Marco Aurélio Costa Moreira de Oliveira - Ministério Público - RS
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MARCO AURÉLIO COSTA MOREIRA DE OLIVEIRA *<br />
<strong>Marco</strong> <strong>Aurélio</strong> <strong>Costa</strong> <strong>Moreira</strong> <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>: Em primeiro lugar, [fico]<br />
agra<strong>de</strong>cido pelo convite. Pretendo dar um <strong>de</strong>poimento muito sincero, muito<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte a respeito <strong>de</strong> tudo que eu penso da nossa carreira e <strong>de</strong> tudo aquilo<br />
que eu pu<strong>de</strong> trazer para o <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> e para a Justiça no meu Estado. Sou<br />
oriundo da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral, fundada em 1900, a<br />
antiga Faculda<strong>de</strong> Livre <strong>de</strong> Direito, hoje fazendo parte da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do<br />
Rio Gran<strong>de</strong> do Sul. Me formei em 1959 e tive a gran<strong>de</strong> satisfação <strong>de</strong> coroar a<br />
minha trajetória na faculda<strong>de</strong> sendo o orador da minha turma – fui escolhido pelos<br />
meus colegas em votação <strong>de</strong>mocrática, pelos formandos daquele ano. Des<strong>de</strong> o<br />
primeiro ano da faculda<strong>de</strong>, iniciei, como estudante pobre, trabalhando num<br />
escritório <strong>de</strong> advocacia. Esse escritório pertencia a um tio meu, um advogado<br />
extremamente exitoso na sua banca, tinha um grupo formado por cinco<br />
profissionais – naquela época, em 1955, quando lá ingressei, era muito difícil <strong>de</strong><br />
haver mais do que cinco profissionais no mesmo escritório. Aprendi todos os<br />
mistérios, segredos da advocacia naquele escritório, durante os cinco anos em<br />
que lá trabalhei. Mas uma coisa eu não conseguia encontrar na banca, embora<br />
fosse <strong>de</strong> um tio meu: eu não conseguia trabalhar no setor que me fascinava, que<br />
era o direito criminal. O escritório só tratava <strong>de</strong> matéria cível e, preferencialmente,<br />
matéria cível não contenciosa, o que economicamente é o mais interessante, o<br />
mais rentável na advocacia, mas não me satisfazia pessoalmente. Sempre gostei<br />
muito do crime como fenômeno social; a matéria criminal sempre me fascinou<br />
muito <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos <strong>de</strong> criança. Sou filho <strong>de</strong> serventuária <strong>de</strong> justiça, da Dona<br />
Gecy, como era muito conhecida na minha terra. Meu avô paterno tinha sido Juiz<br />
<strong>de</strong> Direito. Como disse, minha mãe era serventuária <strong>de</strong> justiça e eu me escondia<br />
numa janela do Foro, em Santa Cruz do Sul, para assistir aos júris, porque era<br />
proibido menores <strong>de</strong> 18 anos ingressarem na sala. Na época, o juiz da comarca<br />
era o Dr. José Faria Rosa da Silva, que, <strong>de</strong>pois, viria a ser <strong>de</strong>sembargador e,<br />
posteriormente, presi<strong>de</strong>nte do Tribunal, uma das figuras mais notáveis que eu<br />
conheci <strong>de</strong>ntro do Po<strong>de</strong>r Judiciário. O Desembargador Faria Rosa sabia da minha<br />
traquinagem <strong>de</strong> ficar atrás das portas e das janelas ouvindo o júri e nunca me<br />
proibiu, porque ele pressentia – isso ele me disse várias vezes, anos após – que<br />
eu tinha vocação para "a coisa", vamos chamar assim, "vocação para a coisa”.<br />
Quando eu terminei a faculda<strong>de</strong>, procurei achar um caminho para minha<br />
inclinação, porque o que me impulsionava <strong>de</strong>ntro do Direito, a minha gran<strong>de</strong><br />
vocação <strong>de</strong>ntro do Direito, principalmente no penal, era o magistério. Sempre tive<br />
o <strong>de</strong>sejo incontido <strong>de</strong> ser professor universitário <strong>de</strong> Direito Penal; essa era a<br />
minha meta. E como eu não encontrava, na banca do meu tio, condições <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senvolver exatamente esse lado, fiz o concurso para o <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>. Vi<br />
gran<strong>de</strong>s promotores atuando no tempo em que eu era estudante <strong>de</strong> Direito e,<br />
principalmente, um promotor nos chamou muito a atenção. Era um promotor<br />
excepcional, pai do hoje Desembargador Constantino Azevedo, o Dr. José Antônio<br />
*<br />
Entrevista concedida ao Programa <strong>de</strong> Memória Oral do Projeto Memória do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> do <strong>RS</strong> em 11<br />
<strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2000.
<strong>de</strong> Azevedo. Era um promotor excepcional em júri, um homem <strong>de</strong> uma<br />
argumentação brilhante; era, para mim, uma espécie <strong>de</strong> paradigma <strong>de</strong>ntro do<br />
<strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> na atuação perante o Tribunal Popular. Quero, por isso, nesse<br />
<strong>de</strong>poimento, fazer uma homenagem à memória <strong>de</strong> José Antônio <strong>de</strong> Azevedo, que<br />
era um homem notável, um homem apreciadíssimo, um gênio maravilhoso, uma<br />
pessoa voltada para as coisas da Justiça. E também usei, assim, como paradigma<br />
<strong>de</strong> uma carreira, advogados notáveis que eu conheci na Tribuna do Júri, como o<br />
Dr. Voltaire Pires – pai do hoje Desembargador aposentado Érico Barone Pires –,<br />
o Dr. Oswaldo <strong>de</strong> Lia Pires, que era, e é ainda, um dos mais notáveis advogados<br />
que eu conheci. Na minha terra, <strong>de</strong>staco Milton Machado Monteiro, na promotoria,<br />
e Arthur Germano Fett, Rolph Bartholomay e Arno Schmidt, na advocacia. Eram<br />
paradigmas que eu encontro no Direito Criminal – na acusação e na <strong>de</strong>fesa.<br />
Conheci, também, vários advogados importantes aqui na nossa capital; entre eles,<br />
eu gostaria <strong>de</strong> salientar o nome <strong>de</strong> um, que tinha sido procurador-geral, o Dr.<br />
Ajadil <strong>de</strong> Lemos, que seria também meu professor <strong>de</strong> Constitucional. Acredito que<br />
tenha sido o procurador-geral, com 28 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, mais jovem da história do<br />
<strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>. O Dr. Ajadil <strong>de</strong> Lemos, também, era um homem, um advogado<br />
excepcional. Esses paradigmas me conduziram para o Direito Criminal. Fiz<br />
concurso para o <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> e fui nomeado para a comarca <strong>de</strong> Jaguari, no<br />
interior do Estado, a cento e vinte quilômetros <strong>de</strong> Santa Maria – cento e vinte<br />
quilômetros <strong>de</strong> terra, na época em que se levava aproximadamente <strong>de</strong> três a<br />
quatro horas <strong>de</strong> ônibus para percorrê-los; era uma viagem quase trágica na época<br />
das chuvas. Mas, pela proximida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Santa Maria, comecei a manter muitos<br />
contatos em Santa Maria com gran<strong>de</strong>s membros do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>, on<strong>de</strong> eu<br />
me abeberava <strong>de</strong> conhecimentos <strong>de</strong> que não dispunha pela minha inexperiência<br />
no cargo. Gostaria <strong>de</strong> voltar a citar o Dr. Milton Monteiro, já agora como promotor<br />
em Santa Maria, um gran<strong>de</strong> amigo meu <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos <strong>de</strong> promotor em Santa<br />
Cruz, quando eu era muito jovem. Também relembro o Dr. Virgílio Domanski e,<br />
fundamentalmente, pela gran<strong>de</strong> e estreita amiza<strong>de</strong> que com ele mantive, o Dr.<br />
Sylvio Scalzilli, um promotor antológico, falecido, infelizmente, antes do tempo –<br />
no ano passado, com setenta anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> –, um maravilhoso Promotor <strong>de</strong><br />
Justiça. Sylvio Scalzilli tinha sido promotor na minha comarca <strong>de</strong> Jaguari e,<br />
quando lá cheguei, encontrei uma prateleira cheia <strong>de</strong> trabalhos do <strong>Ministério</strong><br />
<strong>Público</strong>. Havia um arquivo muito bem mantido. Tinham sido promotores lá o Sylvio<br />
Scalzilli, o Euzébio Vieira, um bom amigo que eu fiz <strong>de</strong>ntro do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>, o<br />
Gilberto Nie<strong>de</strong>rauer Correa, meu amigo até hoje, e o Luiz Felipe Lenz. Então, me<br />
<strong>de</strong>parei com trabalhos jurídicos elaborados, principalmente, por esses quatro<br />
promotores. Foi com base nesses trabalhos que consegui, fora dos livros, e além<br />
dos livros, estudar, também, um pouco da atuação do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> na<br />
comarca. Certa vez, eu encontrei o Sylvio Scalzilli numa reunião <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nadoria<br />
em Cachoeira do Sul, e disse a ele que havia tomado as <strong>de</strong>núncias e libelos por<br />
ele elaborados como mo<strong>de</strong>los da minha atuação profissional, porque, realmente,<br />
eu encontrei nos trabalhos do Scalzilli elementos notáveis para me orientarem na<br />
função <strong>de</strong> Promotor <strong>de</strong> Justiça. E disse ao Sílvio: "Olha, Sílvio, eu estou seguindo<br />
a tua linha <strong>de</strong> orientação, só que eu pretendo aprimorar um pouco o que tu vinhas<br />
fazendo. Notei a falta <strong>de</strong> estatísticas; então, eu agora estou fazendo uma<br />
estatística <strong>de</strong> júris realizados, para ver o número <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nações e absolvições
que eu conseguir, enquanto estiver na comarca”. Ele levantou a mão e disse:<br />
"Pára!”. Eu estranhei. Mas ele me disse: “Pára com estatística. A estatística po<strong>de</strong><br />
ser a matriz <strong>de</strong> injustiças, porque o promotor, em primeiro lugar, é um promotor <strong>de</strong><br />
justiça, não é um promotor acusador. Se o promotor se preocupar com estatísticas<br />
acusatórias e con<strong>de</strong>natórias, acabará praticando alguma eventual injustiça, para<br />
não baixar a sua estatística <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nações”. Aquilo me marcou muito no início<br />
da minha carreira e, confesso, marca até hoje. O promotor não po<strong>de</strong> fazer<br />
estatísticas <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nações, não po<strong>de</strong> se vangloriar <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nações. Muitas<br />
vezes, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter con<strong>de</strong>nado alguém no júri – e eu só acusava quando tinha<br />
certeza da justiça da con<strong>de</strong>nação; muitas absolvições pedi –, quando eu saía do<br />
júri, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma con<strong>de</strong>nação, certo <strong>de</strong> que tinha sido feita justiça, assim<br />
mesmo eu saía triste, pois um homem per<strong>de</strong>ra a liberda<strong>de</strong>, afetando sua família.<br />
Nunca propugnei por penas altas, eu sempre entendi que a pena alta <strong>de</strong> nada<br />
adianta, nada resolve – mesmo assim as con<strong>de</strong>nações me entristeciam. Tiravam<br />
da socieda<strong>de</strong> uma pessoa, segregavam no cárcere – cárceres muitas vezes<br />
imundos, muitas vezes <strong>de</strong>gradantes e muitas vezes contra o sentimento <strong>de</strong><br />
dignida<strong>de</strong> humana que <strong>de</strong>vemos manter. Isso me <strong>de</strong>ixava muito preocupado, mas,<br />
por outro lado, eu tinha a consciência do <strong>de</strong>ver cumprido. Havia con<strong>de</strong>nado um<br />
criminoso e o criminoso <strong>de</strong>veria ir para a ca<strong>de</strong>ia, porque, no júri, principalmente,<br />
se trata <strong>de</strong> crimes violentos, e, para o crime violento, a solução é o cárcere. A<br />
nossa civilização ainda não <strong>de</strong>scobriu outra forma <strong>de</strong> segregar, <strong>de</strong> punir, que não<br />
seja o cárcere para o criminoso violento. Por isso tudo, essa lição que o Sylvio<br />
Scalzilli me <strong>de</strong>u, no início da minha carreira, <strong>de</strong> muito me valeu; valeu para a<br />
tranqüilida<strong>de</strong> da minha consciência. Esta tranqüilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> consciência, <strong>de</strong>pois, eu<br />
encontrei numa outra figura notável, na magistratura, que foi o Desembargador<br />
Telmo Jobim. Ele dizia: "Eu tenho que proferir <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> tal forma que possa, à<br />
noite, dormir o sono dos justos”. Porque é fundamental à tranqüilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
consciência do juiz, do promotor, do advogado, até do escrivão que trabalha nas<br />
Varas, do <strong>de</strong>legado <strong>de</strong> polícia, cada um <strong>de</strong>ntro da sua função, cumprindo com<br />
exatidão as suas obrigações do cargo. Mas, acima das obrigações do cargo, há<br />
algo superior, e isso se chama consciência. Bom, <strong>de</strong> Jaguari fui promovido para<br />
Santiago e, <strong>de</strong>pois, acabei indo para São Jerônimo, on<strong>de</strong> fui promotor por três<br />
anos e três meses. Também ficara três anos e três meses em Jaguari. Em São<br />
Jerônimo, me <strong>de</strong>parei com uma situação nova: quase não dispunha <strong>de</strong> tempo <strong>de</strong> ir<br />
a audiências criminais. São Jerônimo era uma comarca que se notabilizava, na<br />
época, pelos problemas das minas <strong>de</strong> carvão; e lá eu atendia famílias <strong>de</strong> mineiros<br />
e os próprios mineiros – principalmente em processos <strong>de</strong> in<strong>de</strong>nizações por doença<br />
profissional – numa média <strong>de</strong> vinte a vinte e cinco pessoas por dia, uma manhã<br />
inteira tomada por atendimento <strong>de</strong> pessoas necessitadas. Butiá, Charqueadas,<br />
Minas do Leão, os poços <strong>de</strong> exploração <strong>de</strong> carvão subterrâneos, conheci-os<br />
todos; <strong>de</strong>scia para conhecer a situação pessoal dos mineiros. No poço <strong>de</strong><br />
Charqueadas, certa vez, <strong>de</strong>sci setenta metros abaixo da superfície. Então,<br />
procurava me inteirar dos problemas que os mineiros viviam e das soluções<br />
humanas e jurídicas que eu tinha para oferecer, como Promotor <strong>de</strong> Justiça que fui.<br />
Também trabalhei muito na matéria criminal, porque São Jerônimo tinha um<br />
expressivo índice, naquela época, <strong>de</strong> criminalida<strong>de</strong> violenta, justamente por falta<br />
<strong>de</strong> uma melhor assimilação social dos grupos menos privilegiados, pessoas que
não tinham muito boas condições econômicas. O crime, muitas vezes, era o<br />
<strong>de</strong>saguadouro natural das inconformida<strong>de</strong>s que as pessoas sentem na vida social.<br />
Por esse motivo, mantinha uma ativida<strong>de</strong> muito forte, muito, muito febril, nas<br />
funções do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>. Certa vez, em São Jerônimo, compareceu um<br />
Procurador <strong>de</strong> Justiça que eu conhecia muito superficialmente, mas a quem<br />
admirava, por ser uma das pessoas mais notáveis que o <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> já teve,<br />
Ladislau Fernando Röhnelt. Fora fazer uma <strong>de</strong>fesa do Estado – naquela época, o<br />
<strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> também fazia <strong>de</strong>fesa do Estado, pela chamada Procuradoria<br />
Judicial, que <strong>de</strong>pois se transformaria na Procuradoria-Geral do Estado, que é o<br />
avocat du roi. O Dr. Ladislau foi a São Jerônimo tratar <strong>de</strong> um problema na<br />
penitenciária e me procurou no Foro. Ali começamos uma amiza<strong>de</strong> que vem até<br />
hoje. Para a surpresa minha, um mês <strong>de</strong>pois, telefonou para a minha comarca<br />
dizendo que precisava muito falar comigo. Eu vim a Porto Alegre e o Ladislau,<br />
então, me convidou para ser assistente <strong>de</strong>le na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> Caxias.<br />
Foi aí, então, que se materializou a minha vocação <strong>de</strong> professor <strong>de</strong> Direito Penal.<br />
Realmente, conseguiu iniciar a caminhada rumo ao que sou, hoje, <strong>de</strong>ntro do<br />
Direito Penal, na minha faculda<strong>de</strong> e no contexto dos organismos a que pertenci e<br />
pertenço. Comecei a lecionar com o Ladislau em Caxias, nós íamos nas sextasfeiras<br />
à tar<strong>de</strong>, vindo <strong>de</strong> São Jerônimo a Porto Alegre, ou o apanhava na<br />
procuradoria, que ficava na Rua Riachuelo – <strong>de</strong>pois eu vou falar um pouquinho<br />
sobre a Procuradoria da Rua Riachuelo. Apanhava o Ladislau na Riachuelo e<br />
subíamos a Serra; eram duas horas <strong>de</strong> viagem, e, nessas duas horas <strong>de</strong> viagem,<br />
eu recebia duas horas <strong>de</strong> aula do Ladislau. Então, comecei realmente a conhecer<br />
o Direito Penal e as suas entranhas, porque o Ladislau era um professor<br />
magnífico; tinha vocação para ensinar, e talvez tenha <strong>de</strong>scoberto em mim um<br />
aluno muito aplicado, um aluno muito atento.<br />
Projeto Memória: Isso foi em que ano?<br />
<strong>Marco</strong> <strong>Aurélio</strong> <strong>Costa</strong> <strong>Moreira</strong> <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>: Isso foi em 1964; comecei a<br />
lecionar em Caxias em agosto <strong>de</strong> 1964. Subíamos a serra, dávamos aula,<br />
normalmente voltávamos <strong>de</strong>pois da aula, à meia-noite, saíamos <strong>de</strong> Caxias, e<br />
quando a cerração era muito forte, éramos obrigados a dormir em Caxias. Lá<br />
conheci figuras marcantes. Uma <strong>de</strong>las foi o Renan Falcão <strong>de</strong> Azevedo, que,<br />
<strong>de</strong>pois, viria a ser o diretor da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> Caxias do Sul, hoje uma<br />
excelente faculda<strong>de</strong>. Todos os anos, lá profiro uma palestra, as palestras que<br />
sempre têm um número <strong>de</strong> alunos muito gran<strong>de</strong>, cerca <strong>de</strong> quatrocentos,<br />
quinhentos. Numa época, Ladislau (e) eu dávamos aula sexta à noite e sábado à<br />
tar<strong>de</strong>; então, voltávamos somente <strong>de</strong>pois da aula <strong>de</strong> sábado. Foi assim que eu<br />
trabalhei com o Ladislau até minha promoção para São Luiz Gonzaga. Fui<br />
promovido por antigüida<strong>de</strong>, e fui... Foi uma promoção estranha, <strong>de</strong> São Jerônimo,<br />
aqui pertinho <strong>de</strong> Porto Alegre, para São Luiz Gonzaga. Fui primeiro com a minha<br />
esposa para conhecer a Comarca, e viemos um pouco aterrorizados com a<br />
distância e a terra vermelha – eu ainda não tinha <strong>de</strong>cidido se ia aceitar, ou não, a<br />
promoção. E <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muito conversar, <strong>de</strong>ntro da nossa intimida<strong>de</strong>, eu e minha<br />
mulher resolvemos ir para São Luiz Gonzaga, e fomos. Deixamos a comodida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> São Jerônimo, que é aqui pertinho, perto da família da minha esposa, perto da<br />
família da minha mãe, que morava em Santa Cruz – Santa Cruz <strong>de</strong> São Jerônimo<br />
é pertíssimo, também –, e fomos para o exílio <strong>de</strong> São Luiz Gonzaga. Mas me
encantei pela cida<strong>de</strong>. Foi um dos lugares <strong>de</strong> que eu mais gostei e um dos lugares<br />
<strong>de</strong> que eu ainda mais gosto; é um lugar agradável, <strong>de</strong> gente excelente, fiz gran<strong>de</strong>s<br />
amiza<strong>de</strong>s em São Luiz Gonzaga. Peguei uma comarca muito trabalhosa. O<br />
promotor que lá estava, Dr. Newton <strong>de</strong> Souza Corrêa, foi colega <strong>de</strong> turma do meu<br />
tio, com quem eu havia trabalhado, formado em 1935, e eu nasci em 1936.<br />
Quando o Dr. Newton foi para São Luiz, em 1939, eu tinha três anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, e<br />
cheguei em São Luiz como seu colega, como promotor, em 1967. E nós,<br />
evi<strong>de</strong>ntemente, pertencíamos a duas escolas absolutamente diferentes. O Dr.<br />
Newton era um acusador sistemático, um forte acusador, trabalhava muito bem no<br />
júri, era um promotor muito assíduo, apaixonado pela cida<strong>de</strong>, tanto que nunca<br />
mais havia saído <strong>de</strong> lá, e o Newton sempre me dizia assim: "Olha, <strong>Marco</strong> <strong>Aurélio</strong>,<br />
tu não vais sair mais <strong>de</strong> São Luiz, porque todos os promotores que vieram para cá<br />
não saíram mais." Lá tinha sido promotor o Dr. Plínio <strong>Moreira</strong>, que, promovido,<br />
chamado pelo procurador-geral, naquela época, em (19)39, rejeitou promoção. Foi<br />
chamado a Porto Alegre e o procurador-geral lhe disse que tinha <strong>de</strong> aceitar a<br />
promoção. Mas ele não aceitou, pois preferia ficar em São Luiz Gonzaga. O<br />
procurador-geral foi peremptório. Só havia uma alternativa: aceitar a promoção ou<br />
se exonerar. Ele se exonerou; ficou em São Luiz Gonzaga advogando. Aliás, um<br />
advogado brilhantíssimo no júri, um dos melhores oradores que ouvi até hoje. O<br />
Dr. Plínio <strong>Moreira</strong> já era o <strong>de</strong>cano dos advogados em São Luiz Gonzaga; muitos<br />
júris fiz com ele, e contra ele, e contra o filho <strong>de</strong>le, Antônio Carlos Prates <strong>Moreira</strong>,<br />
o Caio, que também era um gran<strong>de</strong> advogado, meu contemporâneo <strong>de</strong> faculda<strong>de</strong>.<br />
Lá encontrei advogados excelentes, o Dr. Flávio Betanin, que até hoje advoga lá,<br />
tendo também sido conselheiro da OAB. Foi, então, em São Luiz Gonzaga, que<br />
realmente me realizei <strong>de</strong>ntro do Direito Penal. Fiz muitos júris em São Luiz<br />
Gonzaga. As reuniões <strong>de</strong> júri eram marcantes, sempre cinco, seis, sete<br />
julgamentos. Tínhamos uma ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> júri muito intensa. Lá fiquei e quase que<br />
se cumpriu o vaticínio do Dr. Newton Corrêa, quase fiquei em São Luiz Gonzaga.<br />
O dia em que eu disse à minha esposa que havia pedido remoção para São<br />
Leopoldo, ela me indagou surpresa: "Mas nós vamos sair daqui <strong>de</strong> São Luiz<br />
Gonzaga para ir para aquela loucura, perto <strong>de</strong> Porto Alegre?". Realmente, isso me<br />
balançou muito, mas eu resolvi, porque lá eu não lecionava. Se lá tivesse uma<br />
faculda<strong>de</strong>... Em Santo Ângelo me convidaram, mas eu não aceitei, porque a<br />
viagem era problemática, sempre, no inverno tínhamos que usar corrente para<br />
po<strong>de</strong>r passar pela estrada; por isso, eu nunca quis lecionar em Santo Ângelo. Em<br />
Porto Alegre havia duas faculda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Direito, e em São Leopoldo já havia a<br />
Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito da UNISINOS. Por isso, resolvi me remover. Pensei em<br />
voltar a lecionar, ativida<strong>de</strong> que eu tinha abandonado em (19)67, quando fui<br />
promovido para São Luiz. Assim, vim para São Leopoldo e, no primeiro dia, na<br />
nova comarca, quando saí para procurar uma casa, encontrei o Dr. Álvaro <strong>de</strong><br />
Moraes, que era Procurador <strong>de</strong> Justiça, meu amigo também, companheiro <strong>de</strong><br />
<strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>, e diretor da UNISINOS. Perguntou-me o que eu fazia em São<br />
Leopoldo, tendo eu respondido que havia assumido uma das promotorias. "Então,<br />
já tenho professor <strong>de</strong> Penal para a minha faculda<strong>de</strong>." Ao conversar com o Álvaro<br />
<strong>de</strong> Moraes, antes <strong>de</strong> conseguir casa, em São Leopoldo, eu já era professor <strong>de</strong><br />
Direito Penal na UNISINOS. E realmente, iniciei dali a um mês, em março. Com a<br />
primeira turma <strong>de</strong> Direito Penal, na UNISINOS, fiz uma gran<strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>, tendo
sido o patrono da turma. Temos nela o Procurador <strong>de</strong> Justiça, Dr. Sérgio<br />
Guimarães Britto, Dr. José Domingues Guimarães Ribeiro, que hoje é<br />
<strong>de</strong>sembargador aposentado, excelentes nomes da advocacia, como o Dr. Cristov<br />
Becker, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> estudante teve uma atuação excelente, prenunciado o gran<strong>de</strong><br />
juiz e advogado, hoje, é um dos maiores profissionais em matéria tributária. Tive<br />
gran<strong>de</strong>s alunos naquela primeira turma lá da UNISINOS. Encontrei também lá, em<br />
São Leopoldo, ainda, o Dr. Carlos Vasconcellos Chaves e o Dr. Clovis Ponzi,<br />
Promotores <strong>de</strong> Justiça, com quem fiz gran<strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>. Estive em São Leopoldo<br />
um ano; mas, nesse ano, eu <strong>de</strong>vo ter trabalhado na procuradoria, em função <strong>de</strong><br />
assessoria do procurador-geral, dando pareceres para o Supremo Tribunal<br />
Fe<strong>de</strong>ral, eu acredito que uns três ou quatro meses. Quer dizer que a minha estada<br />
em São Leopoldo foi marcada por <strong>de</strong>signações junto à procuradoria. Nesse ponto,<br />
eu quero fazer três homenagens. A minha primeira comarca, Jaguari, eu a assumi<br />
sendo procurador-geral o Dr. Floriano Maya D'Ávila. O Dr. Floriano Maya D'Ávila<br />
tinha marcado a sua carreira, no início, por júris famosos, no caso Gaffrée – um<br />
médico <strong>de</strong> Bagé, acusado da morte <strong>de</strong> um outro médico, o Dr. Aguiar, com quem<br />
era inimizado. O Dr. Floriano Maya D'Ávila se notabilizou nos júris a que Gaffrée<br />
respon<strong>de</strong>u na comarca <strong>de</strong> Bagé, tendo a <strong>de</strong>fesa ficado a cargo <strong>de</strong> Itiberê <strong>de</strong><br />
Moura, um dos gran<strong>de</strong>s causídicos que Porto Alegre já teve. Quando o Dr.<br />
Floriano Maya D'Ávila foi procurador-geral, editou um livro muito interessante<br />
sobre a atuação dos promotores no júri, em que ele reproduzia, por escrito, a<br />
atuação <strong>de</strong> membros do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> em júris famosos – esse livro <strong>de</strong>ve<br />
estar aqui na biblioteca da Procuradoria 1 . Num dos júris atuou o Dr. Henrique<br />
Fonseca <strong>de</strong> Araújo, que também fora procurador-geral; o outro, o do Dr. Floriano<br />
Maya D'Ávila; um terceiro, com atuação do Dr. Paulo Dutra, além <strong>de</strong> outros que<br />
não recordo. Todos foram júris antológicos, pela atuação extraordinária que teve o<br />
<strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>. Não sei se os jovens membros do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> sequer<br />
têm notícia da existência <strong>de</strong>sse livro; até acho que seria um caso <strong>de</strong> reedição,<br />
porque faz parte da história gloriosa do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>. O segundo procurador<br />
a quem eu quero homenagear foi o sucessor do Dr. Floriano, o Dr. José Barros<br />
Vasconcelos, uma figura notável, um gran<strong>de</strong> alegretense, que, além <strong>de</strong> ser um<br />
gran<strong>de</strong> jurista, um gran<strong>de</strong> procurador, era um poeta magnífico e letrista <strong>de</strong><br />
canções da Califórnia. O filho <strong>de</strong>le, o <strong>Marco</strong> <strong>Aurélio</strong> Vasconcellos, foi campeão,<br />
várias vezes, da Califórnia, com letras feitas pelo Dr. José Barros Vasconcelos – o<br />
Dr. José Barros, como nós o chamávamos. Era bem mais velho do que nós,<br />
gran<strong>de</strong> procurador-geral, um homem <strong>de</strong> uma in<strong>de</strong>pendência notável. Quando<br />
ainda era promotor no interior do Estado, fez alegações finais em verso, tendo o<br />
juiz também sentenciado em verso. Da sentença apelou em versos, igualmente.<br />
No <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> sua atuação foi proclamada e ressaltada. O juiz, no entanto,<br />
segundo me referiram, teria sido punido pelo Conselho da Magistratura. Note-se<br />
que a lei exige que os atos processuais sejam produzidos em vernáculo, mas não<br />
há exigência <strong>de</strong> que sejam em prosa. A terceira homenagem que eu quero fazer, a<br />
mais cara para mim, a mais importante, diz respeito ao terceiro procurador-geral<br />
1 Refere-se ao livro Crimes que comoveram o Rio Gran<strong>de</strong>... (Quatro Acusações), publicado pelo <strong>Ministério</strong><br />
<strong>Público</strong> do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, sob a organização do Corregedor Dr. Ladislau Fernando Röhnelt. Porto Alegre,<br />
1962.
com quem trabalhei, o Dr. Peri Rodrigues Con<strong>de</strong>ssa, uma figura extraordinária.<br />
Certa vez, órgãos do Po<strong>de</strong>r Executivo vieram pressionar o Dr. Peri para que me<br />
removesse das atribuições trabalhistas, porque eu havia ingressado com várias<br />
ações contra a Corsan, em São Luiz Gonzaga, em favor <strong>de</strong> empregados. Dois<br />
diretores da Corsan vieram falar com o Dr. Peri, reclamando e dizendo que “esse<br />
promotor não agrada ao Governo do Estado; a providência <strong>de</strong>veria ser removê-lo<br />
<strong>de</strong>ssas funções”. Pediam que <strong>de</strong>signasse outro promotor. O Dr. Peri se levantou,<br />
abriu a porta e disse aos dois diretores da Corsan que comunicassem ao<br />
governador que removessem o promotor e o procurador-geral, pois o promotor<br />
apenas cumpria suas funções. Tudo continuou como fora até então. Essa, a<br />
extraordinária in<strong>de</strong>pendência que o Dr. Peri Con<strong>de</strong>ssa, com aquela fleuma, com<br />
aquela tranqüilida<strong>de</strong>, proporcionava à Instituição. Isso em uma época em que o<br />
domínio militar era muito forte no Brasil e no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul também; mas o<br />
<strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>, com o Dr. Peri Con<strong>de</strong>ssa, foi um órgão, uma entida<strong>de</strong>, uma<br />
instituição in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, autônoma e que possibilitava a seus membros uma<br />
in<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> consciência, que eu consi<strong>de</strong>ro fundamental. Estamos nessa<br />
quadra – eu era promotor <strong>de</strong> São Leopoldo e o Dr. Peri era procurador-geral. Em<br />
final <strong>de</strong> 1970, o Dr. Peri teve um <strong>de</strong>sentendimento com o Governador Peracchi<br />
Barcelos, porque o <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> tinha uma vinculação histórica com a<br />
magistratura em matéria <strong>de</strong> vencimentos e o Governador Peracchi <strong>de</strong>svinculou o<br />
<strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>. O Dr. Peri, então, para o resguardo da dignida<strong>de</strong> da Instituição,<br />
fez um ofício ao Peracchi Barcelos em que dizia não concordar com a política do<br />
governo e, por isso, se exonerava do cargo <strong>de</strong> procurador-geral. Acrescentava, a<br />
seguir, que, na condição <strong>de</strong> membro mais antigo do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>, assumia a<br />
função, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da confiança do chefe do executivo.<br />
Fotografia
Fotografia<br />
Isso <strong>de</strong>ve ter sido no dia sete ou oito <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1970, talvez cinco<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro. No dia oito, nós íamos a um congresso em Teresópolis, no Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro. Aqui, vamos fazer uma pausa na matéria institucional e vamos para a<br />
matéria associativa. Para o congresso, o Dr. Peri conce<strong>de</strong>u, naquela época, o<br />
<strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>, não sei como está hoje, naquela época o <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> era<br />
muito “pão-duro” em matéria <strong>de</strong> diárias. Em Teresópolis, em um Congresso<br />
Nacional do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>, nós íamos ficar cinco dias. O Dr. Peri, então, nos<br />
<strong>de</strong>u duas diárias, para enfrentar todas as <strong>de</strong>spesas em Teresópolis. Fomos <strong>de</strong><br />
ônibus, o avião era “muito luxuoso” e o <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> não tinha dinheiro para<br />
pagar viagens aéreas. Durante nossa viagem para Teresópolis, numa banca <strong>de</strong><br />
jornal, compramos o Jornal do Brasil que, entre outras manchetes, trazia a<br />
seguinte: "Peri Con<strong>de</strong>ssa se exonera da Procuradoria-Geral no Rio Gran<strong>de</strong> do<br />
Sul”. Chegamos em Teresópolis muito encabulados, porque o <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong><br />
do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul estava sendo maltratado pelo governo. E, nas primeiras
euniões, <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m intelectual – <strong>de</strong>bates <strong>de</strong> tese, <strong>de</strong> Penal, Processo Penal,<br />
Direito <strong>de</strong> Família –, nós escondíamos o problema do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> do Rio<br />
Gran<strong>de</strong> do Sul. Certa noite, dois dias <strong>de</strong>pois da chegada, jantando com o Dr. José<br />
Cupertino Gonçalves, <strong>de</strong> Minas Gerais, que era um vibrante Procurador <strong>de</strong><br />
Justiça, me disse que a situação do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> <strong>de</strong> Minas Gerais era <strong>de</strong><br />
penúria. E eu lhe disse que, no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, nós estamos enfrentando um<br />
problema parecido. Narrei tudo ao Cupertino. Até então, nós escondíamos, com<br />
medo <strong>de</strong> passar vergonha. E o Cupertino, então, me disse achar que em Minas<br />
tudo estava pior. Um promotor ganhava a meta<strong>de</strong> dos vencimentos <strong>de</strong> um juiz, ou<br />
até menos. Lá por perto, estavam Iroito Léo, <strong>de</strong> Sergipe, tendo o Iroito ouvido<br />
nossa conversa, e observado que em Sergipe estava um horror. Nosso anfitrião,<br />
presi<strong>de</strong>nte da Associação do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />
naquela época havia Estado da Guanabara e Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro, era uma<br />
figura notável do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>, Ferdinando <strong>de</strong> Vasconcellos Peixoto. E o<br />
Ferdinando nos disse que nós estávamos enfrentando [uma situação] igual à do<br />
Estado do Rio. O <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> um colega da Bahia era igual. A essa altura<br />
aparece uma figura notável, Antônio Benedicto Amâncio Pereira, do Espírito<br />
Santo. O Amâncio vivia discursando; também <strong>de</strong>monstrou a mesma<br />
inconformida<strong>de</strong>. Foi então que o Ferdinando propôs uma reunião nossa,<br />
principalmente porque os procuradores-gerais <strong>de</strong>monstravam-se verda<strong>de</strong>iros<br />
seguidores das idéias e política dos governadores, sem qualquer in<strong>de</strong>pendência.<br />
O Val<strong>de</strong>redo Nunes, do Rio Gran<strong>de</strong> do Norte, em seguida a<strong>de</strong>riu à idéia. Assim,<br />
marcamos uma reunião para as <strong>de</strong>z horas do dia seguinte e, <strong>de</strong>via ter sido dia <strong>de</strong>z<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro. Tivemos uma reunião no hotel em que estávamos hospedados.<br />
Fizeram-se presentes o Ferdinando, o Oscar Xavier <strong>de</strong> Freitas, o Cupertino, o<br />
Massilon Tenório, <strong>de</strong> Pernambuco, o Amâncio, o Jerônimo Maranhão, do Paraná,<br />
o Val<strong>de</strong>redo, o Iroito Léo e eu, metido. Não era procurador, era Promotor <strong>de</strong><br />
Justiça, eu não era membro da diretoria da Associação, mas resolvi, naquela hora,<br />
fazer parte da reunião. E, realmente, resolvemos fundar a CAEMP –<br />
Confe<strong>de</strong>ração das Associações Estaduais do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>. O que nos movia<br />
era o seguinte: os procuradores-gerais não tinham a in<strong>de</strong>pendência do Dr. Peri<br />
Con<strong>de</strong>ssa. Eles eram pessoas nomeadas pelo Executivo, sendo sua verda<strong>de</strong>ira<br />
longa manus; o procurador-geral <strong>de</strong>fendia os interesses do Executivo. Isso fazia<br />
com que o <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> sentisse uma absoluta falta <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência, não<br />
in<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> consciência, porque os promotores sempre foram muito altivos,<br />
nem uma <strong>de</strong>pendência funcional, era uma <strong>de</strong>pendência organizacional. Então, a<br />
CAEMP foi fundada com essa inspiração: impedir, a todo custo, as influências<br />
políticas <strong>de</strong>ntro do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>; essa a razão da fundação da CAEMP. Eu fui<br />
o secretário da reunião; o presi<strong>de</strong>nte, por ser procurador e porque era o nosso<br />
anfitrião, foi o Ferdinando, assinaram também a ata <strong>de</strong> fundação o Oscar Xavier<br />
<strong>de</strong> Freitas, <strong>de</strong> São Paulo, o Iroito Léo, o Massilon Tenório Me<strong>de</strong>iros, <strong>de</strong><br />
Pernambuco, o Antônio Benedito Amâncio Pereira, do Espírito Santo, o Jerônimo<br />
Albuquerque Maranhão, do Paraná, e o Val<strong>de</strong>redo Nunes da Silva e o Elênio<br />
Rizzo, do Distrito Fe<strong>de</strong>ral. Havia, também, uma promotora, mas eu não estou<br />
conseguindo me lembrar exatamente seu nome, aqui, na ata <strong>de</strong> fundação, eu vejo,<br />
é Néa Belo <strong>de</strong> Sá, do Maranhão. Mais tar<strong>de</strong> se soube que procuradores-gerais,<br />
contrários à fundação da CAEMP, haviam entrado em contato com os
epresentantes das Associações <strong>de</strong> outros Estados e "solicitavam" que não<br />
participassem da reunião. Por tal motivo o número dos signatários da ata não teve<br />
maior expressão. Assim foi o início da CAEMP, em 1970. Em 1971, o Dr. Peri<br />
Con<strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>ixou a procuradoria. Com a eleição do então governador, o Eucli<strong>de</strong>s<br />
Triches, foi nomeado o Lauro Guimarães. O Lauro Guimarães era presi<strong>de</strong>nte da<br />
Associação, mas não tinha ido ao congresso em que se fundou a CAEMP; era ele<br />
que tinha legitimida<strong>de</strong> para participar <strong>de</strong>ssa fundação, mas ele não tinha ido ao<br />
congresso por problemas <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m pessoal ou funcional, ou qualquer coisa nesse<br />
sentido – não recordo. Por isso representei a Associação. Quando eu trouxe a<br />
notícia da fundação, ele ficou extremamente satisfeito. E marcaram, então, uma<br />
reunião para institucionalizar a CAEMP, e aí o Lauro foi representando a<br />
Associação do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> – já era procurador-geral – na reunião em Ouro<br />
Preto. A ata <strong>de</strong> 1970 serviu como ata preliminar da fundação. Na reunião <strong>de</strong> Ouro<br />
Preto, então, se institucionalizou a CAEMP, que, <strong>de</strong>pois, viria a se chamar<br />
CONAMP. Tivemos, aqui no <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, vários<br />
procuradores e vários promotores que tinham sido presi<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> Associação e<br />
que acabaram sendo, <strong>de</strong>pois, presi<strong>de</strong>ntes da CONAMP. Quero agora salientar<br />
uma coisa interessante. Nós tivemos gran<strong>de</strong>s procuradores-gerais, no Rio Gran<strong>de</strong><br />
do Sul, que não eram procuradores, eram simplesmente promotores. É o caso <strong>de</strong><br />
Henrique Fonseca <strong>de</strong> Araújo, Floriano Maya D’Ávila e Lauro Guimarães; Ajadil <strong>de</strong><br />
Lemos, que sequer era do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>. O Professor Henrique Fonseca <strong>de</strong><br />
Araújo, que foi um dos homens notáveis que eu conheci, uma figura<br />
extraordinária, mais tar<strong>de</strong> foi Procurador-Geral da República e também advogado,<br />
em Brasília. O Dr. Floriano Maya D'Ávila era promotor da entrância da Capital,<br />
quando foi nomeado procurador. E o Lauro Guimarães, também, era promotor <strong>de</strong><br />
quarta entrância quando foi nomeado procurador-geral. Quando o Lauro assumiu<br />
a Associação, eu fazia parte da diretoria; o Euzébio, que também <strong>de</strong>ve ter<br />
prestado <strong>de</strong>poimento aqui; o Dr. Ítalo Goron, igualmente, era nosso companheiro<br />
<strong>de</strong> diretoria. Foi quando se resolveu comprar uma se<strong>de</strong>. Eu era favorável a uma<br />
se<strong>de</strong> na cida<strong>de</strong>, porque a Associação Paulista do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> tinha uma<br />
se<strong>de</strong> em São Paulo, no centro. Era um local em que as pessoas se reuniam no<br />
final do dia, tomavam o seu drinque, seus cafezinhos, se reuniam, e ali ficavam<br />
uma, duas horas conversando e “salvando” o Brasil e o <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>. Eu<br />
tinha essa experiência da Associação Paulista, que freqüentei muitas vezes, e a<br />
minha idéia era comprar um conjunto, aqui no centro da cida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> nós<br />
pudéssemos nos reunir. O Euzébio, como bom viamonense, preferia – ele sempre<br />
dizia que carregara o machado até os <strong>de</strong>zoito anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> no ombro – uma<br />
se<strong>de</strong> campestre. “Temos que comprar uma se<strong>de</strong> rural, uma se<strong>de</strong> fora do centro,<br />
uma se<strong>de</strong> em Ipanema...” E aí, o Euzébio saiu a procurar a se<strong>de</strong>, ele e o Lauro<br />
procuraram muito. E o Euzébio acaba encontrando uma corretora que lhe levou ao<br />
local on<strong>de</strong> hoje é a se<strong>de</strong> campestre da Associação. Fomos para conhecer e nos<br />
encantamos com a se<strong>de</strong>, só que faltava dinheiro. Tínhamos um encaixe que<br />
correspondia aproximadamente a uma terça ou quarta parte do preço total. E<br />
como é que vamos pagar as outras partes? Era um casal <strong>de</strong> alemães, os<br />
proprietários – não sei se esta parte ficou consignada pelos colegas que me<br />
antece<strong>de</strong>ram; tinham aquela belíssima casa, que, <strong>de</strong>pois, sofreu reformas,<br />
aumentos, ampliações... Quando compramos, ambos saíram chorando <strong>de</strong> lá; ali
haviam vivido quase toda a sua existência. Numa reunião da diretoria, eu fiz uma<br />
proposta: Como a área era gran<strong>de</strong>, quem sabe se nós loteamos a parte <strong>de</strong> baixo,<br />
para pagar o restante? "Vamos lotear a parte <strong>de</strong> baixo e ainda ficamos com uma<br />
área enorme: dá para campo <strong>de</strong> futebol, dá para tudo, dá até para piscina.”<br />
Tínhamos, pois, essa reserva técnica. Felizmente, não foi preciso ven<strong>de</strong>r nada.<br />
Naquela época, a Associação recebia parte das custas judiciais e, graças a isso,<br />
conseguiu enfrentar as prestações vincendas. Pagou-se tudo <strong>de</strong>ntro da<br />
normalida<strong>de</strong> e a se<strong>de</strong>, então, acabou sendo <strong>de</strong>finitivamente nossa. Sempre que<br />
vou à se<strong>de</strong>, me entusiasmo com o progresso feito pelas novas gerações do<br />
<strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> que nos suce<strong>de</strong>ram e que conseguiram transformar a se<strong>de</strong> em<br />
um local associativo notável, extraordinário, acolhedor. Foi um pouco antes que<br />
vim promovido para Porto Alegre. Na posse do Lauro Guimarães, fui convidado<br />
para exercer o cargo <strong>de</strong> Promotor Secretário da Procuradoria-Geral. Como não<br />
gosto <strong>de</strong> cargos administrativos, acertei que ficaria apenas um ano. E assim foi.<br />
Ainda fiquei algum tempo na assessoria, mas acabei me <strong>de</strong>svinculando, e voltei<br />
para a minha Vara; fui enfrentar o trabalho na Segunda Criminal. O juiz, tinha sido<br />
juiz comigo, em São Jerônimo, Dr. Carlos Azambuja, hoje já falecido. E voltei,<br />
então, para a ativida<strong>de</strong> na Vara. Essa foi a minha carreira no <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>;<br />
fiquei no <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> até 1974. Em (19)72, eu havia entrado numa lista para<br />
juiz do Alçada, como Promotor <strong>de</strong> Justiça. Entramos em lista eu, o Alceu Ortiz e o<br />
Paulo Cláudio Tovo. O Tovo foi uma das gran<strong>de</strong>s figuras que o <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong><br />
teve e que, hoje, ainda, ministra lições notáveis aqui no <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>, e na<br />
faculda<strong>de</strong> também. É um homem com vocação <strong>de</strong> professor, além da <strong>de</strong> promotor.<br />
E o Alceu Loureiro Ortiz, um extraordinário promotor, <strong>de</strong>ixou fama e lições <strong>de</strong><br />
inteligência por on<strong>de</strong> passou. Além disso, é um amigo pessoal, muito chegado até<br />
hoje. Entramos os três em lista e o escolhido foi o Alceu Loureiro Ortiz. Mas ficou<br />
no Alçada pouco tempo, acabando por se aposentar. Foi então que entrei em nova<br />
lista: Paulo Cláudio Tovo, pela terceira vez, eu, pela segunda vez, e Gilberto<br />
Nie<strong>de</strong>rauer Corrêa, pela primeira vez. Fui o escolhido. Na época, havia um veto<br />
militar em relação ao Dr. Paulo Cláudio Tovo, porque ele havia atuado num<br />
processo em que um coronel do Exército tinha sido <strong>de</strong>nunciado ou tinha sido<br />
colocado como suspeito <strong>de</strong> mandante, eu não recordo exatamente a situação,<br />
porque eu não vivi esse processo; sei apenas que havia um veto ao Dr. Paulo<br />
Cláudio Tovo, veto esse vindo dos círculos militares. Então, fui escolhido para o<br />
Tribunal <strong>de</strong> Alçada; assumi no dia vinte e cinco <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1974 como<br />
representante do “quinto constitucional”. Fui juiz do Alçada sem ter tido a honra <strong>de</strong><br />
passar pelo cargo <strong>de</strong> Procurador <strong>de</strong> Justiça. Mas, felizmente, hoje, para gran<strong>de</strong><br />
satisfação e emoção minha e <strong>de</strong> minha mulher, Maria Cristina é Procuradora <strong>de</strong><br />
Justiça, graças a Deus e à sua inteligência, com uma saliente atuação junto ao<br />
Tribunal <strong>de</strong> Justiça nas funções <strong>de</strong> Procuradora <strong>de</strong> Justiça. A Procuradora <strong>de</strong><br />
Justiça Maria Cristina Cardoso <strong>Moreira</strong> <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>. Essa foi a minha atuação e<br />
passagem no <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> por cerca <strong>de</strong> quinze anos. No Tribunal <strong>de</strong> Alçada<br />
fiquei quatro anos. Depois, fui promovido a Desembargador do Tribunal <strong>de</strong> Justiça.<br />
Fui membro do Conselho da Magistratura, da Segunda Câmara Criminal, <strong>de</strong>pois,<br />
da Terceira Câmara Cível, on<strong>de</strong> trabalhei com dois notabilíssimos<br />
<strong>de</strong>sembargadores, o Antônio Vilela Amaral Braga – querido amigo meu – e um<br />
dos maiores <strong>de</strong>sembargadores que eu acredito tenha havido na história do
Judiciário brasileiro, o Paulo Boeckel Velloso, que seria posteriormente presi<strong>de</strong>nte<br />
do Tribunal. Era um homem <strong>de</strong> conhecimento jurídico extraordinário, <strong>de</strong> uma<br />
modéstia até excessiva, um homem que nunca procurou holofotes, nunca quis se<br />
notabilizar, mas se notabilizava pela cultura, pelo amor ao Direito, por suas<br />
<strong>de</strong>cisões extremamente justas. Era um homem que lavrava um acórdão,<br />
normalmente, em uma página e meia. Tinha um po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> síntese incomum, um<br />
po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> síntese que só aos simples e os sábios é dado ter. Depois, me removi<br />
para a Primeira Câmara Criminal, porque lá estava um gran<strong>de</strong> amigo meu, pessoa<br />
que eu prezo muito até hoje, o Desembargador Sebastião Adroaldo Pereira. Há<br />
uma coisa interessante na nossa vinculação, temos uma vinculação familiar, muito<br />
antiga; meu avô, José Luiz <strong>de</strong> Menezes <strong>Costa</strong>, tinha sido compadre do pai<br />
do Sebastião, Seu Rufino Pereira. Assim, a amiza<strong>de</strong> vinha <strong>de</strong> gerações e, hoje, o<br />
Roberto, o Miguel e o Marcelo Pereira são da geração nova a que pertencem a<br />
minha filha e os meus filhos. Magali, sua filha, é casada com o Dr. Luiz Carlos<br />
Duarte, meu colega, professor no Departamento <strong>de</strong> Ciências Penais, na<br />
Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> Porto Alegre. De maneira que temos laços há quatro<br />
gerações, po<strong>de</strong>-se dizer. Bem, eu queria muito voltar a trabalhar com o Sebastião,<br />
um juiz sábio, humano e <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> coração. É um juiz que tinha o amor à justiça à<br />
flor da pele, um homem tranqüilo, mo<strong>de</strong>sto também, nunca se preocupando com<br />
notabilização. Foi um homem que teve uma atuação ímpar <strong>de</strong>ntro do Po<strong>de</strong>r<br />
Judiciário. Eu o conheci quando ele era juiz em Rio Pardo, e eu estudante <strong>de</strong><br />
Direito e ia seguido à minha terra, Santa Cruz. Seguido o Sebastião substituía o<br />
juiz <strong>de</strong> Santa Cruz, aí eu o conheci. Assim eu queria muito voltar a trabalhar com o<br />
Sebastião, como já o fizera no Alçada. Isso por saber que [ele] era um homem<br />
tranqüilo e acho que a justiça se faz numa relação judicial tranqüila. Não po<strong>de</strong><br />
haver a tentativa <strong>de</strong> um membro da Câmara tentar cooptar votos, tentar influenciar<br />
os outros, não; cada um dá o seu voto, o seu ponto <strong>de</strong> vista, e dali surge,<br />
necessariamente, a justiça, pelo enfrentamento dos pontos <strong>de</strong> vista, e não por<br />
enfrentamentos pessoais. Fui, então, para a Primeira Câmara Criminal do Tribunal<br />
<strong>de</strong> Justiça. Acabei, <strong>de</strong>pois, com a aposentadoria do Sebastião, vindo a ser o<br />
presi<strong>de</strong>nte da Câmara, tendo lá ficado até o final da minha atuação – eu estive no<br />
Tribunal <strong>de</strong> 1978 a 1989, quando em 10 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> (19)89 requeri<br />
aposentadoria. Nesse entretempo, fui membro do Conselho da Magistratura, fui<br />
membro <strong>de</strong> comissão <strong>de</strong> concurso junto com o Desembargador Buttelli, um ótimo<br />
amigo, também, que eu fiz <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a primeira instância, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o tempo em que eu<br />
era promotor em Jaguari. Buttelli tinha sido promovido para Livramento – lá<br />
fizemos amiza<strong>de</strong>, na fronteira. No Tribunal fomos colegas <strong>de</strong> comissão <strong>de</strong><br />
concurso. Depois, ele viria a ser presi<strong>de</strong>nte do Tribunal. Em (19)84 fui para o<br />
Tribunal Regional Eleitoral, como vice-presi<strong>de</strong>nte e corregedor. Lá trabalhei com o<br />
Mílton Martins, uma gran<strong>de</strong> figura <strong>de</strong> juiz, e, quando o Mílton <strong>de</strong>ixou a presidência<br />
do Tribunal Eleitoral, eu acabei assumindo essa presidência, que viria a <strong>de</strong>ixar em<br />
<strong>de</strong>z <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> (19)89, quando me aposentei. Fui, então, tratar <strong>de</strong> advogar, e<br />
continuo trabalhando até hoje com os meus dois filhos, o Paulo e o Felipe, meus<br />
colegas <strong>de</strong> banca. No início, tive uma associação muito rica, para mim, com o<br />
Silvino Lopes Neto, quando fomos colegas <strong>de</strong> banca. Depois, os caminhos da vida<br />
nos separaram, porque o Silvino se <strong>de</strong>dicou muito ao ensino universitário,<br />
[atuando] em São Paulo e no centro do país. Foi inclusive secretário do <strong>Ministério</strong>
da Educação. Assim, acabamos separando a socieda<strong>de</strong> na advocacia. Continuei,<br />
então, com os meus dois filhos, o Paulo e o Felipe, que já trabalhavam comigo há<br />
algum tempo. Assim, nossa banca se consolidou com três <strong>Moreira</strong> <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>, a<br />
terceira e quarta geração ligadas ao direito. Essa é a síntese que possa fazer<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>de</strong> minha atuação no <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>, passando pela magistratura<br />
e findando na advocacia. Como eu fiquei quinze anos no <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> e<br />
quinze anos na magistratura, também espero ficar quinze anos na advocacia; ou<br />
talvez quinze para compensar os quinze <strong>de</strong> <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> e mais quinze para<br />
igualar os da magistratura. Talvez ainda me reserve uns trinta anos [para me]<br />
<strong>de</strong>dicar ao trabalho forense. Agora eu queria, antes <strong>de</strong> encerrar esta parte do meu<br />
<strong>de</strong>poimento, rememorar que, quando eu assumi o <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>, a<br />
procuradoria se sediava na Rua Riachuelo, on<strong>de</strong> hoje há uma garagem com<br />
rampa circular. A casa tinha três andares. O térreo era praticamente um porão,<br />
on<strong>de</strong> estavam os arquivos da procuradoria. Subia-se por uma escada externa,<br />
chegando-se a um pequeno hall. Para os fundos ficavam as funcionárias, umas<br />
<strong>de</strong>z, no máximo, e, à frente, estava o gabinete do secretário da procuradoria e o<br />
do procurador-geral. Foi ali que eu tomei posse, no gabinete do procurador-geral.<br />
Havia mais uma escada, e na parte <strong>de</strong> cima funcionava a Procuradoria Judicial e a<br />
corregedoria. Na Judicial, que <strong>de</strong>fendia os interesses do Estado, havia dois<br />
procuradores. O Dr. Cabral era um dos procuradores e um outro que eu não me<br />
recordo. Mais tar<strong>de</strong>, o Ladislau assumiu a função <strong>de</strong> Procurador Judicial Chefe, e<br />
a corregedoria, que era um simples embrião <strong>de</strong> corregedoria, assessorava a<br />
comissão disciplinar. Na realida<strong>de</strong>, a corregedoria, naquela época, funcionava<br />
como uma espécie <strong>de</strong> orientação dos promotores. A ativida<strong>de</strong> censória do<br />
<strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> não era, praticamente, realizada pela corregedoria. Esta<br />
funcionava mais como um órgão <strong>de</strong> orientação e <strong>de</strong> investigação <strong>de</strong> algum<br />
eventual <strong>de</strong>slize praticado por membro do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>, coisa que nós,<br />
naquela época, achávamos extremamente impossível ou difícil <strong>de</strong> ocorrer. Por<br />
isso, a ativida<strong>de</strong> da corregedoria era muito pequena. Lembro que a corregedoria<br />
fazia palestras. Nessa época, era o corregedor – em outra época que foi o Mauro<br />
Cunha, que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> aposentado acabaria sendo o presi<strong>de</strong>nte do Instituto <strong>de</strong><br />
Advogados, uma figura notável <strong>de</strong> jurista e <strong>de</strong> ser humano. O Ladislau promovia<br />
reuniões regionais, numa época em que a magistratura não [fazia isso]. Essas<br />
reuniões foram instituídas no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, não sei se em outro Estado já<br />
havia isso, pelo Ladislau, como corregedor. Recordo <strong>de</strong> reuniões em Caxias,<br />
Cachoeira, Santa Maria, Porto Alegre e Pelotas – Pelotas sempre foi um núcleo<br />
muito forte do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>, graças aos Promotores Felipe Marques Dias,<br />
Basileu Campello, Alberto Rufino Rosa Rodrigues <strong>de</strong> Souza, Francisco Soares<br />
Lamego, Eduardo Centeno <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>, Alcy Bento Pinheiro e outros gran<strong>de</strong>s<br />
promotores daquela região, além do querido e inesquecível amigo Manoel<br />
Cypriano <strong>de</strong> Moraes, figuras notáveis que faziam da chamada zona sul um núcleo<br />
muito forte, mas muito forte mesmo, do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>. Nessa época, muitas<br />
reuniões eram feitas em Pelotas, tanto da Associação quanto da corregedoria, e<br />
ali o Ladislau era o professor <strong>de</strong> todos nós; sentava à ponta da mesa e, com<br />
aquela sua tranqüilida<strong>de</strong>, discorria sobre todos os temas afetos ao <strong>Ministério</strong><br />
<strong>Público</strong>. Foi uma época gloriosa do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>, uma verda<strong>de</strong>ira<br />
interiorização do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>, <strong>de</strong>senvolvida pelo Ladislau, na época em que
o Floriano Maya D'Ávila era o procurador-geral. Depois [tudo] isso prosseguiu com<br />
o Mauro Cunha, que continuou fazendo, também, proveitosas reuniões. O<br />
Ladislau sempre foi uma figura notável nas reuniões, embora não fosse mais<br />
corregedor, mas comparecia a todas, sempre pontificando. Essas são as<br />
lembranças <strong>de</strong> parte da história do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> que eu queria trazer para<br />
que se compare com o <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> <strong>de</strong> hoje. Quando visito a se<strong>de</strong> da<br />
Associação, me encanto, me encanto porque isso aqui não existia no meu tempo.<br />
A Associação fazia reuniões numa sala cedida <strong>de</strong>ntro da procuradoria, quando se<br />
pu<strong>de</strong>sse utilizar a sala. Depois nos mudamos, já com o Lauro Guimarães, no final<br />
da gestão do Dr. Peri Con<strong>de</strong>ssa, para o prédio do IPE. Quando o Lauro assumiu o<br />
<strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> – ele assumiu na procuradoria velha, na Riachuelo –, nos<br />
mudamos logo <strong>de</strong>pois para o prédio da Borges <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros, em 1971. Ali, como<br />
na se<strong>de</strong> velha, em meio aos cupins, eu fui secretário durante alguns meses. Hoje<br />
o <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> é uma instituição muitíssimo maior, extraordinária, com muito<br />
mais ativida<strong>de</strong>s e atribuições do que aquelas que havia no nosso tempo <strong>de</strong> início,<br />
em 1960. Mas não há dúvida, tudo foi sendo construído aos poucos, com<br />
crescimento notável <strong>de</strong> época para época. Certamente muito contribuíram para o<br />
crescimento e fortalecimento institucional do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> os velhos<br />
promotores que cruzavam as estradas embarradas do Rio Gran<strong>de</strong>, levando a<br />
mensagem civilizadora <strong>de</strong> nosso <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>, tão amado por todos nós, e<br />
que sempre foi muito maior que as individualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> seus membros.<br />
Projeto Memória: Desembargador, eu gostaria <strong>de</strong> retornar um pouquinho<br />
no tempo, se permite, quando das primeiras ativida<strong>de</strong>s, a primeira década como<br />
promotor.<br />
<strong>Marco</strong> <strong>Aurélio</strong> <strong>Costa</strong> <strong>Moreira</strong> <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>: Foi uma década mesmo, <strong>de</strong><br />
promotor <strong>de</strong> interior. De um tempo que durou <strong>de</strong>z anos, <strong>de</strong>z anos longos, é<br />
verda<strong>de</strong>, mas inesquecíveis anos <strong>de</strong> uma convivência enriquecedora.<br />
Projeto Memória: Sessenta a setenta, não é?<br />
<strong>Marco</strong> <strong>Aurélio</strong> <strong>Costa</strong> <strong>Moreira</strong> <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>: Exatamente.<br />
Projeto Memória: Então, nesta década, nesses diferentes lugares do Rio<br />
Gran<strong>de</strong> do Sul, como é que era o cotidiano <strong>de</strong>ssa ativida<strong>de</strong> do promotor? Daria<br />
para fazer uma caracterização, assim, <strong>de</strong>stes diferentes locais por on<strong>de</strong> passou, e<br />
relatar mais nesse cotidiano, os tipos <strong>de</strong> casos que vinham, os tipos <strong>de</strong> questões?<br />
<strong>Marco</strong> <strong>Aurélio</strong> <strong>Costa</strong> <strong>Moreira</strong> <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>: Da carreira.<br />
Projeto Memória: E, no caso, em outras comarcas. Mas que outros tipos...<br />
Que tipos <strong>de</strong> crimes, já que tinha uma atuação tão forte no júri?<br />
<strong>Marco</strong> <strong>Aurélio</strong> <strong>Costa</strong> <strong>Moreira</strong> <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>: A atuação do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong><br />
era menor que a <strong>de</strong> hoje, mas já era ampla, principalmente no setor criminal e<br />
curadoria <strong>de</strong> incapazes. O júri era a gran<strong>de</strong> vitrine. O <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> tinha uma<br />
atuação, em primeiro lugar, comunitária. Os juízes nunca tiveram atuação<br />
comunitária, salvo um ou outro, por vocação. Os juízes, geralmente, eram mais<br />
introvertidos, mais ensimesmados, viviam mais no gabinete, na ativida<strong>de</strong><br />
jurisdicional propriamente dita, com algumas exceções, como o Dr. Idênio Ribeiro<br />
<strong>de</strong> Carvalho, que sempre foi um lí<strong>de</strong>r comunitário, tanto em Jaguari como em<br />
Passo Fundo, on<strong>de</strong> veio a falecer, e outros. Mas, normalmente, os juízes ficavam<br />
adstritos à função jurisdicional. Nós promotores, não; éramos muito mais<br />
“metidos”, muito mais entremeados com os problemas sociais. Em Jaguari, eu
participei intensamente da vida social, da vida comunitária, só não fazia política,<br />
embora pudéssemos. Registramos aqui a belíssima atuação <strong>de</strong> um querido amigo,<br />
o pai <strong>de</strong> outro amigo. O pai foi promotor muito atuante na comunida<strong>de</strong><br />
jaguariense, o Carlos Salzano Vieira da Cunha. O Carlos Eduardo Vieira da<br />
Cunha, o Vieirinha, é <strong>de</strong>putado estadual, tendo-se criado em Jaguari, on<strong>de</strong><br />
assimilou o exemplo do pai. Na promotoria <strong>de</strong> Jaguari me sobrava tempo. Eu<br />
lecionava no curso secundário, Direito e Legislação. Em Jaguari, sempre que<br />
havia problema comunitário, eu era convocado pelo prefeito, pelo presi<strong>de</strong>nte do<br />
Clube, ou dos Clubes, atuava junto aos educandários, proferia palestras. Naquela<br />
época, houve uma fase interessante, porque a comarca <strong>de</strong> São Vicente do Sul,<br />
que na época se chamava General Vargas, a vinte e dois quilômetros distante <strong>de</strong><br />
Jaguari, não tinha nem juiz nem promotor; então, eu atuava como promotor<br />
substituto em São Vicente. Atuei muito em Santiago. O promotor da época, em<br />
Santiago, teve problemas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, e então eu o substituí muitas vezes. Houve<br />
uma época em que eu o substituí quase que um ano a fio. Lá atuei muito, pois era<br />
uma comarca com muita ativida<strong>de</strong>, muitos júris. Lembro que, quando cheguei em<br />
Jaguari, fui conhecer o juiz, conversar com ele, com o escrivão, com o oficial <strong>de</strong><br />
justiça, com a escrivã, a distribuidora do foro, tendo eles me mostrado on<strong>de</strong> era a<br />
minha sala; lá me sentei. Chega o escrivão judicial e me diz assim: "Doutor, o<br />
senhor quer <strong>de</strong>spachar aqui no gabinete ou quer que eu man<strong>de</strong> para o hotel?".<br />
Ora, o gran<strong>de</strong> problema nosso, dos iniciantes, era que o juiz e o promotor não<br />
sabiam como lançar o primeiro <strong>de</strong>spacho. O primeiro <strong>de</strong>spacho sempre era<br />
consi<strong>de</strong>rado um problema. Contavam até daquele juiz que pegou uma precatória,<br />
ficou quatro ou cinco dias com ela e não sabia o que fazer: "O que eu vou fazer<br />
com essa precatória? O que eu vou lançar na precatória?". Foi então que ouviu,<br />
aci<strong>de</strong>ntalmente, o escrivão dizer ao oficial <strong>de</strong> justiça que achava o juiz muito<br />
cuidadoso! “Para pôr um cumpra-se numa precatória, está com ela há quatro<br />
dias." Então, aliviado, apôs seu cumpra-se. Mas como eu dizia, o escrivão, <strong>de</strong><br />
quem fiquei muito amigo, o José – Zezo – Bigolin, me disse, tempos <strong>de</strong>pois, que<br />
estavam me testando e eu sabia que estava sendo testado. Então disse: "Não, eu<br />
vou <strong>de</strong>spachar isso tudo agora. Separa as vistas das intimações”. Aí, ele colocou<br />
as “vistas” em uma pilha e as intimações em outra. Disse, então, que ia receber<br />
primeiro as intimações. Fui intimado, fiz as anotações necessárias na agenda <strong>de</strong><br />
audiências e <strong>de</strong> atos processuais a que eu <strong>de</strong>via comparecer, intimações <strong>de</strong><br />
sentença – duas ou três que tinham sido proferidas – e disse: "Essas aqui <strong>de</strong>ixa,<br />
que eu vou ver se vou apelar”. E aí, me aparece uma pilha <strong>de</strong> vista. O primeiro<br />
processo dizia na capa: "Alteração <strong>de</strong> sexo" – não era uma simples retificação <strong>de</strong><br />
assentamento <strong>de</strong> nascimento por erro do oficial. Estranhei aquilo. Naquela época,<br />
mudança <strong>de</strong> sexo era quase que um tabu <strong>de</strong>ntro da justiça: simplesmente não se<br />
falava em mudança <strong>de</strong> sexo. Peguei aquele processo e disse para mim mesmo:<br />
“Bom, a vista está aqui, vou ter que <strong>de</strong>spachar aqui mesmo na frente do escrivão;<br />
não posso dar um atestado <strong>de</strong> ignorância em relação à função do <strong>Ministério</strong><br />
<strong>Público</strong>”. Peguei o processo e, pela leitura, vi que havia uma senhora em Jaguari,<br />
que era eletricista, uma profissão um pouco rara para mulheres. Segui a leitura.<br />
Tratava-se <strong>de</strong> Dona A<strong>de</strong>lina <strong>de</strong> Tal – era o único eletricista <strong>de</strong> Jaguari. E essa<br />
senhora, com quarenta e tantos anos, teve algum problema <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m intestinal,<br />
tendo baixado ao hospital. Os médicos que a examinaram acharam algo estranho
na anatomia sexual <strong>de</strong>ssa senhora e a mandaram para Porto Alegre, para a Santa<br />
Casa <strong>de</strong> Misericórdia, para um exame mais <strong>de</strong>tido. Aqui, na Santa Casa,<br />
<strong>de</strong>scobriram que, na realida<strong>de</strong>, ela não era mulher, e sim um homem com um<br />
pênis encapsulado <strong>de</strong>ntro da pare<strong>de</strong> abdominal. Então, fizeram uma cirurgia e<br />
aquela senhora que era a Dona A<strong>de</strong>lina voltou para Jaguari como Seu A<strong>de</strong>lino. O<br />
que ele fez, então? Teve <strong>de</strong> procurar um advogado e corrigir o assentamento <strong>de</strong><br />
nascimento. Foi feita uma petição ao juiz, tendo este dado vista ao <strong>Ministério</strong><br />
<strong>Público</strong>. No processo havia um laudo muito bem feito por um médico da Santa<br />
Casa, historiando tudo. Eu achei que era um processo pelo menos inusitado, na<br />
época. E o escrivão me disse, <strong>de</strong>pois, em nosso grupo <strong>de</strong> bolão, que estavam me<br />
testando, dando-me, em primeiro lugar, para dar parecer, um processo inusitado,<br />
sem prece<strong>de</strong>ntes na comarca. Eu não recordo nem sei se algum colega enfrentou<br />
problema semelhante aqui no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, pois era uma mudança <strong>de</strong> sexo<br />
<strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> operação, <strong>de</strong> cirurgia. Meu parecer escrito foi com caneta, por cota,<br />
na hora. Opinei fosse corrigido o assentamento <strong>de</strong> nascimento, porque, na<br />
realida<strong>de</strong>, a requerente era apenas tida como mulher, mas nunca fora mulher; na<br />
realida<strong>de</strong>, era um homem com o seu sexo masculino escondido por uma anomalia<br />
anatômica. Depois <strong>de</strong>spachei os <strong>de</strong>mais feitos com a vista que o juiz havia me<br />
dado. Consegui, naquela manhã, <strong>de</strong>rrotar a pilha. No dia seguinte, eu cheguei na<br />
promotoria, já com aqueles processos que eu havia levado para fazer apelações,<br />
com essas já interpostas, tendo pedido ao escrivão que me trouxesse mais uma<br />
pilha. Aí, naquele dia, a pilha já tinha diminuído; no terceiro, já não havia mais<br />
pilha. Quer dizer, eu estava tecnicamente pronto para ser promotor sem fazer<br />
fiasco. Faltava-me, e isso só percebi no futuro, o necessário tempero humanístico,<br />
imprescindível para quem tem po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> interferir na vida <strong>de</strong> outras pessoas. Em<br />
Jaguari, logo que cheguei, era conhecido como “Promotor Novo”. E realmente era<br />
novo em minha inexperiência e nos meus vinte e quatro anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Eu era o<br />
Promotor Novo. A comarca era tranqüila. O que prepon<strong>de</strong>rava eram lesões<br />
corporais, brigas <strong>de</strong> final <strong>de</strong> baile, <strong>de</strong> comércio <strong>de</strong> carreira, algumas tentativas <strong>de</strong><br />
homicídio – eu acho que o pessoal <strong>de</strong> lá tinha má pontaria. Homicídio mesmo, em<br />
Jaguari, eu só atuei em dois. Mas, logo em seguida, comecei a atuar muito em<br />
Santiago. Eu assumi Jaguari no dia 04 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> (19)60, e no dia 04 <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> (19)60 fui a Santiago por <strong>de</strong>signação do procurador-geral. E uma<br />
coisa interessante, para mim, naquela distância: Santiago tinha avião diário para<br />
Porto Alegre, da Varig, DC3, aqueles aviões eternos; nenhum caiu, nem na época<br />
da guerra; agüentaram bem esses aviões. Se precisasse vir a Porto Alegre, sabia<br />
que podia contar com um avião. Na primeira vez, cheguei em Santiago às nove e<br />
meia, pelo ônibus. Cheguei no Fórum, o juiz substituto era o Dr. Oswaldo Proença,<br />
<strong>de</strong> São Pedro do Sul, que <strong>de</strong>pois foi meu colega <strong>de</strong>sembargador no Tribunal <strong>de</strong><br />
Justiça. Assim que me apresentei, ele me disse: "Olha, tchê” – na boa linguagem<br />
quaraiense do Proença –, “temos dois júris hoje. Duas tentativas <strong>de</strong> homicídio."<br />
Eu, então, às <strong>de</strong>z e meia, comecei a minha primeira acusação no júri, numa<br />
tentativa <strong>de</strong> homicídio. O júri prolongou-se até as três da tar<strong>de</strong>, encerramos,<br />
fizemos um almoço frugal, um sanduíche, qualquer coisa, e, às quatro horas,<br />
começamos o segundo júri; às nove da noite, estava terminado. Como o Proença<br />
era juiz em São Pedro do Sul e eu promotor em Jaguari, o Proença queria<br />
terminar os dois julgamentos naquele mesmo dia para não dormirmos em
Santiago. E realmente, terminamos. Depois, o jipe da prefeitura foi nos levar, a<br />
mim a Jaguari e ao Proença a São Pedro do Sul. Júris em Santiago havia muitos,<br />
e lá eu atuei em muitos, assim como na comunida<strong>de</strong> em geral. Lá fiz gran<strong>de</strong><br />
amiza<strong>de</strong> com um dos melhores advogados que conheci, o Dr. Valdir Amaral Pinto,<br />
com quem mantenho, família a família, um estreito relacionamento até hoje.<br />
Quando o Dr. Mário Rocha Lopes, que era santiaguense, foi ser juiz lá na sua<br />
terra, atuou também como proprietário rural, como presi<strong>de</strong>nte do sindicato rural.<br />
Naquela época, não havia, para esse tipo <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>, nenhuma vedação na Lei<br />
Orgânica da Magistratura. Então, o Mário me convidou para palestras no sindicato<br />
rural sobre a nova lei. Eu fazia ativida<strong>de</strong>s sociais e comunitárias em clubes <strong>de</strong><br />
serviço; atuação junto à Prefeitura Municipal, além participar <strong>de</strong> reuniões a<br />
respeito <strong>de</strong> problemas <strong>de</strong> colégios. Uma coisa que nós éramos orientados pela<br />
corregedoria, na época, era no sentido <strong>de</strong> não permitir que os filhos <strong>de</strong> colonos, <strong>de</strong><br />
agricultores, ficassem à margem da educação. Então, fazíamos, em <strong>de</strong>zembro,<br />
uma reunião com diretores <strong>de</strong> colégios, tanto em Jaguari como em Santiago e,<br />
<strong>de</strong>pois, em São Jerônimo. Mais tar<strong>de</strong>, em São Luiz Gonzaga, não houve mais<br />
necessida<strong>de</strong>. Nessas reuniões, nós pedíamos aos diretores <strong>de</strong> colégios que nos<br />
mandassem a relação das crianças que não estavam matriculadas, ou que haviam<br />
interrompido o curso no segundo, terceiro ano. Então, chamávamos os pais,<br />
dizendo que havia um ilícito penal <strong>de</strong> abandono intelectual, e que os pais tinham<br />
obrigação <strong>de</strong> prover recursos para que os filhos freqüentassem colégio, pelo<br />
menos, até o término do curso primário, que era, na época, <strong>de</strong> quatro ou cinco<br />
anos. Realmente, nós conseguimos aumentar muito a freqüência <strong>de</strong> crianças.<br />
Claro que os pais sentiam um certo temor do rigor legal, mas a nossa função era<br />
mais <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m pedagógica. Mostrávamos aos pais que um filho com educação<br />
tinha muito mais condições <strong>de</strong> prover recursos para a família do que colocado no<br />
trabalho <strong>de</strong> roça <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os sete ou oito. Os pais se preocupavam com a falta <strong>de</strong><br />
braços para a colheita: "Ah, mas e na época da safra?". "Bom, aí nós vamos<br />
conversar. Na época da safra, o senhor vem aqui no Fórum que eu quero ver o<br />
que está acontecendo no colégio, quais são as notas do seu filho..." Por isso<br />
zelavam para que o aprendizado fosse bom. Assim, havia esse cuidado<br />
comunitário, que eu acho que o promotor tem a função <strong>de</strong> proteger o menor,<br />
embora não se justifique a con<strong>de</strong>nação dos pais que lutam com dificulda<strong>de</strong>s<br />
econômicas. O Brasil é um país em que inexistem subsídios para a agricultura.<br />
Em todos os países economicamente avançados, a agricultura recebe subsídios<br />
governamentais. Por outro lado, acho que o menor (é) a personagem mais<br />
importante da vida social. O nosso maior potencial <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>corre da<br />
proteção ao menor para se <strong>de</strong>senvolver as suas qualida<strong>de</strong>s, as suas virtualida<strong>de</strong>s.<br />
De maneira que, a par do juízo criminal, essa era outra ativida<strong>de</strong> importante do<br />
<strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>, além da ativida<strong>de</strong> em matéria <strong>de</strong> família. De matéria <strong>de</strong> família,<br />
também, em Jaguari, eu cui<strong>de</strong>i muito; em São Luiz Gonzaga, igualmente. E em<br />
São Jerônimo, o aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> trabalho e as doenças profissionais eram das<br />
principais preocupações do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>; havia, também, muita matéria <strong>de</strong><br />
família. O mineiro, normalmente, tinha duas famílias, porque trabalha em horários<br />
<strong>de</strong>scontínuos; então, esse tipo <strong>de</strong> horário proporcionava álibis para estar fora <strong>de</strong><br />
casa, e acabavam constituindo uma segunda família. Isto era muito comum em<br />
São Jerônimo, Charqueadas, Butiá, Leão, na região das minas. Em São Luiz
Gonzaga, a ativida<strong>de</strong> principal era a <strong>de</strong> Direito Penal. Tínhamos uma ativida<strong>de</strong><br />
muito intensa; o número, a estatística <strong>de</strong> crimes era elevada, crimes violentos,<br />
lesões, homicídios. Tive um dos casos mais significativos <strong>de</strong> latrocínio, na<br />
campanha do Rio Gran<strong>de</strong>.<br />
Projeto Memória: Desembargador, a respeito <strong>de</strong>sse assunto, o senhor,<br />
inclusive, fez um estudo, em São Luiz Gonzaga, sobre a questão penitenciária,<br />
não é?<br />
<strong>Marco</strong> <strong>Aurélio</strong> <strong>Costa</strong> <strong>Moreira</strong> <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>: Fiz, eu fiz um estudo.<br />
Projeto Memória: Acho que seria interessante, também, colocar, porque,<br />
pela época...<br />
<strong>Marco</strong> <strong>Aurélio</strong> <strong>Costa</strong> <strong>Moreira</strong> <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>: Como é que sabem disso,<br />
hein?<br />
Projeto Memória: Nós pesquisamos. Era algo, para a época, algo<br />
arrojado, importante...<br />
<strong>Marco</strong> <strong>Aurélio</strong> <strong>Costa</strong> <strong>Moreira</strong> <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>: Foi. Deixa eu ver esses<br />
papéis; isso faz trinta anos que eu não vejo.<br />
Projeto Memória: Não eram comuns, nessa época, <strong>de</strong>núncias e reflexões<br />
como as que o senhor <strong>de</strong>senvolveu no sentido <strong>de</strong> propor, até, uma ativida<strong>de</strong><br />
prática utilizando uma olaria.<br />
<strong>Marco</strong> <strong>Aurélio</strong> <strong>Costa</strong> <strong>Moreira</strong> <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>: Foi. Aconteceu o seguinte. O<br />
presídio <strong>de</strong> São Luiz era uma casa velha, mas muito bem conservada. Quatro ou<br />
cinco pessoas numa cela. O administrador era o Sargento Lon<strong>de</strong>ro; ele era um<br />
homem muito voltado para um espírito <strong>de</strong> penitenciarismo. E o promotor tem<br />
obrigação funcional <strong>de</strong>, uma vez por mês, ir aos presídios, o que eu cumpria,<br />
como todos os meus colegas, em todas as promotorias em que atuei. Em Jaguari,<br />
rememorando um pouco, tínhamos um presídio muito bom, era um presídio <strong>de</strong><br />
trinta leitos – eu gosto <strong>de</strong> falar em leitos, não em vagas –, com horta, e o juiz, na<br />
época, foi <strong>de</strong>sembargador <strong>de</strong>pois, [era] o José <strong>de</strong> Araújo Dornelles, gran<strong>de</strong> amigo<br />
meu, colorado fanático, meu velho companheiro <strong>de</strong> torcida pelo glorioso Esporte<br />
Clube Internacional. Aliás, sempre que falo <strong>de</strong>z minutos, tenho que dizer que sou<br />
colorado e que sou <strong>de</strong> Santa Cruz. São dois pontos essenciais na minha<br />
personalida<strong>de</strong>. Bom, o José <strong>de</strong> Araújo Dornelles era um juiz muito, muito<br />
avançado, tinha idéias humanitárias. Isso porque nós freqüentamos faculda<strong>de</strong>s<br />
numa época em que as idéias humanitárias eram muito <strong>de</strong>senvolvidas. Nós<br />
tivemos professores humanistas, verda<strong>de</strong>iros inspiradores do humanismo, que<br />
<strong>de</strong>ve orientar a atuação do jurista. Então, com o Dornelles, nós resolvemos fazer<br />
uma série <strong>de</strong> investidas no sentido da recuperação dos con<strong>de</strong>nados. Realmente,<br />
só havia um preso reinci<strong>de</strong>nte lá em Jaguari. Os <strong>de</strong>mais que cumpriam pena<br />
saíam <strong>de</strong> Jaguari sem reincidir. A reincidência era praticamente inexistente. Só<br />
recordo um caso <strong>de</strong> preso reinci<strong>de</strong>nte; mas uma reincidência interessante: ele foi<br />
con<strong>de</strong>nado por lesões corporais graves em sua mãe e a reincidência foi por lesões<br />
corporais graves na sua mãe, também. Quando a mãe <strong>de</strong>le faleceu, nunca mais<br />
praticou crime nenhum; o problema <strong>de</strong>le era psiquiátrico. Não era problema <strong>de</strong><br />
inadaptação social. Os <strong>de</strong>mais presos não reincidiam. Isso é uma coisa<br />
interessantíssima, porque, eu sempre sustentei, a casa presidial tem que ser<br />
pequena; o atendimento ao preso tem que ser individualizado; <strong>de</strong>ve receber<br />
noções <strong>de</strong> comportamento ético a<strong>de</strong>quado. Aliás, o gran<strong>de</strong> jurista, o maior
penalista que eu conheci foi o Giuseppe Bettiol. E Giuseppe Bettiol dizia: "O<br />
homem, o penitenciarista não <strong>de</strong>ve se preocupar com ressocialização. A<br />
ressocialização é algo forçado. Devemos nos preocupar é com a reeducação, com<br />
o reforço <strong>de</strong> condutas éticas a<strong>de</strong>quadas à vida social”. Essa foi uma inspiração<br />
que eu tive permanentemente e tenho até hoje. Acho que a solução justa é esta: o<br />
reforço ético no comportamento social. Bom, em Jaguari, nós conseguimos pôr<br />
isso em prática. O prefeito da época tinha sido escrivão, o Seu Carlos Callegar, e,<br />
por isso, ele nos ajudou muito. Nós dávamos serviço externo em obras públicas e<br />
estradas. Naquela época, as estradas eram muito ruins, então o prefeito fazia um<br />
pagamento aos presos que tinham serviço externo; saíam com picaretas, pás e<br />
enxadas; nunca houve uma briga <strong>de</strong>sses presos em obras públicas, nunca. Por<br />
quê? Eles tinham a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comportamento. Mesmo assim, houve um<br />
fato interessante. Eu tinha um companheiro do Lions dono <strong>de</strong> uma ferragem. E<br />
três <strong>de</strong>sempregados furtaram a ferragem. A polícia investigou e <strong>de</strong>scobriu os<br />
autores do furto. Três ou quatro meses <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nados – a con<strong>de</strong>nação<br />
veio rápida –, eles entraram naquele grupo dos que trabalhavam na estrada do<br />
município. Certo dia, passando pela frente da ferragem do Seu Adão, na caçamba<br />
da prefeitura, eles fizeram um gesto obsceno para o dono do estabelecimento<br />
furtado. De noite, eu encontrei com o Adão no clube e ele me disse: "Mas escuta,<br />
vocês dão serviço externo e o sujeito vem abusando <strong>de</strong> mim, me fazendo sinais<br />
obscenos quando passa pela minha ferragem. Preso tem que estar é na ca<strong>de</strong>ia!".<br />
Aí, eu chamei os dois e os adverti: “Vocês vão ficar <strong>de</strong> quarentena, quarenta dias<br />
sem trabalhar”. Todos saíam para trabalhar, e aqueles dois que haviam abusado<br />
do relativo direito <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> que nós déramos, o trabalho externo, ficaram<br />
reclusos durante esses quarenta dias. Depois, voltaram ao Fórum, tendo eles se<br />
comprometido a manter bom comportamento. Nunca mais tiveram qualquer<br />
<strong>de</strong>slize. Serviu <strong>de</strong> lição. Por isso entendo que esse tipo <strong>de</strong> comportamento <strong>de</strong><br />
reforço das estruturas éticas da personalida<strong>de</strong> é o mais importante para a<br />
recuperação. Houve um caso <strong>de</strong> um preso, em Jaguari, um tal <strong>de</strong> Ruivo, que se<br />
rebelou na cela, munido <strong>de</strong> uma barra <strong>de</strong> ferro <strong>de</strong> aproximadamente uns sessenta<br />
ou setenta centímetros. Era um sábado <strong>de</strong> tar<strong>de</strong>, o administrador, o Sr. Antônio<br />
Carlos, foi na minha casa e me comunicou que o Ruivo estava rebelado. Aquela<br />
rebelião era <strong>de</strong> um só, os outros não apresentavam problemas, porque eram <strong>de</strong><br />
Jaguari; o Ruivo era <strong>de</strong> São Francisco <strong>de</strong> Assis. Fui até o presídio. Ele estava<br />
numa cela <strong>de</strong> castigo e eu passei a falar com ele: "Vou entrar na tua cela e tu vais<br />
me dar essa barra”. "Não, senhor, o senhor não entre aqui, porque eu estou<br />
armado!". Eu digo: "Não, tu estás armado contra eles, mas, contra mim, tu não<br />
tens nada, não fui eu que te con<strong>de</strong>nei, não fui eu que te acusei, eu vou entrar<br />
nessa sala”. Abri a porta e entrei: "Me dá essa barra <strong>de</strong> ferro!". "Não vou lhe dar."<br />
Aí, eu disse: "Eu preciso <strong>de</strong>ssa barra <strong>de</strong> ferro, porque eu quero negociar contigo”.<br />
"Doutor, o senhor promete que não vão me bater?" "Prometo. Tu vais continuar no<br />
castigo da solitária, tu mereces o castigo, tu vais ficar dois dias aqui na solitária,<br />
<strong>de</strong> acordo com a or<strong>de</strong>m do administrador; agora, ninguém vai te bater." Isso foi<br />
num sábado. "Terça-feira tu vais ao Fórum, eu vou mandar fazer um exame<br />
médico em ti." Aí, ele me entregou a barra <strong>de</strong> ferro. Determinei que me fosse<br />
apresentado, no Fórum, na terça-feira. Não me contentei: domingo voltei lá,<br />
segunda voltei também e o Ruivo estava muito bem tratado. Então, o que me
parece, em relação ao serviço penitenciário, é isso: <strong>de</strong>ve ter casas pequenas, para<br />
um atendimento mais personalizado. Isto eu sustentei; o Dr. Augusto Borges<br />
Berthier, que me suce<strong>de</strong>u como promotor em Jaguari, também tinha esse mesmo<br />
pensamento, mais tar<strong>de</strong> ele foi diretor da SUSEPE. Infelizmente, não se consegue<br />
realizar tudo o que se pensa, por falta <strong>de</strong> recursos materiais. Em São Jerônimo, eu<br />
também visitava o presídio. Logo que cheguei, eu ia todos os meses ao presídio, e<br />
encontrei um bom administrador, o Seu Pintinho. Quando a pessoa entrava no<br />
presídio, tinha um dístico em cima da porta que dizia assim: "Bem-vindo", era uma<br />
coisa um pouco estranha, ninguém queria ser bem-vindo a um presídio. Mas,<br />
também, nunca tive problemas com o Seu Pintinho no presídio. O presídio<br />
funcionava muito bem, era um presídio muito mo<strong>de</strong>sto, mas os presos tinham<br />
relativa liberda<strong>de</strong>. Com os juízes, eu consegui, também, serviço externo para os<br />
presos; eles trabalhavam fora, em obras da prefeitura. O prefeito, o Seu Antônio<br />
Ache, era um homem muito sensível a isso aí; o Benito Garcia, que o suce<strong>de</strong>u,<br />
também, era um homem muito sensível. Então, nós sempre conseguimos encaixar<br />
os presos em serviços externos. Aí, eu chego em São Luiz Gonzaga e encontro o<br />
melhor administrador que eu conheci, o Sargento Lon<strong>de</strong>ro.<br />
Lon<strong>de</strong>ro e eu pensamos em fazer alguma coisa para melhorar a situação da<br />
“casa". O presídio era pintadinho, os próprios presos pintavam, as celas eram<br />
ajeitadas, as camas eram boas. Havia também uma mulher presa, em cela<br />
especial, acusada <strong>de</strong> mandante <strong>de</strong> um crime <strong>de</strong> homicídio. Então resolvemos<br />
<strong>de</strong>senvolver um programa. O prefeito da época era o Seu José Grisollia e eu<br />
propus um plano para tirar os presos da modorra, porque viviam, na cela, sem<br />
fazer nada. E cheguei à conclusão que o que faltava em São Luiz era uma olaria,<br />
pois não havia nenhuma. Tinham que buscar tijolos em municípios distantes, no<br />
interior, em São Nicolau parece que tinha uma, ou em Colônia Sommer, uma coisa<br />
assim, e eu senti a falta <strong>de</strong> olaria em São Luiz Gonzaga. Assim, fiz um projeto <strong>de</strong><br />
olaria. Reuni Rotary, Lions, prefeitura, os juízes, os dois promotores e, então, tive<br />
uma espécie <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança nesse ponto, para que construíssemos uma olaria. A<br />
prefeitura nos ce<strong>de</strong>u o terreno, um engenheiro fez um projeto <strong>de</strong> construção. A<br />
prefeitura se comprometia a levar, todos os dias, os presos, até a olaria, para<br />
trabalharem e retornarem às cinco horas da tar<strong>de</strong> para o presídio. Eles<br />
almoçariam inclusive na olaria. Estava tudo acertado. Vim a Porto Alegre com o<br />
projeto, e o levei para a Superintendência dos Serviços Penitenciários, para ser<br />
autorizada sua realização. Não encontrei a mínima receptivida<strong>de</strong> no projeto e a<br />
autorização foi negada. Isto é, na realida<strong>de</strong>, em 1968, quando eu fiz esse projeto<br />
em São Luiz Gonzaga, nós não tínhamos nenhuma guarida <strong>de</strong>ntro do Po<strong>de</strong>r<br />
Executivo para melhorar o sistema penitenciário; isso me <strong>de</strong>sgostou muito naquela<br />
época. Em São Leopoldo, também, quando fui promotor, durante um ano, ia todos<br />
os meses à ca<strong>de</strong>ia municipal. Era uma ca<strong>de</strong>ia horrível, terrível mesmo. E acho que<br />
o serviço, o sistema penitenciário não está, ainda, a<strong>de</strong>quado, por duas razões.<br />
Primeiro, por falta <strong>de</strong> interesse do governo; segundo, porque preso não vota.<br />
Eu <strong>de</strong>fendo o direito do preso votar, o preso é cidadão como outro<br />
qualquer, tem direitos e <strong>de</strong>veres, além <strong>de</strong> sofrer uma restrição <strong>de</strong>corrente do fato<br />
cometido. Quando era presi<strong>de</strong>nte do Tribunal Eleitoral, tentei fazer, mas isso é um<br />
problema <strong>de</strong> legislação fe<strong>de</strong>ral, <strong>de</strong> obter uma a<strong>de</strong>são <strong>de</strong> colegas no sentido <strong>de</strong><br />
que os presos pu<strong>de</strong>ssem votar. Não vejo por que preso não o possa; acho que
preso <strong>de</strong>ve votar e há fórmulas pelas quais se po<strong>de</strong> fazer uma eleição em que<br />
urnas sejam levadas, durante um período do dia, para os presídios, on<strong>de</strong> os<br />
presos possam votar, e que não se possa i<strong>de</strong>ntificar a linha majoritária dos votos<br />
dos presos – que votaram nesse ou naquele partido –, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se misturem<br />
seus votos com os votos <strong>de</strong> pessoas em liberda<strong>de</strong>. Assim, isso mantém o direito e<br />
o segredo do voto do preso, porque a regra é tranqüila: o sufrágio <strong>de</strong>ve ser<br />
universal. Ora, se nós temos um sufrágio universal, tem-se <strong>de</strong> possibilitar a todo<br />
cidadão que vote. Há um equívoco, há pessoas que não sabem o que é cidadania.<br />
A cidadania é um direito <strong>de</strong> todos no momento em que nascem. Não só dos que<br />
pagam impostos diretos. Eu vou dizer mais: a cidadania nasce na fecundação,<br />
porque já o Estado está obrigado a proporcionar saú<strong>de</strong> ao feto. Logo, ele já tem<br />
direito <strong>de</strong> cidadania, ele é um futuro cidadão, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o momento do nascimento,<br />
em que ele adquire a personalida<strong>de</strong>. Mas o código do DNA, que não se repete em<br />
outra pessoa, já está instaurado no momento da concepção. No momento em que<br />
o espermatozói<strong>de</strong> fecunda o óvulo, nós temos um código <strong>de</strong> DNA perfeito, que é<br />
individual; esse código não se repete nem no gêmeo univitelino. Por isso, entendo<br />
que o preso <strong>de</strong>ve votar. Preso é um cidadão como qualquer outro. Ele não po<strong>de</strong> é<br />
se candidatar, seria um absurdo que presos pu<strong>de</strong>ssem se candidatar e exercer<br />
mandatos eletivos. Agora, que presos <strong>de</strong>vem votar, que presos <strong>de</strong>vem participar<br />
<strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s associativas, que presos <strong>de</strong>vem ter voz perante à socieda<strong>de</strong> para<br />
reivindicar os seus direitos, acho que sim. Que as famílias das vítimas se<br />
constituam para a proteção dos sobreviventes, daqueles que foram vítimas <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>litos, <strong>de</strong> um tetraplégico, que sofreu a limitação à sua capacida<strong>de</strong> física em<br />
<strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> um <strong>de</strong>lito, excelente; <strong>de</strong>ve haver isso. Mas não se po<strong>de</strong> impedir<br />
que os presos se associem também. Eu acho que isso é uma idéia nascida da<br />
concepção <strong>de</strong> humanismo. O humanismo é uma <strong>de</strong>corrência da vida, do direito <strong>de</strong><br />
felicida<strong>de</strong> do ser humano; da esperança que o mantém vivo e acreditando no<br />
futuro. Infelizmente, lá em São Luiz, eu não consegui concretizar meu plano <strong>de</strong><br />
recuperação pelo trabalho produtivo. Em São Leopoldo, a situação presidial era<br />
muito ruim. O presídio, que eu acredito que seja o mesmo até hoje, também, muito<br />
ruim. Eu me lembro que, em uma ocasião, um preso requereu livramento<br />
condicional e o parecer do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> foi contra a concessão do livramento<br />
condicional, porque ele havia fugido várias vezes, cinco ou seis vezes. Ele<br />
preenchia todas as <strong>de</strong>mais condições, mas era fujão. O juiz in<strong>de</strong>feriu o livramento<br />
condicional. Chegou o advogado me procurando: “Vou recorrer, não é nada contra<br />
o <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>, mas vou recorrer", e me explicou o caso. Vieram, então, os<br />
autos e eu fiz as “contra-razões” do recurso dizendo que tinha toda a razão o<br />
recorrente, que <strong>de</strong>via ser concedido o direito à liberda<strong>de</strong> condicional do preso. E<br />
por quê? Porque, as cinco ou seis vezes que ele havia fugido, fora encontrado na<br />
casa da mulher ou da mãe. Isso <strong>de</strong>monstrava o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />
familiarida<strong>de</strong>. Era um homem apto, pronto para voltar ao convívio social, porque<br />
ele não se adaptara ao regime penitenciário. O Tribunal aceitou minhas<br />
pon<strong>de</strong>rações e o livramento foi concedido. Ele não fazia parte do establishment<br />
penitenciário, ele queria ficar fora, realmente, e nunca teve nenhum <strong>de</strong>slize,<br />
cumpriu toda a pena em liberda<strong>de</strong> condicional, tanto quanto eu sei, o que<br />
<strong>de</strong>monstrava estar habilitado, ou adaptado, à vida civil normal. Então, eu acho<br />
que, no momento em que nós tivermos um sistema penitenciário voltado para o
ser humano preso, teremos muito mais condições <strong>de</strong> sua recuperação. Essa foi a<br />
minha orientação ao preten<strong>de</strong>r a construção da olaria do sistema penitenciário, em<br />
São Luiz Gonzaga.<br />
Projeto Memória: Desembargador, ainda mesmo que o senhor já <strong>de</strong>va<br />
estar cansado, eu gostaria <strong>de</strong>...<br />
<strong>Marco</strong> <strong>Aurélio</strong> <strong>Costa</strong> <strong>Moreira</strong> <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>: Não. Eu fazia três horas <strong>de</strong><br />
júri na acusação e mais uma <strong>de</strong> réplica; não canso tão facilmente..<br />
Projeto Memória: Então, vou lhe explorar mais um pouquinho. Nessa<br />
década <strong>de</strong> 60, na história do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul e do Brasil, houve um período<br />
politicamente diferenciado...<br />
<strong>Marco</strong> <strong>Aurélio</strong> <strong>Costa</strong> <strong>Moreira</strong> <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>: Conturbado, vamos dizer.<br />
Projeto Memória: Certo, primeiro conturbado, <strong>de</strong>pois, há um movimento<br />
militar em 64, há uma fase <strong>de</strong> fechamento, eu gostaria que o senhor situasse um<br />
pouco <strong>de</strong>sta vivência, também, observando não só o que o senhor participou, mas<br />
aquilo que via, também, em relação à situação política e à situação <strong>de</strong> inserção do<br />
<strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> nestas questões político-partidárias ou <strong>de</strong> repressões...<br />
<strong>Marco</strong> <strong>Aurélio</strong> <strong>Costa</strong> <strong>Moreira</strong> <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>: Certo. Eu me lembro bem do<br />
episódio da Legalida<strong>de</strong>, eu era promotor em Jaguari e me preocupou muito;<br />
naquela época, o juiz estava <strong>de</strong> férias, e o juiz era substituto, não me lembro <strong>de</strong><br />
que cida<strong>de</strong> era. Assim, eu era a única autorida<strong>de</strong> estadual em Jaguari, eu e o<br />
coletor. Bom, me preocupou a situação <strong>de</strong> segurança, a Brigada Militar tinha um<br />
efetivo pequeno; Jaguari era uma cida<strong>de</strong> simpática, pacata, e, diante <strong>de</strong>sse<br />
problema da Legalida<strong>de</strong>, na renúncia do Presi<strong>de</strong>nte Jânio Quadros, tinha que<br />
assumir o Presi<strong>de</strong>nte João Goulart. Assim, até para me informar melhor e para<br />
obter segurança e tranqüilida<strong>de</strong> na comarca, me dirigi a Santiago. Fui conversar<br />
com o general, porque, se houvesse qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> perturbação da<br />
or<strong>de</strong>m, eu queria que ele me mandasse alguns soldados, como “operação<br />
presença”, para evitar <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns. Eu não queria nenhuma perturbação. Fui a<br />
Santiago em companhia <strong>de</strong> um advogado amigo meu, eu não tinha carro naquela<br />
oportunida<strong>de</strong>. Assim, o Dr. Rui Silveira me levou a Santiago, e eu fui falar junto<br />
com ele, com o general. Eu tinha comunicado ao prefeito que iria falar com o<br />
general, com o que ele concordou, pois estava também preocupado com a<br />
exaltação dos ânimos. Lá chegando, fui recebido no comando da Divisão <strong>de</strong><br />
Cavalaria. O general me recebeu e disse assim: "Que bom que o senhor veio!<br />
Realmente, estou pronto para invadir Jaguari”. Repliquei que não era nossa<br />
pretensão nenhuma invasão. Demonstrei minha intenção, apenas, <strong>de</strong> obter apoio<br />
se houvesse alguma perturbação efetiva da or<strong>de</strong>m. Assim, saí do comando muito<br />
preocupado. Mas, antes, pedi ao general que aguardasse alguma solicitação<br />
minha. Felizmente, logo <strong>de</strong>pois, tomou posse o Presi<strong>de</strong>nte João Goulart e<br />
<strong>de</strong>sapareceu o problema. Depois <strong>de</strong>le, assumiu um outro general, era contrário ao<br />
governo então empossado, nitidamente contrário, Notava-se nos pronunciamentos<br />
que ele fazia em Santiago – eu atendia Santiago –, pronunciamentos na rádio, em<br />
clubes <strong>de</strong> serviço, on<strong>de</strong> eu jantei muitas vezes e ele era convidado também,<br />
notava que eram pronunciamentos hostis ao governo do Sr. João Goulart. Mas,<br />
eram pronunciamentos que ficavam, assim, numa linha i<strong>de</strong>ológica, não chegava a<br />
haver ameaça maior à Legalida<strong>de</strong>, nem em Santiago, nem em Jaguari, nem,<br />
<strong>de</strong>pois, em São Jerônimo – porque eu assumi São Jerônimo em (19)64, início <strong>de</strong>
(19)64. São Jerônimo, nesse ponto, era pacato; havia uma legislação militar, na<br />
época, inspirada evi<strong>de</strong>ntemente por militares, e que obrigava o promotor a<br />
fiscalizar as eleições sindicais. O objetivo era, nitidamente, o <strong>de</strong> impedir<br />
“subversão”, como se o <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> fosse um guardião do regime, em vez<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a or<strong>de</strong>m jurídica. O sindicato <strong>de</strong> mineiros <strong>de</strong> Butiá era muito forte. O<br />
sindicato <strong>de</strong> mineiros <strong>de</strong> Charqueadas era mais ou menos dócil ao governo, mas o<br />
<strong>de</strong> Buitá não, ao contrário, era hostil ao governo militar. E eu recebi, então,<br />
<strong>de</strong>signação para cumprir essa <strong>de</strong>terminação da lei <strong>de</strong> comparecer para “fiscalizar”<br />
a eleição sindical. Fui a Butiá no dia da primeira eleição, tendo procurado o<br />
presi<strong>de</strong>nte do sindicato. Comuniquei minha <strong>de</strong>signação, dizendo ser obrigado a<br />
fiscalizar a eleição. Mas tranqüilizei-o, dizendo que minha atuação seria no sentido<br />
<strong>de</strong> fiscalizar o aspecto formal da assembléia e sua legalida<strong>de</strong>, em suma, somente<br />
a matéria formal. “O que vocês disserem, <strong>de</strong>baterem, a mim não interessa, os<br />
ataques que vocês fizerem a A, B ou C não me dizem respeito, porque há uma<br />
liberda<strong>de</strong> sindical <strong>de</strong> associação que está na Constituição – e essa norma<br />
constitucional não foi alterada –, <strong>de</strong> maneira que tomem minha presença como um<br />
fiscalizador formal.” Por exemplo, eu fiscalizaria a legalida<strong>de</strong> da instalação da<br />
assembléia, seu quorum, os que tinham direito <strong>de</strong> votar, a correção da apuração<br />
dos votos, a posse dos eleitos, etc. Minha única preocupação era a <strong>de</strong> ressalvar a<br />
or<strong>de</strong>m jurídica. Efetivamente, fui à eleição sindical, pontuada por pronunciamentos<br />
contrários à Revolução, contrários ao Regime Militar, mas tudo <strong>de</strong>ntro da or<strong>de</strong>m,<br />
tudo <strong>de</strong>ntro da lei. Nunca fui pressionado por ninguém. Aliás, nunca ninguém me<br />
pediu que <strong>de</strong>sse um parecer contra a minha consciência, nunca fui pressionado<br />
politicamente por força governamental, por nada. Sempre tenho dito: "O fantasma<br />
sabe para quem aparece”. As pessoas que não têm posição firme na vida<br />
geralmente são peitadas, são interpretadas como fáceis. Ora, a nossa tradição no<br />
<strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> não se compa<strong>de</strong>ce com esse tipo <strong>de</strong> posição. Os verda<strong>de</strong>iros<br />
promotores nunca são dóceis a governos, a orientações políticas ou econômicas,<br />
nunca se dobram ao príncipe e seus interesses, nem a pressões externas; o<br />
promotor sempre foi um homem muito in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. O promotor se acostuma, no<br />
interior, a viver sozinho. É claro que ele vive na comunida<strong>de</strong>; mas ele é o promotor<br />
da comarca da socieda<strong>de</strong> on<strong>de</strong> vive. Na comarca do interior, na primeira<br />
entrância, na hoje <strong>de</strong>nominada entrância inicial, ele é um homem só, ele está<br />
vivendo isoladamente, então, ele se acostuma a ter muita fortaleza <strong>de</strong> caráter,<br />
mesmo porque ele representa interesses sociais, interesses sociais indisponíveis<br />
e ele sabe que tem que representar esses interesses. Eu sempre digo, as pessoas<br />
que ocupam <strong>de</strong>terminados cargos, no <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> ou na magistratura,<br />
quando são investidos das funções, eles são homens absolutamente<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes. No momento em que o juiz ou o promotor faz uma manifestação<br />
jurídica <strong>de</strong>ntro do processo, sabe que aquilo vai ficar ali, permanentemente, quer<br />
dizer, as transgressões à sua consciência e à or<strong>de</strong>m jurídica vão ficar escritas e<br />
assinadas pelo transgressor. Daí sua responsabilida<strong>de</strong> perante si mesmo e sua<br />
consciência. Agora, vejam bem, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> trinta anos da minha manifestação em<br />
São Luiz Gonzaga em favor <strong>de</strong> uma solução laboral para os presos, vocês<br />
<strong>de</strong>scobriram que eu havia propugnado pela construção <strong>de</strong> uma olaria. Se eu<br />
tivesse feito um pronunciamento político subserviente ao governo, subserviente a<br />
uma linha <strong>de</strong> orientação política, isso estaria até hoje escrito, isso faria parte do
meu currículo e nós, quando <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>mos a or<strong>de</strong>m jurídica, temos, como meta<br />
central, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os interesses indisponíveis da socieda<strong>de</strong>. Se houve alguém no<br />
<strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> que o <strong>de</strong>slustrou, espero que isso não sirva <strong>de</strong> exemplo ao<br />
novos promotores. Ao contrário, se servir, que sirva <strong>de</strong> advertência para que os<br />
promotores não sejam sabujos <strong>de</strong> ninguém, muito menos dos po<strong>de</strong>rosos. Os<br />
promotores não são atemorizáveis. Vou contar uma situação em que um juiz foi<br />
exemplo <strong>de</strong> altivez, isto é, <strong>de</strong> uma altivez normal, mas, <strong>de</strong> qualquer forma, <strong>de</strong><br />
louvável altivez. O Dr. Alaor Terra, que foi gran<strong>de</strong> amigo meu, tinha sido juiz em<br />
São Luiz Gonzaga na época da Revolução, quando eu ainda me encontrava em<br />
São Jerônimo. Quem me contou o fato foi o Sr. Américo Me<strong>de</strong>iros Brandão,<br />
escrivão da Vara do Júri. O coronel comandante do Regimento <strong>de</strong> São Luiz<br />
Gonzaga fez um ofício mais ou menos assim: "Solicito o seu comparecimento ao<br />
quartel dia tal, em tal horário”. O Dr. Alaor Terra respon<strong>de</strong>u assim: "Recebi seu<br />
amável convite. Se Vossa Senhoria <strong>de</strong>sejar uma entrevista, estou à sua<br />
disposição, no Fórum, das nove às onze e meia e da uma e meia às seis”. No dia<br />
seguinte, o coronel esteve lá para pedir <strong>de</strong>sculpas e para fazer a visita ao Dr.<br />
Alaor Terra. Assim é que as pessoas <strong>de</strong>vem se conduzir para manter sua<br />
in<strong>de</strong>pendência, e o Dr. Alaor Terra era um homem extraordinário nesse sentido,<br />
nunca permitiu que lhe pisassem no poncho – isso é muito importante para nós,<br />
gaúchos. Também eu, sempre tive essa liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consciência, muito gran<strong>de</strong>. E<br />
a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se ter liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consciência eu aprendi com o Professor<br />
Armando Câmara, meu mestre <strong>de</strong> Filosofia do Direito; também lá em Jaguari, com<br />
o Sylvio Scalzilli, quando dizia: "O fundamental é a consciência"; mais tar<strong>de</strong>, com<br />
o velho Desembargador Telmo Jobim, quando dizia: "Eu tenho que dormir o sono<br />
dos justos”. Isso é fundamental para a paz <strong>de</strong> consciência. Por isso acho que o<br />
<strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> não po<strong>de</strong> se atemorizar, nunca con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>. Claro, havia<br />
promotores favoráveis à Revolução, havia promotores contrários à Revolução,<br />
mas eu acredito que os promotores, salvo alguns casos <strong>de</strong> manifestação<br />
“repressivista”, sempre atuaram pensando no <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>. A minha<br />
convicção é esta: os promotores sempre pensam primeiro na sua consciência, no<br />
<strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> e na socieda<strong>de</strong> que representam. Essa [é] a minha convicção.<br />
Projeto Memória: Há algum aspecto mais que gostaria <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar<br />
registrado?<br />
<strong>Marco</strong> <strong>Aurélio</strong> <strong>Costa</strong> <strong>Moreira</strong> <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>: Eu gostaria <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar<br />
registrado, não sei se é gratidão, não sei se é reconhecimento, mas é certamente<br />
um sentimento muito forte e especial que eu tenho lá <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim, a respeito do<br />
companheirismo da minha mulher. Ela sempre me acompanhou; Jaguari, São<br />
Jerônimo, São Luiz Gonzaga. Quer dizer, é fundamental que o homem tenha, e<br />
que a mulher também tenha, uma pessoa que o acompanhe. Porque, hoje, o<br />
homem e a mulher divi<strong>de</strong>m-se nas tarefas do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>; naquela época,<br />
só tínhamos homens no <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>. Antes <strong>de</strong> eu entrar, houve uma<br />
promotora, Dra. Sophia Galanternick. Depois, no meu tempo, não havia<br />
promotoras. Mais tar<strong>de</strong> sim, começaram a entrar as mulheres. A minha mulher me<br />
acompanhou sempre; quer dizer, sempre eu tive uma organização familiar muito<br />
sólida, graças a ela, e isso aí me permitia um trabalho tranqüilo <strong>de</strong>ntro da comarca<br />
e do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>. Assim, a minha mulher me proporcionou isso e o [fez] <strong>de</strong><br />
forma magnífica, extraordinária, me acompanhando em todos os momentos da
minha carreira. Isto, também, é muito gratificante: po<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 39 anos <strong>de</strong><br />
casado, fazer essa manifestação <strong>de</strong> reconhecimento ao companheirismo, ao<br />
amor, à amiza<strong>de</strong>. Isto tudo é muito importante.<br />
Projeto Memória: O senhor disse que ia referir o caso da primeira<br />
promotora...<br />
<strong>Marco</strong> <strong>Aurélio</strong> <strong>Costa</strong> <strong>Moreira</strong> <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>: A primeira promotora que me<br />
lembro ter entrado, nos “tempos mo<strong>de</strong>rnos” ou “tempos <strong>de</strong> hoje”, atualmente é<br />
<strong>de</strong>sembargadora. Pelo que me lembro, foi a primeira promotora <strong>de</strong> “nossos<br />
tempos”. Recordo que ela teve que impetrar um mandado <strong>de</strong> segurança. Eu era<br />
<strong>de</strong>sembargador iniciante, e não funcionei no julgamento, mas lembro <strong>de</strong> seu<br />
<strong>de</strong>senrolar, pois o assisti com muito interesse. Questionava seu direito <strong>de</strong><br />
ingressar no <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>.<br />
Projeto Memória: Para ter direito...<br />
<strong>Marco</strong> <strong>Aurélio</strong> <strong>Costa</strong> <strong>Moreira</strong> <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>: É, para ter direito <strong>de</strong> ingressar<br />
no <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>. Eu me lembro que vários <strong>de</strong>sembargadores votaram contra<br />
o mandado <strong>de</strong> segurança argumentando que mulher no <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> ia ser<br />
um problema. “E as crianças? Como é que ela vai fazer júri em São Borja?" Ora, a<br />
mulher tem as mesmas condições do homem. Eu me lembro que o voto <strong>de</strong>cisivo<br />
foi o do Desembargador Mílton Martins, que assumiu a magistratura no Tribunal<br />
junto comigo, em 1978 – tomamos posse no mesmo dia. Foi <strong>de</strong>le o voto <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sempate. Um voto muito interessante, em que ele assegurava o direito da<br />
mulher para ser membro do <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong> em igualda<strong>de</strong> com os homens.<br />
Projeto Memória: Chegou a conhecer a Dra. Sophia Galanternick?<br />
<strong>Marco</strong> <strong>Aurélio</strong> <strong>Costa</strong> <strong>Moreira</strong> <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>: Não, só <strong>de</strong> nome.<br />
Projeto Memória: Uma das mais antigas...<br />
<strong>Marco</strong> <strong>Aurélio</strong> <strong>Costa</strong> <strong>Moreira</strong> <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>: Só <strong>de</strong> nome, ela era<br />
promotora em Carazinho; mas eu não cheguei a conhecê-la, porque ela já estava<br />
aposentada quando eu entrei no <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>.<br />
Projeto Memória: Deseja fazer algum outro registro?<br />
<strong>Marco</strong> <strong>Aurélio</strong> <strong>Costa</strong> <strong>Moreira</strong> <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>: Me encanta essa possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
falar um pouco sobre o <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>, sobre a minha atuação <strong>de</strong>ntro do <strong>Ministério</strong><br />
<strong>Público</strong>, enfim, também sobre minha vida na Instituição. Tivemos momentos <strong>de</strong> incerteza<br />
muito gran<strong>de</strong>s, também, <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>s, claro; isso tudo não é um paraíso. Mas acredito, e<br />
sinto, com toda a convicção, que se eu tivesse que começar novamente a minha carreira no<br />
Direito, eu a iniciaria no <strong>Ministério</strong> <strong>Público</strong>.