ENTRE O CAMPO E A CIDADE (EM FESTA ... - XII Simpurb
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<strong>ENTRE</strong> O <strong>CAMPO</strong> E A <strong>CIDADE</strong> (<strong>EM</strong> <strong>FESTA</strong>):<br />
CONSIDERAÇÕES SOBRE DUAS CENAS URBANAS<br />
Marcos Felipe Sudré Souza<br />
Núcleo de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (NPGAU/UFMG)<br />
felipesudre@yahoo.com.br
RESUMO<br />
<strong>ENTRE</strong> O <strong>CAMPO</strong> E A <strong>CIDADE</strong> (<strong>EM</strong> <strong>FESTA</strong>):<br />
CONSIDERAÇÕES SOBRE DUAS CENAS URBANAS<br />
Este trabalho tem como intenção primeira discutir a articulação entre o espaço urbano e a festa,<br />
bem como as implicações oferecidas a esse diálogo pela relação cidade-campo. O<br />
questionamento sobre uma possível (re)valorização do rural na cidade contemporânea, a<br />
permanência do caráter agregador da festa e a potencialidade desta em revelar especificidades<br />
do espaço social são as principais referências que pontuam a construção das ideias levantadas.<br />
Para tal análise, duas cenas urbanas – uma ocorrida nas Minas do Setecentos e outra passada na<br />
cidade contemporânea – surgem como indutoras de reflexões iniciais e ainda como sustentação<br />
para a proposta aqui elaborada: a de uma aproximação do urbano por suas festas.<br />
Palavras-chave: Festa. Cidade. Campo. Urbano. Rural<br />
A festa, o rural e o urbano: uma aproximação<br />
Objeto de trabalhos clássicos nas Ciências Sociais, a festa apresenta uma série de<br />
aspectos já elaborados, especialmente em estudos que procuram mapear o tempo livre<br />
por meio de pesquisas de orientação etnográfica de grande valor. Dentre as matrizes<br />
teóricas mais expressivas, estão as contribuições de autores como Bakhtin (2002), no<br />
qual a ruptura com o que está instituído se da pela “carnavalização”; e ainda Huizinga<br />
(1999), com seu conceito de jogo, intrinsicamente articulado à festa e servindo de<br />
estrutura às relações sociais. Jean Duvignaud (1983) colabora com essa questão ao<br />
considerar o grande poder destruidor da festa e sua finalidade estanque em si mesma,<br />
características que, em certa medida, afastam-se das ideias de Maffesoli (1985) e sua<br />
sociologia “orgiástica”, na qual a ordem está na anomia.<br />
De todas as vertentes, contudo, a de maior repercussão talvez seja a discussão trazida<br />
por Émile Durkheim (1960), em As formas elementares da vida religiosa, publicada<br />
originalmente em 1912. Embora não desenvolva exatamente uma teoria sobre a festa, o<br />
pioneirismo da análise sobre o ritual totêmico na Austrália influenciou boa parte dos<br />
estudos posteriores. Foi a partir da ideia apresentada pelo autor que se pôde apreender a<br />
relação existente entre o rito sagrado e as festividades, ambos movidos por paixões<br />
intensas. O que marca sobremaneira a obra de Durkheim é, desse modo, sua descrição<br />
da “efervescência social”, ou seja, da participação do sujeito no processo coletivo,<br />
evocando danças, gritos, gestos violentos e cantos – elementos presentes ainda nos dias<br />
2
atuais, tanto em um culto sincrético e urbano, a exemplo da umbanda, como em um<br />
baile funk da periferia carioca.<br />
É diante dessa constatação que, para a construção das argumentações desenvolvidas<br />
aqui, parte-se do pressuposto que a festa é reveladora de permanências essenciais à sua<br />
natureza. O momento de fruição se configura como lugar de trocas e dimensão cultural<br />
da vida coletiva. Essa hipótese norteia a intenção primeira deste trabalho, uma tentativa<br />
de compreender em que medida o instante de gozo se articula com o espaço social no<br />
qual se realiza. As possíveis relações entre a festa e o urbano, bem como as implicações<br />
que o diálogo entre cidade e campo insere nessa discussão, são os questionamentos que<br />
organizam as ideias aqui lançadas. Em tom ensaístico, o trabalho não busca encontrar<br />
conclusões – nem poderia ter tal pretensão, devido à complexidade do tema esboçado –,<br />
mas apenas suscitar o debate sobre a festa, o rural e o urbano.<br />
É importante ressaltar ainda que o urbano ao qual se remete não pode ser compreendido<br />
como simples dimensão física ou referência a certo nível de concentração demográfica.<br />
É, antes, fenômeno dado por seus signos, como já destacou Lefebvre (2008: 109), “[...]<br />
os signos da reunião: as coisas que permitem a reunião [...]”. Esse urbano expresso no<br />
modo de vida e revelado por uma abordagem qualitativa é o que permite compreender<br />
seu interlocutor: o rural, seja nas festas barrocas das Minas precocemente urbanizadas<br />
por conta do ouro, seja na louvação da vida do campo revisitada pelas festas sertanejas<br />
do século XXI. Aliás, essas são as duas cenas distintas que se pretende descortinar,<br />
chamando a atenção para as suas festas, seus campos, suas cidades. O que são capazes<br />
de dizer?<br />
Cena 01: A festa como expressão do urbano em seu tempo<br />
Em sua segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais, Auguste de Saint-Hilaire<br />
registrava importantes transformações ocorridas na região do ouro na virada do século<br />
XVIII para o XIX. Como observa o narrador, em 1822, as lavras já não são tantas como<br />
antes e o cultivo da terra, a criação de gado e porcos tornavam-se a principal fonte de<br />
renda dos habitantes. Em seus relatos, o viajante francês descreve o arraial de Aiuruoca<br />
como uma nucleação de expressiva área rural, assim como quase todas as aglomerações<br />
das Minas àquela época. As cerca de 80 casas distribuídas ao longo de três ruas<br />
permanecem pouco habitadas nos dias úteis, “[...] senão por mercadores, operários e<br />
3
prostitutas. Mas, aos domingos e dias de festa, [o arraial] torna-se um lugar de reunião<br />
para todos os cultivadores da comarca” (SAINT-HILLAIRE, 1938: 102).<br />
A leitura das constatações de Saint-Hilaire fornece pelo menos duas questões<br />
fundamentais. A primeira, como já esboçado logo de início, refere-se às alterações<br />
econômicas e seus rebatimentos no espaço social. O conjunto urbano composto de<br />
cidades, vilas e arraiais que se organizaram em torno da mineração via emergir, ou<br />
melhor, fortalecer, no início do século XIX, um mundo rural até então ofuscado pelo<br />
poderio do ouro. Um segundo apontamento trazido pelo relato do viajante, e que será<br />
bastante útil à frente, é dado pela permanência do tempo livre – e do momento festivo<br />
que ele estabelece –, como indutor da urbanidade, motivo pelo qual os homens se<br />
congregam na centralidade urbana e fazem dela um verdadeiro espaço de trocas. São<br />
esses dias regados a gozo e fruição que permitem à cidade servir-se como lócus<br />
privilegiado da festa, ainda que esta tenha no campo a sua gênese (LEFEBVRE, 1991).<br />
Após um período de interiorização e intenso fortalecimento da rede urbana brasileira,<br />
dado pela descoberta do ouro, a capitania de Minas Gerais sofria, à época descrita por<br />
Saint-Hilaire, um processo de ruralização. Como observa Cunha (2009), ao contrário do<br />
Setecentos, quando a concentração de serviços, processos e ideias definia a vida nos<br />
núcleos fundados por conta da atividade mineradora, o momento posterior foi pautado<br />
por uma ruptura com o urbano e uma desarticulação desse universo cultural. Embora<br />
tenha ocorrido uma multiplicação das nucleações citadinas, as vilas e os arraiais que se<br />
formaram no século XIX funcionavam como entrepostos para a produção do campo e<br />
pouco criaram condições para uma vida urbana efetiva.<br />
Contudo, é importante destacar que o arrefecimento da mineração não significou uma<br />
decadência econômica, como pode parecer de início. Tampouco o declínio da atividade<br />
aurífera e a ruralização da qual se fala diz respeito ao surgimento de um mundo rural<br />
completamente novo, como se este não existisse já nas primeiras décadas de ocupação<br />
do território nas Minas. Afinal, ainda no século XVIII, a atividade de extração do ouro<br />
“[...] vai logo demandar fluxos de abastecimento para as pessoas que primeiro ocuparam<br />
a região e que estavam naturalmente voltadas para a mineração. É nesse sentido que o<br />
espaço urbano vai criando o espaço rural” (CUNHA, 2009: 65).<br />
4
Assim, é diante desse contexto, que se estabelece a relação cidade-campo nas Minas,<br />
com sua urbanidade precoce em relação às demais regiões do país, definindo novos<br />
costumes e mentalidades, outros padrões de sociabilidade, enfim, um estado precursor<br />
de modernidade (PAULA, 2000). Parece pertinente considerar, desse modo, que tal<br />
precoce urbanização das Minas é, desde o seu nascedouro, marcada por uma articulação<br />
entre a cidade e o campo bastante complexa e impossível de ser observada a partir de<br />
uma ótica linear em que um elemento precede o outro no tempo, ou ainda, como dois<br />
polos opostos no espaço.<br />
É também essa urbanidade singular, em que o urbano não antecede o rural exatamente,<br />
mas o conforma, que pode ser observada em manifestações culturais do barroco<br />
mineiro, como a Procissão do Triunfo Eucarístico, a festa de transladação do Santíssimo<br />
Sacramento da Igreja do Rosário para o novo templo de Nossa Senhora do Pilar, em<br />
Ouro Preto. Assistido pelos habitantes da então Vila Rica, em 1733, o suntuoso cortejo<br />
foi narrado com detalhes por Simão Ferreira Machado em seu livro publicado, em<br />
Lisboa, no ano seguinte. Como descreve o autor, os preparativos para a grande<br />
procissão já anunciavam ao povo a magnitude da festa. Vários eventos ocorreram entre<br />
os dias três de abril e 24 de maio, dia da transferência do Santíssimo de uma igreja para<br />
a outra: “muitas danças e máscaras ricamente vestidas”, servindo aos olhos um<br />
“agradável espetáculo” (MACHADO, 1938: 999).<br />
Em síntese, o Triunfo Eucarístico pode ser interpretado como a articulação entre um<br />
sofisticado estilo urbano de vida – alcançado graças à prosperidade econômica das<br />
Minas – e o domínio da Igreja Católica e do Estado absolutista português. É a festa em<br />
seu diálogo com o poder instituído, permitindo ritualizar a relação cotidiana que se dá<br />
entre a massa e a autoridade que a governa. A rua, a praça, enfim, a cidade é tomada<br />
pelo povo, mas não como acontece usualmente no dia-a-dia, durante as tarefas que<br />
todos necessitam exercer para sua sobrevivência. No momento da festa, a massa se<br />
transforma em um grupo, com história e identidade territorial em comum. Trata-se de<br />
uma espécie de dramatização, meio pelo qual, segundo Da Matta (1983), é possível<br />
tomar consciência do mundo e dar sentido a ele. Uma ação aparentemente banal da vida<br />
cotidiana é destacada e adquire importante significado, “[...] permitindo situar,<br />
dramaticamente e lado a lado, quem sabe e quem não sabe, quem tem e quem não tem,<br />
quem está em contato com os poderes do alto e quem se situa longe deles” (DA<br />
MATTA, 1983: 26).<br />
5
Em 2011, a procissão do Triunfo Eucarístico foi revivida com grande pompa por conta<br />
das comemorações dos 300 anos de Ouro Preto. Reunindo milhares de pessoas pelas<br />
ruas históricas, a festa envolveu não só a participação das paróquias, ordens terceiras e<br />
irmandades religiosas, mas também de artistas plásticos, intelectuais da Universidade<br />
Federal de Ouro Preto (UFOP), além de estudantes das redes públicas estadual e<br />
municipal de ensino. Assim, a festa, descrita por Souza (1982) como uma das mais<br />
imponentes do Brasil colonial, “apanágio de poucos” e dona de opulência enganadora,<br />
ganhou no século XXI, elementos próprios deste tempo de festa midiatizada. O cortejo,<br />
divulgado de forma massiva pelos meios de comunicação, foi encenado com direito a<br />
roupas cedidas pelo acervo da Fundação Clóvis Salgado e, como praticamente toda festa<br />
que faz parte do calendário de eventos de qualquer cidade no mundo, transformou-se em<br />
importante atrativo turístico, atendendo às demandas do urbano contemporâneo. É desse<br />
modo que o Triunfo Eucarístico do século XXI aproxima-se mais de um estado<br />
mimético – no sentido aristotélico do termo, já que as reelaborações evidentes não<br />
permitem reduzir a festa à uma cópia –, do que mero simulacro, imagens vazias e<br />
desenraizadas de qualquer realidade concreta, como proporia Baudrillard (1991). É um<br />
espetáculo próprio do urbano de seu tempo, seja nos dias de hoje, seja nas Minas<br />
setecentistas.<br />
Cena 02: Festas do campo na cidade contemporânea, o urbano como síntese<br />
O som que vem do rádio anuncia que é tempo de festa na cidade. Dois dias embalados<br />
pela música sertaneja feita por uma nova geração de artistas, em geral, jovens urbanos<br />
que nem sempre trazem consigo alguma relação com o campo. A atração do fim de<br />
semana é o Sertanejo Pop Festival, evento que, em 2011, chega pela primeira vez à Belo<br />
Horizonte já alçado pelo êxito do ano anterior, quando foi realizado apenas na capital<br />
paulista e reuniu mais de 30 mil pessoas na Chácara do Jockey Club da cidade. Gente<br />
interessada em ver e ouvir de perto músicos que conseguiram emplacar suas canções<br />
nas listas das mais executadas em todo o país 1 . Ou ainda, apenas um grande número<br />
1 Para uma análise mais detalhada, ver pesquisa disponível em ECAD, 2011. Distribuídos por regiões, os<br />
dados referentes a abril de 2011 mostram que apenas nos estados do Norte o gênero sertanejo não<br />
ocupou a primeira posição na lista de canções mais executadas em rádios AM, FM, festas e shows<br />
diversos. O levantamento foi feito pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD),<br />
associação que faz o recolhimento dos direitos autorais decorrentes da execução pública de músicas no<br />
Brasil.<br />
6
simplesmente movido pela pura diversão, pelo instante de “finalidade zero”, como bem<br />
classificou a festa Jean Duvignaud (1983).<br />
Pela televisão, o evento é bombardeado em cores vibrantes, que apresentam a todos – a<br />
quem deseja ou não tomar parte – o estilo de vestir, de pentear os cabelos, os modos e<br />
as modas que acompanham canções inspiradas por amores geralmente mal sucedidos.<br />
Também por meio das redes sociais na internet, os preparativos para a folia que se<br />
aproxima pontuam a sociabilidade inerente ao momento festivo. Da compra de<br />
ingressos à organização de caravanas para ir à festa, a “malha de relações” se constrói<br />
em um espaço “[...] onde se desenvolve a vida associativa, desfruta-se o lazer, trocam-se<br />
informações, pratica-se a devoção – onde se tece, enfim, a trama do cotidiano”<br />
(MAGNANI, 2003: 117). Ao contrário do que poderia parecer em um primeiro instante,<br />
as dinâmicas sociais não sucumbem à técnica, mas são realçadas por ela, ainda que de<br />
uma forma outra.<br />
Assim, como tantos eventos que se multiplicam por boa parte do Brasil, o Sertanejo Pop<br />
Festival de Belo Horizonte é apenas mais um fragmento que permite a aproximação de<br />
uma realidade maior. Por meio das mais distintas formas de celebração, o momento de<br />
gozo torna-se imperativo pelas cidades país afora. A festa ganha proporções<br />
surpreendentes e permanece entre as sociedades complexas, embora tenham<br />
preconizado seu fim alguns dos estudiosos mais importantes sobre o tema (CAILLOIS,<br />
1950; GIRARD, 1990). Dos carnavais fora de época em torno do axé music, aos<br />
romeiros que chegam à Basílica de Aparecida do Norte para cultuar a santa católica,<br />
passando pela louvação ao modo de vida interiorano do peão de boiadeiro em Barretos,<br />
a festa transforma o espaço urbano em palco de batalhas, espaço onde e pelo qual se luta<br />
(SOUZA, 2010).<br />
Mais que recorte revelador de um tempo dominado pela “hiperfesta”, como diria<br />
Lipovetsky (2007), o festival sertanejo parece ser ainda capaz de clarear outras cenas<br />
que surgem ao se observar com maior cuidado o calendário festivo das grandes cidades.<br />
Não são raros os exemplos de manifestações que ganham corpo nas centralidades<br />
urbanas, mas que remetem a uma vida no campo. A aparente (re)valorização do mundo<br />
rural está presente não só em festas ou exposições anuais, mas também a cada final de<br />
semana em que jovens em busca de lazer fazem lotar casas noturnas que têm como<br />
principal atrativo a música sertaneja.<br />
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Desse modo, se a festa surge como possível território fértil para o fortalecimento de<br />
ruralidades em pleno espaço urbano, torna-se oportuno levantar aqui algumas questões.<br />
Que rural é esse que pouco diz sobre a vida simples entre a plantação e o gado, seja nas<br />
letras entoadas, seja na indumentária requintada, um tanto distante da imagem rotineira<br />
que se tem do homem acostumado com a lida na roça? Por que essa ruralidade parece<br />
tão descolada da prática cotidiana desses jovens urbanos, tanto aqueles que estão na<br />
plateia como os que sobem ao palco de chapéu e bota de couro? Em que noção de rural<br />
estão alicerçadas tais manifestações culturais populares que envolvem milhares de<br />
pessoas, seja nos festivais de São Paulo e Belo Horizonte, na grande Festa do Peão<br />
Boiadeiro de Barretos ou nos bares que oferecem a festa sertaneja em seu cardápio<br />
semanal?<br />
A reflexão sobre esses questionamentos parece ser apenas possível a partir de uma<br />
análise do urbano contemporâneo. Afinal, enquanto nas primeiras décadas do século<br />
XX, o país era caracterizado por uma sociedade rural, que tinha o campo como lugar de<br />
produção econômica e reprodução da força de trabalho, transformações ocorridas ao<br />
longo dos anos seguintes mudaram brutalmente a distribuição populacional no Brasil. A<br />
atratividade migratória exercida pelos grandes centros urbanos fez com que o país<br />
chegasse ao ano de 2010 com 84,4% de sua população residindo em cidades.<br />
Comparados ao levantamento censitário de 1960, quando 54,9% dos habitantes estavam<br />
no campo, os dados revelam uma expressiva mobilidade espacial no período, fator que<br />
vem se alterando nas últimas décadas. Como mostram estudos do Instituto Brasileiro de<br />
Geografia e Estatística (IBGE), as principais correntes migratórias perderam força desde<br />
os anos 1980 e é considerável o movimento de retorno às regiões de origem (IBGE,<br />
2011).<br />
É diante de tal cenário que se vê emergir interpretações como a de Veiga (2003), que, ao<br />
clamar por políticas de desenvolvimento rural, classifica como “anacrônica” e<br />
“obsoleta” a metodologia baseada na legislação brasileira e utilizada para definir o grau<br />
de urbanização do país. Segundo ele, as relações cidade-campo, de fato, “[...] mudaram<br />
radicalmente na segunda metade do século passado. Mas não foram mudanças que<br />
reduziram o contraste entre ambas [...]” (VEIGA, 2003: 95), o que pode ser percebido<br />
pelo elevado número de municípios de pequena densidade populacional e baixos índices<br />
de desenvolvimento, equivocadamente considerados urbanos de acordo com o autor.<br />
8
Parece de aceitação quase hegemônica entre os estudiosos do assunto que a legislação<br />
vigente é responsável por alguns conflitos conceituais e práticos devido à sua<br />
inadequação. Afinal, ao reconhecer como urbana toda sede de município, o Decreto-lei<br />
311 de 1938 desconsidera uma série de características funcionais e estruturais que<br />
extrapolam os limites físicos. No entanto, também é necessário não reduzir a<br />
urbanização à densidade demográfica, ignorando os espaços de fluxo em suas diferentes<br />
intensidades. Somente ao se desvencilhar de uma abordagem simplesmente quantitativa<br />
é possível entender o urbano para além dos perímetros demarcados pelas prefeituras,<br />
sem substituir um modelo formal por outro de mesma ordem. Como bem lembra Carlos<br />
(2007: 104), “[...] cidade e campo se diferenciam pelo conteúdo das relações sociais<br />
neles contidas, sendo que estas relações, atualmente, ganham conteúdo em sua<br />
articulação com a construção da sociedade urbana [...]”.<br />
Observando essas alterações presentes na realidade social, Graziano da Silva (1999) já<br />
questionava, nas décadas finais do século XX, a tradicional noção de rural. Para ele, o<br />
rural havia deixado de ser o lugar da produção agrícola, surgindo diversas formas de<br />
complementação de renda e atividades no campo. Esse “novo rural”, como classifica o<br />
autor, dá-se pelo avanço do capitalismo em todos os setores e tem como objetivo<br />
atender à crescente demanda de consumo. A extensão das condições industriais à<br />
agricultura, pecuária e outras atividades econômicas do campo certamente não se<br />
realizou de forma homogênea segundo Graziano (1982). Do mesmo modo, também não<br />
se distribuíram igualmente pelo espaço as imagens articuladoras desse “novo rural”,<br />
como casas de campo próximas a centros urbanos, equipamentos de turismo rural ou<br />
propriedades produtoras de artigos voltados para um público mais sofisticado, como os<br />
produtos orgânicos ou iguarias culinárias que abastecem os restaurantes dos grandes<br />
centros, a exemplo de “fazendas” de cogumelos ou rãs.<br />
Nesse aspecto, são fundamentais as contribuições de Monte-Mór (2007), em sua<br />
distinção acerca das funções substantivas e adjetivas dos termos cidade, campo, urbano<br />
e rural. Desenvolvendo-se em relações ao mesmo tempo antagônicas e complementares,<br />
os elementos substantivos cidade e campo deram origem às qualificações urbano e rural<br />
respectivamente. Com o processo de “urbanização extensiva” 2 , cidade e campo deixam<br />
de representar realidades concretas e “[...] a substantivação do qualificativo urbano [...]<br />
2 Para uma aproximação do conceito, ver MONTE-MÓR, 1994; 2006.<br />
9
passa assim a significar o terceiro termo da tríade dialética, a síntese da contradição<br />
cidade-campo” (MONTE-MÓR, 2007: 99, grifo do autor).<br />
É nesse contexto que se inserem as festas sertanejas que dão vida a uma curiosa cena<br />
contemporânea, na qual a ruralidade, como estilo de vida, surge mais como imaginário<br />
coletivo do que efetivamente como reflexo de uma prática cotidiana agrária na cidade. É<br />
ainda essa realidade socioespacial que permite entender o rural contemporâneo, louvado<br />
nas festas sertanejas ou em tantas outras manifestações culturais, como demanda de um<br />
mundo urbano que avança para além da cidade, borrando limites e imiscuindo<br />
realidades. Assim, a festa sertaneja e sua atualização no espaço citadino surge como<br />
imagem desse tempo em que a dicotomia entre cidade e campo se esvazia e faz surgir<br />
um elemento outro, reflexo de uma acentuada porosidade entre fronteiras.<br />
Algumas considerações<br />
Desde o início do processo de urbanização, a produção do espaço social brasileiro tem<br />
sofrido alterações contínuas e significativas, e a relação cidade-campo se configura<br />
como parte intrínseca desse drama. Um embate que poderia ser observado já nos<br />
primeiros sobrados e mucambos urbanos sucessores de um país essencialmente agrário,<br />
que, com suas casas-grandes e senzalas, enunciava relações de poder patriarcal<br />
(FREYRE, 1984; 2004). Uma questão ainda presente na cidade contemporânea, seja no<br />
uso do solo urbano para fins agrícolas, seja na “condominização” às margens de tantas<br />
rodovias, para além das centralidades consolidadas, em busca de um espaço verde para<br />
viver. Um conflito histórico (ou seria diáologo?) também explícito na relação entre o<br />
espaço social e a festa.<br />
As cenas expostas aqui mostraram o quão associados, ou associáveis, são a festa e o<br />
urbano e, consequentemente, o rural. Na descrição de Saint-Hilaire, o urbano é dado<br />
pelo rural, ao seu modo e no momento apropriado para ele. Daí, o processo de<br />
ruralização das Minas no início do século XIX, com os dias de festa fazendo da cidade o<br />
lugar do encontro, com a atividade agropecuária transformando o campo em espaço<br />
privilegiado da produção. Na Vila Rica setecentista, é o modo de vida urbano que<br />
conforma o rural e, claro, também a festa, que surge revelando todo o esplendor da<br />
cidade mineradora à época. Não por acaso, é esse espetáculo que ganha destaque no<br />
século XXI. É revivido e reinventado para um novo público, tendo como base outra<br />
10
urbanidade, mas que não deixa de remeter a uma modernidade primeira, com ares<br />
nostálgicos de quem ainda não se esqueceu da glória do passado. Na festa sertaneja do<br />
século XXI, é o urbano extensivo que se torna evidente, símbolo de uma nova<br />
urbanidade, permeada por referências ao campo, mas que se dá para além dos limites da<br />
cidade e é fortemente marcada por fluxos intensos entre as duas realidades. Enfim, duas<br />
cenas, alguns fotogramas e uma proposição: a festa pode e deve ser observada como<br />
reveladora do urbano de seu tempo.<br />
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