14.04.2013 Views

ENTRE O CAMPO E A CIDADE (EM FESTA ... - XII Simpurb

ENTRE O CAMPO E A CIDADE (EM FESTA ... - XII Simpurb

ENTRE O CAMPO E A CIDADE (EM FESTA ... - XII Simpurb

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

<strong>ENTRE</strong> O <strong>CAMPO</strong> E A <strong>CIDADE</strong> (<strong>EM</strong> <strong>FESTA</strong>):<br />

CONSIDERAÇÕES SOBRE DUAS CENAS URBANAS<br />

Marcos Felipe Sudré Souza<br />

Núcleo de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (NPGAU/UFMG)<br />

felipesudre@yahoo.com.br


RESUMO<br />

<strong>ENTRE</strong> O <strong>CAMPO</strong> E A <strong>CIDADE</strong> (<strong>EM</strong> <strong>FESTA</strong>):<br />

CONSIDERAÇÕES SOBRE DUAS CENAS URBANAS<br />

Este trabalho tem como intenção primeira discutir a articulação entre o espaço urbano e a festa,<br />

bem como as implicações oferecidas a esse diálogo pela relação cidade-campo. O<br />

questionamento sobre uma possível (re)valorização do rural na cidade contemporânea, a<br />

permanência do caráter agregador da festa e a potencialidade desta em revelar especificidades<br />

do espaço social são as principais referências que pontuam a construção das ideias levantadas.<br />

Para tal análise, duas cenas urbanas – uma ocorrida nas Minas do Setecentos e outra passada na<br />

cidade contemporânea – surgem como indutoras de reflexões iniciais e ainda como sustentação<br />

para a proposta aqui elaborada: a de uma aproximação do urbano por suas festas.<br />

Palavras-chave: Festa. Cidade. Campo. Urbano. Rural<br />

A festa, o rural e o urbano: uma aproximação<br />

Objeto de trabalhos clássicos nas Ciências Sociais, a festa apresenta uma série de<br />

aspectos já elaborados, especialmente em estudos que procuram mapear o tempo livre<br />

por meio de pesquisas de orientação etnográfica de grande valor. Dentre as matrizes<br />

teóricas mais expressivas, estão as contribuições de autores como Bakhtin (2002), no<br />

qual a ruptura com o que está instituído se da pela “carnavalização”; e ainda Huizinga<br />

(1999), com seu conceito de jogo, intrinsicamente articulado à festa e servindo de<br />

estrutura às relações sociais. Jean Duvignaud (1983) colabora com essa questão ao<br />

considerar o grande poder destruidor da festa e sua finalidade estanque em si mesma,<br />

características que, em certa medida, afastam-se das ideias de Maffesoli (1985) e sua<br />

sociologia “orgiástica”, na qual a ordem está na anomia.<br />

De todas as vertentes, contudo, a de maior repercussão talvez seja a discussão trazida<br />

por Émile Durkheim (1960), em As formas elementares da vida religiosa, publicada<br />

originalmente em 1912. Embora não desenvolva exatamente uma teoria sobre a festa, o<br />

pioneirismo da análise sobre o ritual totêmico na Austrália influenciou boa parte dos<br />

estudos posteriores. Foi a partir da ideia apresentada pelo autor que se pôde apreender a<br />

relação existente entre o rito sagrado e as festividades, ambos movidos por paixões<br />

intensas. O que marca sobremaneira a obra de Durkheim é, desse modo, sua descrição<br />

da “efervescência social”, ou seja, da participação do sujeito no processo coletivo,<br />

evocando danças, gritos, gestos violentos e cantos – elementos presentes ainda nos dias<br />

2


atuais, tanto em um culto sincrético e urbano, a exemplo da umbanda, como em um<br />

baile funk da periferia carioca.<br />

É diante dessa constatação que, para a construção das argumentações desenvolvidas<br />

aqui, parte-se do pressuposto que a festa é reveladora de permanências essenciais à sua<br />

natureza. O momento de fruição se configura como lugar de trocas e dimensão cultural<br />

da vida coletiva. Essa hipótese norteia a intenção primeira deste trabalho, uma tentativa<br />

de compreender em que medida o instante de gozo se articula com o espaço social no<br />

qual se realiza. As possíveis relações entre a festa e o urbano, bem como as implicações<br />

que o diálogo entre cidade e campo insere nessa discussão, são os questionamentos que<br />

organizam as ideias aqui lançadas. Em tom ensaístico, o trabalho não busca encontrar<br />

conclusões – nem poderia ter tal pretensão, devido à complexidade do tema esboçado –,<br />

mas apenas suscitar o debate sobre a festa, o rural e o urbano.<br />

É importante ressaltar ainda que o urbano ao qual se remete não pode ser compreendido<br />

como simples dimensão física ou referência a certo nível de concentração demográfica.<br />

É, antes, fenômeno dado por seus signos, como já destacou Lefebvre (2008: 109), “[...]<br />

os signos da reunião: as coisas que permitem a reunião [...]”. Esse urbano expresso no<br />

modo de vida e revelado por uma abordagem qualitativa é o que permite compreender<br />

seu interlocutor: o rural, seja nas festas barrocas das Minas precocemente urbanizadas<br />

por conta do ouro, seja na louvação da vida do campo revisitada pelas festas sertanejas<br />

do século XXI. Aliás, essas são as duas cenas distintas que se pretende descortinar,<br />

chamando a atenção para as suas festas, seus campos, suas cidades. O que são capazes<br />

de dizer?<br />

Cena 01: A festa como expressão do urbano em seu tempo<br />

Em sua segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais, Auguste de Saint-Hilaire<br />

registrava importantes transformações ocorridas na região do ouro na virada do século<br />

XVIII para o XIX. Como observa o narrador, em 1822, as lavras já não são tantas como<br />

antes e o cultivo da terra, a criação de gado e porcos tornavam-se a principal fonte de<br />

renda dos habitantes. Em seus relatos, o viajante francês descreve o arraial de Aiuruoca<br />

como uma nucleação de expressiva área rural, assim como quase todas as aglomerações<br />

das Minas àquela época. As cerca de 80 casas distribuídas ao longo de três ruas<br />

permanecem pouco habitadas nos dias úteis, “[...] senão por mercadores, operários e<br />

3


prostitutas. Mas, aos domingos e dias de festa, [o arraial] torna-se um lugar de reunião<br />

para todos os cultivadores da comarca” (SAINT-HILLAIRE, 1938: 102).<br />

A leitura das constatações de Saint-Hilaire fornece pelo menos duas questões<br />

fundamentais. A primeira, como já esboçado logo de início, refere-se às alterações<br />

econômicas e seus rebatimentos no espaço social. O conjunto urbano composto de<br />

cidades, vilas e arraiais que se organizaram em torno da mineração via emergir, ou<br />

melhor, fortalecer, no início do século XIX, um mundo rural até então ofuscado pelo<br />

poderio do ouro. Um segundo apontamento trazido pelo relato do viajante, e que será<br />

bastante útil à frente, é dado pela permanência do tempo livre – e do momento festivo<br />

que ele estabelece –, como indutor da urbanidade, motivo pelo qual os homens se<br />

congregam na centralidade urbana e fazem dela um verdadeiro espaço de trocas. São<br />

esses dias regados a gozo e fruição que permitem à cidade servir-se como lócus<br />

privilegiado da festa, ainda que esta tenha no campo a sua gênese (LEFEBVRE, 1991).<br />

Após um período de interiorização e intenso fortalecimento da rede urbana brasileira,<br />

dado pela descoberta do ouro, a capitania de Minas Gerais sofria, à época descrita por<br />

Saint-Hilaire, um processo de ruralização. Como observa Cunha (2009), ao contrário do<br />

Setecentos, quando a concentração de serviços, processos e ideias definia a vida nos<br />

núcleos fundados por conta da atividade mineradora, o momento posterior foi pautado<br />

por uma ruptura com o urbano e uma desarticulação desse universo cultural. Embora<br />

tenha ocorrido uma multiplicação das nucleações citadinas, as vilas e os arraiais que se<br />

formaram no século XIX funcionavam como entrepostos para a produção do campo e<br />

pouco criaram condições para uma vida urbana efetiva.<br />

Contudo, é importante destacar que o arrefecimento da mineração não significou uma<br />

decadência econômica, como pode parecer de início. Tampouco o declínio da atividade<br />

aurífera e a ruralização da qual se fala diz respeito ao surgimento de um mundo rural<br />

completamente novo, como se este não existisse já nas primeiras décadas de ocupação<br />

do território nas Minas. Afinal, ainda no século XVIII, a atividade de extração do ouro<br />

“[...] vai logo demandar fluxos de abastecimento para as pessoas que primeiro ocuparam<br />

a região e que estavam naturalmente voltadas para a mineração. É nesse sentido que o<br />

espaço urbano vai criando o espaço rural” (CUNHA, 2009: 65).<br />

4


Assim, é diante desse contexto, que se estabelece a relação cidade-campo nas Minas,<br />

com sua urbanidade precoce em relação às demais regiões do país, definindo novos<br />

costumes e mentalidades, outros padrões de sociabilidade, enfim, um estado precursor<br />

de modernidade (PAULA, 2000). Parece pertinente considerar, desse modo, que tal<br />

precoce urbanização das Minas é, desde o seu nascedouro, marcada por uma articulação<br />

entre a cidade e o campo bastante complexa e impossível de ser observada a partir de<br />

uma ótica linear em que um elemento precede o outro no tempo, ou ainda, como dois<br />

polos opostos no espaço.<br />

É também essa urbanidade singular, em que o urbano não antecede o rural exatamente,<br />

mas o conforma, que pode ser observada em manifestações culturais do barroco<br />

mineiro, como a Procissão do Triunfo Eucarístico, a festa de transladação do Santíssimo<br />

Sacramento da Igreja do Rosário para o novo templo de Nossa Senhora do Pilar, em<br />

Ouro Preto. Assistido pelos habitantes da então Vila Rica, em 1733, o suntuoso cortejo<br />

foi narrado com detalhes por Simão Ferreira Machado em seu livro publicado, em<br />

Lisboa, no ano seguinte. Como descreve o autor, os preparativos para a grande<br />

procissão já anunciavam ao povo a magnitude da festa. Vários eventos ocorreram entre<br />

os dias três de abril e 24 de maio, dia da transferência do Santíssimo de uma igreja para<br />

a outra: “muitas danças e máscaras ricamente vestidas”, servindo aos olhos um<br />

“agradável espetáculo” (MACHADO, 1938: 999).<br />

Em síntese, o Triunfo Eucarístico pode ser interpretado como a articulação entre um<br />

sofisticado estilo urbano de vida – alcançado graças à prosperidade econômica das<br />

Minas – e o domínio da Igreja Católica e do Estado absolutista português. É a festa em<br />

seu diálogo com o poder instituído, permitindo ritualizar a relação cotidiana que se dá<br />

entre a massa e a autoridade que a governa. A rua, a praça, enfim, a cidade é tomada<br />

pelo povo, mas não como acontece usualmente no dia-a-dia, durante as tarefas que<br />

todos necessitam exercer para sua sobrevivência. No momento da festa, a massa se<br />

transforma em um grupo, com história e identidade territorial em comum. Trata-se de<br />

uma espécie de dramatização, meio pelo qual, segundo Da Matta (1983), é possível<br />

tomar consciência do mundo e dar sentido a ele. Uma ação aparentemente banal da vida<br />

cotidiana é destacada e adquire importante significado, “[...] permitindo situar,<br />

dramaticamente e lado a lado, quem sabe e quem não sabe, quem tem e quem não tem,<br />

quem está em contato com os poderes do alto e quem se situa longe deles” (DA<br />

MATTA, 1983: 26).<br />

5


Em 2011, a procissão do Triunfo Eucarístico foi revivida com grande pompa por conta<br />

das comemorações dos 300 anos de Ouro Preto. Reunindo milhares de pessoas pelas<br />

ruas históricas, a festa envolveu não só a participação das paróquias, ordens terceiras e<br />

irmandades religiosas, mas também de artistas plásticos, intelectuais da Universidade<br />

Federal de Ouro Preto (UFOP), além de estudantes das redes públicas estadual e<br />

municipal de ensino. Assim, a festa, descrita por Souza (1982) como uma das mais<br />

imponentes do Brasil colonial, “apanágio de poucos” e dona de opulência enganadora,<br />

ganhou no século XXI, elementos próprios deste tempo de festa midiatizada. O cortejo,<br />

divulgado de forma massiva pelos meios de comunicação, foi encenado com direito a<br />

roupas cedidas pelo acervo da Fundação Clóvis Salgado e, como praticamente toda festa<br />

que faz parte do calendário de eventos de qualquer cidade no mundo, transformou-se em<br />

importante atrativo turístico, atendendo às demandas do urbano contemporâneo. É desse<br />

modo que o Triunfo Eucarístico do século XXI aproxima-se mais de um estado<br />

mimético – no sentido aristotélico do termo, já que as reelaborações evidentes não<br />

permitem reduzir a festa à uma cópia –, do que mero simulacro, imagens vazias e<br />

desenraizadas de qualquer realidade concreta, como proporia Baudrillard (1991). É um<br />

espetáculo próprio do urbano de seu tempo, seja nos dias de hoje, seja nas Minas<br />

setecentistas.<br />

Cena 02: Festas do campo na cidade contemporânea, o urbano como síntese<br />

O som que vem do rádio anuncia que é tempo de festa na cidade. Dois dias embalados<br />

pela música sertaneja feita por uma nova geração de artistas, em geral, jovens urbanos<br />

que nem sempre trazem consigo alguma relação com o campo. A atração do fim de<br />

semana é o Sertanejo Pop Festival, evento que, em 2011, chega pela primeira vez à Belo<br />

Horizonte já alçado pelo êxito do ano anterior, quando foi realizado apenas na capital<br />

paulista e reuniu mais de 30 mil pessoas na Chácara do Jockey Club da cidade. Gente<br />

interessada em ver e ouvir de perto músicos que conseguiram emplacar suas canções<br />

nas listas das mais executadas em todo o país 1 . Ou ainda, apenas um grande número<br />

1 Para uma análise mais detalhada, ver pesquisa disponível em ECAD, 2011. Distribuídos por regiões, os<br />

dados referentes a abril de 2011 mostram que apenas nos estados do Norte o gênero sertanejo não<br />

ocupou a primeira posição na lista de canções mais executadas em rádios AM, FM, festas e shows<br />

diversos. O levantamento foi feito pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD),<br />

associação que faz o recolhimento dos direitos autorais decorrentes da execução pública de músicas no<br />

Brasil.<br />

6


simplesmente movido pela pura diversão, pelo instante de “finalidade zero”, como bem<br />

classificou a festa Jean Duvignaud (1983).<br />

Pela televisão, o evento é bombardeado em cores vibrantes, que apresentam a todos – a<br />

quem deseja ou não tomar parte – o estilo de vestir, de pentear os cabelos, os modos e<br />

as modas que acompanham canções inspiradas por amores geralmente mal sucedidos.<br />

Também por meio das redes sociais na internet, os preparativos para a folia que se<br />

aproxima pontuam a sociabilidade inerente ao momento festivo. Da compra de<br />

ingressos à organização de caravanas para ir à festa, a “malha de relações” se constrói<br />

em um espaço “[...] onde se desenvolve a vida associativa, desfruta-se o lazer, trocam-se<br />

informações, pratica-se a devoção – onde se tece, enfim, a trama do cotidiano”<br />

(MAGNANI, 2003: 117). Ao contrário do que poderia parecer em um primeiro instante,<br />

as dinâmicas sociais não sucumbem à técnica, mas são realçadas por ela, ainda que de<br />

uma forma outra.<br />

Assim, como tantos eventos que se multiplicam por boa parte do Brasil, o Sertanejo Pop<br />

Festival de Belo Horizonte é apenas mais um fragmento que permite a aproximação de<br />

uma realidade maior. Por meio das mais distintas formas de celebração, o momento de<br />

gozo torna-se imperativo pelas cidades país afora. A festa ganha proporções<br />

surpreendentes e permanece entre as sociedades complexas, embora tenham<br />

preconizado seu fim alguns dos estudiosos mais importantes sobre o tema (CAILLOIS,<br />

1950; GIRARD, 1990). Dos carnavais fora de época em torno do axé music, aos<br />

romeiros que chegam à Basílica de Aparecida do Norte para cultuar a santa católica,<br />

passando pela louvação ao modo de vida interiorano do peão de boiadeiro em Barretos,<br />

a festa transforma o espaço urbano em palco de batalhas, espaço onde e pelo qual se luta<br />

(SOUZA, 2010).<br />

Mais que recorte revelador de um tempo dominado pela “hiperfesta”, como diria<br />

Lipovetsky (2007), o festival sertanejo parece ser ainda capaz de clarear outras cenas<br />

que surgem ao se observar com maior cuidado o calendário festivo das grandes cidades.<br />

Não são raros os exemplos de manifestações que ganham corpo nas centralidades<br />

urbanas, mas que remetem a uma vida no campo. A aparente (re)valorização do mundo<br />

rural está presente não só em festas ou exposições anuais, mas também a cada final de<br />

semana em que jovens em busca de lazer fazem lotar casas noturnas que têm como<br />

principal atrativo a música sertaneja.<br />

7


Desse modo, se a festa surge como possível território fértil para o fortalecimento de<br />

ruralidades em pleno espaço urbano, torna-se oportuno levantar aqui algumas questões.<br />

Que rural é esse que pouco diz sobre a vida simples entre a plantação e o gado, seja nas<br />

letras entoadas, seja na indumentária requintada, um tanto distante da imagem rotineira<br />

que se tem do homem acostumado com a lida na roça? Por que essa ruralidade parece<br />

tão descolada da prática cotidiana desses jovens urbanos, tanto aqueles que estão na<br />

plateia como os que sobem ao palco de chapéu e bota de couro? Em que noção de rural<br />

estão alicerçadas tais manifestações culturais populares que envolvem milhares de<br />

pessoas, seja nos festivais de São Paulo e Belo Horizonte, na grande Festa do Peão<br />

Boiadeiro de Barretos ou nos bares que oferecem a festa sertaneja em seu cardápio<br />

semanal?<br />

A reflexão sobre esses questionamentos parece ser apenas possível a partir de uma<br />

análise do urbano contemporâneo. Afinal, enquanto nas primeiras décadas do século<br />

XX, o país era caracterizado por uma sociedade rural, que tinha o campo como lugar de<br />

produção econômica e reprodução da força de trabalho, transformações ocorridas ao<br />

longo dos anos seguintes mudaram brutalmente a distribuição populacional no Brasil. A<br />

atratividade migratória exercida pelos grandes centros urbanos fez com que o país<br />

chegasse ao ano de 2010 com 84,4% de sua população residindo em cidades.<br />

Comparados ao levantamento censitário de 1960, quando 54,9% dos habitantes estavam<br />

no campo, os dados revelam uma expressiva mobilidade espacial no período, fator que<br />

vem se alterando nas últimas décadas. Como mostram estudos do Instituto Brasileiro de<br />

Geografia e Estatística (IBGE), as principais correntes migratórias perderam força desde<br />

os anos 1980 e é considerável o movimento de retorno às regiões de origem (IBGE,<br />

2011).<br />

É diante de tal cenário que se vê emergir interpretações como a de Veiga (2003), que, ao<br />

clamar por políticas de desenvolvimento rural, classifica como “anacrônica” e<br />

“obsoleta” a metodologia baseada na legislação brasileira e utilizada para definir o grau<br />

de urbanização do país. Segundo ele, as relações cidade-campo, de fato, “[...] mudaram<br />

radicalmente na segunda metade do século passado. Mas não foram mudanças que<br />

reduziram o contraste entre ambas [...]” (VEIGA, 2003: 95), o que pode ser percebido<br />

pelo elevado número de municípios de pequena densidade populacional e baixos índices<br />

de desenvolvimento, equivocadamente considerados urbanos de acordo com o autor.<br />

8


Parece de aceitação quase hegemônica entre os estudiosos do assunto que a legislação<br />

vigente é responsável por alguns conflitos conceituais e práticos devido à sua<br />

inadequação. Afinal, ao reconhecer como urbana toda sede de município, o Decreto-lei<br />

311 de 1938 desconsidera uma série de características funcionais e estruturais que<br />

extrapolam os limites físicos. No entanto, também é necessário não reduzir a<br />

urbanização à densidade demográfica, ignorando os espaços de fluxo em suas diferentes<br />

intensidades. Somente ao se desvencilhar de uma abordagem simplesmente quantitativa<br />

é possível entender o urbano para além dos perímetros demarcados pelas prefeituras,<br />

sem substituir um modelo formal por outro de mesma ordem. Como bem lembra Carlos<br />

(2007: 104), “[...] cidade e campo se diferenciam pelo conteúdo das relações sociais<br />

neles contidas, sendo que estas relações, atualmente, ganham conteúdo em sua<br />

articulação com a construção da sociedade urbana [...]”.<br />

Observando essas alterações presentes na realidade social, Graziano da Silva (1999) já<br />

questionava, nas décadas finais do século XX, a tradicional noção de rural. Para ele, o<br />

rural havia deixado de ser o lugar da produção agrícola, surgindo diversas formas de<br />

complementação de renda e atividades no campo. Esse “novo rural”, como classifica o<br />

autor, dá-se pelo avanço do capitalismo em todos os setores e tem como objetivo<br />

atender à crescente demanda de consumo. A extensão das condições industriais à<br />

agricultura, pecuária e outras atividades econômicas do campo certamente não se<br />

realizou de forma homogênea segundo Graziano (1982). Do mesmo modo, também não<br />

se distribuíram igualmente pelo espaço as imagens articuladoras desse “novo rural”,<br />

como casas de campo próximas a centros urbanos, equipamentos de turismo rural ou<br />

propriedades produtoras de artigos voltados para um público mais sofisticado, como os<br />

produtos orgânicos ou iguarias culinárias que abastecem os restaurantes dos grandes<br />

centros, a exemplo de “fazendas” de cogumelos ou rãs.<br />

Nesse aspecto, são fundamentais as contribuições de Monte-Mór (2007), em sua<br />

distinção acerca das funções substantivas e adjetivas dos termos cidade, campo, urbano<br />

e rural. Desenvolvendo-se em relações ao mesmo tempo antagônicas e complementares,<br />

os elementos substantivos cidade e campo deram origem às qualificações urbano e rural<br />

respectivamente. Com o processo de “urbanização extensiva” 2 , cidade e campo deixam<br />

de representar realidades concretas e “[...] a substantivação do qualificativo urbano [...]<br />

2 Para uma aproximação do conceito, ver MONTE-MÓR, 1994; 2006.<br />

9


passa assim a significar o terceiro termo da tríade dialética, a síntese da contradição<br />

cidade-campo” (MONTE-MÓR, 2007: 99, grifo do autor).<br />

É nesse contexto que se inserem as festas sertanejas que dão vida a uma curiosa cena<br />

contemporânea, na qual a ruralidade, como estilo de vida, surge mais como imaginário<br />

coletivo do que efetivamente como reflexo de uma prática cotidiana agrária na cidade. É<br />

ainda essa realidade socioespacial que permite entender o rural contemporâneo, louvado<br />

nas festas sertanejas ou em tantas outras manifestações culturais, como demanda de um<br />

mundo urbano que avança para além da cidade, borrando limites e imiscuindo<br />

realidades. Assim, a festa sertaneja e sua atualização no espaço citadino surge como<br />

imagem desse tempo em que a dicotomia entre cidade e campo se esvazia e faz surgir<br />

um elemento outro, reflexo de uma acentuada porosidade entre fronteiras.<br />

Algumas considerações<br />

Desde o início do processo de urbanização, a produção do espaço social brasileiro tem<br />

sofrido alterações contínuas e significativas, e a relação cidade-campo se configura<br />

como parte intrínseca desse drama. Um embate que poderia ser observado já nos<br />

primeiros sobrados e mucambos urbanos sucessores de um país essencialmente agrário,<br />

que, com suas casas-grandes e senzalas, enunciava relações de poder patriarcal<br />

(FREYRE, 1984; 2004). Uma questão ainda presente na cidade contemporânea, seja no<br />

uso do solo urbano para fins agrícolas, seja na “condominização” às margens de tantas<br />

rodovias, para além das centralidades consolidadas, em busca de um espaço verde para<br />

viver. Um conflito histórico (ou seria diáologo?) também explícito na relação entre o<br />

espaço social e a festa.<br />

As cenas expostas aqui mostraram o quão associados, ou associáveis, são a festa e o<br />

urbano e, consequentemente, o rural. Na descrição de Saint-Hilaire, o urbano é dado<br />

pelo rural, ao seu modo e no momento apropriado para ele. Daí, o processo de<br />

ruralização das Minas no início do século XIX, com os dias de festa fazendo da cidade o<br />

lugar do encontro, com a atividade agropecuária transformando o campo em espaço<br />

privilegiado da produção. Na Vila Rica setecentista, é o modo de vida urbano que<br />

conforma o rural e, claro, também a festa, que surge revelando todo o esplendor da<br />

cidade mineradora à época. Não por acaso, é esse espetáculo que ganha destaque no<br />

século XXI. É revivido e reinventado para um novo público, tendo como base outra<br />

10


urbanidade, mas que não deixa de remeter a uma modernidade primeira, com ares<br />

nostálgicos de quem ainda não se esqueceu da glória do passado. Na festa sertaneja do<br />

século XXI, é o urbano extensivo que se torna evidente, símbolo de uma nova<br />

urbanidade, permeada por referências ao campo, mas que se dá para além dos limites da<br />

cidade e é fortemente marcada por fluxos intensos entre as duas realidades. Enfim, duas<br />

cenas, alguns fotogramas e uma proposição: a festa pode e deve ser observada como<br />

reveladora do urbano de seu tempo.<br />

Referências<br />

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o<br />

contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2002.<br />

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulações. Lisboa: Relógio D’água, 1991.<br />

CAILLOIS, Roger. L´homme et le sacré. Paris: Éditions Gallimard, 1950.<br />

CARLOS, Ana Fani Alessandri. O espaço urbano: novos critérios sobre a cidade. São<br />

Paulo: Contexto, 2007.<br />

CUNHA, Alexandre Mendes. O urbano e o rural em Minas Gerais entre os séculos<br />

XVIII e XIX. Cadernos da Escola do Legislativo. Belo Horizonte, v. 11, n. 16, p. 57-<br />

70, jan./jun. 2009.<br />

ECAD – Escritório Central de Arrecadação e Distribuição. 2011. Apresenta estatísticas<br />

e informações sobre a execução pública de músicas no Brasil. Disponível em:<br />

. Acesso em: 12 jul. 2011.<br />

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Sinopse do censo demográfico<br />

2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2011. Disponível em: . Acesso<br />

em: 09 jul. 2011.<br />

DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema<br />

brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.<br />

DURKHEIM, Émile. Les formes elementaires de la vie religieus: le systeme<br />

totemique en Australie. Paris: Presses Universitaires de France, 1960.<br />

DUVIGNAUD, Jean. Festas e civilizações. Edições Universidade Federal do Ceará:<br />

Fortaleza; Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.<br />

FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o<br />

regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1984.<br />

FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e<br />

desenvolvimento urbano São Paulo: Global, 2004.<br />

GIRARD, René. A violência e o sagrado. São Paulo: Unesp; Paz e Terra, 1990.<br />

11


GRAZIANO DA SILVA, José. A modernização dolorosa: estrutura agrária, fronteira<br />

agrícola e trabalhadores rurais no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1982.<br />

GRAZIANO DA SILVA, José. O novo rural brasileiro. Campinas: Editora Unicamp,<br />

1999.<br />

HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo:<br />

Perspectiva, 1999.<br />

LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática, 1991.<br />

LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.<br />

LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade do<br />

hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.<br />

MACHADO, Simão Ferreira. Triumpho Eucharistico: exemplar da christandade<br />

luzitana da fé na solene trasladação do Diviníssimo Sacramento da Igreja da Senhora do<br />

Rosário para um novo templo da Senhora do Pilar em Villa Rica Corte da Capitania das<br />

Minas aos 21 e maio de 1733. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte:<br />

Imprensa Oficial, Ano VI, 1901. Disponível em:<br />

. Acesso em: 15 jul. 2011.<br />

MAFFESOLI, Michel. A sombra de Dionísio: contribuição a uma sociologia da orgia.<br />

Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.<br />

MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no pedaço: cultura popular e lazer na<br />

cidade. São Paulo: Unesp, 2003.<br />

MONTE-MÓR, Roberto Luís de Melo. As teorias urbanas e o planejamento urbano no<br />

Brasil. In: DINIZ, C. C.; CROCCO, M. A. (Eds.). Economia regional e urbana:<br />

contribuições teóricas recentes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p. 61-85.<br />

MONTE-MÓR, Roberto Luís de Melo. Cidade e Campo, urbano e rural: o substantivo e<br />

o adjetivo. In: FELDMAN, S.; FERNANDES, A. (Orgs.). O urbano e o regional no<br />

Brasil contemporâneo: mutações, tensões, desafios. Salvador: Edufba, 2007. p-93-114.<br />

MONTE-MÓR, Roberto Luís de Melo. Urbanização extensiva e novas lógicas de<br />

povoamento: um olhar ambiental. In: SANTOS, Milton; SOUZA, Maria Adélia<br />

Aparecida de; SILVEIRA, Maria Laura. (Org.). Território: globalização e<br />

fragmentação. São Paulo: Hucitec; Anpur, 1994. p. 169-181.<br />

PAULA, João Antônio de. Raízes da modernidade em Minas Gerais. Belo Horizonte:<br />

Autêntica, 2000.<br />

SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Geraes e a<br />

São Paulo (1822). Companhia Editora Nacional: São Paulo, Rio de Janeiro, Recife,<br />

Porto Alegre, 1938. Disponível em: BRASILIANA ELETRÔNICA.<br />

. Acesso em: 10 jul. 2011.<br />

12


SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século<br />

XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1990.<br />

SOUZA, Marcos Felipe Sudré. A festa e a cidade: experiência coletiva, poder e<br />

excedente no espaço urbano. 2010. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo)<br />

– Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010.<br />

VEIGA, José Eli da. Cidades imaginárias: o Brasil é menos urbano do que se calcula.<br />

Campinas: Autores Associados, 2003.<br />

13

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!