os catadores de lixo ea desativação do lixão do Jangurussu - anpuh

A GUERRA DO LIXO: os catadores de lixo e a desativação do lixão do
Jangurussu
Fabiana IZAIAS
Mestranda em Sociologia/Universidade Federal do Ceará (UFC)
fabiizaias@gmail.com
RESUMO
Esta comunicação objetiva relatar preliminarmente os impactos da desativação do lixão
do Jangurussu para o trabalho e a organização dos catadores de lixo que atuam nesse
espaço. Este lixão foi destino final dos resíduos de Fortaleza entre 1978 e 1998.
Durante seu funcionamento uma economia informal se instalou nos arredores do local
composta por trabalhadores que catavam materiais para venda, atravessadores que
repassavam este material a empresas recicladoras, catadores que reaproveitavam
materiais para criar novos produtos e vendê-los em pequenas feiras, pessoas em busca
de comida para se alimentar ou vender. A desativação desestruturou esta cadeia
produtiva impactando a organização e o cotidiano deste grupo.
Palavras chaves: Catadores de Fortaleza, lixão do Jangurussu história.
“Quando se acabou o lixão tinha uma parte aqui (na usina de triagem
do Jangurussu) e uma parte lá (no lixão). Eu me lembro, eu tava
buchuda do meu menino. Foi uma guerra medonha. Muita gente foi
prá prefeitura, prá EMLURB. Tudo ia prá lá. Catador, deposeiro.
Quem mais ia era os catador.”
(Relato de uma catadora do Jangurussu sobre a desativação do lixão)
Em 2005 estimava-se que um milhão de pessoas sobrevivia da catação de lixo no
Brasil. Em 1999 este contingente era estimado em 300.000. Isto já representa um
crescimento de 240% na quantidade de catadores do país em um curto espaço de seis
anos. 1 O contingente numérico destes profissionais vem crescendo em proporções
geométricas a partir das últimas décadas do século passado. Este crescimento, unido a
mais alguns determinantes, fez com que em 2002 o ministério do trabalho, em um
momento de reavaliação da Classificação Brasileira de Ocupações, reconhecesse nesta
atividade uma “nova profissão”. Denominados como catadores de materiais recicláveis
seu trabalho é descrito no compêndio com as seguintes palavras: profissionais que
1 BOSI, Antônio, Catadores de recicláveis no Brasil: a organização capitalista do trabalho “informal”.
Anais do XIII Congresso Brasileiro de Sociologia, junho de 2007, UFPE, Recife (PE).

“catam, selecionam e vendem materiais recicláveis como papel, papelão e vidro, bem
como materiais ferrosos e não ferrosos e outros materiais reaproveitáveis”. 2
Entretanto, uma análise menos superficial das condições de vida e da atividade
dos catadores nos suscita questionamentos em relação a esta oficialização. Descortina
uma realidade desumana, em que esta categoria, bem longe de ser tratada como
profissional sobrevive sem direitos trabalhistas e sem proteção social. Sua ocupação se
inscreve mais precisamente no campo das estratégias de sobrevivência, da
informalidade, do subemprego e do trabalho precarizado.
Para além da legítima reivindicação destes trabalhadores, que através do
Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), lutaram pela
oficialização e pelo uso desta terminologia para definir a profissão, catador de material
reciclável, esta denominação, bem como outras designações (agentes ambientais,
recicladores), tem sido utilizada como um eufemismo que esconde a precariedade, a
subumanidade e a exploração a que é submetido este grupo. Longe de se dedicarem
somente à coleta, triagem e venda de materiais recicláveis, os catadores sempre foram
submetidos à marginalização por manterem uma relação direta e cotidiana com o lixo 3 .
Este contato, constante e inapropriado, causa neste público problemas freqüentes de
saúde, como afecções respiratórias, afecções de pele, ferimentos infeccionados e outros.
Conforme pesquisa sobre saneamento básico realizada pelo IBGE em 2002,
63,6% dos municípios brasileiros depositam seus resíduos sólidos domiciliares em
lixões a céu aberto. Estes lixões são habitados pelos catadores que ali, ou ao seu redor,
constroem sua moradia. Retiram alimentos para matar própria fome, objetos
reutilizáveis e reaproveitáveis e também materiais recicláveis para venda. Há acidentes
decorrentes de atropelamentos pelos veículos que despejam o lixo e percebe-se a
2 BRASIL. Classificação Brasileira de Ocupações. Ministério do Trabalho e Emprego. Brasília. 2002.
Disponível em: , acesso efetuado em 22 de Agosto de 2007.
3 Segundo a Norma Brasileira - NBR 10.004 (Resíduos Sólidos, Classificação de 1987) da ABNT
(Associação Brasileira de Normas Técnicas), lixo ou resíduo sólido são todos aqueles resíduos nos
estados sólido e semi-sólido que resultam da atividade da comunidade de origem industrial, doméstica,
hospitalar, comercial, de serviços, de varrição ou agrícola. Compreendem os despejos sólidos, restos,
remanescentes putrescíveis e não putrescíveis (exceto os excrementos) que incluem papel, papelão, latas,
material de jardim, madeira, vidro, cacos, trapos, lixo de cozinha e resíduos de indústria, instrumentos
defeituosos e até mesmo aparelhos eletrodomésticos imprestáveis.

presença de idosos, e crianças. Pesquisa da UNICEF revela que há catadores de rua em
67% das cidades brasileiras e em 64% das cidades com mais de 50 mil habitantes. 4
Encontramos registros da existência de catadores em nosso país já no século
XIX. Neste período, eram chamados de trapeiros. Seu trabalho sofreu uma retração no
início do século XX, quando surgiu em São Paulo, o estatuto do lixo que, se utilizando
do argumento da higiene e saúde públicas, venceu a indústria de trapos, excluindo a
população de se ocupar do lixo. 5 Apesar disto, o MNCR, registra a presença destes
profissionais nos lixões, em várias capitais brasileiras, a partir de 1950. Alguns se
dedicavam à coleta de materiais específicos, ficando gravadas na memória das cidades
as figuras dos “garrafeiros” e dos “paneleiros”, catadores que recebiam panelas e
utensílios de cozinha em estado de não uso.
A chamada Revolução Industrial Brasileira, ocorrida no primeiro governo de
Vargas, e a conseqüente urbanização de nosso país neste período podem ser apontadas
como causas da consolidação da ocupação da catação como atividade informal. 6 Entre
os anos de 1940 e 1980, o contingente populacional das cidades saltou de um percentual
de população urbana de 31,23% para 67,69%, deixando em seu rastro uma lista
considerável de dificuldades. 7 Entre elas a crescente produção do lixo, que aumentou
em proporção tão acelerada quanto este processo.
Entretanto, embora tenha se estabelecido como atividade neste período é nas
últimas décadas, entre os anos 70 e 90 que o quantitativo de catadores dá um salto
exorbitante a ponto de constituir-se como categoria profissional e também como
movimento social. O MNCR se institucionalizou durante o Primeiro Encontro Nacional
de Catadores de Papel, realizado em Belo Horizonte (MG), em novembro de 1999, com
o apoio do Fórum Nacional de Estudos sobre População de Rua.
Determinantes macroestruturais podem esclarecer o processo histórico social do
crescimento do segmento de catadores. O período compreendido entre a década de 70 e
o momento atual assiste ao que o historiador Eric Hobsbawm caracterizou como “era do
desmoronamento”. Configura-se por uma crise do capitalismo, com conseqüências
4 ABREU, Maria de F. Do lixo à cidadania: estratégias para a ação. Brasília: Caixa, 2001.
5 VELLOSO, Marta. Os restos na história: percepções sobre resíduos. Revista Ciência & Saúde
Coletiva da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. [online]. 0255/2006. .
Disponível em http://www.abrasco.org.br/cienciaesaudecoletiva/artigos/artigo_int.php?id_artigo=502
ISSN 1413-8123
6 Definir atividade informal
7 PAIVA,2007

astante negativas para a classe trabalhadora. Seus elementos patentes são: a pobreza, o
desemprego em massa, a miséria, a instabilidade e o aumento da concentração de renda.
Suas proporções são mundiais e atingem, a partir de 1980, tanto países ricos quanto se
acirraram em países pobres. É esta era que assiste à queda do muro de Berlim e ao
colapso do socialismo soviético que teve conseqüências para todo o mundo. Isto porque
a era de ouro criara uma economia mundial única, via transnacionalização, quebrando
barreiras anteriormente existentes entre os estados-nação. O desemprego estrutural 8 , e
não mais circunstancial que caracteriza nosso momento, cedeu espaço ao crescimento
da informalidade e ao estabelecimento de relações de trabalho cada vez mais
precarizadas.
Estas relações são legitimadas por um ideário neoliberal, receituário político
adotado inicialmente por países de capitalismo central e a partir dos anos 80 pelos
países de capitalismo periférico, entre eles o Brasil. Esta composição, desemprego
estrutural/novo liberalismo/flexibilização de relações trabalhistas, legitima situações de
informalidade como a dos catadores de lixo que já sofriam estados de superexploração
do seu trabalho. O resultado foi o ingresso deste grupo na base de uma cadeia produtiva
em que trabalham pelo mínimo necessário.
A história dos catadores de Fortaleza traça este mesmo percurso. A cidade já
contava em 2005 com a presença de 8.000 destes trabalhadores, 9 exercendo
intensivamente a atividade. Sozinhos ou acompanhados de sua prole percorrem as ruas
de nossa metrópole à cata de restos aproveitáveis.
O Lixão do João Lopes foi o primeiro destino final dos resíduos de nossa capital.
Localizava-se no bairro do Monte Castelo e teve um período de vida de apenas quatro
anos (1956 a 1960). Em 1961 os resíduos passaram a ser transportados para um novo
lixão, no bairro Barra do Ceará. A transferência coincide com o aumento da produção
de resíduos da cidade, que se intensificou a partir da criação do Distrito Industrial,
durante o primeiro governo de Virgílio Távora (1963-1966) e também com o fluxo
migratório do interior do estado. 10 Entre 1960/1970 essa população migrante foi
responsável por 90% do incremento populacional de Fortaleza. 11 O bairro Barra do
8
Definir desemprego estrutural
9
Pesquisa Impahr
10
GEMELLI,
11
O PROCESSO DE METROPOLIZAÇÃO EM FORTALEZA: UMA INTERPRETAÇÃO PELA MIGRAÇÃO
Ana Maria Matos Araújo, Adelita Neto Carleial

Ceará vê surgirem os primeiros grupos de catadores de lixão em nossa capital. Muitos
deles oriundos deste processo migratório.
Em 1966 os resíduos passaram a ser encaminhados para o Lixão do Buraco da
Gia, localizado nas proximidades da Fábrica de Beneficiamento de Castanha CIONE, na
Avenida Mister Hall. Esta transferência foi temporária, já que em 1967 o Henrique
Jorge passa a ser o destino final do lixo da capital, que agora já abrigava 1.308.919
habitantes. 12
Os grupos que sobrevivem do lixo acompanharam esta migração, estruturando
sua vida ao redor destes espaços. Ruth Gonçalves narra a emblemática migração da
catadora Dona Maria, oriunda da cidade de Massapê Ceará, em busca do lixo:
Em 1972, Dona Maria mudou-se da Barra do Ceará para o Henrique
Jorge, por ser o local do novo depósito de lixo, e enfrentou conflitos
com a polícia, daí a comentar que “vivia no comprimido e nas gota de
remédio”. Após seis anos, houve nova transferência do depósito, e lá
vai Dona Maria para o Jangurussu. Apesar da proibição da polícia,
os catadores resistiram e se fixaram. 13
Quando em 1978 o destino dos resíduos passa a ser o Jangurussu transferem-
se para seus arredores aproximadamente 80 catadores. Embora o poder público, através
do aparato policial intentasse impedir a permanência dos catadores no local não obteve
êxito. Este agrupamento saltou para um quantitativo de 400 catadores em 1992. Em
1993, conforme informado em documento de Secretaria de Infra-estrutura municipal já
chegava a 626 pessoas. Ao redor do lixão, ao qual foi destinada uma área de 2.400 m²,
os catadores construíram casebres onde passaram a residir a fim de se manter próximos
ao seu local de trabalho. Assim podiam contar, para se sustentar, com a mão-de-obra de
suas crianças e dos idosos.
Uma economia informal se instalou em torno do lixão. Além dos catadores
que retiravam dos resíduos o material reciclável se estabeleceram na região pequenos
donos de depósitos, que atuando como atravessadores, compravam os recicláveis e os
repassavam a outros atravessadores maiores para serem revendidos às empresas
recicladoras, instituindo uma cadeia produtiva que tinha como base o catador e em seu
topo as grandes indústrias.
Além de triar o material, vendendo-o aos donos de depósitos da região, os
catadores retiravam do lixão alimentos para consumo próprio e objetos de uso pessoal
como roupas, sapatos e de uso doméstico, como utensílios de cozinha, que
12 GEMELLI,
13 RUTH

eaproveitavam tornando-os utilizáveis ou vendendo-os. Surgiram especialistas da
catação, alguns se dedicavam somente à coleta de madeira, outros como as costureiras
catavam retalhos com os quais criavam roupas. Alguns estabeleciam pequenos barracos
onde vendiam merenda aos outros catadores enquanto o restante da família catava no
lixo. O depoimento de Maria Dias descreve este momento:
“Vim para o lixão porque não tinha outro serviço. Tô muito doente
tomo muito remédio. Cheguei junto com o lixão, vim do Henrique
Jorge. Tenho 60 anos, achava bom trabalhar lá, tinha minha venda,
vendia pro catador e casquerava, eu e meus filhos. Os filhos ficou
grande, hoje é dono do seu nariz, como tô sozinha, costuro. Se não
acabasse o lixão ainda estava lá.”
Os catadores trabalhavam intensamente. Durante o dia e à noite, já que se
organizavam a partir dos horários de chegada dos caminhões que despejavam o lixo.
Levavam seus filhos e ali mesmo sobre o lixo montavam barracos, para protegerem do
sol a si e às suas crianças. Também sob as malocas realizavam suas refeições e
descansavam durante os intervalos de trabalho. Acabavam por passar dias seguidos sob
estas barracas. É o que nos relatam duas catadoras que habitaram o local:
“Fui buscar minha mãe no interior e resolvi trabalhar no lixão. (...)
Era tranqüilo lá cima. Eu trazia o mais velho (filho de seis anos),
porque eles brigava demais. Fiz uma barraca para deixar meu filho
em baixo, ele comeu alguma coisa e tava com a cara toda suja. Pensei
que ele ia morrer. Não sentiu nada. Não me preocupei mais.”
“A favela é a minha primeira lembrança. Logo quando começou. É a
época mais feliz da minha vida. Quando meu pai era vivo, minhas
irmã tudo era viva. Toda a família trabalhava no lixão. O pai, era
difícil vir em casa. Trabalhava vinte e quatro horas. Vivia mais lá do
que em casa.”
Em 1998, apresentando 40m de resíduo acumulado, o lixão do Jangurussu
chegou a seu limite. Nesse momento, o chorume, líquido poluente gerado na
decomposição do lixo, já provocava a contaminação do lençol freático e do rio Cocó. O
bairro do Jangurussu passara por um processo de urbanização. Em suas proximidades
instalaram-se outros bairros que abrigavam inclusive órgão públicos como os Centros
Administrativos do Banco do Nordeste e do Banco do Brasil, que ficam a menos de 5
km do local. Os residentes dos bairros contíguos reclamavam constantemente das
mazelas provocadas pela proximidade com os dejetos. Entravam em contato direto com
nuvens de fumaça provocadas pela queima espontânea do lixo, originada da combustão
do gás metano que era expelido durante a decomposição dos resíduos. Temiam o risco
de incêndios. Reclamavam também do fogo ateado pelo catador quando preparava suas
refeições, pois a fumaça invadia as casas próximas dia e noite, trazendo problemas de
saúde. Segundo depoimentos da população local a poluição ambiental causada pelos

ejeitos trazia danos à comunidade, que sofria também com o mau cheiro exalado pelos
dejetos.
A quantidade de catadores que habitava o local aumentou muito. Os dados
oficiais, resultado de um censo realizado pela prefeitura em 1997, indicaram a presença
de 501 catadores, entretanto sabemos que por sua situação de clandestinidade este
público não tinha interesse em cadastramentos ou catalogações. Como já dissemos
anteriormente, pesquisa realizada em 1993, 14 já registrara uma população de 626,
pessoas, o que nos faz acreditar nas informações de grupos da sociedade civil que
acompanhavam os catadores nesta época, que relatam um contingente de
aproximadamente 1500 trabalhadores.
A situação destas famílias, residindo sobre o lixão e se alimentando de restos
chamou a atenção da população e destas várias organizações da sociedade civil.
Denúncias forçaram o poder público a abandonar a postura de omissão que adotou
durante 20 anos. Através do Projeto Sanear iniciou-se um processo de desativação do
lixão.
O Sanear constituiu uma política pública do governo do Estado do Ceará. Era
estruturada através de vários subprogramas de investimentos na área de saneamento
básico, e foi implementado em parceria com o município através de recursos do Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID). Os subprogramas abrangiam esgotamento
Sanitário, drenagem urbana e limpeza urbana. No segmento de limpeza urbana, a
proposta compreendia a erradicação do lixão do Jangurussu e a construção de três novos
aterros sanitários: Aterro Sanitário Metropolitano Oeste (Asmoc), localizado em
Caucaia; Aterro Sanitário Metropolitano Sul (ASMS), situado em Maracanaú; Aterro
Sanitário Metropolitano Leste (ASML), no município de Aquiraz, região metropolitana
de Fortaleza. O Projeto Sanear transformou o lixão em um complexo, composto por
uma estação de transbordo, uma usina de incineração de resíduos provenientes das
unidades de saúde e uma usina de reciclagem.
Inclusas no estudo técnico realizado para a desativação do lixão, o projeto
propunha uma série de ações relacionadas aos catadores. Profissionais dedicados ao
Sanear realizaram pesquisas referentes à sua situação de vida e de trabalho. O resultado
destes estudos conduziu à proposta de construção do Centro de Triagem de Resíduos
Sólidos do Jangurussu (CTRS).
14 SEINFRA

Este centro consistia em um conjunto de seis esteiras mecânicas onde o lixo
bruto domiciliar, trazido de algumas regionais de Fortaleza, era despejado nestas
esteiras por uma pá mecânica e selecionado pelos catadores. O que restava desta
separação era posteriormente encaminhado ao Asmoc. Além disto, o Projeto propunha a
revitalização da área do lixão, com a construção de áreas de lazer para os trabalhadores
que hoje estão inconclusas ou deterioradas. Algumas sequer foram iniciadas
A desativação foi conflituosa para o grupo que trabalhava naquele espaço. Ao
mesmo tempo em que as obras das unidades eram construídas os catadores eram
paulatinamente afastados. Este foi mais um dos episódios em que aconteceram embates
entre o poder municipal e os 1.500 catadores que nesta época ocupavam o espaço.
Forçados a abandonar seu local de moradia e de sobrevivência material resistiram
bravamente à desativação do lixão. Além dos confrontos com a polícia os catadores e os
comerciantes, compradores do material reciclável realizaram manifestações públicas e
protestos contra a desativação. O Boletim Informativo do site oficial da Câmara
Municipal de Fortaleza noticiou em 09/07/98 o momento das negociações entre
catadores e poder público e a resistência dos catadores que acamparam em frente ao
paço municipal:
CÂMARA PARTICIPA DAS NEGOCIAÇÕES COM CATADORES
DO JANGURUSSU
Após mais de cinco negociações entre Câmara Municipal, catadores
do Jangurussu e Prefeitura, o prefeito Juraci Magalhães assinou hoje
de manhã, 9, no Paço Municipal, o protocolo de intenções para
profissionalizar e apoiar pequenos empreendimentos na comunidade
do Jangurussu. Os catadores de lixo, para isso, estiveram várias
vezes na Câmara pedindo ajuda do presidente, vereador Acilon
Gonçalves (PMDB), e chegaram até a acampar em frente ao Paço.
Foi na audiência pública realizada dia 15 de junho último que foi
tirada uma comissão especial para resolver os problemas dos
catadores. 15
Nos depoimentos dos catadores também encontramos falas nas quais eles se
referem a este momento como sendo um episódio de luta e conflito. É o que narra uma
catadora que vivenciou a desativação e até 2005 ainda permanecia trabalhando na usina
de triagem:
15
“Quando se acabou o lixão tinha uma parte aqui (na usina de triagem
do Jangurussu) e uma parte lá (no lixão). Eu me lembro, eu tava
buchuda do meu menino. Foi uma guerra medonha. Muita gente foi

prá prefeitura, prá EMLURB. Tudo ia prá lá. Catador, deposeiro.
Quem mais ia era os catador.”
Somente 240 trabalhadores que residiam no lixão foram absorvidos para as
atividades da usina. A administração do complexo ficou a cargo Empresa Municipal de
Limpeza e Urbanização (Emlurb), que passou também a acompanhar os trabalhadores e
suas atividades no CTRS.
Os demais catadores, buscando um novo espaço de trabalho e moradia,
deslocaram-se para onde foi instalado o Asmoc, e também para o aterro de Maracanaú,
por tratar-se dos novos destinos finais dos resíduos mais próximos da região
metropolitana de Fortaleza. Em Caucaia e Maracanaú entraram novamente em conflito
com a prefeitura que proibiu a sua presença, reforçando a segurança e expulsando-os
com violência. Este é o depoimento de um catador acerca desta repressão à presença de
trabalhadores do lixo no Asmoc:
“...uma parte foi prá Caucaia (dos catadores expulsos do lixão). A
maioria da favela da Gereba tá lá. Eles entra escondido dentro do
carro e cata. Desde que mataro um lá dentro (do aterro de Caucaia)
que ninguém entra mais lá.”
Muitos então retornaram à catação nas ruas. Com o crescimento da taxa de
desemprego este número vem crescendo em proporções vertiginosas.
Os catadores que permaneceram no Jangurussu foram tutelados pela prefeitura,
que os institucionalizou através da Cooperativa Autônoma da Seleção e Coleta de
Materiais Recicláveis (COOSELC).
Para os catadores que até hoje permanecem trabalhando no CTPRS a
desativação do lixão foi bastante negativa para seu cotidiano de vida e trabalho.
Demonstram um sentimento de saudade em relação ao lixão:
“Eu trabalhava encheno as caçambas. Depois vi o movimento do
pessoal casquerano, aí vim prá cá. Na rampa 16 era melho do que
aqui. Prá mim se tivesse um canto grande prá eu casquera é mellhor.
O problema é qui lá (no lixão de caucaia) se arisca a sê atropelado
ou fechar. Mas se Caucaia fosse liberado eu ia prá lá”
Uma avaliação a posteriore da política adotada pelo projeto Sanear para a
situação do lixão do Jangurussu nos dá alguns indicativos de porque os catadores têm
esta percepção. A desativação do lixão foi realizada sem que fossem consideradas as
necessidades de sobrevivência de todo o grupo que vivia do lixo. Dos 1500 catadores,
16

soment e 12% foram mantidos na usina, enquanto os outros foram largados à própria
sorte e acabaram na marginalidade das ruas.
A participação desta população nas discussões acerca da impossibilidade de
manutenção do lixão, e da busca de sua organização política, enquanto grupo foram
realizadas, em nossa perspectiva, de maneira incorreta. Os catadores, no decorrer de
vinte anos de trabalho no lixo haviam estabelecido entre si e na relação com os
deposeiros códigos de conduta e acordos de trabalho que faziam funcionar a
engrenagem da coleta do material. Embora estes acordos fossem em muitos momentos
prejudiciais aos próprios catadores, principalmente em sua relação com os deposeiros,
era necessário que o processo de desconstrução desta cultura fosse realizado a partir de
suas próprias percepções, de sua compreensão, de sua história e da reconstrução de
outra forma de organização, autogestionária e libertária. As alternativas de trabalho e
renda teriam de ser realizadas com a totalidade do grupo e através de uma política social
condizente com suas limitações de formação. A maioria dos catadores possuía baixa
escolaridade e não conseguiu entender o significado das transformações que foram
impostas a partir da criação da cooperativa. A proposta do Sanear implicava em um
disciplinamento da força de trabalho que não condizia com a característica de
independência dos catadores que se sentiam bem por decidirem acerca de sua
organização. Sobre isto ouvimos o depoimento de um dos trabalhadores, que foi
incluído na cooperativa: “Você ia (trabalhar) na hora que você queria, se quisesse cê ia de
manhã, cê ia de tarde, cê ia de noite.” E outra catadora complementa: “Agente era livre parecia
um passarizinho.”
Prova da insatisfação dos catadores em relação a isto é que sua retirada foi
feita de forma repressora, com violência, provocando indignação. A própria organização
em uma cooperativa não foi construída a partir da iniciativa espontânea dos catadores e
de um amadurecimento dos mesmos. Até hoje, muitos deles sequer entendem o
significado do termo.
A situação de insalubridade a que eram submetidos quando trabalhavam no lixão
não mudou com a construção da usina, já que o resíduo depositado nas esteiras de
triagem era oriundo dos rejeitos domiciliares da cidade e chegava até eles misturado.
Continuaram, portanto, triando o lixo domiciliar bruto, sem o uso de qualquer
equipamento de proteção individual, expostos a cortes, infecções e outras doenças
decorrentes do contato direto com a sujeira. Continuaram a se alimentar do lixo, pois

como a renda obtida era pequena, permaneceram retirando do lixo depositado nas
esteiras restos de comida in natura ou enlatados, muitas vezes fora do prazo de validade.
A renda obtida pela cooperativa não era suficiente para a manutenção dos
equipamentos adquiridos através do BID, esteiras e pá mecânica. Sua manutenção é
dispendiosa e invalidou qualquer possibilidade de auto-sustentabilidade do
empreendimento cooperado. Como não houve, e não há até o momento, um
compromisso formal entre prefeitura e cooperados para que a manutenção desses
equipamentos seja subsidiada pelo município, os catadores ficaram à mercê das
oscilações do poder municipal. A cada novo prefeito uma nova postura, concedendo ou
retirando o apoio financeiro, conforme seu interesse. Essa situação restringe a
autonomia do grupo, permitindo a manutenção da tutela do poder municipal sobre a
cooperativa.
Quanto aos catadores que abandonaram o lixão e engrossaram as fileiras dos que
sobrevivem da rua, o Projeto Sanear não os contemplou com qualquer ação.
Permanecem entregues a precarização, à exploração dos deposeiros.