MILANEZ, Nilton. Prólogo de uma história para a vida - Uesb
MILANEZ, Nilton. Prólogo de uma história para a vida - Uesb
MILANEZ, Nilton. Prólogo de uma história para a vida - Uesb
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA<br />
Colaboradores<br />
Amara Costa Silva<br />
Ana Cláudia Tomagnini Igurrola<br />
Ana Vitória Fernan<strong>de</strong>s Almeida<br />
Celso Maciel<br />
Fábio Alexis da Silva Sousa<br />
João Renê Rodrigues <strong>de</strong> Oliveira<br />
Abel Rebouças São José<br />
Reitor<br />
Rui Macédo<br />
frice-reitor<br />
Paulo Sérgio Cavalcanti Costa<br />
Pró-Reitor <strong>de</strong> Extrnsáo r .Assuntos Comnnitorios<br />
Rossana Karla Dias Freiras<br />
Gerente <strong>de</strong> ExtellJà; , .Assuntos Cnlturais<br />
Mansa Fernan<strong>de</strong>s Leite Correia<br />
Diretora do Mmeu &gional <strong>de</strong> J 'itária da Conquista<br />
Janaina <strong>de</strong> Jesus Santos<br />
Coor<strong>de</strong>nadora Pedagógica<br />
Marinho Rosa e Silva (1n ""IIIoliam)<br />
arma Alves Souza<br />
Sued Sampaio<br />
Estagiários<br />
Banieck Silva Campos<br />
Fabiana Mércia Souto Stefano<br />
Confecção da Ficha Catalográfica: Elinei Carvalho Santana - CRB 5/1026<br />
F543<br />
Memória Conquistense: Revista do Museu Regional <strong>de</strong> Vitória da<br />
Conquista, v. 8, n. 9. --Vitória da Conquista: Edições UESB, 2009.<br />
Dossiê temático: O Fio da Memória: Discurso e História no Sudoeste<br />
da Bahia.<br />
ISSN 1677 -2342<br />
"<br />
I. Vitória da Conquista (BA) - História. 2. Discurso - Vitória da<br />
Conquista (BA) - Memória. I. Universida<strong>de</strong> Estadual do Sudoeste da Bahia,<br />
Museu Regional <strong>de</strong> Vitória da Conquista. I. T.<br />
CDD: 981.42<br />
'~<br />
üil)ffSUIl8<br />
Estrada do Bem Querer, km 4 - 45083-900 - Vitória da Conquista - Bahia<br />
Fone: (77) 3424-8716. E-mail: editora@uesb.broueditorauesb@y.hoo.com.br<br />
Universida<strong>de</strong> Estadual do Sudoeste da Bahia<br />
Metnória Conquistense<br />
O FIO DA MEMÓRIA: Discurso e História no Sudoeste da Bahia<br />
ISS~ 1677-2342<br />
Memória Conquistensc Vitória da Conquista 2(K15
PRÓLOGO DE UMA HISTÓRIA PARA A VIDA<br />
mo<strong>de</strong>lando as memórias do corpo e das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />
RESUMO<br />
Prologue of a history to life:<br />
mo<strong>de</strong>lling body and i<strong>de</strong>ntities memories<br />
}\,Tilton MlLANEZ1<br />
Este trabalho invcsriga a obra Ceramista do Sudoeste n" 1, do artista plástico<br />
conquistense Romeu Ferreira, sob a noção <strong>de</strong> enunciado no interior da Análise do<br />
Discurso, a partir dos postulados <strong>de</strong> Michel Foucault. Dessa forma, evi<strong>de</strong>nciarei<br />
o corpo e sua imagem como produção discursiva <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s na <strong>história</strong> do<br />
cotidiano, cuja memória coloca em evidência o nosso presente histórico.<br />
PALAVRAS-CHAVE<br />
Discurso. Corpo. História. Memória.<br />
ABSTRACT<br />
This paper investigares the work Ceramista do Sudoeste n" 1, by Romeu Ferreira,<br />
born in Vitória da Conquista, Bahia, Brazil, un<strong>de</strong>r the notion of enunciate in<br />
the French Discourse Analysis, from the postulates of Michel Foucault. Thus,<br />
I will point out the bodv and its image as a discursive production of i<strong>de</strong>ntities<br />
in the quotidian hisrorv, which memory highlights our historic present.<br />
KEYWORDS<br />
Discourse. Body. Historv, Memorv<br />
1. Olhando <strong>para</strong> Ceramista do Sudoeste n? 1, <strong>de</strong> Romeu Ferreira<br />
Como chegamos a tocar <strong>uma</strong> obra <strong>de</strong> arte? Como essa obra nos<br />
toca? Que arte da existência po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ssa relação entre<br />
a obra que nos toca e o sujeito que lhe espreita? Ao nos <strong>de</strong><strong>para</strong>rmos<br />
I Professor Adjunto <strong>de</strong> Análise do Discurso na L'niversidadc Estadual do Sudoeste da Bahia<br />
(CESB); li<strong>de</strong>r do GRCDlOCORPO/C"-lPq - Grupo <strong>de</strong> Estudos sobre o Discurso e o Corpo ~e<br />
responsável pelo projeto "Corpo e Discurso: lugares <strong>de</strong> memória e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s brasileiras na mídia<br />
e na literatura" /CESB. Evmail: niltonmilanez@hotmail.com<br />
Memória Conquistense Vitória da Conquista Y. 8, n. 9 2005
18 Sillon MilMe;;.<br />
com a fotografia Ceramista do Sudoeste n" 1, a partir da criação em<br />
ma<strong>de</strong>ira prensada, <strong>de</strong> Romeu Ferreira, artista conquistense, parece que<br />
procuramos algo que nos possa dar <strong>uma</strong> resposta, talvez aquilo como<br />
<strong>uma</strong> unida<strong>de</strong> que nos liga ao tudo e ao nada. Entretanto, os efeitos <strong>de</strong><br />
sentido que essa imagem provoca, povoa exteriorida<strong>de</strong>s históricas que<br />
abarcam muito mais que suas dimensões 80x70 cm. Certamente, vão além<br />
do acetato <strong>de</strong> polivinila sobre a ma<strong>de</strong>ira prensada. E ainda pelo fato <strong>de</strong><br />
aguçar sensibilida<strong>de</strong>s a partir, não do trabalho em si, mas <strong>de</strong> <strong>uma</strong> foto<br />
que passou pela transfiguração do olhar <strong>de</strong> Sabiá, quem fotografou o<br />
trabalho <strong>de</strong> R. Ferreira. Posso afirmar que a compreensão <strong>de</strong>sse trabalho<br />
- que agora pertence àquele que olha e não mais aos Seus artistas (aquele<br />
da ma<strong>de</strong>ira ou aquele da foto) - vai além <strong>de</strong> sua unida<strong>de</strong> formal.<br />
Essa unida<strong>de</strong> não unifica nem sobrepõe, ela mesma acabaria por<br />
reduzir, ao mínimo, a <strong>história</strong> que ali retratada serve à <strong>vida</strong>. Pergunto,<br />
então: qual tipo <strong>de</strong> unida<strong>de</strong> procuramos? Talvez seja aquela que une um<br />
<strong>de</strong>terminado tipo <strong>de</strong> conhecimento, <strong>de</strong> <strong>uma</strong> certa cultura, em espaço<br />
específico do tempo. Ora, estamos, <strong>de</strong>ssa maneira, face a <strong>uma</strong> unida<strong>de</strong><br />
discursiva. Essa unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que falo faz com que Ceramista do Sudoeste n"<br />
1não seja compreendida na estreiteza dos limites <strong>de</strong> seu volume material,<br />
mas que essa obra seja colocada em relação com outras obras, em outros<br />
lugares, fazendo emergir um sentido que nasce das relações <strong>de</strong> práticas<br />
que vivenciamos no dia-a-dia, tomadas nos seus intrincamentos com as<br />
produções <strong>de</strong> saber, ou seja, <strong>de</strong> conhecimento.<br />
Mas que conhecimento po<strong>de</strong>ria apontar esse trabalho?<br />
Isso <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> como enten<strong>de</strong>mos o que é conhecimento. Eu o<br />
compreendo como a posição que os sujeitos ocupam diante <strong>de</strong> vários<br />
objetos que cruzam durante o dia, marcando, assim, um lugar, um<br />
tempo e um posicionamento. Essa tría<strong>de</strong> revelará o lugar <strong>de</strong> um sujeito<br />
na <strong>história</strong> e na memória, produzindo i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. Em resumo, olho<br />
novamente o trabalho em questão e sigo me colocando ainda mais<br />
outras problematizações.<br />
PróloL~o <strong>de</strong> IIIJ/a Iustoria <strong>para</strong> a l'ida 19<br />
2. A mão que molda o enunciado<br />
Busquemos, portanto, o que torna Ceramista do Sudoeste n" 1,<br />
<strong>de</strong> Romeu Ferreira <strong>uma</strong> obra singular. Para tanto, compreen<strong>de</strong>rei o<br />
trabalho do artista como um enunciado, a partir do conceito estabelecido<br />
por Michel Foucault (2000a). Para Foucault, o enunciado "não é <strong>uma</strong><br />
frase", pois não está necessariamente submetido a <strong>uma</strong> estrutura<br />
lingüística canônica (sujeito-verbo-predicado), ou seja, a seus caracteres<br />
gramaticais. O enunciado não se revela por meio dos constituintes da<br />
frase. Seguindo a discussão do pensador francês, enunciado também<br />
"não é <strong>uma</strong> proposição". Entendamos que a proposição se submete às<br />
prons <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iro ou falso e o enunciado está no nível do discurso<br />
e não consi<strong>de</strong>ra equivalências entre as formulações. Na mesma linha,<br />
enunciado "não é um ato <strong>de</strong> linguagem", pois mesmo que se assemelhe<br />
a essa discussão, à primeira vista, não se propõe, nesse caso, a procurar<br />
o ato material (falar e/ou escrever), como na filosofia analítica inglesa,<br />
como tampouco a intenção do indivíduo que está realizando um ato.<br />
Sob essa perspectiva, um enunciado se constitui pelo fato <strong>de</strong> ele ser<br />
produzido por um sujeito, em um lugar institucional, <strong>de</strong>terminado por<br />
regras sócio-históricas, que <strong>de</strong>finem e possibilitam o enunciado. Coloco<br />
essas questões <strong>para</strong> estabelecer o lugar do qual falo, compreen<strong>de</strong>ndo<br />
Ceramista do Sudoeste n? 1 não apenas como trabalho artístico, mas como<br />
<strong>de</strong>staque da posição <strong>de</strong> sujeitos, <strong>de</strong>terminando o que po<strong>de</strong> e se <strong>de</strong>ve<br />
dizer (FOL'CAL'LT, 2000b), em um momento dado. Portanto, investigar<br />
o trabalho <strong>de</strong> Romeu Ferreira como enunciado nos dará a dimensão<br />
necessária <strong>para</strong> que eu possa refletir sobre a constituição dos sujeitos e<br />
a formação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s no Sudoeste da Bahia.<br />
3. Construções do Imaginário no Sudoeste da Bahia<br />
Ao nos <strong>de</strong><strong>para</strong>rmos com Ceramista do Sudoeste n" 1, um sujeito<br />
espectador diante <strong>de</strong> seu objeto, inicia-se um processo histórico <strong>de</strong><br />
reflexão e reinvenção <strong>de</strong> imagens, porque nosso corpo ao mesmo tempo<br />
em que produz imagens é também receptor <strong>de</strong>las. Mais especificamente,
20 <strong>Nilton</strong> Milanez<br />
compreendamos que o artista conquistense, ao construir materialmente<br />
seu trabalho, possibilitou a elaboração <strong>de</strong> <strong>uma</strong> imagem acerca do povo do<br />
sudoeste baiano e, ao nos apresentar essa imagem, ela passa a fazer parte<br />
<strong>de</strong> nosso arquivo midiático, ou seja, o arquivo <strong>de</strong> imagens que marcou<br />
nossa <strong>história</strong> como sujeitos. Vendo <strong>de</strong>ssa maneira, tanto o trabalho em<br />
si, como nosso olhar sobre ele refletem ecos<strong>de</strong> nossa cultura (COURTINE<br />
apud <strong>MILANEZ</strong>, 2006), inicialmente, regional, <strong>para</strong> <strong>de</strong>pois, falar <strong>de</strong> nossa<br />
própria <strong>história</strong> i<strong>de</strong>ntitária como brasileiros.<br />
Colocar <strong>uma</strong> imagem, <strong>de</strong>ssa maneira, em re<strong>de</strong>, seja com as imagens<br />
que nos compõem particularmente como sujeitos ou aquelas que nos<br />
cercam tangencialmente, é olhar discursivamente <strong>para</strong> um objeto que<br />
se <strong>de</strong>sloca <strong>de</strong> seu ponto inicial <strong>para</strong> se inserir e se juntar à margem com<br />
outros enunciados, construindo pouco a pouco o que conhecemos e<br />
chamamos <strong>de</strong> "nós". Nessa linha, vou agora escavar camadas <strong>de</strong> Ceramista<br />
do Sudoeste n O I na busca da constituição <strong>de</strong>sse sujeito, elencando sentidos<br />
que a própria materialida<strong>de</strong> do enunciado nos oferece. Comecemos,<br />
portanto, pelo próprio titulo do trabalho: Ceramista do Sudoeste n" 1.<br />
3.1. Porque Ceramista?<br />
A unida<strong>de</strong> que o discurso comporta não aceita metafísicas<br />
ou intuições, não há um lugar <strong>para</strong> o "por acaso". Toda relação no<br />
discurso é marcada por <strong>uma</strong> existência histórica, que se constrói<br />
sobre procedimentos <strong>de</strong> controle, coagindo-nos a excluir posições em<br />
<strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> outras no momento <strong>de</strong> <strong>uma</strong> escolha. Ao buscarmos<br />
compreen<strong>de</strong>r o titulo da obra Ceramista, po<strong>de</strong>mos questionar porque<br />
não poeta, bóia-fira ou ciclista? Consi<strong>de</strong>rando o sistema <strong>de</strong> exclusão,<br />
que possibilitou a escolha do titulo que nos remete a sua imagem, é que<br />
po<strong>de</strong>mos apreendê-Ia em sua singularida<strong>de</strong>: unida<strong>de</strong> da singularização<br />
que, <strong>para</strong> existir e se mostrar, precisa entrar também em re<strong>de</strong> com os<br />
enunciados aos quais não pertence. Isso nos chama a atenção <strong>para</strong> o<br />
não questionamento <strong>de</strong> <strong>uma</strong> posição, dizendo que a eleição <strong>de</strong> um fato<br />
exclui outros e traz, assim, conseqüências e intervenções cujas fronteiras<br />
precisam ser <strong>de</strong>terminadas. Nietzsche (2003, p. 45) diz:<br />
<strong>Prólogo</strong><strong>de</strong> <strong>uma</strong> histeria <strong>para</strong> a rida 21<br />
"suponhamos que alguém se ocupe com Demócrito, então, a<br />
pergunta sempre fica <strong>para</strong> mim na ponta da língua. Por que não<br />
Heráclito? Ou Filon? Ou Bacon? Ou Descartes? - e assim por<br />
diante, arbitrariamente. E, então: porque justamente um filósofo?<br />
Por que não um poeta, um orador?" E por que em geral um<br />
grego, por que não um inglês, um turco?<br />
Da mesma maneira, Foucault compreen<strong>de</strong>rá esse pensamento<br />
nietzscheano por meio do questionamento: porque este e não outro<br />
enunciado em seu lugar?, ou citando Foucault (2000a, p. 49), em sua<br />
Arqueologia do Saber, "mas entre eles, que relações existem? Porque<br />
esta enumeração e não outra?". Ao consi<strong>de</strong>rarmos as intervenções <strong>de</strong><br />
Nietzsche e Foucault, tomamos os discursos e a <strong>história</strong> que os <strong>de</strong>termina<br />
como irrupção <strong>de</strong> acontecimentos.<br />
Para tanto, compreendamos como a noção <strong>de</strong> "ceramista" se<br />
constrói no percurso que marca a sua composição como sujeito na<br />
<strong>história</strong>. E atentemos que Ceramista não é, por exemplo, a <strong>de</strong>finição que<br />
po<strong>de</strong>mos encontrar em algum site do google como "o cerarnista é o<br />
profissional que trabalha com a cerâmica, que é a ati<strong>vida</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> produção <strong>de</strong><br />
objetos e artefatos a partir <strong>de</strong> argilas'", pois cada unida<strong>de</strong> do discurso não<br />
tem em si seu valor, seu lugar ou seu tempo, pois isso se dá a ver à medida<br />
que consi<strong>de</strong>ramos suas interrupções e seus jogos com discursos alhures~<br />
O sentido <strong>para</strong> Ceramista, portanto, não está dicionarizado ou cristalizado<br />
em nossa língua. O sentido <strong>para</strong> essa <strong>de</strong>signação se constrói por meio <strong>de</strong><br />
materialida<strong>de</strong>s que po<strong>de</strong>mos visualizar na produção discursiva da obra,<br />
elementos que pretendo apontar a seguir.<br />
3.2. Materialida<strong>de</strong>s e sentidos do sl!jeito<br />
Para nos colocarmos frente à Cerarnista do Sudoeste n? 1, seria<br />
interessante recorrer a <strong>uma</strong> metodologia do olhar, a fim <strong>de</strong> levar a cabo<br />
o projeto <strong>de</strong> construção discursiva <strong>de</strong>ssa obra. Por isso, ao olhar <strong>para</strong> a<br />
tela, vou me <strong>de</strong>ter a <strong>de</strong>talhes da maneira como o faria um <strong>de</strong>tetive, um<br />
médico, ou um historiador da arte. Como nos ensinou Ginzburg (1990),<br />
, Site: Brasil Profissões. Disponível em: . Acesso em: 5<br />
nov, 2008.
22<br />
Niiton Milal7ez<br />
o essencial está nas particularida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> nosso objeto <strong>de</strong> estudo, o que me<br />
faz procurar traços e indicios dos contornos que constituirão o sentido<br />
<strong>para</strong> Ceramista, <strong>de</strong>terminado pela i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> Sudoeste. Observando a<br />
imagem como um médico olha <strong>para</strong> um raio-X, procuro i<strong>de</strong>ntificar os<br />
sintomas que permitem transparecer a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que esse enunciado<br />
propõe, trazendo quatro lugares <strong>de</strong> olhar:<br />
Figura 1 - Ceramista do Sudoeste,<br />
n? 1. Fonte: Acetato <strong>de</strong> Polivinila<br />
sobre ma<strong>de</strong>ira prensada, 80X70,<br />
1992, Romeu Ferreira.<br />
Primeiro: tomando a materialida<strong>de</strong> lingüística , <strong>de</strong> imediato ,<br />
observamos que não há marcação <strong>de</strong> artigo <strong>para</strong> Ceramista, <strong>de</strong>negando<br />
a presença <strong>de</strong> um gênero masculino ou feminino, que po<strong>de</strong>ria estar<br />
marcado pela presença <strong>de</strong> "O Ceramista" ou ''A Ceramista". Seguindo,<br />
o apagamento <strong>de</strong> gênero não se dá somente na língua, mas também<br />
na imagem: o corpo retratado na tela não apresenta formas evi<strong>de</strong>ntes<br />
que pu<strong>de</strong>ssem <strong>de</strong>terminar seu sexo. Ao contrário, o movimento do<br />
braço direito da personagem, passando por cima <strong>de</strong> sua cabeça com o<br />
alongamento da coluna, me remete a <strong>uma</strong> imagem bastante viril, o que<br />
<strong>Prólogo</strong> <strong>de</strong> lima bistória <strong>para</strong> a <strong>vida</strong> 23<br />
não <strong>de</strong>termina um gênero, mas marca um tipo <strong>de</strong> força potencial do<br />
sujeito que segura o vaso. Mãos, dorso e braços alongados me remetem<br />
a <strong>uma</strong> configuração que po<strong>de</strong>ria ser entendida em nossa socieda<strong>de</strong><br />
brasileira como um traço feminino, por ser bastante <strong>de</strong>licada. Mas,<br />
<strong>de</strong> novo, não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar nos levar pelo senso comum, atrelando<br />
<strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za somente à mulher, imaginário comumente reforçado pela<br />
mídia. Ora, tal construção não me surpreen<strong>de</strong>, pois estamos diante <strong>de</strong><br />
um mecanismo que não coloca em relevo um individuo marcado por<br />
seu gênero. Este é um exemplo formidável <strong>para</strong> se compreen<strong>de</strong>r a noção<br />
<strong>de</strong> sujeito <strong>para</strong> a Análise do Discurso. O sujeito é o imbricamento <strong>de</strong><br />
um "eu" com um "nós", ou se preferirem, <strong>de</strong> <strong>uma</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> com <strong>uma</strong><br />
alterida<strong>de</strong>, o que o torna o sujeito clivado por suas relações pessoais/<br />
interindividuais e sociais/institucionais. Isso nos mostra que o sujeito<br />
não é livre <strong>para</strong> fazer o que quiser, quando quiser, mas que está atrelado<br />
às coações e contingências dos laços que o constroem. Colocado isso,<br />
sabemos que, como sujeito, somos produto <strong>de</strong> <strong>uma</strong> intersecção <strong>de</strong><br />
posicionamentos e lugares. O efeito que se produz, portanto, ao meu<br />
ver, a partir da construção <strong>de</strong>ssa figura, é que Ceramista não se limita a<br />
ocupar um lugar único, per se já é um lugar <strong>de</strong> constituição <strong>de</strong> múltiplas<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, que po<strong>de</strong> ser ocupado por qualquer um <strong>de</strong> nós que a figura<br />
toque com o olhar.<br />
Segundo: a tela, nessa esteira, releva um tipo <strong>de</strong> sujeito específico,<br />
porque ao mesmo tempo em que não estabelece o gênero, também não<br />
estabelece um tempo marcado. Essa dispersão tão característica do sujeito<br />
apresenta <strong>uma</strong> narrativa mítica, eu diria, original, mas não no sentido<br />
<strong>de</strong> mostrar <strong>uma</strong> origem, um começo, mas <strong>uma</strong> divinização do sujeito<br />
que o insere no tempo e no espaço históricos, <strong>de</strong> maneira eternalizante,<br />
ao modo dos gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>uses. O efeito provocado é <strong>de</strong> universalização<br />
do sujeito. Dessa maneira, a tela eternaliza um momento que po<strong>de</strong>ria<br />
ser efêmero, fugaz, representado no simples ato <strong>de</strong> levar o jarro <strong>de</strong><br />
barro ao chão: a tela toma, assim, contornos da fixação <strong>de</strong> um instante<br />
na eternida<strong>de</strong>. Até aqui, parece que essas inquietações po<strong>de</strong>m marcar<br />
qualquer sujeito, impossibilitando o encontro <strong>de</strong> <strong>uma</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Porém,<br />
é justamente a partir da dispersão histórica do retrato que se encontra
24 <strong>Nilton</strong> Milatlez<br />
a regularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se pertencer ao Sudoeste, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que se formata<br />
nos poucos segundos em que nossos olhos vêem a tela e lêem o título<br />
que a segue.<br />
Terceiro: ainda, nesse breve percurso, gostaria <strong>de</strong> colocar em<br />
relevo aspectos que tangem a relação do corpo do sujeito na tela, com os<br />
objetos que produz: os vasos. A cabeça do sujeito na tela não apresenta<br />
i<strong>de</strong>ntificações fisiogonômicas, não pelo menos da maneira como<br />
pensamos encontrar, com traços <strong>de</strong> homem, mulher, velho ou criança<br />
etc. A cabeça, em sua forma redonda, se assemelha, por i<strong>de</strong>ntificação,<br />
ao vaso, criando o efeito <strong>de</strong> que a cabeça é também um vaso e que está<br />
na mesma or<strong>de</strong>m que eles, trazendo o seguinte percurso: vasos no chão,<br />
vaso que vai ser colocado no chão, vaso/cabeça que se alinha nessa<br />
or<strong>de</strong>m. Ressalto, também, que a cabeça, o que mostraria a i<strong>de</strong>ntificação<br />
por meio <strong>de</strong> um rosto, tomada como vaso, po<strong>de</strong> ser compreendida como<br />
a singularida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que se constrói. Por último, chamo a<br />
atenção <strong>para</strong> os movimentos das linhas do corpo da personagem que<br />
colocam-na em relação direta com o vaso. Vaso e ceramista, portanto,<br />
são partes dos mesmos elementos.<br />
Quarto: como vimos, o sujeito da tela não é somente aquele que<br />
fabrica os vasos, mas é também o próprio vaso. Sob essa perspectiva, ser e<br />
fazer se encontram no mesmo nivel discursivo. Por isso, gostaria <strong>de</strong> refletir<br />
sobre o ato <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lar. Mo<strong>de</strong>lar significa colocar em mol<strong>de</strong>, o que traz, a<br />
priori, <strong>uma</strong> idéia <strong>de</strong> normatização, homogeneização, disciplina coercitiva,<br />
o que apagaria o processo <strong>de</strong> fabricação no binômio fabricação/invenção.<br />
Contrariando a idéia primeira da disciplinarização, a tela reproduz o<br />
discurso <strong>de</strong> <strong>uma</strong> força plástica criadora, <strong>uma</strong> vez que a produção dos<br />
vasos nasce, sobretudo, <strong>de</strong> <strong>uma</strong> massa disforme, a argila, que respeitará os<br />
<strong>de</strong>sejos e vonta<strong>de</strong>s do criador das formas em cerâmica. Aqui está, a meu<br />
ver, o traço i<strong>de</strong>ntitário que o enunciado <strong>de</strong>ixa transparecer: esse sujeito,<br />
caracterizado pelo ato da fabricação, ou seja, da invenção, é a configuração<br />
<strong>de</strong> um sujeito marcado por <strong>uma</strong> força plástica, que reinventa os sujeitos.<br />
E como não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, essa <strong>história</strong> não é apresentada pelas<br />
gran<strong>de</strong>s autorida<strong>de</strong>s ou governantes, não estamos diante da <strong>história</strong> dos<br />
célebres. O lugar que esse sujeito da recriação ocupa está ancorado no<br />
Prólo!!,o <strong>de</strong> lI",a lustána <strong>para</strong> a tuia<br />
sujeito comum, aquele do dia-a-dia, que vive o cotidiano, escrevendo-se<br />
e mo<strong>de</strong>lando-se ao se inscrever na <strong>história</strong>.<br />
4. Uma memória do presente<br />
Ceramista do Sudoeste na 1 é, então, o inicio <strong>de</strong> <strong>uma</strong> pequena<br />
arqueologia do imaginário sobre o sujeito do sudoeste baiano, compondo<br />
um arquivo, inferência que faço a partir <strong>de</strong> "na 1", inicio mais do que <strong>de</strong><br />
<strong>uma</strong> série <strong>de</strong> telas, mas um mosaico das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s do sujeito baiano.<br />
lão há <strong>história</strong> sem memória e, antes <strong>de</strong> mais nada, precisamos enten<strong>de</strong>r<br />
que discursos isso <strong>de</strong>flagra. A <strong>história</strong> que temos presente na tela <strong>de</strong><br />
Romeu Ferreira é <strong>uma</strong> <strong>história</strong> que tem em si con<strong>de</strong>nsada memórias do<br />
passado, mas que marcam o nosso presente histórico, <strong>de</strong>ixando brechas<br />
<strong>para</strong> se compreen<strong>de</strong>r o futuro por vir. ão basta olhar <strong>para</strong> a <strong>história</strong><br />
<strong>para</strong> investigar o seu passado, fechando-se nele. Essencial é caminhar<br />
na <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> histórica, seguindo o fio que ora se enrola ora se<br />
<strong>de</strong>senrola em direções que nem sempre po<strong>de</strong>mos prever. Essencial é ter<br />
em mente a pergunta iluminista retomada por Foucault "Quem somos<br />
nós nesse momento?" (FOUCAULT, 2001, p.783), no encontro <strong>de</strong>sse<br />
"hoje" com <strong>uma</strong> memória do presente, eternalizada na tela apresentada.<br />
Dessa maneira, po<strong>de</strong>mos começar a compreen<strong>de</strong>r as relações entre<br />
<strong>história</strong> , memória e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> no interior dos estudos sobre o discurso.<br />
Para finalizar, ao lado <strong>de</strong> Nietzsche, compreendo que Ceramista do<br />
Sudoeste na 1, <strong>de</strong> Romeu Ferreira, <strong>para</strong> além <strong>de</strong> <strong>uma</strong> tela, é o marco <strong>de</strong><br />
<strong>uma</strong> "<strong>história</strong> que serve à <strong>vida</strong>" (NIETZSCHE, 2003, p. 27).<br />
5. Referências<br />
FOUCAULT, Michel. O que são as luzes? In: o<br />
11, 1976-1988. Paris: Quarto-Gallimard, 2001.<br />
____ o Arqueologia<br />
2000a.<br />
25<br />
Dits et Ecrits<br />
do saber. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Forense Universitária,
II<br />
26 i~'iltonAlilamz<br />
___ o Or<strong>de</strong>m<br />
do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2000b.<br />
GIZSBURG, Carlo. Sinais: raízes <strong>de</strong> um <strong>para</strong>digma indiciário, In: _<br />
Mitos, emblemas, sinais: morfologia e História. 1. reimpressão. São<br />
Paulo: Companhia das Letras, 1990.<br />
<strong>MILANEZ</strong>, <strong>Nilton</strong>. O corpo é um arquipélago. In: NAVARRO, Pedro<br />
(Org.). Estudos do texto e do discurso. Mapeando conceitos e<br />
métodos. São Carlos: Claraluz, 2006. p. 153-179.<br />
<strong>MILANEZ</strong>, <strong>Nilton</strong>. A escrita do corpo - fios e linhas do jogo<br />
escrituristico na revista. In: FONSECA-SILVA Maria da Conceicão:<br />
, .' ,<br />
POSSENTI, Sírio. Mídia e re<strong>de</strong> <strong>de</strong> memória. Vitória da Conquista:<br />
Edições UESB,2007. p. 77-91.<br />
NIETZSCHE, Friedrich. Segunda consi<strong>de</strong>ração intempestiva: da<br />
utilida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>svantagem da <strong>história</strong> <strong>para</strong> a <strong>vida</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Relume<br />
D<strong>uma</strong>rá, 2003.<br />
Recebido em 05/01/2009<br />
Aprol'ado em 28/01/2009<br />
ALÉM DA HISTÓRIA E DA MEMÓRIA<br />
O cineasta Glauber Rocha na mídia conquistense<br />
Beyond History and Memory: the cineast<br />
Glauber Rocha in the press of Vitória da Conquista<br />
Janaina <strong>de</strong>J. SAI\JTOS 1<br />
RESUMO<br />
Este trabalho se propõe a discutir a constituição da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do homem<br />
contemporâneo, registrada na mídia, em Vitória da Conquista - BA, em torno<br />
da figura do cineasta Glauber Rocha. Ao pensar i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, nos questionamos<br />
sobre posições sujeito, a partir dos postulados <strong>de</strong> Michel Foucault, sob a ótica<br />
da Análise do Discurso, discutimos qual vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> está materializada<br />
e como está envol<strong>vida</strong> na <strong>história</strong>.<br />
PALAVRAS-CHAVE<br />
Discurso. História. Memória. Mídia. Sujeito.<br />
ABSTRACT<br />
This paper proposes to discuss the idcntiry constitution of contemporary men<br />
registered in newspapers of Vitória da Conquista, Bahia, Brazil, araund the<br />
image of the cineast Glauber Rocha. When we think i<strong>de</strong>ntity, we question about<br />
subject positions frorn the works of Michel Foucault, un<strong>de</strong>r the postulates of the<br />
French Discourse Analysis. Also, we discuss which will of truth is materialized<br />
and how it is involved in historv,<br />
KEYWORDS<br />
History. Memorv, Media. Subject.<br />
1 A materialização da <strong>história</strong> e da memória<br />
Michel Foucault fundamenta <strong>uma</strong> teoria <strong>para</strong> se pensar os<br />
discursos, ao mesmo tempo em que nos adverte sobre os perigos <strong>de</strong><br />
entrar em sua or<strong>de</strong>m (2007b), a qual envolve o discurso <strong>de</strong> opacida<strong>de</strong><br />
I Mestranda em Estudos Lingüísticas, área <strong>de</strong> concentração em Análise do Discurso, na Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Uberlándia (CFl'); Coor<strong>de</strong>nadora Pedagógica do Museu Regional <strong>de</strong> Vitória da Conquista/<br />
PROEX/UESB; membro do Grupo <strong>de</strong> Estudos sobre o Discurso e o Corpo - Grudiocorpoj<br />
C~Pq. E-mail: janainasan@gmail.com<br />
Memória Conquistense Vitória da Conquista 2005