas quais saia com suas amigas para se
divertir. Minha informante confidenciou-me que, este foi um momento de sua vida no qual
preocupações com o futuro eram praticamente inexistentes de seus pensamentos. Por fim, a
gravidez; o primeiro motivo genuíno para pensar no futuro, criar um filho. O pai da criança,
então seu namorado e atual marido era também, à exemplo de Vânia ela própria, operário
fabril. Ambos trabalhadores com carteira assinada em um período de expansão da
industrialização em Nova Friburgo – fins da década de 1970 e início dos anos 1980. De
modo que parecia não haver motivo para preocupações maiores com o futuro da criança.
Vânia seguiu como operária da fábrica de compassos enquanto seu marido trabalhava na
Rendas Arp. Com o nascimento do filho ambos, esposa e marido abandonaram os estudos;
os dois na última série do ensino fundamental. Com uma remuneração razoável e amplas
possibilidades de estabilidade no trabalho fabril seria o caso destes dois jovens terem
115

priorizado investir suas vidas em uma carreira operária em detrimento da continuidade dos
estudos de longa duração? A timidez de Vânia e, por conseguinte, sua caracterização da
escola como um ambiente pouco atrativo para ela desempenhou algum papel importante
para o abandono de seus estudos? Em que medida a gravidez inesperada incidiu para as
escolhas feitas por Vânia e seu marido? De todo modo, trajetórias como a de ambos estes
personagens se multiplicam entre os membros da classe operária friburguense do mesmo
período, em que o trabalho na fábrica e a nova vida familiar – cujo evento fundador é não
raro uma gravidez inesperada – não deixam espaço para a continuidade da escolarização
formal. Depois da fábrica de compassos, Vânia vai trabalhar na mesma fábrica com seu
marido, a Rendas Arp. Seguem-se mais alguns anos e ela se emprega na KEEPS onde
trabalha por mais seis. Por fim, minha informante é socializada na costura de lingerie pelo
setor de treinamento da Filó e trabalha nesta empresa por sete anos, antes de passar por
outras confecções de roupas íntimas da cidade.
Vânia pede demissão da Filó cerca de quatro anos antes do pedido de dispensa de
uma de suas melhores amigas que já tivemos a oportunidade de conhecer – Lúcia. Com
efeito, Lúcia e Vânia se conheceram na Triumph, trabalhando lado a lado, na esteira de
produção. Certamente Lúcia é uma destas amizades a que Vânia se refere como tendo
perdurado até os dias de hoje. Reiteradamente elas se visitam para “tricotar”, conforme elas
se referem a suas conversas. Ambas passaram pelas experiências agradáveis, segundo sua
interpretação retrospectiva e idealizada, dos anos anteriores à implementação do sistema de
“célula”. Similarmente ambas não suportaram a “pressão” por produtividade e qualidade
que se seguiu às alterações do processo produtivo e, por conseguinte, demitiram-se logo
depois.
Depois da Filó, tenho a impressão de que a caracterização negativa que Vânia faz de
sua experiência de trabalho na Soraya Lingeries constitui apenas, de sua parte, a evocação
de um “caso privilegiado”, no melhor estilo maussiano, que ilustra de um modo mais
radical as experiências mais conturbadas do período posterior à segunda metade dos anos
1990. Por vezes minha informante mencionou certos problemas e conflitos que datam da
fase na qual trabalhou em outras confecções como a Cor da Pele, por exemplo.
“Na Cor da Pele eu até tinha amizades, mas era diferente. Tinha dias em que eu até
gostava, mas tinha dias que não. A inspetora, a Ângela era muito ignorante com as
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costureiras. Comigo até que não era, agente se dava bem, eu já fui na casa dela e tudo. Mas
mesmo assim eu tinha medo. Eu sempre tinha medo de como ia ser no dia seguinte. Porque
lá era célula, e no dia seguinte poderia ter aparecido algum defeito e a célula ia reclamar,
né? E tinha dias em que a Ângela estava ‘com a macaca’!” (Vânia).
No mesmo período outros acontecimentos afetaram diretamente a vida de Vânia.
Seu marido, que ao sair da fábrica Rendas Arp passou a trabalhar no comércio com certa
estabilidade durante cerca de vinte anos, ficou em seguida desempregado e começou a viver
de pequenos trabalhos informais, prestando serviços para lojas de produtos de decoração.
Este fato fez pesar sobre os ombros de Vânia a responsabilidade pela manutenção da casa.
À “pressão” das relações de produção adicionava-se a partir de agora uma segunda pressão
doméstica, uma responsabilidade que decorria do fato de Vânia ser a única pessoa da
família com amplas possibilidades de emprego estável.
Conforme eu pude testemunhar várias vezes, dificilmente havia um mês no qual
Vânia precisasse ser a única provedora da casa. Com regular freqüência seu marido a
ajudava com os recursos de serviços informais e, mais esporadicamente, seu próprio filho
também contribuía. A experiência negativa associada ao desemprego de seu marido é
menos de ordem financeira do que psicológica – do peso da responsabilidade de ser a única
pessoa empregada da família. Daí a adequação que me parece haver no termo nativo
“pressão” que minha interlocutora, como representante do grupo social mais geral das
costureiras de Nova Friburgo, também emprega para designar mais esta alteração de suas
antigas condições de vida.
Por fim Vânia consegue se aposentar, no ano de 2006. O processo de aposentadoria
não foi, entretanto, desprovido de apreensões. Ao dar entrada no pedido de aposentadoria a
força desta trabalhadora foi abalada por um forte medo, que beirava o pânico, de seu pedido
ser rejeitado ou seus cálculos estarem equivocados. Felizmente o processo correu rápido e,
em um mês sua solicitação foi deferida. Mas o receio de Vânia não deixa de ser expressivo
da maneira pela qual seu trabalho, antes caracterizado tão agradavelmente, estava sendo
negativamente visto por ela própria. Com efeito, os eventos anteriores de fins da década de
1990, ligados à reforma da previdência, no setor privado, às vésperas da tão sonhada
aposentadoria proporcional, com 25 anos, por parte de Vânia, tais eventos parecem ter
constituído um trauma para minha amiga. O encadeamento das mudanças produtivas da
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oupa íntima, das alterações correspondentes nas relações intercostureiras e da imediata
reforma da previdência constituiu, a um só tempo, uma deterioração das antigas condições
de trabalho de Vânia e uma quebra de sua conseqüente pretensão de se aposentar
imediatamente em decorrência destas transformações mesmas. Em outras palavras, às
experiências desagradáveis ligadas à implementação do sistema de “célula”, seguiu-se a
expectativa repentina de minha informante de aposentar-se para afastar-se do novo
ambiente aversivo. A supressão do direito à aposentadoria proporcional, com 25 anos de
contribuições à previdência, foi um segundo golpe desferido contra Vânia antes que a dor
provocada pelo primeiro fosse curada.
Comparativamente às condições de trabalho dos últimos anos ativos de minha
informante, a aposentadoria perece ter constituído uma melhora relativa de seu padrão de
vida, de um ponto de vista nativo. “Anos ativos” não é, entretanto, uma boa expressão para
caracterizar a vida de Vânia anterior à sua aposentadoria. Não porque ela não tenha sido
ativa, mas porque a expressão produz um efeito de contraste com sua vida atual que não lhe
faz justiça. É que de modo algum a vida atual de minha amiga pode ser descrita como
inativa. Diariamente, com a exceção do domingo apenas, ela acorda às cinco e meia da
manhã, toma um café caprichado e segue para uma academia de ginástica de Conselheiro
Paulino, onde ela se exercita das seis às oito horas. Em seguida, Vânia retorna para sua
casa, onde trabalhará, sentada à máquina de overlock, durante todo o dia, por vezes mesmo
adentrando parte da noite, com o teto máximo de sua jornada sendo demarcado pelo início
de sua novela.
Em 2006 imediatamente após sua aposentadoria, Vânia entrou em um estado de
profundo desânimo que, segundo ela, beirou a depressão. Seguiu-se uma semana inteira na
qual ela me relatou ter passado todo o tempo deitada na cama, com portas e janelas
fechadas. Por fim, ela concluiu que não poderia parar de trabalhar e tratou de procurar uma
confecção que lhe fornecesse trabalho sob a forma de “facção”. Não demorou muito até que
sua irmã, também costureira do sistema de “facção”, conseguisse uma máquina emprestada
com sua patroa para que Vânia lhe ajudasse com suas costuras. Alguns meses depois, uma
outra fábrica – cuja dona era a filha da patroa de sua irmã – começou a lhe fornecer costura
igualmente. No início minha informante disse que pretendia trabalhar somente meio
período, já que não precisaria se matar uma vez que contava com o dinheiro da
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aposentadoria. Com o passar do tempo, no entanto, chegava uma quantidade cada vez
maior de costura para que ela desse conta, em um período de tempo cada vez menor.
“Na facção não tem isso de você querer trabalhar só meio período não. A patroa que
te emprestou a máquina não quer saber de deixar essa máquina parada. Então ela quer que
você se mate de trabalhar, senão ela tira a máquina e passa para outra pessoa”. (Vânia).
Some-se a isso o rebaixamento do poder de compra
de Vânia com o salário da aposentadoria e, por
conseguinte, sua crescente necessidade de
complementar a renda com o trabalho na “facção”.
Voltarei a este problema do empréstimo da máquina
como dispositivo de chantagem patronal – ou
“pressão” produtivista – no próximo capítulo. Basta
agora dizer que, embora Vânia se sinta muito
melhor hoje do que quando trabalhava no sistema de
“célula”, a aposentadoria não significou para ela
uma diminuição de sua carga de trabalho.
Como seu marido freqüentemente está em casa em decorrência de sua condição de
desempregado e prestador de serviços intermitentes, opera-se amiúde na esfera doméstica
de Vânia uma inversão da tradicional divisão sexual do trabalho doméstico. De modo que
ela passa como vimos o dia na máquina de costura, enquanto seu marido cuida de parte dos
trabalhos domésticos. Prepara as refeições, da conta da louça suja, etc. Não obstante, esta é
uma alteração parcial, porquanto a lavagem da roupa e a limpeza da casa ficam ainda por
conta de Vânia. De modo que não se pode dizer que a aposentadoria tenha dado um fim na
dupla jornada de trabalho de nossa interlocutora.
Com todos os problemas enfrentados por Vânia ao longo de sua trajetória –
problemas apenas esboçados precariamente aqui, bem como o foram as soluções
encontradas por esta trabalhadora –, num balanço geral, vejo desenrolar-se diante de meus
olhos uma vida feliz (conforme ela reiteradamente faz questão de frisar), construída com
luta por esta incansável trabalhadora. Confrontando-se com obstáculos, por vezes
causadores de feridas dolorosas, Vânia seguiu inabalável sua trajetória, conduzindo sua
vida da melhor forma que podia diante das condições freqüentemente adversas que
enfrentou. Assim é que, passando pelas experiências desagradáveis do sistema de “célula” e
convivendo conjuntamente com o desemprego do marido, ela encontrou forças para
trabalhar duramente e, com um salário irrisório, manter as despesas da casa e financiar,
durante dois anos, os custos com a faculdade do filho. Trata-se efetivamente de uma
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heroína e se estas notas retratam-na como menor do que ela de fato é isso se deve menos às
dimensões de suas incomensuráveis virtudes do que à inaptidão literária deste autor.
Íris.
Uma das primeiras recordações que guardo do dia em que Íris e eu nos conhecemos
diz respeito ao que ela trazia em mãos. Lembro-me de ter brincado com ela acerca do livro
que segurava – “O que faz alguém vir à Rua Portugal à uma e meia da madrugada na
companhia de Jean Jaques Rousseau?” Tratava-se de uma edição de bolso d’O Contrato
Social que Íris disse ter comprado em uma banca de jornal juntamente com outros títulos de
Voltaire e Marx. “É pra você ver como eu gosto de velharia!”, brincou comigo. Com isso
ela estava se referindo, de um modo bem humorado, ao seu apreço pela História, conforme
veio a me esclarecer em seguida. O fato de ela trazer o livro em mãos àquela hora devia-se
à sua procedência. Era uma noite de sexta-feira e Íris, ao findar o expediente na confecção,
havia se dirigido direto à casa de uma amiga. Como ela costumava ler nos horários vagos
de sua jornada de trabalho e não tinha passado em sua casa para deixar suas coisas, o livro a
acompanhou durante toda a noite. Conversamos então largamente sobre estes assuntos,
História, Rousseau, Marx, etc. Impressionou-me bastante o entusiasmo com o qual Íris
falava destes temas, sobretudo no ambiente pouco propício a assuntos exageradamente
sérios, no qual nos encontrávamos – um barzinho de uma das ruas mais movimentadas da
noite friburguense.
Dado seu grande interesse na matéria, perguntei se ela era estudante de História.
“Que nada, infelizmente ainda não. Eu trabalho de costureira de lingerie, em confecção”.
Lembro-me ainda de ter ficado curioso sobre de onde vinha seu interesse pela História, ao
que ela me esclareceu prontamente. Disse-me que tinha muitos amigos que cursavam
História na Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia – uma universidade católica de Nova
Friburgo – e que eles falavam muito sobre o tema, o que a fez se interessar também. De
maneira que, tendo terminado o ensino médio naquela ocasião, ela iniciou uma série de
leituras de textos históricos que seus amigos lhe indicavam. Uma vez que o curso de
História da cidade é ministrado à noite perguntei ainda o que a impedia de ingressar logo de
uma vez na graduação, posto que há muitas costureiras de lingerie que cursam suas
graduações no período noturno.
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“É que eu perdi muito tempo da minha vida, sabe? Casei cedo demais e fiquei
naquela vidinha de trabalhar e voltar para a casa. Felizmente eu me curei a tempo! (risos)
Me separei há alguns anos e agora eu vou fazer História. Mas primeiro eu tenho que
arrumar a minha vida. Tenho uma filha para criar. Mas assim que der eu entro na
faculdade” 87 .
Com efeito, seis meses depois deste nosso primeiro encontro, Íris ingressou no
curso de graduação em História da referida universidade friburguense. Não demorou muito,
entretanto, para que minha amiga mudasse de idéia. Após dois períodos de curso, ela
trancou sua matrícula no intuito de se preparar para o vestibular para modelagem e
estilismo, na UFRJ. Embora a mudança de planos repentina possa parecer estranha, as
coisas ficam mais claras se olhamos para a trajetória de Íris, bem como para o contexto de
sua vida nos últimos anos.
No dia 15 de Março de 1978 Íris nascia na cidade
do Rio de Janeiro, sendo a segunda filha de seu
Antônio e dona Lúcia. Seu pai, hoje aposentado, era
então cabo do corpo de bombeiros daquela cidade;
sua mãe, dona de casa. Cinco anos depois, seu
Antônio pediu transferência para o município de
Nova Friburgo quando a avó de Íris – que, sendo
viúva, residia sozinha naquela cidade da região
serrana do estado – ficou doente. Desta maneira,
toda a educação básica de Íris se passou no âmbito
mesmo das escolas públicas friburguenses. O ensino
fundamental foi cursado integralmente em uma
escola municipal do bairro Maria Tereza,
pertencente ao distrito de Riograndina – localizado
no extremo Norte de Nova Friburgo, acima do
distrito de Conselheiro Paulino (cor lilás, no mapa 1
do anexo) –, onde sua família reside até hoje.
Completada esta primeira fase de sua formação escolar, minha informante
interrompe seus estudos para, durante quatro anos, trabalhar como vendedora em uma loja
de doces no Centro da cidade. Este período de sua vida é caracterizado de um modo
negativo por Íris comparativamente ao seu atual trabalho na costura de roupas íntimas.
“Embora não seja um mar de rosas, trabalhar em confecção é bem melhor do que no
comércio. Na loja eu não tinha hora pra sair. Quando chegava época de festa, natal, então
era pior ainda. E não tinha hora extra não! Agora, na confecção agente tem hora certa pra
87 Esta é uma reconstituição minha, feita de memória, da fala de minha amiga há alguns anos atrás.
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sair, dá pra estudar à noite, se você tiver uma equipe boa em produção dá pra tirar um
salário melhor também. E tem espaço para você crescer na profissão”.
Este depoimento de Íris pode ser quase considerado um roteiro para o relato de sua
trajetória, sendo sobremodo expressivo da maneira pala qual ela entende seu trabalho na
indústria de lingerie e suas expectativas para o futuro. Senão vejamos. Aos 20 anos, minha
interlocutora é demitida da referida loja e ingressa no curso de costura de lingerie do
SENAI, onde passa um ano sendo socializada não apenas nas técnicas de seu atual ofício,
mas similarmente nos dispositivos de controle social sob os quais deverá sucumbir, nas
fábricas. O ano era 1998 – período de plena expansão do pólo de “confecções” de lingerie
da região. O episódio de sua socialização no ofício de costureira de lingerie é
particularmente importante para os propósitos desta dissertação.
A exemplo de Vânia, Íris também foi iniciada na profissão por intermédio das
equipes de treinamento do SENAI. Diferentemente da primeira, entretanto, esta não foi
recrutada diretamente por uma empresa como ocorreu no primeiro caso (lembremos que o
aprendizado de Vânia se deu nas dependências da própria Triumph, onde ela já estava
contratada como aprendiz e, em seguida, se integrou na produção das salas de costura). Esta
diversidade de formas de socialização, que se processaram em momentos separados entre si
por cerca de pouco mais de uma década, parece corresponder a diferenças na maneira como
o trabalho fabril era organizado e, por conseguinte, nas condições de manutenção de
estabilidade no emprego da classe operária. No primeiro caso, de Vânia, a própria empresa
investia em formação da mão-de-obra qualificada porquanto o município era ainda bastante
carente em costureiras de lingerie. Ademais a organização do trabalho fabril, pelo menos
no que dizia respeito à indústria de roupas íntimas de Nova Friburgo, não havia ingressado
na fase de flexibilização e terceirização do trabalho, o que possibilitava amplas expectativas
de estabilidade por parte das costureiras. No caso de Íris, ao contrário, a noção de
estabilidade deu lugar à idéia empresarial de “empregabilidade”. Este novo ideário, calcado
em uma concepção individualista da formação profissional, parece depositar sobre os
ombros dos trabalhadores toda a responsabilidade pela qualificação. Destarte, no contexto
friburguense de fins da década de 1990 e similarmente hoje, é possível testemunhar uma
ampla oferta de empregos no setor de produção de lingerie sem, contudo, nenhuma garantia
de estabilidade no trabalho. O que se vê, pelo contrário, é uma frenética rotatividade das
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costureiras entre as centenas de confecções locais. Rotatividade esta que parece decorrer de
dois aspectos principais: de um lado, o ideal de exaltação estética e do luxo dos produtos
das empresas de lingerie, que deposita sobre os ombros das costureiras uma exacerbada
exigência de qualidade e cujo corolário é um discurso patronal de culpabilidade das
operárias em decorrência de sua “baixa qualificação”; de outro, as dificuldades pelas quais
muitas trabalhadoras do ramo encontram em se adaptar a certos ambientes de trabalho cuja
pressão pela alta produtividade e qualidade são por demais exaltadas.
Há ainda outros aspectos interessantes a serem enfatizados no período de formação
profissional de Íris. De acordo com seus relatos, além do treinamento nas técnicas de
costura dos diversos processos necessários à produção do lingerie – o que já constitui uma
diferença fundamental comparativamente ao aprendizado de Vânia, que se concentrou
sobre uma única etapa inicialmente – outra ênfase do curso recaía sobre a importância do
trabalho em equipe, do gerenciamento coletivo da qualidade, das metas da empresa, etc. Ou
seja, o referido curso não se propunha apenas a habilitar as aprendizes ao trabalho nas salas
de costuras, mas a inculcá-las todos os dispositivos de controle social, disfarçados de
controle de qualidade e metas de produção, necessários a uma genuína “qualificação” do
ponto de vista patronal.
Finalizado o curso, Íris é admitida prontamente na fábrica Lucitex, onde continua
empregada atualmente, tendo completado, em 2008, nove anos de trabalhos prestados à
empresa. Desde o início ela se deparou com o sistema de produção em célula que ela
inclusive já tinha conhecido no próprio curso do SENAI. De maneira que, diferentemente
das gerações mais antigas de costureiras que passaram anos a fio trabalhando no processo
produtivo individualizado, não há sentido em falar de dificuldades de adaptação de Íris ao
sistema de célula, porquanto sua socialização no ofício supunha um adestramento prévio na
nova lógica de produção.
Assim, quando lemos no depoimento de minha informante, citado na página 116, a
seguinte passagem: “se você tiver uma equipe boa em produção dá pra tirar um salário
melhor também”; fica claro que a equipe aqui se refere à célula, cujas gratificações por
produção e prêmios por qualidade são unificados. Para além da questão propriamente
financeira, a Lucitex é, das fábricas que visitei, o lugar onde mais claramente podemos ver
o quanto a célula pode ser um espaço de sociabilidade e uma unidade de coesão social.
123

Freqüentemente os grupos de colegas que saem para a rua, na hora do almoço, ou que vão
embora juntas, por ocasião do fim do expediente, podem ser quase integralmente
equacionados com as células de produção.
Foi também nas dependências da Lucitex que Íris conheceu seu futuro marido,
Arnaldo, um dos mecânicos de máquina de costura que prestava serviços para a empresa.
Seguiu-se um curto período de namoro e, inesperadamente, veio a gravidez. Ao fim do
primeiro ano em seu novo emprego como costureira, minha amiga já se encontrava casada
com Arnaldo, tendo passado a residir na casa dele.
Entretanto, olhando retrospectivamente para sua vida de casada Íris faz uma
caracterização muito negativa do período. O casamento durou apenas dois anos e, em suas
palavras, sua vida entrementes foi bastante monótona. Ela me disse que sempre gostou de
sair à noite, que começou a trabalhar cedo para poder arcar com os custos de seus
programas e atividades de lazer e que, portanto, não poderia ter vida mais avessa ao seu
modo de ser do que a vida matrimonial. Não obstante, o relacionamento em si não foi de
todo ruim. Com Arnaldo, Íris conheceu uma de suas maiores paixões – o “rock’n roll”,
como ela costuma referir-se ao seu estilo musical predileto. Algumas poucas vezes ao longo
desta fase, segundo seus depoimentos, o casal deixava sua filha com os avós, nos fins de
semana, e saiam de mochila nas costas por variadas localidades do estado do Rio de Janeiro
para assistir a festivais de música, sobretudo rock, blues e jazz. Mas tais programas
intermitentes pareciam não ser suficientes para satisfazer a vontade de viver de minha
informante. Foi também por esta ocasião, e “graças à mesmice de sua vida”, segundo suas
próprias palavras, que Íris desenvolveu um gosto particular pela a leitura. “Como era chato
ficar em casa, e se eu saísse sozinha teria briga, eu fiz uma ficha na biblioteca municipal e
comecei a ler” – disse-me.
Conforme relatei no capítulo anterior, a Lucitex foi a única dentre as fábricas que
visitei que contava com uma modalidade educativa dentre seus “benefícios sociais”. Pois,
foi precisamente nas dependências da empresa que Íris, finalizado seu casamento, retomou
sua escolarização. No ano de 2002 minha futura amiga retirou os módulos educacionais do
SESI correspondentes à primeira série do ensino médio. Encerrado este primeiro ano, ela
optou, para completar a educação secundária, por uma modalidade presencial e, por
conseguinte, cursou os dois anos consecutivos no terceiro turno do Colégio Estadual
124

Professor Jamil El-Jaick, uma instituição conhecida por seu ensino de qualidade dentre as
escolas públicas da cidade.
Foi precisamente por esta ocasião, quando Íris estava se preparando para ingressar
na faculdade, que nos conhecemos. Nos aproximamos em grande medida em função de
nossas afinidades em relação ao gosto pela História e também por freqüentarmos o mesmo
grupo de amigos. Sua mudança de planos em relação ao curso de História parece dever-se
menos a uma questão de gosto do que a questões mais objetivas, ligadas à configuração
específica do mundo do trabalho em Nova Friburgo, bem como a uma expectativa de
continuidade profissional com ascensão social e econômica.
O interesse repentino de Íris em cursar modelagem e estilismo faz coro com um
número significativo de costureiras com as quais pude conversar. As operárias da mesma
geração de Íris alimentam com regular freqüência um sonho semelhante. Na própria Lucitex
eu tive oportunidade de conhecer pelo menos quatro meninas que estavam se preparando
para o vestibular em algum dos cursos ligados à moda. Mesmo entre as costureiras de
gerações mais antigas, não é incomum encontrar alguma aspiração homóloga. A diferença
aqui é menos de sonhos do que de expectativas realistas, calcadas nas possibilidades
concretas que as estruturas objetivas subjacentes à vida destas trabalhadoras determinam.
Assim, estas últimas encaram sua profissão de costureiras como permanentes, relegando
suas esperanças em tornarem-se estilistas ao mundo dos sonhos; as operárias de gerações
mais recentes, por sua vez, vêem amiúde seu trabalho na costura de lingerie como
temporário – como condição de possibilidade para cursar uma graduação, por exemplo.
Diante da regularidade das opções por cursos, superiores ou técnicos, de algum
modo vinculados ao campo da produção de roupas íntimas, e mais fundamentalmente
ainda, à categoria nativa de “moda íntima”, como interpretar tais aspirações de vida? Em
primeiro lugar, tenho a impressão de que, de um ponto de vista mais objetivo, isso se deve
ao fator fundamental das amplas possibilidades de emprego que o campo oferece de
maneira crescente, na região. As iniciativas recentes do setor patronal no sentido da
expansão econômica do setor a que fiz referência na introdução deste trabalho – como a
formação do Arranjo Produtivo Local de Confecções (APL), do “Conselho da Moda”, as
iniciativas do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, com a
implementação de um Projeto de Extensão Industrial Exportadora (PEIEx) na APL de Nova
125

Friburgo – dão testemunho das expectativas de crescimento do campo. Ademais, as jovens
costureiras que sonham em entrar para o ramo da modelagem e estilismo, no setor mesmo
de roupas íntimas, contam com uma certa vantagem por já conhecerem por dentro o campo
das indústrias de lingerie da cidade.
Por outro lado, de um ponto de vista mais subjetivo, me parece que estas operárias,
desejando ascender social e economicamente, vêm optando recentemente pelos estudos de
longa duração, com formação superior, etc., mas sem desejar sair do ramo do vestuário e,
mais fundamentalmente ainda, do ramo de lingeries. De maneira que, de um modo talvez
não totalmente consciente, estas trabalhadoras identificam a escolarização de longa duração
com uma estratégia eficaz de desproletarização. Contudo, a formação superior no campo
mesmo da modelagem e estilismo, da moda, etc. permite a estas jovens trabalhadoras a
elaboração de uma continuidade profissional com ascensão, a formulação de uma narrativa
biográfica de longa duração, cujas conseqüências pessoais para a estabilização de certos
valores Richard Sennet (op. cit) enfatizou de modo convincente.
Destarte, depois de nove anos trabalhando como costureira em uma grande fábrica
de lingerie, Íris parece ter sido tocada por uma aspiração recorrente entre suas colegas de
trabalho. O ingresso na graduação em História, em uma universidade privada do interior do
estado, pode ter concorrido, entretanto, para evidenciar a ela seu potencial intelectual. O
que amplificou suas expectativas de ingressar em uma universidade pública. A opção pelo
curso de modelagem e estilismo foi, nesse contexto, um corolário de uma combinação
específica de fatores desarticulados entre si – sua opção pela escolarização de longa
duração, a descoberta de seu potencial intelectual e, sobretudo, a larga parcela do tempo de
sua vida na qual ela trabalhou na costura de lingerie; trabalho que, mais do que ter deixado
marcas corporais, parece ter marcado os gostos intelectuais de Íris. Daí a lamentável vitória
da Moda sobre a História, na trajetória de minha amiga.
Duas noções de trabalho fabril; duas visões de escolarização.
As diferenças de geração entre minhas duas amigas talvez não tivessem tão grande
valor heurístico para a análise do trabalho na costura de lingerie, em Nova Friburgo, não
fossem as alterações do processo produtivo sobre as quais esta dissertação se concentra. As
mudanças no modo objetivo como se confecciona a roupa íntima parecem corresponder a
126

transformações de toda a gramática e vocabulário de produção. Neste contexto de
mutações, os termos que talvez tenham uma incidência mais cruel sobre a vida das
costureiras parecem ser polivalência, flexibilidade e empregabilidade.
Para Vânia, como para suas colegas de mesma geração, a imposição da polivalência
constituiu um elemento a mais de pressão patronal, adicionado ao esforço já hercúleo de
manutenção de altos índices de produtividade. A noção de polivalência passou a ser
importante para os propósitos de unificação produtiva da célula. Com todas as costureiras
fazendo o trabalho de todas, os técnicos de produção puderam arquitetar uma dinâmica de
produção tão “simbiótica” – e os termos da biologia transbordam dos discursos
empresariais, nas ditas palestras motivacionais – que o resultado esperado – as gratificações
coletivas – aparenta-se, aos olhos das costureiras da geração de Íris, como uma
conseqüência natural da cooperação na “célula”.
As costureiras da geração de Vânia, no entanto, forjaram seu olhar crítico na
experiência de comparação – este exercício primordial que parece estar na base de todo
aprendizado 88 genuíno – entre as antigas e as novas condições de trabalho. Assim é que,
diferentemente de Íris, Vânia, como sua amiga Lúcia, não puderam suportar por muito
tempo esta nova dinâmica do processo produtivo. O sistema de “facção” foi, para ambas, a
solução possível. Quase invariavelmente, na “facção” as costureiras operam sob condições
bastante semelhantes às que vigoravam antes da implementação do sistema de “célula” –
em geral, a “facção” se concentra sobre uma única especialidade apenas (overlock,
interlock, colarete, etc.), prescindindo, por conseguinte, da imposição da polivalência.
Por seu turno, as noções de “empregabilidade” e “flexibilidade” produzem um
efeito mais contundente sobre as trajetórias das gerações mais recentes. É esta nova
linguagem que – fundamentada em uma concepção de adaptação (aos mais diferentes
ambientes de trabalho) também importada da biologia – parece ter provocado as
transformações na visão nativa de escolarização que testemunhamos na passagem de uma
geração à outra. Daí que Íris e suas colegas de mesma idade tenham optado por investir nos
estudos de longa duração. Vânia, por sua vez, nunca concebeu o trabalho fabril como
88 Interessante a respeito da comparação – do estabelecimento de oposições heurísticas, no aprendizado
humano – é o comentário presente acerca de Rousseau em Lévi-Satrauss, Claude. S.d. O totemismo hoje.
Lisboa: edições 70. “Mas permite-lhe também formar uma visão extraordinariamente moderna da passagem
da natureza à cultura, fundada, como se viu na emergência de uma lógica que opera por meio de oposições
binárias, e coincidindo com as primeiras manifestações do simbolismo.” (p.129, grifo meu).
127

meramente temporário. Como temos a oportunidade de ler em suas notas auto-biográficas,
ela produziu efetivamente uma narrativa de vida baseada em sua vida como operária. Por
outro lado, Vânia pode ser considerada como um exemplo expressivo da maneira pela qual
a maioria das costureiras – não importando a geração – concebem a escolarização de seus
filhos – uma escolarização de longa duração; isto é, direcionada para os estudos
universitários. Daí que ela, mesmo passando por dificuldades financeiras, tenha financiado,
durante dois anos, as despesas com a universidade do filho.
As diferenças de gerações evocadas aqui como uma oposição heurística para a
análise das diferentes reações às mudanças ocorridas na produção de lingerie e, de um
modo similar, às diferentes formas de conceber o trabalho e a escola, entre as costureiras de
roupas íntimas de Nova Friburgo, não devem, pois, ser pensadas em sua acepção de idade
biológica. Trata-se antes de transformações do Espírito de um Tempo – de diferenças entre
as configurações específicas do setor industrial e operário de lingerie antes e depois das
mudanças dos anos 1990 – do que de características individuais das gerações de costureiras.
Entrementes parece ter ocorrido uma alteração da maneira pela qual a classe operária
concebe a importância do capital escolar que corresponde a um declínio das expectativas de
estabilidade no trabalho operário. A este respeito, eu arriscaria afirmar que estas mudanças
são mais generalizadas do que o estudo etnográfico de uma categoria de trabalhadores de
uma localidade específica pode sugerir. É, pois, com o registro de um caso paralelo, em um
contexto marcadamente distinto, que finalizo este capítulo para, em seguida, pedir licença e
adentrar na residência de minhas informantes.
“Dans les différentes sphéres de la société, la possession d’un
capital scolaire tend à devenir un élément décisif, celui qui permet
d’acquerir une valeur sociale et économique. Ce qui se joue autour de
l’école (les diplomes, la certification des compétences, mais aussi la
question de la domination par et dans la culture, par et dans la passage par
l’école) est donc essentiel pour comprendre les nouvelles formes de
légitimation de la domination. C’est l’absence de toute perspective
d’avenir professionnel ouvrier à l’usine qui, dans les années 1990, a
rapidement incité les familles ouvrières, notemment celles dont les pères
étaient ouvriers spécialisés (OS), `orienter leurs enfants vers des études
longues et indetermines”. (Beaud & Pialoux, 1999:19).
128

CAPÍTULO 3
Roupa íntima e vida privada: um relato sobre a esfera doméstica.
Considerações sobre a residência operária.
Although the concept of the domestic sphere has to
some extent fallen out of favor both in anthropology
and in feminist studies, largely because of well-
deserved criticisms of the resilient but problematic
domestic/public dichotomy, my study suggests that it is
worthwhile to retain the idea. I prefer the term
‘domestic sphere’ to ‘family’ or ‘household’ in some
contexts because it can encompass both of these and
more. The notion of an encompassing sphere rather
than a social unit or collection of persons better allows
for the inclusion of individuals, practices, and functions
not generally associated with ‘the family’ or ‘the
household’ in modern society, such as those associated
with domestic economic production” 89 .
“A orientação da casa é predominantemente definida
do exterior, do ponto de vista dos homens e, se se pode
dizer, pelos homens e para os homens, como o lugar de
onde saem os homens”. 90
Elaborar um relato que apresente as características principais da residência das
famílias operárias é um exercício desafiador e perigoso. O desafio é encontrar os aspectos
mais expressivos das especificidades apresentadas pelo modo de vida das costureiras de
lingerie de Nova Friburgo. O perigo, por sua vez, é ceder às tentações da generalização –
isto é, pintar uma imagem esfumada em demasia, que não faça justiça às especificidades de
cada família e cada residência, em particular. Formulado deste modo o trabalho consiste,
89
Brenner, Suzanne April. 1998. The domestication of desire: women, wealth, and Modernity in Java. New
Jersey: Princeton University Press. (15-16)
90
Bourdieu, Pierre. 1995. “A Casa ou o Mundo às avessas”. In Três ensaios sobre a Argélia & um comentário.
Textos didáticos. Número 16. (p. 106).
129

segundo me parece, em tratar um tal desafio como o antídoto mesmo contra um tal perigo.
Deste modo, tentarei relatar, em linhas gerais e em caráter meramente aproximativo, as
características que me parecem mais expressivas das particularidades da vida das
costureiras com as quais consegui manter algum contato em suas próprias residências. Em
todos os casos nos quais visitei minhas informantes, estas são costureiras representativas
das gerações mais antigas de operárias, invariavelmente casadas. De modo que uma das
formas de eu me precaver contra os perigos deste exercício é me ater exclusivamente a este
grupo de costureiras mais antigas.
Considerarei aqui, como casos mais expressivos, as residências das famílias
operárias situadas nos principais bairros predominantemente populares – ilustrados aqui
pelas residências das famílias de costureiras do bairro de Conselheiro Paulino. Mais
particularmente ainda, não tenho a pretensão de extrapolar as características observáveis
apenas nas três residências que visitei – são elas as casas de Vânia, de Lúcia e de Ana.
Certamente, pela capilaridade do ramo de lingeries materializado em pequenas
“confecções”, em todas as áreas residenciais de Nova Friburgo encontramos famílias nas
quais exista pelo menos um membro, de algum modo, envolvido profissionalmente com a
indústria de roupas íntimas. Não obstante, embora eu não tenha tido a oportunidade de
empreender uma pesquisa habitacional neste sentido, certos bairros tipicamente populares
abrigam muito provavelmente um quantitativo maior de famílias operárias 91
comparativamente a outros lugares tradicionalmente mais elitistas como é o caso do bairro
do Cônego, por exemplo.
Nas casas de minhas três informantes consideradas neste tópico eu sempre fui
recebido em salas de estar que apresentavam entre si características semelhantes. A
disposição dos sofás e demais móveis destas salas são invariavelmente orientadas pelo
eletrodoméstico principal do cômodo – a televisão. A exemplo dos demais convidados
também eu sempre fui recebido e acomodado defronte à televisão. Este lugar central da
91 Estas parecem ser, ademais, famílias mais representativas da caracterização que tentarei elaborar neste
tópico, em decorrência do fato de que os bairros mais populares, como Conselheiro Paulino e Olaria, serem
historicamente o lugar residencial das famílias mais pobres de Nova Friburgo, no interior das quais há um
quantitativo majoritário de membros operários ou pertencentes às classes trabalhadoras. Ao contrário, em
bairros de classe média, como é o caso do Cônego, por exemplo, freqüentemente encontramos costureiras
de roupas íntimas pertencentes a famílias mais abastadas financeiramente – por exemplo, costureiras que
sejam casadas com comerciantes, profissionais liberais, professores das grandes escolas particulares da
cidade, etc. É o caso, por exemplo, de Marcela, uma amiga minha, moradora do bairro do Cônego, filha de
um pai médico e de uma mãe psicóloga, que trabalha em uma confecção da cidade.
130

sala, destinado ao visitante, não parece ter nada que ver com a utilidade da posição – isto, é,
assistir á televisão 92 –, mas corresponde a uma rotina, um rito, que faz conduzir o visitante
ao local, por assim dizer, público da “esfera privada” da casa em contraposição ao cômodo
da intimidade do casal – o quarto de dormir, amiúde mais escuro. Este último de modo
algum pode ser caracterizado como um espaço de visitas. Trata-se efetivamente do locus do
privado, do íntimo, por excelência. A iluminação da sala de estar é, com regular freqüência
bem mais acentuada do que os demais cômodos da casa. Depreende-se disso que as casas
das famílias operárias das costureiras de roupas íntimas de Nova Friburgo parecem
apresentar certas regularidades com as características de residências operárias de outros
lugares, registradas na bibliografia especializada:
“A parte baixa, escura e noturna da casa, lugar de objetos úmidos, verdes ou crus
– jarros d’água postos sobre os bancos na entrada do estábulo, ou contra a parede da
obscuridade, lenha, forragem verde –, lugar também dos seres naturais – bois e vacas, asnos
e mulas –, de atividades naturais – sono, ato sexual, parto –, e também da morte, se opõe,
como a natureza à cultura, à parte alta, iluminada, nobre, lugar dos humanos e em particular
do convidado, do fogo e dos objetos fabricados pelo fogo, lâmpadas, utensílios de cozinha,
fuzil – símbolo de honra viril, que protege a honra feminina – tear, símbolo de toda a
proteção, lugar também das atividades propriamente culturais que se cumprem no espaço
da casa, a cozinha e a tecelagem”. (Bourdieu, 1995: 88).
Este trecho referido á oposição feminino/masculino, incorporada na configuração da
casa Kabila pode ser considerado quase como um roteiro de investigação das casas de
famílias operárias, escrito por Pierre Bourdieu. A questão da iluminação é a este respeito
bastante interessante. A acentuada iluminação da sala, que corresponde a um arejamento
mais largamente distribuído também, só parece ser rivalizada, em duas das três casas por
mim visitadas, pelos quartos dos filhos homens. No caso da terceira deste grupo de três
costureiras que visitei, minha informante não tem filho homem, mas duas meninas. Neste
caso o quarto das filhas se aproxima mais, em iluminação e arejamento, ao quarto dos pais.
A interpretação que me parece razoável para esta diferença talvez possa ser
esboçada por meio de um episódio que pude observar em uma visita à casa de Ana, uma
92 Saliente-se que no caso de minhas visitas o propósito foi sempre de coletar dados para a pesquisa. Por
conseguinte, nestas ocasiões a televisão encontrava-se sempre desligada.
131

costureira amiga de minha mãe que, por isso mesmo, aceitou me receber em sua casa, para
uma entrevista – acompanhado obviamente de minha mãe 93 . Ana possui um filho e três
filhas. Uma vez que uma destas filhas é recém nascida seu dormitório é também o quarto de
sua própria mãe. Um dos três quartos da casa é, assim, destinado às duas filhas mais velhas
e, o terceiro quarto pertence ao filho de Ana. Por ocasião de minha visita, em meio à
entrevista, chega em casa o filho adolescente de Ana, vindo da rua com dois amigos de
mesma idade. Rapidamente minha anfitriã apresenta-o a mim e, em seguida, os três amigos
encaminham-se para o quarto do referido rapaz. Posteriormente, pensando sobre a
elaboração deste relato ocorreu-me perguntar á minha própria mãe se as filhas de sua amiga
Ana costumavam também trazer suas amigas para a casa. A resposta que obtive foi que às
vezes as meninas levam colegas para passarem a noite lá e, outras vezes, para assistir um
filme na sala; o rapaz, por sua vez, parece não ter o mesmo costume. Neste último caso, os
colegas parecem freqüentar apenas durante o dia a residência. Algumas vezes também o
filho assiste com amigos a filmes na sala, outras costumam ouvir música ou jogar
videogame, no seu próprio quarto.
As diferenças de recepção do filho e das filhas aos seus respectivos colegas parecem
corresponder a diferenças na configuração de cada um dos cômodos da residência orientada
segundo diferenças de tratamento entre os gêneros dos filhos. O filho, possuindo um quarto
exclusivo (ao contrário das filhas), recebe sempre durante o dia, seus amigos em seu
próprio dormitório; as filhas, por outro lado, se reúnem para dormir juntas, em casa ou na
casa de amigas. As duas filhas, e suas amigas, convivem com mais freqüência no mesmo
ambiente de Ana, na sala de estar, na cozinha, etc. Por sua vez, o filho de Ana, quando em
presença de seus colegas, parece se isolar mais que as meninas, em seu próprio quarto.
Tudo se passa como se as mulheres convivessem com maior liberdade no interior de toda a
casa; ao passo que os homens, amigos do filho, freqüentam a casa de Ana, sob a condição
de se manterem afastados dos espaços propriamente femininos da residência. O quarto mais
iluminado do filho parece ser, assim como a sala de estar, um espaço público da casa; o
quarto das filhas representa, com o quarto de Ana ela própria, um espaço íntimo e
escondido da casa. Temos assim, diante de nós, uma transformação da dualidade esfera
93 Devo registrar também que as informações referentes aos quartos dos filhos de Ana foram a mim fornecidas
por minha própria mãe, posteriormente a minha visita, posto que estas dependências não me foram
diretamente apresentadas.
132

pública/esfera privada ilustrada pelo par privado-público/privado-privado 94 . O primeiro
pólo da oposição exemplificado pela sala de estar e o quarto do filho; o segundo, pelo
quarto de Ana e seu marido e o quarto de suas filhas. A iluminação dos cômodos privado-
públicos se opõe aqui ao obscuro e ao ocultamento dos cômodos privado-privados; estes
últimos equacionados, também no caso das residências por mim visitadas, ao gênero
feminino.
A sala de estar tem ainda outras peculiaridades interessantes do ponto de vista das
relações de gênero. Por exemplo, os lugares ocupados nos sofás pelo marido e pela esposa,
diante da televisão. Entre as famílias operárias parece haver uma regularidade, uma rotina
pouco modificada ao longo do tempo, nas ocupações dos lugares. Assim, nas casas por
mim visitadas pude perceber que invariavelmente o marido ocupa uma posição bastante
central em relação à televisão; a esposa, por sua vez, ocupa também um lugar privilegiado,
mas não tanto como o do marido. Das três costureiras que visitei, duas têm seus maridos
afetados pelo problema do desemprego. A manutenção de um lugar privilegiado para o
marido, na sala de estar, parece assumir um caráter simbólico representativo do lugar
central do marido na casa como um todo. Tudo se passa como se a mulher tentasse
compensar, por meio de certos artifícios, as dramáticas conseqüências emocionais do
desemprego dos homens. Voltarei a este ponto.
Há ainda uma divisão entre o espaço do quintal e do interior da casa. Trata-se de
uma diferença de domínios de atividades. De um lado, as atividades que são realizadas em
público, à luz do dia; de outro, as atividades relegadas ao âmbito oculto do privado.
Também como a caracterização da casa Kabila feita por Bourdieu, as casas que visitei
apresentam uma divisão entre os espaços das atividades culturais por excelência – a
cozinha, a sala de estar, e o quintal –; e os espaços dos atos que compartilhamos com os
demais animais (o sono, o sexo e demais necessidades fisiológicas) – os quartos e o
banheiro.
94
Esta sub-divisão da dualidade foi a mim inspirada pelas sub-divisões propostas por Bourdieu acerca dos
Kabila:
“Resumindo, a oposição mais aparente masculino (ou dia, ou fogo, etc.)/feminino (ou noite, água, etc.)
corre o risco de dissimular a oposição masculino (feminino-masculino/feminino-feminino), e igualmente, a
homologia masculino/feminino:: feminino-masculino/feminino-feminino. Vê-se aí que a primeira oposição
é uma transformação da segunda, que supõe a mudança do sistema de referência e que acaba por deixar de
opor o feminino-feminino ao feminino-masculino para opor o conjunto que eles constituem a um terceiro
termo feminino-masculino/feminino-feminino →feminino (=feminino-masculino+femininofeminino)/masculino”.
(ibidem: 96).
133

A distribuição dos objetos entre o quintal e o interior da casa revela ainda uma
distribuição sexual do espaço doméstico. No interior os utensílios de cozinha, os produtos
de limpeza, etc. ligados ao trabalho efetuado pelas mulheres; no quintal, as ferramentas do
marido, amiúde empregadas para realizar pequenos trabalhos domésticos (algum eventual
conserto elétrico, hidráulico, etc.). Nas residências operárias de Nova Friburgo há sempre,
no quintal, um pequeno armário improvisado, onde são guardadas as ferramentas que os
homens utilizam em pequenas espécies de travail à-côté (Weber, op. cit.).
Uma das peculiaridades mais interessantes das casas que observei é uma subdivisão
dos espaços nos quais são realizados travails à-côté femininos e masculinos. Nas casas das
costureiras de roupas íntimas pertencentes às gerações mais antigas encontramos
invariavelmente um espaço separado do quintal (conquanto mais fechada, com paredes,
etc.), uma varanda, ou uma área de serviço, onde encontramos uma ou mais máquinas de
costura. No caso particular de minhas entrevistadas, todas são costureiras que trabalham
pelo sistema de “facção”. As máquinas são amiúde emprestadas por empresas de lingerie
que enviam peças para que estas trabalhadoras costurem em suas próprias residências.
Entretanto, mesmo naqueles casos nos quais as costureiras trabalham nas fábricas, não é
incomum encontrar uma ou duas máquinas de costuras em suas residências, onde estas
operárias enfrentam uma segunda jornada de trabalho, na costura. Estas máquinas se
localizam quase sempre em uma varanda perto do quintal, mas em separado e mais fechada
– o contato com o quintal propriamente dito sendo freqüentemente uma janela. Assim os
trabalhos domésticos masculinos são efetivamente realizados fora; os femininos, por sua
vez, dentro da casa. Eis, pois, diante de nós mais uma regularidade das famílias operárias
registrada já largamente pela literatura:
“On peut donc difficilement considérer lê travail d’appoint
masculin, même dans ses formes non marchandes, comme un travail
domestique, à moins d’élargir considérablement le sens original de ce
terme. Si, plutôt que de sortir, les femmes préfèrent faire rentrer le
‘dehors’ à l’intérieur (pots de fleurs, balcons pour le séchage du linge
auxquels on accède par une fenêtre et non par la porte), les homes, même
dans le cas des travaux les plus liés à la maison (bricolage), les effectuent
autant que possible dehors, dans leurs ateliers, aménagés en sous-sol ou
134

dans les garages, auxquels on accede en ‘sortant’, c’est-à-dire en passant
la porte de la maison ou de l’appartement”. (Weber, op. cit: 57).
Destarte, temos aqui uma nova divisão sexual das partes da residência que retoma a
tese de Bourdieu apresentada na epígrafe desta sessão. A porta, por meio da qual se sai para
o exterior, como uma parte masculina da casa; a janela, por seu turno, como uma parte
feminina, onde são depositados vasos de flores, cortinas e, no caso das costureiras, muitas
vezes a máquina de costura, alojada precisamente diante da janela.
O corpo como elo entre a roupa “íntima” e a esfera “privada”.
Les metaphores et registres sémantiques utilisés pour
décrire les actes hétérosexuales de base dans diverses
cultures, notamment occidentales et latino-
amériquenes, montrent comment la domination de
genre structure de façon universalle mais nom uniforme
la perception de sexualité physique 95 .
A denominação de “Capital nacional da moda íntima” tende a obliterar o fato de que
a indústria de lingerie de Nova Friburgo se concentra majoritariamente sobre a produção de
roupas íntimas femininas, e só subsidiariamente sobre a masculina. Com efeito, a própria
noção de “moda íntima” só muito recentemente tem abarcado o público de consumidores
masculinos.
Um pequeno livro de história do lingerie, publicado pelo SEBRAE de Nova
Friburgo, não faz menção alguma acerca de qualquer tipo de lingerie masculino, ao longo
das cerca de trinta páginas nas quais é narrada a trajetória da “moda íntima” desde o século
XV até os dias de hoje 96 . Na introdução mesma deste texto, temos a oportunidade de ler
uma passagem que indica o propósito primitivo do lingerie – esconder o corpo feminino.
“Ao longo da história o lingerie passou por uma série de
transformações. Não existe uma origem exata, porém os registros
históricos indicam que na civilização egípcia um pano era amarrado,
95
Bozon, Michel. 1999. “Les significations sociales des actes sexuales”. In Actes de la recherche en sciences
sociales. (128) Juin.
96
Castro, Érika. 2006. Lingerie: uma breve história 1500-2006. Rio de Janeiro: SEBRAE/RJ.
135

como uma fralda, para esconder a região pubiana. Já na Grécia Antiga, as
mulheres cobriam o púbis com um tecido triangular preso por fios
amarrados nos quadris. Com o passar do tempo, a roupa íntima teve suas
idas e voltas, predominando durante séculos o estilo complicado e
aprisionado no qual não existia conforto”. (Castro, 2006: 4, grifo meu).
Abstraído o fato de este não ser um texto propriamente historiográfico, no sentido
acadêmico, mas uma compilação de lugares comuns históricos reproduzidos no interior do
campo da moda, o trecho revela que uma investigação sobre a homologia possível entre a
noção de “moda íntima” e a “esfera privada”, tradicionalmente referida ao âmbito
doméstico pode extrapolar o aspecto meramente semântico. O lingerie parece ser
engendrado originalmente como um dispositivo de sexualidade marcado pela dominação de
gênero. A esfera “privada”, ou doméstica, parece ser, em proporções maiores, o que a roupa
“íntima” é em escala reduzida. A primeira representa, por assim dizer, um asilo e, em certas
condições, uma prisão do corpo feminino; a segunda, por sua vez, constituiu, por alguns
séculos, um segundo esconderijo deste corpo, uma cobertura, um sinto de castidade que
servia também como um dispositivo de enquadramento corporal e moral das mulheres. E
não deixava de representar similarmente um instrumento de auto-tortura e penitência –
quem sabe da eterna culpa pelo pecado original!
“Século XV ao XVII: A roupa íntima se tornou muito rígida. O
corpete que modelava as curvas femininas era tão apertado que ninguém
seria capaz de vesti-lo sozinha, sendo necessária a ajuda de mais de uma
pessoa. Mais de duas horas podiam ser perdidas para vestir uma única
peça. Além disso, era muito comum encontrar mulheres que desmaiavam
com a falta de ar provocada pelo espartilho. Havia ainda o Farthingale ou
Vertingale, que consistia em uma armação de ferro ou madeira com fitas
de algodão e um cinto que era amarrado na cintura. Tinha como
finalidade armar as saias”. (Ibidem: 5).
Mesmo durante o século XIX, por ocasião da consolidação da burguesia como nova
classe dominante e a substituição da cosmologia cristã por uma concepção mais laica do
136

mundo 97 , as roupas íntimas femininas não perderam suas qualidades punitivas sobre o
corpo feminino:
“Século XIX: A idéia de que o corpo deveria ficar firme era muito sólida e, com
isso, os espartilhos voltaram a ser usados. Vários modelos surgiram acompanhando a moda
do momento; a moda dos seios separados, possível grassas a um sistema de barbatanas. Foi
o auge do espartilho. A cintura era extremamente apertada para parecer mais fina”. (Castro,
op. cit: 7, grifo meu).
Durante todo o período compreendido entre os
séculos XV e XIX as roupas íntimas constituem
grandes estruturas de tecido, madeira e mesmo ferro
que ocultam mais o corpo feminino do que as
roupas esportivas contemporâneas o fazem. O
século XX marca a transição da roupa íntima que,
de dispositivo de ocultamento do corpo feminino
passa a um artifício que visa ocultar revelando ou
revelar ocultando. Temos aqui diante de nós o
caráter dialético do lingerie. Em outras palavras, a
roupa íntima, a exemplo da esfera privada da casa,
tem por fim ocultar, esconder, proteger. Mas
enquanto a casa é a primeira instância de
fortificação no interior da qual o poder do “Paterfamilias”
(Freyre, 1998) é onipresente; o lingerie se
encontra no último pólo dos dispositivos de
proteção e ocultação do corpo feminino. Mas,
sobretudo com o advento da “sociedade do
espetáculo” (Debord, op. cit) e com o comércio
midiático dos corpos 98 , o lingerie sofreu uma
metamorfose e, com freqüência atualmente, ele só
se presta a ocultar na medida em que incite à
descoberta. Nesse sentido, do ponto de vista deste
97 Esta substituição, entretanto, constituiu menos uma ruptura radical com a visão cristã do mundo do que uma
metamorfose, uma transformação parcial de uma mesma “antropologia nativa da cosmologia ocidental”
(Sahlins, 1996):
“Não obstante, Deus foi clemente. Deu-nos a economia. Na época de Adam Smith, a miséria humana haviase
transformado na ciência positiva de como aproveitamos ao máximo nossas eternas insuficiências, e
tirarmos a máxima satisfação possível de meios que estão sempre aquém de nossas necessidades. Tratava-se
da mesma condição humana miserável contemplada na cosmologia cristã, só que aburguesada – uma
elevação do livre arbítrio á escolha racional, que proporcionou uma visão mais animadora das
oportunidades materiais trazidas pelo sofrimento humano. A gênese da economia foi a economia do
Gênesis”. (Ibidem: 567).
98 “Tomemos o mais fácil: (...) o sangue e o sexo (...) sempre fizeram vender, e o reino da audiência devia
alçar à primeira página, à abertura dos jornais televisivos, esses ingredientes que a preocupação de
respeitabilidade imposta pelo modelo da imprensa escrita séria levara até então a afastar ou a relegar”.
(Bourdieu, 1997b: 22, grifo meu).
137

mercado de corpos, o lingerie se presta menos a
proteger do que a incitar sua violação. Por
conseguinte, não é por acaso que algumas
costureiras, sobretudo das gerações de operárias
mais antigas, convivendo cotidianamente com os
novos modelos de lingerie batizados com o adjetivo
“sensual”, por vezes ao longo do trabalho formulem
com suas colegas uma variação qualquer da frase:
“meu marido me mataria se eu usasse isso!”
Destarte, a caracterização do lingerie como uma
espécie de esconderijo ou abrigo do corpo feminino
sofreu profundas modificações ao longo da história.
Mas mesmo os modelos dos séculos passados
compartilhavam certas propriedades com os atuais.
Um primeiro aspecto a este respeito é o fato de que,
de certa forma, os modelos primitivos do lingerie,
também ocultavam o corpo feminino para o revelar
a alguém, talvez ao dono, ao proprietário – a saber,
o marido. E nesse sentido, a esfera privada da casa e
a roupa íntima desempenham papéis homólogos nas
relações de gênero. Trata-se no primeiro, como no
segundo caso, de dispositivos materiais que
asseguram a manutenção da modalidade ocidental
monogâmica d“As estruturas elementares do
parentesco” 99 . Em outras palavras, a “esfera
privada” e a “moda íntima” ocultam o corpo
feminino no intuito de garantir simbolicamente que
outros homens – além do marido – abram mão deste
corpo mesmo.
O segundo aspecto de convergência entre o lingerie
antigo e o contemporâneo é o caráter de “distinção
social” que ambos encerram. Com efeito, a roupa
íntima pode ser vista como um componente
vestuário característico d“O processo Civilizador”,
uma marca de civilização. Esse processo não
consiste meramente no controle gradativo das
99 “Ao estabelecer uma regra de obediência geral – qualquer que seja essa regra – o grupo afirma seu direito
de controle sobre o que considera legitimamente um valor essencial. Recusa-se a sancionar a desigualdade
natural da distribuição do sexo nas famílias e estabelece, com base no único fundamento possível, a
liberdade de acesso às mulheres do grupo, reconhecida a todos os indivíduos. Este fundamento, em suma, é
o seguinte: nem o estado de fraternidade nem o de paternidade podem ser invocados para reivindicar uma
esposa, mas esta reivindicação vale somente enquanto direito pelo qual todos os homens são iguais na
competição por todas as mulheres, com suas relações respectivas definidas em termos de grupo e não de
família”. (Lévi-Strauss, 1976:82).
A casa e o vestuário feminino, sobretudo o do período compreendido entre os séculos XV e XIX,
desempenham neste contexto uma proteção particular do “proprietário”, isto é, o marido – segundo a visão
machista do mundo – contra o roubo de sua propriedade, a saber, a esposa – segundo a mesma concepção –
por parte dos demais concorrentes à sua apropriação.
138

emoções ao longo da história, mas simultaneamente
da disposição hierárquica dos “civilizados” e “nãocivilizados”
no interior de um mesmo quadro
classificatório. A roupa, tal qual a alimentação,
concorre decisivamente para este processo. A roupa
íntima, conforme se pode depreender do teor dos
anúncios publicitários dos outdoors de lingerie de
Nova Friburgo, incorpora, a exemplo das roupas
visíveis, um caráter de distinção encarnado na
exaltação estética do luxo das peças. Mesmo
invisível aos olhos de terceiros, a roupa íntima pode,
do ponto de vista das classes dominantes, assumir
um caráter de “distinção social” – segundo
Bourdieu, porque uma marca característica da visão
de mundo burguesa é a recusa da distinção entre a
interioridade e a exterioridade, entre o ser e o
parecer:
“Mais la nourriture, que les classes populaires rangent du côté
de la substance et de l’être tandis que la bourgeoisie, refusant la
distinction du dedans et du dehors, du chez soi et du pour autrui, du
quotidien et de l’extre-quotidien, y introduit déjà les catégories de
la forme, du paraître, est elle-même au vêtement dans lê rapport du
dedans au dehors, de l’intime à l’extérieur, du domestique au
public, de l’être au paraître. Et l’inversion de la part accordée à la
nourriture et au vêtement dans les classes populaires, qui
consacrent la priorité à l’être, et les classes moyennes, où surgit lê
souci du paraître, estl’indice d’un renversement de toute la vision
du monde”. (Bourdieu, 1979: 222-223).
Mas o caráter de distinção social das roupas íntimas,
claramente um aspecto importante da indústria de
lingerie friburguense, é apenas um aspecto
importante no que diz respeito à construção social
do corpo feminino ao longo do processo civilizador.
No que diz respeito ao controle das emoções, no
relato de Elias (op. cit.) o ato sexual e os órgãos
sexuais foram gradativamente ocultados ao longo
deste processo.
“Dans la construction progressive de l’intériorité occidentale et
également de l’intimité familiale, avec ses conséquences sur la
spécialisation et la diversification de l’usage des pièces dans les
demeures (P. Airès, 1973), la sexualité s’est trouvée isolée dans
une enclave secrète, dans le sanctuaire de l’intemité et du domaine
prive”. (Bozon, 1999: 4).
Mas a história do tempo presente, que alguns
denominam pós-moderna (Bauman, op. cit.)
139

apresenta certos aspectos que parecem contradizer o
crescente processo de controle das emoções. Os
atuais meios de comunicação de massa, de um
modo privilegiado a televisão, parecem ter
concorrido para um arrefecimento deste controle por
via da mercantilização (e, por conseguinte, da
exposição publicitária) de tudo que em dizendo
respeito ao sexo, ao longo do processo civilizador,
foi ocultado. Bauman chama este processo de
“barbarização secundária” (ibidem:34).
Destarte, o corpo feminino parece ser, neste contexto, um elo de ligação entre a
“esfera privada” do âmbito doméstico – arquétipo do ocultamento, do enclausuramento
feminino, ao longo do processo civilizador –; e a “moda íntima” – inicialmente um segundo
esconderijo do sexo feminino, hoje símbolo da transformação dialética do ocultamento em
exposição mercantil. Mas se no passado as roupas íntimas assumiam um caráter de
distinção social em decorrência da exaltação do luxo das peças no ocultamento mesmo do
corpo feminino, hoje a exaltação estética do luxo constitui um complemento da exaltação
estética deste corpo ele próprio. Aqui também a construção do corpo, segundo um
determinado padrão hegemônico de estética, incorpora a mesma dinâmica de distinção
social 100 . Nesse sentido, se há um etnocentrismo próprio da visão machista de mundo
incorporado no enclausuramento da mulher no interior da esfera doméstica; há, além disso,
uma segunda ordem de etnocentrismo incidindo sobre a identidade feminina encarnada no
padrão de corpo elevado a modelo de beleza feminina pela mídia e pelas várias variações
industriais organizadas em torno da mercantilização do corpo. No caso de Nova Friburgo,
as mulheres estão cotidianamente confrontadas com este padrão etnocêntrico de corpo, no
contato diário com as inumeráveis imagens publicitárias dos outdoors da indústria de
“moda íntima”. A este respeito a ironia das operárias da indústria de lingerie parece
constituir uma crítica nativa interessante ao padrão de corpo hegemônico, conforme se pode
ver no seguinte trecho de minhas anotações em caderno de campo do dia 30 de Maio de
2008:
“Há também com muita freqüência brincadeiras que apelam para
uma dimensão da feminilidade própria das operárias. Este parece ser um
100 Ver a este respeito o quadro sobre a produção do corpo, segundo a lógica da distinção social por meio da
disposição estética, da página 233 de La distinction de Bourdieu (op. cit.).
140

Gênero e estruturas temporais.
elemento de formação de identidade que, neste caso, deve-se menos à
condição profissional comum que a uma outra característica partilhada
pelo grupo – sua feminilidade. Assim, uma das meninas brincam com o
‘rabo de cavalo’ da colega. ‘Que rabão que você tem hein?’ Ao que a
outra responde: ‘quem não tem rabo em baixo, balança o de cima ué!’”
Conheci Ana, uma costureira polivalente de 47 anos que há 18 trabalha na Triumph,
na sala de espera do Sindicato dos Trabalhadores do Vestuário de Nova Friburgo. Ela
estava lá para informar-se acerca dos procedimentos para entrar com pedido de licença por
problemas de saúde provocados pelo processo produtivo. Eu estava lá para entrevistar
Luzia, a presidente da entidade. Trocamos rapidamente algumas palavras sobre seu
trabalho, especialmente sobre as alterações do processo produtivo apresentadas no capítulo
1 destas notas. Nosso diálogo foi rápido porque ela me disse que estava com muita pressa
de chegar em casa. Nessa curta conversa, Ana ratificou as declarações de todas as
costureiras de sua geração com as quais conversei – sem exceção as caracterizações nativas
desta geração acerca do sistema de célula são como venho salientando, bastante negativas.
Perguntei qual era o problema pelo qual ela estava passando. “Qual dos dois você quer?” –
perguntou-me. “Estou com uma tendinite no tornozelo porque o pedal 101 da minha máquina
é muito duro”. – emendou ela sem esperar resposta – “Mas o médico disse que minha
imunidade está baixa por causa de estresse. É muita correria, na nossa vida, sabe?”
Dias depois descobri que, coincidentemente, Ana não apenas era colega de trabalho
de minha própria mãe, mas uma amiga próxima. Tratei então de pedir a esta que me
ajudasse a ver se Ana tinha conseguido a licença médica. Alguns dias mais tarde
acompanhei minha mãe até a casa de sua colega que, de fato, havia logrado afastamento do
trabalho por um período de um mês. Aproveitei a oportunidade para perguntar se a correria
101 As máquinas de costura são acionadas por um pedal que fica sob a bancada na qual a máquina é afixada.
Com regular freqüência estes pedais emperram ou tornam-se rígidos demais por falta de lubrificação. O
esforço da costureira passa a ser, por ocasião destes problemas mecânicos, sobremodo acentuado. A
repetição do movimento de comprimir um pedal sem a devida lubrificação por oito horas diárias, cinco dias
por semana, acarreta quase invariavelmente lesões no Tendão Calcâneo e nos músculo Gatroquinêmio e
Solear.
141

havia diminuído. “Que nada, menino, trabalho sempre aparece, mesmo quando agente tá
em casa, não é verdade?” – virando-se para minha mãe.
O trabalho a que Ana se referia é o trabalho doméstico evidentemente. No seu caso
particular este não é pouco. Além dos três filhos adolescentes ela teve, há seis meses, mais
uma filha. “Eu só substituí o trabalho da fábrica pelo de casa. Quando eu estou na fábrica a
Milena (sua filha recém nascida) fica com a minha mãe. Agora ela fica comigo né? Que
não tem sentido eu deixar ela lá”.
Mas além de realizar o trabalho doméstico, de cuidar de sua filha pequena, etc., Ana
acumula ainda mais uma função que, quando ela está trabalhando na fábrica, constitui uma
terceira jornada de trabalho. Trata-se da costura, por conta própria, de cerca de cem peças
diárias de lingerie, que ela realiza depois de terminado o “serviço 102 da casa”, conforme ela
o denomina. Ela me disse que tem o objetivo de aumentar a produção doméstica de lingerie
gradativamente conforme for ampliando também o número de seus consumidores fixos.
Assim ela poderá comprar mais máquinas de costura para completar o maquinário,
juntamente com as três que já possui – uma máquina de Overlock, uma Interlock e uma
Vinte e Um (máquina similar à Três Tontos, mas de acabamento considerado inferior a
esta). Se isso acontecer provavelmente Ana deverá substituir a correria de suas três jornadas
de trabalho diárias pela correria do trabalho em sua pequena “confecção”.
Se não acontecer, é provável que daqui a um ou dois anos sua filhinha Milena passe
a acompanhá-la diariamente até a Triumph, onde passará o dia na creche da fábrica. Sua
mãe, por sua vez, deverá acordar um pouco mais cedo do que costuma fazê-lo agora para
aprontar a filha; sairá apressada, caminhando a passos largos com a menina ao colo, pelas
ruas ainda escuras do bairro de Conselheiro Paulino, por volta de cinco e meia da manhã,
para pegar o ônibus que segue direto para a fábrica. Em chegando lá, ela deverá se apressar
para não perder o horário de início do expediente por conta da condução de sua filha até a
creche. A seguir, conquanto sentando-se à máquina, seu ritmo orgânico deverá acelerar
ainda mais em decorrência da pressão produtivista encarnada nas metas de produção já
descritas no capítulo 1 desta dissertação. O horário do almoço deverá ser talvez a única
102 Saliente-se que serviço, servir e servo são termos que têm a mesma raiz etimológica. Talvez não seja por
acaso que esta forma de se referir ao trabalho apareça invariavelmente em situações de subordinação. Sejam
elas de classe ou de gênero, como é o caso aqui no qual a esposa se encarrega sozinha do trabalho
doméstico, o marido estando, por sua vez, totalmente livre desta incumbência.
142

pausa diária – juntamente com o escasso sono noturno – para um descanso genuíno ao
longo da jornada semanal de trabalho de Ana. Ao fim do expediente ela deverá se unir ao
grupo daquelas costureiras que limpam a máquina mais apressadamente para não perder o
ônibus na retirada dos filhos da creche – isso implicaria em ter que caminhar
(provavelmente de um modo ainda mais frenético) por cerca de dez minutos até a
rodoviária urbana, para poder tomar outra condução. Chegando em casa, será a hora de
preparar o jantar do marido e dos filhos 103 . Em seguida haverá que se limpar a casa e,
eventualmente, dar conta da roupa suja. Encerrado o jantar, será preciso lavar rapidamente
a louça para que não se perca tempo. Por fim, antes do merecido (mas reduzido) sono, Ana
escutará sua novela entre curtas olhadelas para a televisão de sua sala de costura, enquanto
deverá terminar a produção doméstica diária das cem peças de roupas íntimas.
O caráter de urgência que marca inexoravelmente a vida das costureiras parece
impregnar por assim dizer, como que por contágio, tudo o que cerca o cotidiano destas
operárias. Assim é que o ritmo do ônibus que conduz as costureiras até a fábrica e as leva
de volta aos seus respectivos bairros residenciais parece constituir uma metáfora concreta
das estruturas temporais que marcam o mundo destas trabalhadoras. Mimetizando
misteriosamente a cadência dos passos das costureiras, os motoristas encarregados pelas
linhas que conduzem à Triumph passam azafamados por sobre os quebra-molas
exageradamente distribuídos pelos bairros populares de Nova Friburgo – com isso
sacudindo vigorosamente os passageiros do carro. As operárias, por sua vez, vivenciam
estes momentos com uma ironia crítica e também com auto-ironia: “Ô motorista, tá de
conchavo com o patrão pra matar agente é? Não balança o carro que machuca a boiada!” A
pressa do motorista do ônibus assume, pois, concretamente tanto quanto metaforicamente,
um caráter negativo que – a exemplo da pressão produtivista patronal e da pressão do
“serviço doméstico” e (no caso de costureiras que, como Ana, enfrentam uma segunda
103 Ao tratar da manutenção das formas tradicionais de dominação, no contexto do mercado de Palmares, em
Pernabuco, Marie-France Garcia registra também a tradicional divisão sexual do trabalho doméstico, que
encontramos também no caso específico das famílias de costureiras de roupas íntimas de Nova Friburgo.
Terminadas as compras, no mercado, é hora do lazer masculino e de uma segunda carga de trabalho
feminino:
“C’est le morador qui achète les denrées alimentaires, sa femme se contentant de lui donner des conseils.
En revanche, c’est elle qui s’acquittera plutôt de l’achat des vêtements, des ustensilles de cuisine, et qui
surveillera les enfants l’accompagnant; une fois les achats terminés, elle retourne à la maison pour préparer
le repas, tandis que les hommes s’adonnent à des jeux de hasard, bavardent et boivent entre eux”. (Garcia,
1993: 62, grifo meu).
143

carga de costura em casa) da terceira jornada de trabalho – acarreta riscos á saúde destas
trabalhadoras.
Diante dos fatos relatados, creio ter evidenciado que a hipótese sobre a qual este
tópico se fundamenta não é nova – a saber, que estruturas objetivas distintas concorrem
para plasmar modos de temporalização igualmente diferentes. Nesse sentido, a pressa e a
urgência (que marcam inclusive as declarações das costureiras 104 ) decorre de uma
configuração específica de aspectos que imprimem, de um modo determinante, suas marcas
sobre a vida destas trabalhadoras. A pressão produtivista é um destes aspectos; a
distribuição assimétrica do trabalho doméstico é outro; a “costura doméstica” 105 é outro. A
defesa mais marcada desta tese, com efeito, talvez possa ser encontrada na obra de Pierre
Bourdieu:
“De fato, para romper verdadeiramente com a ilusão universalista
da análise de essência (à qual tive de sacrificar parcialmente a descrição
da experiência temporal que contrapus parcialmente à visão intelectualista
da decisão racional), seria preciso descrever as diferentes maneiras de se
temporalizar, referindo-se às suas condições econômicas e sociais de
possibilidade. O tempo vazio que é preciso matar se contrapõe ao tempo
cheio (ou bem preenchido) daquele que se entrega por inteiro ao seu
negócio, o qual, como se diz, não vê passar o tempo – ao passo que,
paradoxalmente, a impotência, que rompe a relação de imersão no
iminente, torna consciente a passagem do tempo, como a expectativa”.
(Bourdieu, 2001, op. cit: 273, grifo meu).
104
Lembremos, a este respeito, do depoimento de uma costureira, na página 59, que termina com a seguinte
declaração:
“Mas depois que se aprende não tem processo mais difícil que o outro. Tem processo mais demorado, como
o Overlock, isso tem.”
Deste modo, a própria interpretação das trabalhadoras da roupas íntimas acerca de seu trabalho tende a
enfatizar a questão da celeridade ou morosidade das etapas do processo produtivo. Questão esta que, como
vimos, tem uma importância capital na determinação dos rendimentos financeiros desta categoria operária.
105
Emprego aqui a expressão “costura doméstica” para indicar uma modalidade local do que Brenner (1998)
chama de “domesticação do mercado”, no contexto Javanês. Nas palavras desta antropóloga, seu livro:
“(...) will highlight women’s roles in generating material wealth and symbolic capital for their families
through their engagement in the marketplace; as I will argue, it is through women’s actions that the forces
of the market are ‘domesticated’, or converted to the signs of value in a Javanese sense”. (Ibidem: 9).
Voltarei a este ponto no próximo tópico deste capítulo.
144

É, portanto com esta passagem expressiva da dinâmica de produção das estruturas
temporais – isto é, as estruturas cognitivas específicas referidas ao tempo que constituem o
resultado da incorporação de estruturas sociais também específicas – que finalizo este
tópico para adentrar na esfera da “costura doméstica”. Tais estruturas temporais,
confrontadas com a análise de Bourdieu, evidenciam que, estando todo o tempo das
costureiras bastante ocupado, elas dificilmente o vêem passar. Por conseguinte, a percepção
de que a vida está passando rápido demais, se esvaindo em trabalho, não é incomum entre
estas trabalhadoras.
O caráter polimórfico do sistema de “facção”.
Quando, na primeira metade da década de 1990, o trabalho na Triumph era dividido
em dois turnos – um pela manhã, outro pela tarde – as condições de possibilidade para que
as costureiras mantivessem uma segunda ocupação, um complemento salarial
(freqüentemente na área mesma da costura de lingerie), eram certamente mais adequadas.
Não era incomum encontrar operárias do lingerie que trabalhavam na Filó S.A. e em
alguma outra confecção menor, por meio turno. Por esta ocasião, a moção de Florence
Weber fornecia uma imagem bastante aproximada do cotidiano de larga parcela das
costureiras de Nova Friburgo:
“Comme pour tout travail à-côté – mais peut-être à un degré
encore plus grand – l’exercice d’un second emploi est rendu possible
grace à l’organisation du travail d’usine en deux equipes”. (Weber, op.
cit: 114).
Entretanto, com a abolição do sistema de produção em dois turnos, na maior
empresa de roupas íntimas do município, aquelas operárias que foram preservadas das
demissões massivas tiveram que optar entre a Triumph ou seu segundo emprego. Foi a
partir desse período também, como temos visto, que algumas alterações do processo
produtivo e da organização da estrutura institucional da Triumph se processaram –
engendrando as condições de possibilidade para a formação do pólo de “confecções” de
Nova Friburgo. O sistema de “facção”, tal qual o sistema de produção em “célula”,
constitui um elemento fundamental destas mudanças.
145

Atualmente o segundo emprego das costureiras da Triumph deu lugar a uma outra
forma de complemento salarial – a “facção doméstica” que é apenas uma modalidade do
sistema de “facção”. As relações de produção identificadas sob a denominação de sistema
de “facção” assumem amiúde uma variedade de formas. É sobre este caráter polimórfico da
“facção”, bem como seu caráter polissêmico e suas ambigüidades que eu me concentrarei
neste item.
Um primeiro aspecto importante a este respeito é que não é possível conferir
inteligibilidade à dinâmica do sistema de “facção” sem considerar a natureza, por assim
dizer, simbiótica do conjunto das fábricas de roupas íntimas da região. Com efeito, trata-se
de considerar o modelo de organização institucional do pólo de “confecções” como um
sistema integrado. Ou, formulando a coisa dentro da perspectiva d’O Novo espírito do
capitalismo (Boltanski & Ciapello, op. cit), importa levar em conta a lógica da
“organização em rede” que também as empresas de lingerie friburguenses incorporaram em
sua prática e em seu discurso. Desta maneira, não apenas as cerca de 500 empresas formais
da região constituem uma rede de cooperação capitalista, mas a fortiori o crescente número
das confecções informais (que somavam em 2005 cerca de 200) desempenham um papel
central na trama das relações de produção na indústria de lingerie local. E para entender
esta trama o sistema de “facção” e suas variações internas constituem uma via privilegiada.
O caráter polimórfico deste sistema é aqui evocado para que se possa dar conta das
diversas modalidades de “facção” que o observador pode encontrar no setor de vestuário da
cidade. De um ponto de vista cronológico a primeira destas modalidades foi a terceirização
da produção das salas de costuras que, em meados da década de 1990, foram fechadas na
Triumph International. Assim, “confecções” de lingerie menores que a Triumph, mas não
tão pequenas (isto é, com a capacidade necessária para dar conta do trabalho fornecido pela
multinacional) começaram a receber desta última uma parcela de trabalho a ser realizado
fora do âmbito institucional da Filó S.A.. Como vimos no capítulo 1 esta medida se
coaduna com os novos dispositivos de acumulação flexível do capital, os quais são
orientados pela lógica da terceirização dos custos com a remuneração da força de trabalho.
Esta primeira forma assumida pela “facção” pode ser aqui classificada como uma espécie
de franquia 106 . Importante aqui é registrar que esta primeira modalidade de “facção” se
106 Segundo Ximenes (2001: 419), “franquia” tem, dentre outros, o seguinte significado:
146

estabelece entre duas pessoas jurídicas. Por conseguinte, ela não tem aparentemente
nenhuma relação com a “esfera doméstica” de que trata este capítulo. Parece, pois, muito
estranho que um capítulo sobre a esfera doméstica da vida das costureiras de roupas íntimas
se ocupe deste tipo de “facção”. Mas, conforme assinalei a inexistência de relação entre a
esfera doméstica e a modalidade de facção que chamei de franquia é apenas aparente.
Vejamos, pois, qual é a natureza desta relação por meio de um exercício comparado.
Em seu formidável relato da vida das mulheres que trabalham na produção e no
comércio de batik (um ramo do setor têxtil) em Solo, cidade situada na região central de
Java, Brenner (1998) ilustra como a tradicional separação ocidental entre o que chamamos
“esfera pública” e aquilo que denominamos “esfera privada” pode constituir uma barreira
que dificulta a compreensão do papel central que as mulheres desempenham na produção
de riqueza local – e na produção da própria noção nativa de valor. Segundo este relato – ao
contrário da habitual perspectiva moldada no Ocidente, que qualifica o homem com as
virtudes econômicas, relegando à mulher as propriedades domésticas – em Solo, são as
mulheres as principais protagonistas da produção material e simbólica do que se considera
riqueza. Mas este protagonismo não se daria por simples inversão dos papeis da mulher e
do homem na sociedade – por exemplo, com o último se ocupando do doméstico ou
privado, e a primeira, do econômico, do público. Ao contrário disso, é a própria dicotomia
público/privado que Brenner quer explodir pela experiência das mulheres de Solo. Contra o
suposto poder inexorável do capitalismo e seus corolários – a idéia de modernização e do
predomínio da esfera pública sobre a esfera privada – o papel das mulheres de Solo
consistiu, nas palavras de Brenner, em “domesticar” 107 o mercado, em fazer aquilo que
chamamos público participar efetivamente da esfera privada.
“But the cultural logics that placed women in the role of
‘domesticator’ were quite different from those that have linked women to
the domestic sphere in the West, where, as Nancy Armstrong writes, ‘We
“Sistema em que o detentor de uma marca registrada permite, sob certas condições e mediante pagamento, a
exploração de seus produtos por firmas independentes”.
Na falta de denominação melhor, optei pelo termo franquia para caracterizar o contrato de facção firmado
entre a Triumph e as confecções formais de médio porte porque, embora estas últimas empresas não
explorem propriamente a marca da primeira, a posição privilegiada da Triumph na configuração específica
do setor confere a tais confecções uma certa distinção comparativamente às demais empresas.
107 “I am intentionally playing with the double meaning of the Word ‘domesticate’, to suggest the idea of
bringing something under control as well as turning it into something of value to the family”. (Brenner, op.
cit: 16-17).
147

are taught to divide the political world in two and to detach the practices
that belong to a female domain from those that govern the marketplace’
(1987, 9-10). In Solo, where the marketplace itself is frequently
conceived of as a female domain, the logic of this division fails”. (Ibidem:
17).
Semelhantemente a mulher, sobretudo depois de meados da década de 1990, vem
desempenhando em Nova Friburgo um papel decisivo na formação do pólo de
“confecções” de roupas íntimas local. Mais que isso, creio que não seria exagero sugerir
que o processo de “domesticação do mercado” a que Brenner se refere vêm ocorrendo
vigorosamente também nesta região do estado do Rio de Janeiro pelo trabalho incansável
das mulheres. Como vimos, foram, mormente as costureiras demitidas na reestruturação
produtiva da Triumph, aquelas que compraram, por meio do dinheiro das indenizações e de
financiamentos, as máquinas que ficaram ociosas com o fechamento de uma larga parcela
das salas de costura daquela empresa. Diante do desemprego e de posse de tal maquinário
tais operárias deram início ao que, com propriedade, pode ser chamado de “produção
familiar”. Esta produção familiar é o germe de todo o desenvolvimento industrial posterior
das centenas de “confecções” friburguenses que, com regular freqüência, ocupam salas
construídas sobre as residências mesmas destas antigas operárias. De modo que, a evocação
da noção de “domesticação do mercado” para dar conta deste processo de produção
familiar do lingerie extrapola o âmbito meramente metafórico. Amiúde as redes de
sociabilidade das operárias destas “confecções” se confundem parcialmente com suas redes
familiares. Daí eu ter sugerido que a inexistência de relações entre a modalidade de
“facção” chamada nestas notas de franquia, e a esfera doméstica sobre a qual este capítulo
se concentra ser apenas aparente. Ao mesmo tempo geográfica, simbólica e socialmente a
esfera doméstica se confunde com a esfera da produção industrial de lingerie 108 , em um
percentual majoritário das “confecções” de Nova Friburgo.
Entretanto, se se pode dizer que as costureiras de “moda íntima” que montaram
“confecções” como um modo de contornar o problema das demissões e que, por
108 Considerando que esta dissertação se concentra sobre o setor de produção do vestuário – um campo de
exploração da mão-de-obra feminina; considerando também que o relato de Brenner concentra-se sobre o
setor de tecelagem – além do próprio comércio do tecido – seria o caso de perguntar qual a relação entre a
exploração capitalista da força de trabalho feminina e o processo que esta antropóloga chama de
“domesticação do mercado”.
148

conseguinte, acenderam social e economicamente, operaram uma domesticação do
mercado; a contrapartida desta dinâmica em Nova Friburgo parece ter sido, por assim dizer,
uma “mercantilização do doméstico”. Em outras palavras, o que eu estou querendo evocar
com esta discussão é que se a suposta força inexorável do mercado pôde ser abalada por
meio de uma apropriação feminina e doméstica (no sentido de Brenner – do doméstico
como aquilo que está sob controle e que é convertido em valor para a família) da indústria
de lingerie; por outro lado, aquelas costureiras bem sucedidas nesta empreitada
converteram-se também elas por meio da conversão do mercado. De costureiras exploradas
pelo capital estas mulheres passaram a pequenas capitalistas exploradoras de outras
operárias. Se, sob a perspectiva da tradicional dicotomia ocidental público/privado, o
doméstico constitui uma esfera feminina e o mercado uma esfera masculina, então podemos
falar metaforicamente em uma masculinização e mercantilização do doméstico 109 .
Uma segunda modalidade de “facção” é aquela que se estabelece entre “confecções”
formais de médio porte e “confecções” informais. Aqui as fábricas maiores delegam a
pequenas oficinas familiares parte de sua produção da mesma maneira que a Triumph o faz
com as empresas de porte mediano. Mas se denominei este contrato da Triumph com outras
empresas de franquia para aludir ao caráter formal deste acordo – isto é, à natureza da
relação que se estabelece entre duas pessoas jurídicas –; por sua vez, o contrato firmado
entre uma “confecção” formal e uma outra informal pode ser caracterizado como um
acordo híbrido – ou seja formal/informal. Aqui também, conforme podemos notar do trecho
citado por Boltanski e Chiapello, estamos plenamente em meio às novas formas de
organização em rede do capitalismo:
“En lugar de considerar la organización formal como un instrumento
para la realización de los objetivos de la firma, insisten en las relaciones
109
Em uma versão pedagógica da dialética do senhor e do escravo de Hegel, Paulo Freire descreve uma
dinâmica semelhante:
“Há algo, porém, a considerar nesta descoberta, que está diretamente ligado à pedagogia libertadora. É que,
quase sempre, num primeiro momento deste descobrimento, os oprimidos, em lugar de buscar a libertação,
na luta e por ela, tendem a ser opressores também, ou subopressores. A estrutura de seu pensar se encontra
condicionada pela contradição vivida na situação concreta, existencial, em que se ‘formam’. O seu ideal é,
realmente, ser homens, mas, para eles, ser homens, na contradição em que sempre estivera e cuja superação
não lhes está clara, é ser opressores. Estes são os seus testemunhos de humanidade. Isto decorre, como
analisaremos mais adiante, com mais vagar, do fato de que, em certo momento de sua experiência
existencial, os oprimidos assumam uma postura que chamamos de ‘aderência’ ao opressor”. (Freire, 1983:
33).
149

informales que atraviesan la estructura formal de la organización [...], de
forma que esta red pueda servir de suporte a los objetivos de la
organización”. (Monsen, Saxberg, Sutermeister, 1966, citado por
Boltanski & Chiapello, op. Cit: 211).
Por fim, também no bojo do processo de domesticação do mercado, encontramos a
terceira modalidade, acima mencionada, da costura em domicílio – que chamarei aqui de
“facção doméstica”. Esta modalidade de “facção” pode se estabelecer entre uma
“confecção” formal e uma costureira domiciliar ou mesmo entre esta última e uma
“confecção” informal. Esta talvez seja a versão do sistema de “facção” na qual sua
polissemia se manifesta de um modo mais incisivo. Muitos são os sentidos que este tipo de
trabalho doméstico assume, do ponto de vista das inumeráveis costureiras que dele vivem
ou dele participam. Vejamos alguns exemplos.
Ângela, a irmã de Vânia a que fiz referência ao longo deste trabalho, possui um filho
de 14 anos. Mãe solteira, ela passa todo o dia sentada à frente de uma máquina de overlock
alocada defronte de uma janela da varanda de sua residência. O pai do rapaz nunca pagou a
pensão de que o filho tem direito garantido em lei. De modo que, para dar conta dos custos
com a criação do menino, a jornada de trabalho de Ângela inicia-se invariavelmente às seis
horas da manhã e, estendendo-se por todo o dia, finaliza amiúde às 22:00 horas.
Entrementes a maior distração desta costureira é ouvir, entre olhares intermitentes, a
programação de televisão que ali é veiculada por um aparelho cujas dimensões
provavelmente não extrapolam seis polegadas.
Ângela trabalha pelo sistema de “facção”. Sua patroa, uma ex-costureira da Triumph
que estava entre as 600 costureiras que foram demitidas nos anos 1990, montou sua
empresa naquela ocasião e, alguns anos depois, aderiu à lógica da terceirização demitindo
cerca de 50% de suas operárias e transferindo, em seguida, a produção para a “facção
doméstica”. O trabalho nesta modalidade de “facção” é a única fonte de renda de Ângela
que, portanto, não pode contar com nenhum dos direitos trabalhistas garantidos pela
legislação. Eis o primeiro sentido que esta modalidade de “facção” pode assumir no
contexto friburguense – o de fonte de renda e subsistência de muitas costureiras de lingerie.
150

Um segundo significado que podemos presenciar é aquele exemplificado pela própria
irmã de Ângela, Vânia, registrado no capítulo 2 – o de manutenção da vida ativa e, como
corolário disso, de elevação da auto-estima, do sentimento de valor pessoal. Como vimos,
depois da aposentadoria, minha principal informante passou por um período de profundo
desânimo somente superado pelo retorno ao trabalho de costura de lingerie.
Mas o caráter polissêmico do sistema de “facção”, assim como seu caráter
polimórfico, não pode ser relatado aqui senão de forma aproximada. Para efeitos heurísticos
poderíamos, no bojo da família mesma de Vânia, propor um diapasão esquemático, cujos
pólos opostos seriam representados pelos significados atribuídos ao sistema de “facção”
pelas duas irmãs. De um lado, Ângela, e a “facção doméstica” como única fonte de renda;
de outro, Vânia, e sua aderência ao trabalho na “facção” como forma de se sentir ativa
depois da aposentadoria. Sob esta perspectiva de uma dualidade meramente didática
poderíamos imaginar significados intermediários entre um pólo e outro – alguns mais
próximos da necessidade material, outros do trabalho entendido como fonte de satisfação.
O próprio caso de Vânia, observado sobre um eixo diacrônico, ilustra estas variações.
Conforme indicado no capítulo 2, de fonte de satisfação o trabalho na “facção” doméstica
foi gradativamente assumindo, na vida desta operária, o sentido de complemento salarial.
Um caso semelhante à conotação de segundo salário incorporada no “travail à-côté”,
descrito por Weber. Aqui os valores mercadológicos e não mercadológicos tem
semelhantemente fronteiras fluidas.
“Cette opposition est purement conceptuelle puisqu’il existe des
pratiques (comme on vient de le voir) qui tiennent à la fois de la bricole
non marchande et de l’ideal du travail indépendant: l’opposition
marchand/non marchand a, en pratique, dês contours flous”. (Weber,
1989, op. cit: 113).
Deste modo as dualidades ocidentais público/privado, econômico/não-econômico,
trabalho/lazer parecem constituir amiúde expressões de “duplas verdades” (Bourdieu, 2001,
op. cit) das quais patrões tanto quanto operários não podem escapar facilmente 110 . Nesse
110 Do ponto de vista da instrumentalização da “dupla verdade do trabalho” por parte da classe patronal em
um contexto diferente do que discuto aqui Bourdieu diz o seguinte:
151

sentido, dificilmente poderemos encontrar casos de costureiras de “facção doméstica” nos
quais os sentidos econômicos estejam absolutamente ausentes. Mesmo aquelas
trabalhadoras aposentadas que afirmam trabalhar na “facção” apenas para se manter ativas
vêem-se aprisionadas, com freqüência, pela “pressão” patronal por produção. Há, com
efeito, um regime de exploração sub-reptício – porque baseado na dádiva (remeto o leitor à
nota 27, na introdução desta dissertação) – incorporado à “facção doméstica”. Trata-se da
manutenção de uma dívida da costureira com a dona da confecção por meio do empréstimo
da máquina de costura. Daí que, questionada sobre porque costurar durante todo o dia já
que a “facção” seria uma mera fonte de satisfação pessoal, Vânia tenha formulado a
seguinte justificativa:
“Se a dona da confecção te empresta a máquina ela vai querer que
você dê produção. Não importa se você quer trabalhar só meio turno. Se
você não der conta das peças que ela traz, no tempo que ela determina, ela
tira a máquina e dá para outra pessoa”. (Vânia).
Temos, portanto, diante de nossos olhos, um modo de dominação cuja dinâmica já é
por demais conhecida. Seja nas várias formas de escravidão e semi-escravidão de
trabalhadores rurais espalhados pelo mundo; seja no trabalho servil de imigrantes
endividados com os custos de passagem, habitação, etc.; seja na modalidade específica de
trabalho doméstico que estou tentando descrever, a história é sempre a mesma. O
explorador deixa uma parcela irrisória de seu capital à disposição do explorado, como meio
de criar as condições de possibilidade da relação mesma de exploração. E está determinada
a ininterrupta “pressão” produtivista sobre o trabalhador por meio do evento fundador que
instaura a dívida – contrapartida da dádiva do capitalista.
“Observou-se que os incentivos pessoais eram mais eficazes que os econômicos. Constantemente bemhumorados,
produziam mais se seus patrões também tivessem senso de humor e os encorajassem à mutua
emulação”. (ibidem: 330).
152

Lazer, gênero e desemprego: agência, governo feminino da casa e dominação
masculina.
Se, com base neste relato, fizéssemos um balanço das atividades tipicamente
enquadradas no interior do campo de significação contemplado pelo termo lazer,
provavelmente as práticas que mais se destacariam na vida das costureiras 111 seriam as
visitas entre colegas de trabalho e o hábito quase universal de assistir televisão. É certo que
muitos outros hábitos lúdicos apareceriam subsidiariamente, mas quero me concentrar aqui
no que parece constituir um aspecto cultural generalizado entre o grupo operário estudado.
No que diz respeito às visitas mutuas às residências entre colegas de trabalho, creio ter
demonstrado nos relatos precedentes sua centralidade na vida das costureiras de lingerie de
Nova Friburgo. Embora o tema da televisão tenha também aparecido esporadicamente,
especialmente neste último capítulo, acrescento aqui uma pequena passagem de minhas
notas em caderno de campo do primeiro dia da investigação – 1 de Abril de 2008. Estas
anotações referem-se à viagem de ônibus de retorno para os bairros residenciais, por
ocasião do fim do expediente, das quais outros trechos já foram citados anteriormente.
“Neste ponto as meninas começaram a falar entusiasmadamente de
programas de televisão. Uma delas disse que estava gravando a
participação da Amanda no concurso de soletração do programa
“Caldeirão do Huck”. Note-se que a mãe desta estudante foi, também ela,
companheira de fábrica daquelas operárias, trabalhando por longos anos
na Filó. A participação da menina em um programa de televisão é, pois,
motivo de orgulho não apenas para sua mãe, mas parece se estender para
as colegas de trabalho. Tudo se passa como se as relações de afinidade
entre as operárias conferissem a todas elas um sentimento de participação
conjunta”.
Como asseveram inumeráveis episódios de
conversas sobre programas televisivos (dos quais o
trecho supracitado constitui apenas um exemplo), a
televisão é um tema recorrente entre as costureiras.
Dois aspectos parecem atribuir grande solenidade ao
episódio da aparição de Amanda na televisão. Em
111 Saliente-se que me refiro ás costureiras casadas, sobretudo das gerações mais antigas.
153

primeiro lugar, o papel central que os filhos
parecem desempenhar na vida das costureiras – não
somente de um ponto de vista individual, mas
similarmente no contexto da sociabilidade e da
identidade das operárias. Voltarei a este ponto, no
tópico seguinte. O segundo fator parece ser o caráter
mimético – no sentido formulado por Elias &
Dunning (op. cit) – da televisão. O doloroso
processo de controle das emoções pelo qual
precisam passar as operárias – sobretudo no interior
das relações de exploração de seu trabalho – faz
com que o lazer mimético constitua um espaço de
tempo no interior do qual tais emoções possam ser
revividas temporariamente.
A televisão parece ter a este respeito um caráter ambíguo. Por um lado, eu arriscaria
especular que ela constitui, neste contexto, um poderoso dispositivo de regulação social na
medida em que possibilita às classes operárias e aos grupos subordinados a vivência de
certas emoções vinculadas a um padrão de vida aos quais estes grupos não têm acesso na
concretude de sua existência. Por outro lado, programas falsamente solidários como este
mencionado pelas costureiras podem ter sua alta audiência explicada pela evocação de uma
certa solidariedade de classe. Isto é, na medida em que esta verdadeira indústria da
beneficência que se montou via televisão veicula programas que remediam isoladamente a
vida de uma ou outra família pobre, os espectadores de igual condição social e econômica
podem experimentar uma empatia e, eventualmente, uma atualização do sonho de ascender
na escala social e econômica. Consideremos mais detidamente esta ambigüidade de um
ponto de vista comparado com certas formulações da bibliografia que se ocupa do tema.
É significativo que estas operárias concedam um lugar importante, em seus
momentos de lazer, para a televisão. E não deixa de ser uma coincidência terminológica
interessante o fato de, no ônibus – um local de sociabilidade entre as costureiras –, elas
dedicarem bastante atenção a um meio de comunicação que costuma amiúde veicular fatos
omnibus (Bourdieu, 1997, op.cit: 23) – ou seja, fatos que interessam a todo mundo
precisamente porque não interessam a ninguém em particular e, por conseguinte, não são
objetos de contradições e disputas entre as pessoas (Ibidem). De igual maneira, pode ser
produtivo cotejar o ritmo apressado das costureiras ao saírem da fábrica com sua admiração
por programas de televisão que tem por característica a centralidade da urgência e a
mediação do que Bourdieu chamou de fast-thinkers – “pensadores que pensam mais rápido
154

que sua sombra” (ibidem: 40). A centralidade da urgência pode ser uma via interessante de
interpretação do papel que a televisão ocupa na vida da classe operária. A fórmula de um
“fast-food cultural” (Ibidem: 41) oferece aos grupos sociais subordinados – aqueles que não
dispõe das condições necessárias à formulação do gosto escolástico (Bourdieu, 2001, op.
cit.), a saber, o estado de Skholè, de lazer, de tempo livre disponível e liberto das urgências
da luta cotidiana pela sobrevivência – uma opção de lazer adequada ao pouco tempo livre
de que eles dispõem. E isso a foriori no caso das mulheres, se lembrarmos, uma vez mais,
a questão da dupla (ou, como vimos, da tripla) jornada de trabalho feminina.
Mas isso não pode ser tudo. A análise esboçada acima corre o risco de ser
exageradamente parcial e, mais ainda, etnocêntrica se desconsiderarmos as estratégias de
resistência política e cultural que se organizam em torno da televisão. Mais do que isso, se
parássemos por aqui estas reflexões não fariam mais do que corroborar a idéia segundo a
qual a televisão, mais especialmente a novela, constituem um modelo de lazer passivo e,
portanto feminino. Há toda uma concepção machista de mundo implícita numa tal
formulação. Jesus Martin-Barbero denuncia, no contexto Mexicano dos anos 1930, um
preconceito homólogo – referido ao cinema – ao que certa parcela da intelectualidade dirige
à televisão atualmente:
“Entretanto, as concepções pessimistas que chegam até esse ponto,
sejam de esquerda ou de direita, conservam fortes laços de parentesco, às
vezes vergonhoso, com aquela intelligentsia para a qual o popular sempre
se identifica secretamente com o infantil, com o ingênuo, com aquilo que
é cultural e politicamente imaturo. É o mesmo círculo que durante longos
anos se negou a ver no cinema a mais mínima possibilidade de interesse
estético 112 . Ao atrair tão fortemente as massas populares, o cinema
tornava-se suspeito de ser elementar, e portanto inapto para a
complexidade e o artificialismo da criação cultural”. (Martin-Barbero,
2003: 277).
Para além do simples pessimismo, as classes populares não são meros materiais
indiferenciados sobre o que a incidência da televisão confere a forma final. Há, com toda
112 Talvez a própria formação do gosto estético esteja baseada no “desgosto” – na negação do gosto popular –,
conforme Bourdieu demonstra em La Distinction.
155

certeza, uma espécie de agência da audiência que transforma os fast-food culturais em um
produto de uso particular, que atendem a demandas práticas e emocionais nativas. Por
exemplo, em torno do caráter dos personagens de novelas, pude presenciar, mais de uma
vez, verdadeiros debates éticos e julgamentos públicos, entre muitas costureiras com as
quais estabeleci algum contato. Por sua vez, os programas falsamente solidários à que fiz
referência acima não alimentam apenas um sonho individualista de ascensão social, eles
constituem também, como tentei indicar uma fonte de empatia de classe.
“Vista a partir da vida cotidiana das classes populares, a democracia
já não é um mero assunto de maiorias, mas sobretudo a articulação de
diversidades; menos uma questão de quantidade do que de complexidade
e pluralidade. Porque o mundo popular é assim. E a homogeneização que
esmaga e dissolve essa pluralidade e essa complexidade não vem apenas
do imaginário propagado pela cultura de massa, mas também de uma
razão política que, estreita e maniqueísta, despolitiza aquilo que Hugo
Hassman lucidamente chama de ‘formas populares de esperança’, sua
religiosidade e seu melodramatismo”. (Ibidem: 284, grifo meu).
No que diz respeito às visitas mútuas às residências de colegas de trabalho, entre as
costureiras, para bater papo ou “tricotar”, poder-se-ia dizer – também de uma forma parcial
e etnocêntrica – que estes programas constituem outros tais exemplos de lazer passivo e
restrito à esfera doméstica. Não obstante, tal como a novela, tais visitas são verdadeiros
veículos (no sentido forte da palavra) de sociabilidade e de trocas de informações. Se
considerarmos a conotação nativa do verbo “tricotar” veremos que se trata efetivamente de
produzir uma trama, tal como no processo artesanal do tricô. Mas a trama aqui refere-se
menos aos fios de lã do que a verdadeiros fios de informação. Trata-se de um eufemismo
para o termo “fofoca” e, a este respeito, é bom lembrarmos do elemento de coesão social e
de veiculação de informações, convertidos formas nativas de poder, que a fofoca constituía
na cidade de Winston Parva, estudada por Elias e Scotson (2000, op. cit.). Mais que mero
veículo de comunicação, entretanto, as visitas entre colegas de trabalho podem engendrar
uma modalidade ativa de coesão social, no sentido político.
“O acesso à cotidianidade do bairro passa necessariamente pelo
reconhecimento do protagonismo das mulheres. ‘Carregam pedras e água,
156

participam das mobilizações, constroem, vendem e compram; são um dos
eixos centrais da vida do bairro e chegam a ter um certo poder, baseado
na força do cotidiano. Elas são o próprio bairro e de certo modo decidem
o que é o bairro’. E elas fazem o bairro a partir de uma percepção do
cotidiano configurada basicamente na maternidade. Uma maternidade
social que em vez de se fechar na família faz do bairro seu espaço de
instalação e exercício. (...) Nessas condições, a mulher se constitui como
a recriadora de uma sociabilidade primordial que é ao mesmo tempo
encontro e mediação. Não se trata de ser dirigente em vez de mãe, mas
sim de o ser porque se é mãe e esposa”. (Martin-Barbero, op. cit: 284-
285, grifos do autor).
Este trecho expressa com tanta propriedade a dinâmica política de um episódio
ocorrido em Conselheiro Paulino que Jesus Martin-Barbero parece tê-lo redigido inspirado
no bairro operário de Nova Friburgo. Há cerca de dois anos instalou-se na localidade uma
grande empresa transportadora chamada Del Pozzo. O terreno que se transformou no
depósito de suas gigantescas carretas constitui uma grande área contígua a uma zona
residencial de casas populares. Com o tempo o peso dos caminhões fez com que a frágil
estrutura das casas fosse cedendo, acarretando o risco de desabamentos. Ademais a
poluição advinda da fumaça expelida pelos canos de descarga e da poeira decorrente do pó
de pedra que recobre o chão do depósito começou a causar problemas de saúde entre os
membros da população nativa, especialmente entre as crianças. Não são raros os casos de
bronquite entre estas. Acrescente-se a isso a aumento substancial dos acidentes de trânsito e
o risco que diariamente os moradores correm ao atravessar a rodovia local que dá acesso à
área comercial do bairro, decorrentes do excesso de velocidade e do desrespeito às normas
de transito dos motoristas da Del Pozzo. Confrontadas com estes problemas, foram
precisamente as mães, moradoras da área em questão que, em uma destas visitas às vizinhas
para “tricotar”, organizaram um abaixo assinado contra a presença da Del Pozzo. Foram
também as mulheres que convocaram uma emissora de TV local e que concederam
inumeráveis entrevistas, formulando críticas contundentes à transportadora. Além disso,
algumas destas mães, e mesmo avós, tiveram um papel decisivo na organização de
mobilizações públicas contra a empresa. Foi precisamente este movimento das mulheres,
157

plasmado no bojo do hábito cotidiano de “tricotar”, que desencadeou um processo judicial
contra a empresa – que perdeu em primeira instância, foi intimada a deixar a localidade,
mas recorreu. O processo contra a Del Pozzo, e a luta das mães de Conselheiro Paulino,
encontra-se agora em pleno curso.
O fato de esta dissertação enfatizar apenas estas duas práticas de lazer das
costureiras de roupas íntimas de Nova Friburgo deve-se a sua regularidade, nos relatos que
obtive, bem como nas conversas cotidianas destas operárias, em seus momentos de
sociabilidade. Não quer isso dizer, entretanto, que tais práticas sejam as únicas e nem
mesmo as principais, na vida de todos os membros desta categoria operária. Por outro lado,
sua recorrência pode ser bastante reveladora das relações conjugais entre esposas e
maridos. Por vezes, minha principal informante queixava-se da impossibilidade de fazer
certas atividades lúdicas em decorrência da proibição imposta por seu marido.
“Eu queria fazer dança de salão, sabe. Mas tá difícil. Falei pro meu
marido que ia me matricular na aula de dança aí ele reclamou. Então falei
com ele: ‘ó, se você não quer que eu vá sozinha, então entra na aula
comigo’. Mas ele disse que não ia, que não tinha dinheiro e aí nem eu,
nem ele”. (Vânia).
Há aqui duas questões envolvidas. Em primeiro lugar, o padrão de relações
conjugais possessivas que os homens freqüentemente estabelecem com suas esposas, dentro
de uma tradição patriarcal ainda largamente difundida. Em segundo lugar, temos também
diante de nós, a questão do crônico problema do desemprego, particularmente no caso de
Nova Friburgo, do desemprego masculino. Impedida de realizar uma atividade lúdica
sozinha, a mulher convida o marido para ir com ela. O marido vê-se também ele, por sua
vez, impossibilitado de acompanhar sua esposa, desta feita por problemas financeiros. De
maneira que, com freqüência, entre o grupo de costureiras casadas, especialmente aquelas
das gerações mais antigas, o pesquisador testemunha um conjunto de práticas de lazer mais
restrito á esfera doméstica – embora a noção do que seja o doméstico possa ter seu campo
semântico alargado para abarcar a casa das amigas, o bairro, passeios de fim de semana
para fazer compras (sobretudo, compras ligadas de algum modo à casa ou à intimidade do
corpo – roupas e produtos de beleza), etc.
158

No que diz respeito ao desemprego masculino, um indício forte deste fenômeno, no
contexto friburguense, é o fato já mencionado da crescente ocupação por parte dos homens,
dos postos de trabalho disponíveis nas salas de costura, como costureiros. Infelizmente a
pesquisa aqui relatada não se ocupou desta parcela da categoria operária do vestuário
friburguense, por questões de prazo para o seu encerramento. Abordar o trabalho dos
homens na costura de lingerie implicaria em um conjunto diverso de entrevistas e,
provavelmente, na análise de todo um outro universo de significação. De modo que deixo
esta questão reservada para outra pesquisa, num futuro próximo.
No tocante à “empregabilidade” feminina vimos, no capítulo anterior que esta
noção, típica do capitalismo em sua fase contemporânea, não apenas não significa
“estabilidade” no emprego, como é também contrária a esta última. Se por um lado,
dificilmente encontraremos alguma costureira de lingerie desempregada, por outro, são
poucas aquelas operárias que conseguem se manter durante toda a vida, em uma única
fábrica de roupas íntimas. Entretanto, no contexto familiar, esta posição, por assim dizer, de
“empregáveis” conferem certamente à mulher um poder de decisão maior, nos assuntos
domésticos frente ao poder do Pater-Familias (freyre, op. cit.) – o poder advindo de sua
posição de provedoras do lar 113 .
Entretanto, mesmo este poder é também ele ambíguo e pode, eventualmente,
concorrer para reforçar certas relações patriarcais. Assim, não é incomum que as mulheres
elas próprias, como forma de elevar a auto-estima do companheiro, reforcem a posição de
“chefe da casa” de seus maridos. Por outro lado, tendo perdido o controle sobre um fator
importante de formação da identidade masculina – o controle sobre o papel de provedor
familiar –, no interior das relações conjugais, os homens podem, de maneira talvez pouco
consciente, agarrar-se a um outro aspecto equacionado com tal identidade, no contexto de
uma tradição patriarcal mais difundida – sua condição de proprietário, de pater famílias
(Freyre, op. cit.). De maneira que a manutenção da autoridade do homem sobre o “tempo
livre” da mulher se reproduz no que pese a assunção desta ao governo financeiro da casa. É
válido lembrar a distinção que Oliver Schwartz (op. cit.:178) faz entre “governo” e
113
Não obstante, o caso friburguense não parece diferir substancialmente do caso javanês a este respeito.
Conforme diz Brenner:
“Scholars of Javanese society are generally quick to point out that while women have economic power and
considerable control over household affairs, in the realm of prestige they fall far short of men”. (op. cit:
140).
159

“autoridade”. O primeiro termo, no contexto das costureiras de lingerie tanto quanto no
caso das famílias dos mineiros franceses que Schwartz estudou, diz respeito apenas à
administração, ao gerenciamento das finanças familiares e dos assuntos domésticos. A
autoridade, por sua vez, refere-se ao comando de fato do homem sobre a mulher.
No caso particular do tema do lazer entre as costureiras esta divisão entre “governo”
e “autoridade” parece se reproduzir sob a forma de uma atualização tácita, sub-reptícia, da
dicotomia trabalho/lazer. Em outros termos, a autoridade masculina fica garantida por meio
de uma separação entre os assuntos referentes à utilidade material (cujo controle é
deslocado das mãos masculinas para as femininas), e aqueles temas ligados aos gostos
familiares, e mais fundamentalmente ainda aos gostos femininos (dominados pelo homem).
Destarte, a dominação masculina sobre o “tempo livre” das mulheres pode ser interpretada
como uma modalidade particular da distinção schwartziana entre governo e autoridade
doméstica, processada pela adaptação da configuração específica do mundo do trabalho
friburguense a uma tradição operária mais difundida.
As considerações acerca da maneira pela qual a divisão sexual dos papéis é operada
no interior da família operária em Nova Friburgo nos conduzem às questões de identidade e
de tradição. Em última instância elas evidenciam como uma (re)configuração específica do
mundo do trabalho, no município, é modulada nos termos de uma tradição patriarcal de
ampla repercussão, que extrapola em larga medida os limites da cultura local. Embora esta
tradição refira-se a uma modalidade de dominação masculina, encontramos no caso
específico das famílias das operárias de roupas íntimas friburguenses, um certo número de
ambigüidades que precisam ser consideradas seriamente. A apreciação destas
ambigüidades, entretanto, se presta menos a justificar a dominação mesma que a enfrentar
analiticamente fenômenos que apresentam variadas modalidades (femininas tanto quanto
masculinas) de legitimação. Nesse sentido, não são isolados os casos nos quais as mulheres
elas próprias se empenham na manutenção de uma divisão patriarcal dos papéis de
autoridade, concedendo ao homem seu lugar tradicional na hierarquia familiar, abrindo mão
do controle sobre seu “tempo livre”; tudo isso como mecanismo de manutenção de uma
elevada auto-estima do marido.
160

A centralidade dos Filhos.
Um tema fundamental das conversas entre as costureiras, em seus momentos de
sociabilidade – que parece ocupar um espaço privilegiado igualmente em suas vidas –, diz
respeito aos filhos. Em geral as operárias se referem aos seus próprios filhos com grande
enternecimento e escutam as colegas falarem dos seus respectivos de maneira bastante
atenciosa. Sempre me causou uma impressão muito forte a maneira como estas
trabalhadoras falam de sua prole. Este parece ser o ponto nodal de suas vidas, o que há de
mais importante, a fonte geradora de suas forças e o telus para o qual convergem seus
esforços. Por conseguinte, o tema “filhos” parece ser um importante elemento na
sociabilidade das costureiras e um aspecto central de sua cultura e sistema de valores.
Logo na primeira semana de meu trabalho de campo, no dia 4 de Abril de 2008,
pude presenciar, com efeito, uma conversa entre amigas a este respeito que me causou uma
impressão particularmente forte. Embora eu não tenha conseguido acompanhar todo o
desenrolar do assunto – posto que o grupo de costureiras caminhava rápido, em direção ao
refeitório da Filó S.A. – o diálogo que registrei é bastante ilustrativo, embora não o seja na
mesma medida que foram as expressões animadas e a linguagem corporal que o
acompanhou. Seguem-se minhas anotações acerca do evento:
“Na hora do almoço, segui de perto até o portão que conduz ao refeitório, um grupo
de cinco mulheres que falavam prodigamente, entre si. O assunto específico foi a visita de
um genro à casa de uma das operárias, no domingo. ‘Minha filha está namorando um
doutor, menina, não tá fraca não!’ – principiou orgulhosa a mãe. ‘Ele foi lá em casa, no fim
de semana, pela primeira vez, para almoçar’ – continuou. ‘Xi pode contar que vai rolar
casamento. Daqui a pouco ele chega lá com a aliança querendo marcar a data e tudo’(risos)
– diz uma colega. ‘Mas ela tá muito nova pra casar, tem muito que aproveitar ainda’ –
contesta outra menina do grupo. ‘Não, não, deixa ela, o garoto é bom, estudioso, acabou de
se formar em odontologia, é educado, chegou lá em casa todo tímido. (riso geral) E parece
gostar muito dela’ – diz a mãe. ‘E o pior é que eu não sabia que ele iria aparecer para o
almoço, ele me pegou de surpresa. Mas também eu caprichei, fiz um frango com laranja
que ficou um espetáculo!’ (risos). Este pequeno diálogo que consegui registrar
acompanhou-se de uma animação incisiva e grande agitação corporal. A atenção recíproca
161

das interlocutoras despertou decisivamente também a minha. De modo que não pude tirar
os olhos do grupo até que ele desaparecesse de meu ângulo de visão”.
As mulheres personagens deste episódio, especialmente a mãe da moça em questão,
não falavam do tema como quem fala de um assunto qualquer. Havia, sem dúvida, em suas
vozes, em seus olhares e em seus gestos uma ingrediente especial que é difícil de descrever.
Tudo me leva a acreditar que se tratava decisivamente de um tema particularmente especial,
extraordinário, algo no qual e pelo qual suas vidas estavam totalmente implicadas,
fundamentadas, afetadas e, sem o que, aquela animação daria certamente lugar a um
profundo vazio existencial. Aquela conversa se desenrolou diante de mim sob a forma de
um intenso foco de luz a iluminar minhas próprias memórias.
Acredito que tal episódio não teria chamado minha atenção de uma maneira tão
categórica, não fosse o fato de eu ter convivido largamente, em minha própria casa, com as
várias amigas de minha mãe cujo tema de bate-papo mais recorrente sempre se referiu aos
filhos. Antes de iniciar minhas reflexões acerca do modo de vida das costureiras de lingerie
friburguenses, este aspecto nunca me pareceu digno de um exercício intelectual mais sério.
Com o andamento da pesquisa de campo, entretanto, começou a impressionar-me
crescentemente a reincidência do tema e o tratamento obsequioso que as colegas de
trabalho dispensam uma às outras, sempre que uma delas começa a narrar algum caso
referente aos filhos. Mais que isso, as amigas mais próximas costumam saber quase tudo
acerca da vida dos filhos umas das outras. Quando uma delas passa por algum tipo de
problema com seu próprio filho, é freqüente que esta procure desabafar com uma colega de
trabalho mais próxima. As este respeito as amigas, eventualmente competitivas sob outros
aspectos, são invariavelmente atenciosas e confidentes.
Por seu turno, a classe patronal da Triumph International – empresa que, conforme
vimos, apresenta uma certa homogeneidade de faixa etária entre as costureiras das gerações
mais antigas – parece perceber com clareza esta centralidade que os filhos ocupam nas
vidas de suas funcionárias e, por conseguinte, lança mão de certos dispositivos de
legitimação de sua dominação que apelam para “benefícios sociais” voltados para as
crianças. Já tivemos a oportunidade de ver o papel absolutamente fundamental que a creche
assume tanto para as operárias quanto para os patrões. Este “benefício” é largamente
162

esponsável pela força que a chantagem patronal da Triumph possui na pressão pelo
rebaixamento dos salários das costureiras de lingerie de Nova Friburgo 114 .
Outra peça chave nas estratégias de legitimação patronal consiste nas festinhas
infantis que diversas empresas do setor promovem, nomeadamente no Dia das Crianças e
no Natal – nesta última data a Triumph, por exemplo, sempre organiza uma festa
direcionada especialmente às crianças. Como mencionei na página 39 deste trabalho,
permanecem bastante vivas em minha memória as lembranças das agradáveis festas que
freqüentei, nas dependências da Filó S.A., por ocasião destas datas comemorativas, bem
como dos brinquedos de excelente qualidade com os quais eu era presenteado pelos patrões,
as vezes pessoalmente – aqueles homens simpáticos que hoje não me parecem tão
bonzinhos assim.
À centralidade dos filhos corresponde também uma consciência das mães cada vez
maior, no tocante à importância da escolarização como estratégia de ascensão social e
econômica, na vida dos primeiros. O investimento nos estudos de longa duração,
direcionados à universidade parece estar assumindo, aos poucos, um lugar que ainda é
largamente ocupado pelos cursos técnicos profissionalizantes. Peço aqui licença ao leitor
para reproduzir, uma vez mais, minhas anotações de campo.
Sexta-feira, 18 de Setembro de 2008. 16:00 horas (fim do expediente de sexta-feira).
“Entro aleatoriamente em um dos ônibus que conduzem as
costureiras aos seus respectivos bairros. Sento-me mais à frente para
observar a relação entre os filhos de duas colegas de trabalho. O filho de
uma delas começa a beber um suco que, antes mesmo que ele possa
oferecer, é retirado de suas mãos por sua colega de creche, a filha de outra
costureira, ao que ele não se manifesta contrariamente, mas aquiesce de
bom grado. As mães começam a rir, dizendo que ‘intimidade é um
problema!’. A garotinha, por sua vez, diz que vai casar com o colega
quando crescer. Ao ouvi-la, as duas mães dizem muito sorridentes, quase
em uníssono, que está muito cedo para eles pensarem nisso – dando,
inclusive, certa ênfase aos estudos: “Vocês não acham que têm muito que
114 Remeto o leitor à leitura de uma carta aberta às costureiras de Nova Friburgo, registrada nas páginas 82 e
83, desta dissertação.
163

estudar não?” – diz uma. “O Kaíque falou que vai ser engenheiro, não é
Kaíque? – comenta a outra.”
Testemunhamos aqui uma preocupação, eu diria que prematura até, com a educação
superior do filho, por parte de sua mãe. Não obstante, em que pese o investimento e
estímulo de certas mães no sentido de que seus filhos se encaminhem para os estudos
universitários, um observador pode ainda encontrar, com freqüência, numerosas operárias
do lingerie que incitam enfaticamente seus filhos a ingressarem em algum curso técnico,
sobretudo do SENAI. Entretanto, um aspecto que parece diferir dos momentos históricos
anteriores é a expectativa referida ao tempo de formação dos filhos. Seja na direção da
formação universitária, seja na da formação técnica, parece estar ficando cada vez mais
claro para as operárias do setor vestuário friburguense que seus filhos deverão investir
indeterminadamente em sua própria qualificação. Em que medida o discurso empresarial da
“empregabilidade” e seus corolários concorrem para esta nova concepção de escolarização
é coisa que precisa ser investigada. Por sua vez, as expectativas em relação a uma ou outra
modalidade de ensino (técnico ou acadêmico) muito provavelmente decorrem do “horizonte
dos possíveis” (Bourdieu, 2001, op. cit.) de cada caso particular. Famílias operárias com
uma renda que possibilite investir nos estudos universitários dos filhos tendem a ver este
itinerário como o caminho natural a ser seguido; famílias menos abastadas, por sua vez,
tendem a priorizar, para sua prole, uma formação que a conduza rapidamente ao mercado
de trabalho, mas que, no entanto, carecerá sempre de uma qualificação continuada.
Lembro-me, a este respeito, por ocasião de minha entrada no SENAI para cursar Mecânica
Geral, de minha mãe ter afirmado orgulhosa, inumeráveis vezes que aquele curso era a
“faculdade de pobre” 115 .
Poder-se-ia ainda especular teoricamente sobre outros indícios empíricos que
aparecem no episódio do ônibus acima relatado. Indícios que fornecem elementos, ainda
embrionários, para uma investigação mais séria das famílias operárias e sua inter-relação. A
115 Esta fala, desde aquela época, me dava a impressão, não de todo consciente então, de aquele ser um
discurso patronal de convencimento dos operários no sentido da contribuição para a reprodução da força de
trabalho no próprio seio familiar – embora eu evidentemente não formulasse desta maneira. O que mais
tarde veio a se confirmar – descobri que, naquele momento (o ano era 1994) as equipes do SENAI visitaram
a maioria das fábricas friburguenses, no intuito de oferecer, aos filhos dos operários, um convênio entre a
instituição e as empresas que dava ao estudante o direito a almoço, jantar e meio salário mínimo de
remuneração.
164

amizade entre as costureiras, estabelecida no contexto da fábrica como espaço de
sociabilidade, parece estender-se para os seus filhos, mormente, por conta do convívio na
creche. Este “benefício social” patrocinado pela empresa pode concorrer, portanto, para o
estreitamento das relações familiares entre as operárias, criando uma relação que
provavelmente vai deixando pouco nítidas, em especial no imaginário dos filhos, as
fronteiras entre afinidade, sociabilidade e parentesco. Nesse contexto, podem aparecer
ambigüidades interessantes – isso pode, por um lado, criar o sentimento de equipe, de
pertencimento à fábrica como espaço plasmador de relações sobremodo intensas, o que
talvez concorra para a identificação do operário com as ‘metas da empresa’, para a sua
auto-exploração; e, por outro, pode convergir para a formação de uma solidariedade de
classe e uma coesão da categoria que confira força às suas reivindicações. Muito
provavelmente as relações entre operárias e filhos devem se alargar para atividades
domésticas de lazer, como festas de aniversário; sedimentando, por conseguinte, o escopo
da coesão social entre as famílias. Estas hipóteses, entretanto, precisam passar por um
exame empírico mais rigoroso – um investimento para o qual a presente pesquisa não
contou com o tempo necessário. De modo que adio aqui estas questões para concentrar-me
sobre elas em um futuro próximo.
Por hora espero ter conseguido demonstrar a importância e a magnitude do lugar
ocupado, na vida e na cultura de sociabilidade de minhas interlocutoras, pelos seus
descendentes. O que tentei relatar, neste tópico, da forma mais clara que pude, é que –
como mulheres de uma mesma geração que compartilham, além de sua condição operária, a
condição de mães – as trabalhadoras mais antigas da indústria de lingerie de Nova Friburgo
fazem de seus filhos um elemento importante de sociabilidade do grupo e, mais que isso, a
fonte de suas forças, o motor de sua luta e, acima de tudo, o objeto fundamental de suas
esperanças em um futuro no qual a luta cotidiana pela sobrevivência possa ser menos
severa.
165

CONSIDERAÇÕES FINAIS.
O dia é 14 de Maio de 2008, Quarta-feira; a hora, 11:30, horário do almoço das
costureiras da Lucitex.
“Hoje poucas costureiras saíram para a rua, na hora do almoço. As raras que
encontrei aparentavam uma tensão incomum se cotejada com outras ocasiões. Algumas
delas encontravam-se estranhamente caladas; outras faziam brincadeiras ironizando
certas declarações que os patrões haviam feito, em uma reunião extraordinária com todas
as operárias.
Nenhuma das costureiras com as quais eu amiúde converso apareceram.
Aproximei-me, pois, de algumas mulheres que conhecia apenas de vista e perguntei o que
estava havendo e o porque de ter pouca gente na rua, em pleno horário de almoço. Uma
delas informou-me então da reunião e de seu tema:
“É que está havendo uma reunião hoje. Primeiro foi com um grupo, agora está sendo
com outro. A dona X. disse que esteve, com sua família, na China. Falou da “cultura” (a
costureira faz um arremedo ironizante) de lá. Falou muita coisa, que nas fábricas de lá
não têm privada, que é uma vala onde as pessoas fazem as necessidades. Falou que os
trabalhadores de lá trabalham muito mais tempo por um salário menor. E que eles não
consideram isso escravidão, você vê isso? Aí ela disse que os produtos chineses, o lingerie
chinês, está tomando o mercado das empresas de Friburgo. E que por isso a coisa está
feia, e não vai dar para aumentar o salário, não. Eles disseram que, hoje em dia, quem tem
um emprego... (silêncio) tem que dar graças a Deus, sabe?”
Contudo, mesmo em dias de elevada tensão, ou “pressão” – como recorrentemente
falam as costureiras – as brincadeiras não se encontram de todo ausentes do contexto
sempre largo em bom humor destas trabalhadoras. O humor e a ironia são, com efeito,
traduções cotidianas de uma contundente crítica social destas operárias 116 . Assim é que
elas arremedam as falas patronais da reunião citada – “Quer dizer que se agente quiser
trabalhar agora, agente vai ter que ser como a China?” – fala uma das meninas de um
116 “Como não podia deixar de ser, se a caricatura do corpo serve para a auto-ironia do operário, ela serve
também para o exercício da ironia localizada dos operários em cima dos empregados e dos chefes,
disfarçando/revelando, ambiguamente, seu antagonismo.” In Leite Lopes, José Sérgio.1976. O vapor do
Diabo: o trabalho dos operários do açúcar. Rio de janeiro: Paz e Terra. (p. 78, nota 17, grifos do autor).
166

grupinho de três costureiras – “Trabalhar mais e ganhar menos!” – continua. “É a cultura
(imitando o tom de voz grandiloqüente do patrão) deles ué!” – zomba a outra. “Cultura?
Isso é escravidão mesmo! O tempo da escravidão já acabou, minha filha!” – emenda a
primeira.
Dentre as operárias desta categoria, entretanto, não faltam aquelas que traduzam
os dispositivos e jogos sub-reptícios de pressão patronal em asseverações explícitas. Assim
é que minha principal informante, Vânia – talvez mais uma aliada do que informante
mesmo – fez alguns comentários críticos interessantes acerca de minhas anotações:
Os produtos chineses estão desbancando os friburguenses? É ruim
em! Duvido que eles afetem a venda das confecções daqui. Tem muita
confecção daqui que tem filial na China. Toda confecção tem um contrato
com um comprador já certo. Você acha que eles vão deixar de comprar
daqui para comprar da China? Mesmo que esteja mais barato, às vezes o
comprador é amigo do dono da fábrica. Porque então que eles fazem
tanta pressão pragente correr com produção, pra ficar encalhado no
estoque? Claro que não! Todo ano nesta época os patrões fazem pressão
pra não aumentar os salários – é a época do dissídio sindical. Aí eles
falam: ‘Ó gente, esse ano não tem como dar aumento porque a coisa ta
feia, agente está a ponto de fechar, etc.’. E continuam pressionando para
aumentar a produção. Eles dizem: ‘vocês têm que dar graças a Deus que
estão bem empregadas. Tem muita gente que está querendo entrar para
ganhar menos que vocês’. E tem mesmo, o pior é que é verdade”. (Notas
em caderno de campo).
No momento em que escrevo estas linhas tenho a impressão de ter vivido este
episódio na semana passada, tamanha a nitidez de minhas memórias. Lembro-me de este ter
sido o dia mais perturbador de todo o trabalho de campo. O silêncio de uma costureira
(“Eles disseram que, hoje em dia, quem tem um emprego... (silêncio) tem que dar graças a
Deus, sabe?”) com a qual eu nunca havia conversado – o que tornou a exposição desarmada
e desalentada de seus sentimentos para mim ainda mais dramática – deixou um nó em
minha garganta. De modo que fiquei um tempo em silêncio, sem coragem de continuar
minhas perguntas meio desajeitadas. Lembro-me ainda de ter me sentido muito mal ao
167

pensar que, embora eu nada pudesse fazer para ajudar nos problemas daquelas pessoas,
encontrava-me, não obstante ali, recolhendo informações que muito provavelmente não
beneficiariam a ninguém a não ser eu próprio.
Também por esta ocasião, comecei a perceber que o trabalho de investigação
modesto que eu havia me disposto a realizar estava assumindo dimensões que eu não
poderia dar conta sozinho, no espaço de tempo de que dispunha. Que espécie de viagem à
China tinha sido essa dos donos da Lucitex? Queriam eles aprender lá novas estratégias de
exploração do trabalho das costureiras? Teriam ido sondar as possibilidades de expandir
sua empresa para o país asiático? As críticas arrebatadas de Vânia acerca dos jogos de
pressão patronal para o rebaixamento dos salários das costureiras me fizeram pensar que a
“organização em rede” do novo capitalismo, analisadas por Boltasnki e Chiapello, parece
cobrir uma extensão social e geográfica bem maior do que eu previa. Não apenas com a
Triumph, uma multinacional, possuindo filiais na China e em outras localidades com mão
de obra mais barata que o Brasil, mas também com outras confecções de médio porte, como
a Lucitex, imbricadas neste contexto transnacional. E não apenas o tamanho desta
organização em rede me espantou, mas similarmente sua capacidade capilar de ocupar
espaços que antes se encontravam fora do alcance do capital. Assim, se por um lado, a
burguesia das roupas íntimas friburguenses encontra-se em plena expansão de suas
fronteiras para localidades do mundo onde os custos com a remuneração operária são ainda
mais vergonhosos do que aqui – o que provavelmente ela aprendeu com sua progenitora, a
Triumph International. Por outro, seu potencial capilar de adentrar nas residências de
costureiras, freqüentemente aposentadas, para explorar ainda um pouco mais sua força de
trabalho parece não ter limites. De um lado, a “transnacionalização do capital” e seu
corolário – as novas formas globalizadas de exploração do trabalho, amiúde fundamentadas
no discurso científico (Boltanski & Chiapello, op. cit), das quais o sistema de “célula”
constitui um exemplo –; de outro, a capilaridade do sistema de “facção”. Eis a fórmula da
“organização em rede” da indústria de lingerie de Nova Friburgo.
168

O quadro acima é uma tentativa de representar esquematicamente a maneira pela
qual a indústria de lingerie friburguense se organiza. O número de células e salas de costura
representadas é obviamente fictício e não pretende senão fornecer uma idéia aproximada do
sistema – a um só tempo transnacional e capilar – de exploração da mão de obra das
costureiras, pela burguesia do lingerie friburguense. Observamos aqui um sistema de
organização da produção de roupas íntimas que se fundamenta tacitamente na lógica da
“organização em rede”. Rede esta constituída, por sua vez, de “células” “auto-reguláveis”
(Varela, citado por Boltanski e Chiapello, op. cit: 205), distribuídas pela maior parte de
seus pontos. E não apenas células, mas tramas de células, empresas (formais e informais),
169

salas de costura, trabalhadoras domésticas, etc. Temos, pois, diante de nós, um regime de
exploração da força de trabalho das costureiras de lingerie sub-dividido em três
modalidades. 1 – A “pressão” por produtividade e qualidade exercida sobre as costureiras,
no interior das “células” de produção, por suas próprias fronteiras. Ou seja, sobre aquelas
operárias com contrato trabalhista formal, em carteira de trabalho. 2 – A exploração da mão
de obra mais barata da China – mas também, segundo relatos do Sindicato dos
trabalhadores têxteis de Nova Friburgo, de outros países asiáticos, como o Vietnã –
perpetrada não apenas pela multinacional Triumph International, mas também por outras
empresas de porte mediano. 3 – Por fim, o regime de exploração informal das costureiras
isoladas em suas residências, por meio do sistema de “facção doméstica”, inclusive
mediante características típicas do trabalho semi-escravo – chantagem patronal e “pressão”
por uma produtividade exacerbada, mediante o empréstimo da máquina de costura.
O que tentei aqui representar foram os novos contornos assumidos pela indústria de
lingerie de Nova Friburgo, depois das transformações da década de 1990. Estas
transformações foram experimentadas de um modo bastante dramático, pelas costureiras
que vivenciaram o cotidiano tradicional de uma sala de costura, bem como a cultura
operária que lhe era inerente. Conforme tentei demonstrar, às suas formulações críticas
acerca do novo regime de exploração (que freqüentemente se revelavam sob a forma de
uma evocação idealizada do passado) seguiram-se novas alternativas de trabalho fora do
âmbito, por assim dizer, esquizofrênico da célula. A abertura de pequenas “confecções”,
por parte daquelas operárias atingidas pelas demissões massivas dos anos 1990, bem como,
o trabalho na “facção doméstica”, constituíram algumas destas alternativas.
Por um lado, a produção destas alternativas pode ser caracterizada como um
processo de “domesticação do mercado” (Brenner, op. cit) – isto é, a transformação de um
mercado, antes unilateralmente explorador, em algo sob controle e convertido em valor
para a família. (De fato, há casos de costureiras que, sendo proprietárias de uma máquina de
costura, conseguem manter sob controle a exigência de produção das empresas
fornecedoras de facção, porquanto encontram-se livres das chantagens patronais em torno
do empréstimo da máquina de costura.) E não apenas para a família. Sem dúvida, a
exemplo das mulheres de Solo, estudadas por Brenner, também as mulheres de Nova
170

Friburgo desempenharam e vem desempenhando historicamente um papel fundamental na
produção da riqueza do município.
Por outro lado, precisamos também considerar seriamente o alerta de Rosalind
Shaw, para quem a ênfase na agência humana não pode obliterar questões ligadas à
distribuição assimétrica de poder, no interior dos vários campos de embates políticos. Vale
a pena citar a brilhante formulação por meio da qual ela apresenta este ponto de vista:
“This detachment of agency from power and structure seems to be in part a reaction
against earlier analyses of the lives do human subjects as overdetermined. Yet this reaction
is in many ways just as problematic as the analyses against which it is cast as a critique:
currently, as Comaroff and Comaroff put it, ‘an almost Althusserian overdetemination has
been replaced by a Derridean indeterminacy’ (1997: 15). At its most crude, this reaction
takes the form of reiterations that people are not ‘passive objects’ but ‘actives subjects’, are
not ‘victims’ but ‘agents’, and are not ‘subjugated’ but ‘authors of their own histories’.
Such formulaic declarations are disturbingly resonant of a dominant North Atlantic
discourse of unfettered individualism and freedom of choice – a discourse that ‘continually
pulls us away from systemic understanding and inclines us toward constructions that
emphasize individual freedom, choice, power, ability’ (bardo, 1993: 30).
(...) It is, of course, crucial to recognize, for example, (…) that women inventively deploy
patriarchal ideas and images for their own purposes (…). But if we stop there, we risk
collapsing distinctions among contrasting kinds of agency that are associated with
contrasting kinds of power”. (Shaw, 2002: 19).
Nesse sentido, a “domesticação do mercado” apresenta também, como
contrapartida, uma “mercantilização do doméstico”. Ou mais precisamente, a extensão da
exploração do trabalho pelo capital a uma esfera antes livre – no caso específico da
indústria de lingerie de Nova Friburgo, saliente-se, e não no sentido genérico. É preciso
dizer também que esta mesma esfera doméstica oferece, neste contexto, um refúgio ao
capital que o protege da fiscalização do ministério público do trabalho, por exemplo.
Destarte, a classe patronal friburguense fica livre para ampliar indiscriminadamente em até
11 horas diárias a jornada de trabalho das costureiras da “facção doméstica” – lembremos,
por exemplo, da jornada de trabalho de Ângela, a irmã de Vânia (que se inicia às 6:00 e
termina, com freqüência, às 22:00 horas) mencionada na página 146 desta dissertação.
171

Por seu turno, as costureiras mais jovens, socializadas no seu ofício já sob a nova
lógica, também desenvolveram formas alternativas de sociabilidade – transformando a
célula em um espaço mesmo de coesão social. Não encontrei entre estas nenhum caso de
conflito sério decorrente da pressão do sistema de célula, como ocorreu muito
recorrentemente entre as gerações mais antigas – do que o episódio de Lúcia constituiu o
exemplo mais extremo.
Entre as operárias desta geração mais nova, talvez em decorrência da lógica da
“flexibilidade” e da “empregabilidade”, pude testemunhar que muitas delas concebem seu
trabalho na costura do lingerie como temporário, como condição de possibilidade de um
investimento mais longo sobre seus estudos. No caso das costureiras mais antigas, por sua
vez, as repercussões das mudanças no mundo do trabalho conduziram-nas a depositar sobre
a educação dos filhos uma preocupação mais acentuada – talvez em decorrência do lugar
central que estes ocupam em sua vida.
Ao fazer um balanço geral desta investigação, termino persuadido de que, diante do
caráter auto-organizador do capital, de sua natureza “mimética” que o permite absorver até
mesmo as críticas a ele direcionadas, transformando-as em eficazes dispositivos de
dominação, a “força dos trabalhadores” (Thompson, op. cit.) costuma encontrar formas
criativas de resistir. Em outras palavras, para (juntamente com este trabalho) encerrar
finalmente o emprego de metáforas biológicas, eu diria que por mais que os interesses
econômicos tentem transformar geneticamente células em unidades de produção da morte,
a natureza adaptativa da vida provavelmente descobrirá novos meios de germinar.
172

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177

ANEXO
CARTOGRAFIA DAS PRINCIPAIS FÁBRICAS DE LINGERIE DE NOVA
Mapa 1 – Distritos de Nova Friburgo.
FRIBURGO.
178

Fotografia 1 – Distrito Sede de Nova Friburgo.
– Parque aquático Olífas.
– Parque aquático do SESI.
179

Fotografia 1.1 – Dependências da Triumph International (ampliação do destaque 1.1 da
fotografia 1).
– Prédio social da Triumph International – com refeitório, três quadras poli-
esportivas, salão de jogos de mesa.
– Vila operária da fábrica – com aproximadamente trinta casas.
– Campo de futebol da fábrica.
– Esporte clube Filó.
180

Fotografia 2 – Distrito de Conselheiro Paulino (principais empresas numeradas).
181

Fotografia 2.1 – Empresa Lucitex Lingeries destacada em vermelho (ampliação do
destaque 2.1 da fotografia 2).
182

Fotografia 2.2 – Empresa Soraya Lingeries destacada em vermelho (ampliação do
destaque 2.2 da fotografia 2).
183

Fotografia 2.3 – Empresa Cor da Pele S.A. destacada em vermelho (ampliação do
destaque 2.3 da fotografia 2).
184

Fotografia 3 – Bairro Duas Pedras, distrito de Conselheiro Paulino. Empresas Gescry
(à esquerda) e Delfri (à direita), destacadas em vermelho.
185

Fotografia 4 – Bairro de Olaria, distrito Sede de Nova Friburgo. Empresas Natula (à
esquerda) e Eunytex (à direita), destacadas em vermelho.
186

Mapa 2 – Distribuição aproximada 117 dos outdoors publicitários de moda íntima em
Nova Friburgo.
1 – Bairro Ponte da Saudade – Centro comercial de Moda íntima – cerca de 50
outdoors.
2 – Bairro do Centro – cerca de 10 outdoors.
3 – Bairro de Olaria – cerca de 15 outdoors.
4 – Bairro de Conselheiro Paulino – cerca de 10 outdoors.
117 Trata-se de uma distribuição aproximada porquanto há sempre uma oscilação para pouco mais ou pouco
menos destes números apresentados. Esta oscilação deve-se à troca eventual dos anúncios, contrapartida do
discurso da inovação típica do mercado publicitário tanto quanto do mercado da moda e que constituem
estratégias conhecidas de criação artificial de demanda.
187