A inevitável história de Letícia Diniz Marcelo Pedreira
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A <strong>inevitável</strong> <strong>história</strong> <strong>de</strong> <strong>Letícia</strong> <strong>Diniz</strong><br />
<strong>Marcelo</strong> <strong>Pedreira</strong>
I<br />
Numa das saletas do cemitério São João Batista, Matheus,<br />
Tatiana, Dona Gorda e mais algumas poucas bichas e travestis<br />
velavam o corpo <strong>de</strong>stroçado, olhando vez por outra em minha<br />
direção, <strong>de</strong> soslaio, quase com <strong>de</strong>sprezo. Encharcado <strong>de</strong> chuva,<br />
com as mãos enfiadas nos bolsos do meu sobretudo preto, me<br />
aproximei finalmente do caixão. Ao contrário do que temia,<br />
o rosto <strong>de</strong> <strong>Letícia</strong> conservara-se milagrosamente intacto, belo,<br />
como se salvaguardado no momento <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro. Mesmo morta<br />
transpirava glamour, e no estranho estado febril em que me<br />
encontrava tive o ímpeto <strong>de</strong> beijá-la nos lábios. Talvez o tenha<br />
feito <strong>de</strong> fato. Não lembro ao certo. Provavelmente o fiz, já que<br />
lembro, sim, <strong>de</strong> correr em seguida até o carro, em prantos,<br />
<strong>de</strong>baixo da tempesta<strong>de</strong>...<br />
Por que contar a <strong>história</strong> <strong>de</strong> uma travesti?<br />
Por que contar a <strong>história</strong> <strong>de</strong> <strong>Letícia</strong> <strong>Diniz</strong>?<br />
Devo ter sido questionado a esse respeito <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> vezes<br />
durante o ano e meio que passei, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, preparando os
• <strong>Marcelo</strong> <strong>Pedreira</strong><br />
6<br />
originais <strong>de</strong>ste livro. Tais indagações vinham sempre acompanhadas<br />
<strong>de</strong> doses subliminares <strong>de</strong> recriminação, como se<br />
colocasse minha reputação em risco <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo um tema<br />
indigno ou <strong>de</strong> relevância duvidosa. Jamais, porém, ofereci aos<br />
meus maldisfarçados inquisidores qualquer justificativa. Minhas<br />
respostas estão contidas neste livro e se tornarão evi<strong>de</strong>ntes<br />
para aqueles — que <strong>de</strong>sejo muitos — sensíveis às diferenças,<br />
dispostos a ampliar seu leque <strong>de</strong> referências e acolher nele a<br />
singularida<strong>de</strong> do universo <strong>de</strong>ssas criaturas ambíguas, empurradas<br />
a viver à margem <strong>de</strong> tudo <strong>de</strong>vido à confusão metafísicosexual<br />
que provocam. Este livro, e não tenho medo <strong>de</strong> dizê-lo,<br />
precisava ser escrito. Pairava no ar. Impunha-se como uma<br />
missão à espera <strong>de</strong> um guerreiro, ou <strong>de</strong> um operário. Dele<br />
sou apenas mero instrumento e isso é tudo que posso dizer<br />
no momento.<br />
Tentei reconstituir com a maior precisão possível a trajetória<br />
<strong>de</strong> <strong>Letícia</strong> <strong>Diniz</strong> com base em seu fascinante diário e no<br />
relato das pessoas com quem conviveu. Des<strong>de</strong> o início, porém,<br />
me <strong>de</strong>i conta <strong>de</strong> que isso não seria suficiente. Se iria contar a<br />
vida <strong>de</strong> uma travesti, precisava me apropriar <strong>de</strong> seu universo,<br />
respirá-lo, espiá-lo com meus próprios olhos. Com essa convicção<br />
fui à luta, pisei no campo <strong>de</strong> batalha, me fiz parte <strong>de</strong><br />
sua paisagem. Nesse exótico front vivi situações inacreditáveis,<br />
travei contato com tipos que só conhecera antes da literatura<br />
marginal e conquistei aos poucos a confiança das travestis da<br />
Lapa e <strong>de</strong> Copacabana, contando-lhes sobre o livro e o que<br />
pretendia com ele. Com minha antiga Nikon F5 tirei centenas<br />
<strong>de</strong> fotos — ainda não obtive a resposta do editor se serão publicadas<br />
— e cataloguei uma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> casos que surgiam<br />
feito epi<strong>de</strong>mia a cada madrugada passada entre a Mem <strong>de</strong> Sá, a<br />
Augusto Severo e a avenida Atlântica. Foram noites estranhas,
feéricas, iluminadas pelo vaivém incessante <strong>de</strong> faróis <strong>de</strong> carro,<br />
e acompanhadas <strong>de</strong> litros <strong>de</strong> cerveja, maços <strong>de</strong> cigarro e cheiro<br />
<strong>de</strong> sexo... Muito, muito sexo... A socieda<strong>de</strong> ia às compras com<br />
furor...<br />
Os trechos do diário que aparecem transcritos foram editados<br />
a fim <strong>de</strong> torná-los mais compreensíveis. Erros ortográficos<br />
e gramaticais mais graves foram corrigidos, com o cuidado,<br />
porém, <strong>de</strong> preservar o espírito e a sensibilida<strong>de</strong> original do texto.<br />
Os fatos e diálogos presentes no livro foram reconstituídos<br />
livremente, tanto a partir do diário quanto dos <strong>de</strong>poimentos<br />
colhidos. Quanto à minha ligação com <strong>Letícia</strong>, esta será revelada<br />
no momento oportuno.<br />
• A <strong>inevitável</strong> <strong>história</strong> <strong>de</strong> <strong>Letícia</strong> <strong>Diniz</strong><br />
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II<br />
Diante do espelho do armário, o menino vestia ofegante<br />
as roupas da irmã. Os ouvidos em alerta máximo, prontos<br />
para disparar o alarme a qualquer ruído suspeito. Primeiro,<br />
a calcinha <strong>de</strong> algodão, bem cavada, sua preferida. Depois, o<br />
sutiã preto <strong>de</strong> sempre, preenchido por um par <strong>de</strong> meias cuidadosamente<br />
esculpidas. Excitado com a visão, retirou uma<br />
minissaia da gaveta e ousou experimentá-la pela primeira vez.<br />
Sabia que <strong>de</strong>veria parar por ali, mas, naquela tar<strong>de</strong> abafada <strong>de</strong><br />
primavera, foi impossível refrear o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> transformação<br />
total. Seguiu-se então uma blusinha estampada, <strong>de</strong>ixando à<br />
mostra a barriguinha seca, e sapatos <strong>de</strong> salto alto sambando<br />
folgados sob os pezinhos mínimos. Com a ajuda <strong>de</strong> um espelhinho<br />
<strong>de</strong> mão, o menino checava dos mais variados ângulos<br />
o corpinho esguio <strong>de</strong> pré-adolescente, <strong>de</strong>slumbrado por uma<br />
inédita sensação <strong>de</strong> plenitu<strong>de</strong> e um perigoso esquecimento<br />
<strong>de</strong> si mesmo.
• <strong>Marcelo</strong> <strong>Pedreira</strong><br />
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Uma comichão subiu então pelo baixo-ventre feito doença<br />
<strong>de</strong>sconhecida, enrijecendo seu pênis e fazendo-o latejar <strong>de</strong><br />
forma esquisita. Ao roçá-lo <strong>de</strong> leve, quase com medo, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou<br />
uma forte contração, seguida <strong>de</strong> espasmos violentos<br />
que expeliam jatos <strong>de</strong> uma substância leitosa e gosmenta que<br />
o menino jamais vira antes. Assustou-se tremendamente com<br />
aquilo e, em pânico, pensava apenas em livrar-se logo daquelas<br />
roupas, lavar a calcinha no tanque e secá-la a ferro antes que a<br />
irmã voltasse do colégio. Tão absorto estava em tais urgentes<br />
resoluções, que não se <strong>de</strong>u conta da chave que girara na porta<br />
<strong>de</strong> entrada nem dos passos firmes que cruzaram o corredor,<br />
<strong>de</strong>tendo-se, por fim, diante da porta do quarto. Ao avistar o<br />
rosto transfigurado do pai a observá-lo apenas <strong>de</strong> calcinha<br />
e sutiã, já era tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais para qualquer tentativa <strong>de</strong> fuga.<br />
Mesmo assim, o menino ainda pulou para <strong>de</strong>ntro do armário,<br />
escon<strong>de</strong>ndo-se entre as roupas, encolhendo-se lá <strong>de</strong>ntro feito<br />
um bichinho, chorando e implorando por perdão, até ser arrancado<br />
com brutal violência e atirado contra o chão. Antes<br />
que pu<strong>de</strong>sse se refazer da queda, já era alvo <strong>de</strong> uma saraivada<br />
<strong>de</strong> socos e pontapés contra o rosto, o estômago, as costas...<br />
— Veado! Veado <strong>de</strong> merda! É pra isso que a gente cria um<br />
filho?! Pra virar um merda <strong>de</strong> um veado?! É isso que você quer<br />
ser?! É?! Então é bom apren<strong>de</strong>r <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já como é bom ser um<br />
merda <strong>de</strong> um veado...<br />
Transtornado, o pai correu até a pentea<strong>de</strong>ira, vasculhou<br />
freneticamente os objetos por ali espalhados e recolheu a<br />
escova que o menino usara há pouco para pentear seus cabelos<br />
anormalmente longos. Em seguida, colocou a criança<br />
<strong>de</strong> quatro sobre a cama, arrancou-lhe a calcinha esporrada<br />
do primeiro sêmen e, numa única e firme estocada, introduziu<br />
o cabo da escova no ânus do próprio filho, que gritava
inutilmente por socorro com um travesseiro pressionado<br />
contra o rosto.<br />
— Toma, veado! É disso que você gosta?! É?! Então pára <strong>de</strong><br />
chorar e dá um sorriso, filho-da-puta! Diz que quer mais! Diz<br />
que tá gostando! Enquanto você não disser que tá gostando<br />
eu não paro, tá me ouvindo?! Diz que quer mais! Diz que tá<br />
gostando <strong>de</strong> tomar nesse cu <strong>de</strong> veado!<br />
Enlouquecido <strong>de</strong> dor, o menino repetia tudo que o pai<br />
or<strong>de</strong>nava na esperança <strong>de</strong> que a tortura terminasse logo. Após<br />
violentar o menino por um interminável minuto, o pai atirou<br />
longe a escova ensangüentada e, tomado por um choro convulsivo,<br />
<strong>de</strong>sferiu o impiedoso golpe final:<br />
— Arruma tuas coisas, some daqui e nunca mais aparece<br />
nessa casa. Nunca mais quero te ver na minha frente, veado<br />
escroto. E se eu souber que voltou escondido pra fazer queixa<br />
pra tua mãe, eu te retalho a cara, tá me ouvindo?! Eu te retalho<br />
a cara!<br />
<strong>Letícia</strong> tinha então apenas doze anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Naquela<br />
tar<strong>de</strong>, pela primeira vez gozara. Naquela tar<strong>de</strong>, pela primeira<br />
vez <strong>de</strong>ra o cu.<br />
• A <strong>inevitável</strong> <strong>história</strong> <strong>de</strong> <strong>Letícia</strong> <strong>Diniz</strong><br />
11
III<br />
Sentada na privada, com o corpo coberto apenas por um<br />
par <strong>de</strong> botas pretas <strong>de</strong> cano longo, uma linda mulher escrevia<br />
num ca<strong>de</strong>rninho. Apoiando-o sobre uma mala abarrotada,<br />
caprichava na caligrafia, convicta <strong>de</strong> que a última página <strong>de</strong> sua<br />
curta biografia <strong>de</strong>veria sair um luxo só. Ao lado do ca<strong>de</strong>rninho,<br />
a foto do tio e um bilhete <strong>de</strong> ônibus para o Rio <strong>de</strong> Janeiro exibindo-se<br />
como um orgulhoso troféu.<br />
— Anda logo, <strong>Letícia</strong>, o ônibus já tá quase saindo — sussurrou<br />
Alicinha, batendo <strong>de</strong> leve na porta da cabine, preocupada<br />
em não chamar a atenção para sua presença no banheiro<br />
feminino.<br />
Sem se abalar, <strong>Letícia</strong> finalizou com esmero o parágrafo<br />
<strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro e, <strong>de</strong>ver cumprido, saltou aliviada para uma nova<br />
página. Na folha em branco, após dar uma última tragada no<br />
cotoco <strong>de</strong> cigarro, escreveu com orgulho:
• <strong>Marcelo</strong> <strong>Pedreira</strong><br />
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Diário <strong>de</strong> <strong>Letícia</strong> <strong>Diniz</strong> — Página 1<br />
12 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1998<br />
Mesmo diante dos apelos insistentes <strong>de</strong> Alicinha, <strong>Letícia</strong><br />
ainda se <strong>de</strong>u ao trabalho <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhar algumas estrelinhas e<br />
florzinhas nos cantos da página a fim <strong>de</strong> lhe conferir “belezura”,<br />
segundo sua própria expressão. Após enchê-la <strong>de</strong> adornos,<br />
<strong>de</strong>u-se por satisfeita, beijou a foto do tio com tocante carinho e<br />
colocou-a sobre a primeira página do diário, já <strong>de</strong>cidida a fazer<br />
da foto o marcador das muitas que se seguiriam. Guardou o<br />
precioso ca<strong>de</strong>rninho em sua bolsa, pôs a calcinha, o vestido,<br />
escon<strong>de</strong>u habilmente o pau entre as pernas, e saiu arrastando a<br />
mala para alívio <strong>de</strong> Alicinha, que a essa altura já era fulminada<br />
pela estupefação <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> senhoras.<br />
— Tava fazendo o quê tanto tempo lá <strong>de</strong>ntro?! — explodiu<br />
Alicinha.<br />
— Depois a gente conversa, Alicinha. É melhor a gente<br />
correr.<br />
Equilibrando-se sobre enormes saltos e a bordo <strong>de</strong> vestidinhos<br />
escandalosos <strong>de</strong> mínimos, as duas cruzaram apressadas o<br />
pátio da rodoviária <strong>de</strong> Porto Velho, já escoladas pelo burburinho<br />
que suas aparições provocavam entre as pessoas <strong>de</strong> um sexo só.<br />
Marcando ponto diante do ônibus, uma travesti <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong><br />
cinqüenta anos as aguardava com nítida impaciência. Vestida<br />
com uma bermuda curtíssima e um top apertado por sobre os<br />
enormes seios siliconados, ostentava a aparência grotesca <strong>de</strong><br />
quem começou a se hormonizar muito tar<strong>de</strong> na vida. O azul da<br />
barba cerrada por <strong>de</strong>baixo da maquiagem pesada e a compleição<br />
física para lá <strong>de</strong> avantajada tornavam o conjunto da obra<br />
quase uma caricatura, uma espécie <strong>de</strong> drag queen involuntária,<br />
pobrezinha e completamente <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> glamour.
— On<strong>de</strong> é que vocês estavam?! Eu largo um cliente na cama,<br />
me <strong>de</strong>spenco até aqui a essa hora da manhã e vocês ainda têm<br />
o <strong>de</strong>splante <strong>de</strong> me <strong>de</strong>ixar esperando?!<br />
— Pergunta pra tua princesinha, Cristina. Passou mais <strong>de</strong><br />
meia hora <strong>de</strong>ntro do banheiro fazendo não sei o quê — respon<strong>de</strong>u<br />
Alicinha com malícia.<br />
Pressionada pelo horário, tio Cristina dispensou as explicações,<br />
<strong>de</strong>u um abraço apertado em <strong>Letícia</strong> e, após beijá-la<br />
carinhosamente na testa, entregou-lhe um envelope lacrado.<br />
— Essa aqui é a carta <strong>de</strong> recomendação da Monique... Ei,<br />
olha pra mim, Lê! Não precisa ter medo, querida. Monique me<br />
garantiu que esse tal <strong>de</strong> Matheus vai te dar toda a cobertura<br />
possível. Se a coisa apertar, me liga, me escreve... Só não me<br />
aparece <strong>de</strong> volta dizendo que <strong>de</strong>sistiu. Isso jamais, ouviu?! Isso<br />
eu não admito! Eu vou rezar todas as noites pra Nossa Senhora<br />
Desatadora dos Nós iluminar teu caminho, meu anjo. Você, do<br />
teu lado, reza também que ajuda, tá bom? E você, Alicinha, vê<br />
se toma conta <strong>de</strong>la direito, hein?! Nada <strong>de</strong> pó, nada <strong>de</strong> baseado,<br />
nada <strong>de</strong> bebida. Senão vai se ver comigo. Vou no teu encalço<br />
por esse país afora, tá me compreen<strong>de</strong>ndo?!<br />
— Po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar, Cristina. A “princesinha <strong>de</strong> Porto Velho”<br />
vai ficar em boas mãos.<br />
Alicinha colou um beijo <strong>de</strong>bochado na bochecha da assustada<br />
“princesinha” adolescente e interpelou furiosa o motorista<br />
do ônibus, que sorrira ironicamente ao conferir suas carteiras<br />
<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.<br />
— Qual é o problema?! Tem alguma coisa errada com os<br />
nossos documentos?!<br />
— Quer dizer que “as duas” estão indo pro Rio...<br />
— É o que tá dizendo aí na passagem, não é?<br />
• A <strong>inevitável</strong> <strong>história</strong> <strong>de</strong> <strong>Letícia</strong> <strong>Diniz</strong><br />
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• <strong>Marcelo</strong> <strong>Pedreira</strong><br />
16<br />
O motorista recolheu os bilhetes, <strong>de</strong>volveu os documentos<br />
e lançou um sorriso especialmente simpático na direção <strong>de</strong><br />
<strong>Letícia</strong>, que chorava feito criança, agarrada a tio Cristina.<br />
— Anda, querida... Levanta a cabeça e coloca um sorriso<br />
nesse teu rostinho lindo. Eu sempre te disse: travesti tem que ser<br />
<strong>de</strong>z vezes mais corajoso, <strong>de</strong>z vezes mais forte e <strong>de</strong>z vezes mais<br />
persistente pra vencer na vida. Fraqueza não é luxo permitido<br />
pra gente do nosso tipo, tá me ouvindo? Não foi essa a tua<br />
escolha? Agora vai... Vai... Vai e não olha mais pra trás...<br />
<strong>Letícia</strong> enxugou o rosto e, como <strong>de</strong> costume, acatou as<br />
or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> tio Cristina, subindo lentamente as escadas do ônibus.<br />
Todos estranharam <strong>de</strong> imediato a chegada das duas novas<br />
passageiras, não por culpa <strong>de</strong> <strong>Letícia</strong>, que passaria on<strong>de</strong> quer<br />
que fosse por uma belíssima mulher <strong>de</strong> nascença. O que dava<br />
ban<strong>de</strong>ira era mesmo a figura <strong>de</strong> Alicinha, pouco agraciada por<br />
Deus nos quesitos feminilida<strong>de</strong> e harmonia <strong>de</strong> formas. Ainda<br />
seriam necessárias muitas doses <strong>de</strong> hormônio feminino, plásticas<br />
e litros <strong>de</strong> silicone para que as curvas <strong>de</strong> seu corpo e os<br />
traços <strong>de</strong> seu rosto enganassem algum trouxa. Sua figura traía<br />
por tabela a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Letícia</strong>. Alicinha, porém, não era<br />
do tipo que se <strong>de</strong>ixava abater. Apren<strong>de</strong>ra que, em situações<br />
como aquela, a melhor <strong>de</strong>fesa é sempre o ataque. Sendo assim,<br />
antecipando-se aos in<strong>de</strong>fectíveis cochichos, sorrisinhos <strong>de</strong> escárnio<br />
e sabe-se lá que outras possíveis afrontas, encarou cada<br />
passageiro com uma fixi<strong>de</strong>z perturbadora, <strong>de</strong>ixando clara sua<br />
ameaça velada <strong>de</strong> “ai <strong>de</strong> quem se engraçar comigo...”.<br />
Território dominado, as duas se ajeitaram em suas poltronas<br />
ao mesmo tempo em que o motorista assumia seu posto<br />
e acionava o motor. Do lado <strong>de</strong> fora, tio Cristina chorava copiosamente,<br />
escondido atrás <strong>de</strong> uma pilastra. Há quatro anos,<br />
acolhera o sobrinho em sua casa, um apertado conjugado
próximo à zona <strong>de</strong> prostituição da cida<strong>de</strong>. Conforme <strong>Letícia</strong><br />
relata minuciosamente na biografia <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>zesseis anos <strong>de</strong><br />
ida<strong>de</strong>, foi lá que, ainda menino, buscou abrigo logo após ser<br />
violentado pelo pai. Naquela noite, <strong>de</strong>itado nu sobre a cama<br />
cheirando a mofo, <strong>de</strong> barriga para cima, pernas abertas e com<br />
uma almofada <strong>de</strong>baixo das ná<strong>de</strong>gas elevando a cintura, mordia<br />
com força a fronha do travesseiro enquanto o tio limpava seus<br />
ferimentos com água oxigenada.<br />
— Não foi por falta <strong>de</strong> aviso... Eu sempre disse pra tua mãe...<br />
Esse aí vai ser homossexual. E, se bobear, travesti que nem o<br />
tio... Tá no sangue, no DNA. Mas ela nunca quis me ouvir, <strong>de</strong>u<br />
no que <strong>de</strong>u... Você sabe que eu nunca gostei muito do teu pai.<br />
Todo mundo sabe disso. Mas você precisa enten<strong>de</strong>r a posição<br />
<strong>de</strong>le. É muito difícil pra um pai lidar com uma coisa <strong>de</strong>ssas,<br />
um filho assim, todo <strong>de</strong>licadinho... E logo teu pai... Nossa...<br />
Sempre tão metido a machão... Mas eu vou te dizer uma coisa:<br />
não me admiraria nadinha se <strong>de</strong>scobrisse que o teu pai vai<br />
trabalhar vestido <strong>de</strong> calcinha por <strong>de</strong>baixo do terno. Afinal <strong>de</strong><br />
contas, pra se ligar a uma família estragada como a nossa, boa<br />
coisa não po<strong>de</strong> ser. Nos meus bons tempos, ele até me encarava<br />
com uns olharezinhos viciosos... Ainda tá doendo muito, eu<br />
digo, lá <strong>de</strong>ntro? Eu vou passar uma pomadinha. É uma fórmula<br />
milagrosa. Coisa <strong>de</strong> índio. Ajuda muito nesses casos...<br />
O tio retirou então um frasco sem rótulo da caixa <strong>de</strong><br />
primeiros socorros e besuntou cuidadosamente o ânus do<br />
sobrinho com uma pasta cremosa e malcheirosa. Ao finalizar<br />
o tratamento constrangedor, limpou com papel higiênico a<br />
mão direita, acarinhou com a esquerda o rostinho inchado da<br />
jovem vítima e suspirou pesaroso:<br />
• A <strong>inevitável</strong> <strong>história</strong> <strong>de</strong> <strong>Letícia</strong> <strong>Diniz</strong><br />
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• <strong>Marcelo</strong> <strong>Pedreira</strong><br />
18<br />
— Você é tão bonito, meu querido... Tão bonito... Lindo<br />
como uma mulher... Mas promete pra mim uma coisa. Promete<br />
que nunca mais vai fazer isso. Promete que nunca vai querer seguir<br />
essa vida <strong>de</strong> travesti. Promete isso pra mim agora, vai...<br />
O menino agarrou-se firmemente ao seu único protetor e,<br />
com o fiapo <strong>de</strong> voz que lhe restava, jurou o que lhe era pedi-<br />
do com firme convicção. O tio então enxugou as lágrimas que<br />
já borravam a maquiagem pesada e pôs-se <strong>de</strong> pé com o sorriso<br />
profissional <strong>de</strong> tantas e tantas voltas por cima. Ajeitou o vestido,<br />
empinou o corpo com dignida<strong>de</strong>, e, no segundo seguinte, seu<br />
tom <strong>de</strong> voz já parecia <strong>de</strong> festa:<br />
— Você tá com fome?! Eu tô morrendo...<br />
Enquanto o ônibus iniciava as manobras para <strong>de</strong>ixar a<br />
rodoviária, <strong>Letícia</strong> procurava em vão por tio Cristina com o<br />
rosto grudado na janela. Ansiava por um último “até logo”,<br />
um último aceno. Em silêncio, repetia a promessa que fizera a<br />
si mesma <strong>de</strong> ganhar dinheiro suficiente para buscá-lo e cercá-lo<br />
<strong>de</strong> luxo até o final <strong>de</strong> sua vida. Preocupava-se ativamente com o<br />
futuro duvidoso do único parente. Com seus já poucos clientes<br />
rareando <strong>de</strong>vido à ida<strong>de</strong> avançada, tio Cristina via-se cada vez<br />
mais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte das comissões cobradas das travestis mais<br />
novas para sobreviver, valendo-se, nos últimos tempos, muito<br />
mais <strong>de</strong> sua disposição para a porrada do que <strong>de</strong> suas habilida<strong>de</strong>s<br />
sexuais. Mas até quando conseguiria sustentar tamanha batalha<br />
diária? E se caísse doente? E se simplesmente cansasse? O que<br />
seria <strong>de</strong>le? Quem o acolheria? Quem se importaria? Quando<br />
o ônibus cruzou o portão <strong>de</strong> saída da rodoviária, foi a esse<br />
sentimento <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> que <strong>Letícia</strong> se aferrou a fim <strong>de</strong><br />
suportar a dor da separação. Tornar-se bem-sucedida seria, dali
em diante, quase um sacerdócio, a única forma <strong>de</strong> retribuir a<br />
<strong>de</strong>dicação que o tio lhe <strong>de</strong>votara nos quatro anos anteriores.<br />
— Ainda vou voltar pra cá <strong>de</strong> avião, Alicinha. Escreve o que<br />
eu tô te dizendo: <strong>de</strong> avião. Ida e volta, enten<strong>de</strong>u? Vou trazer<br />
meu tio pro Rio <strong>de</strong> avião. Po<strong>de</strong> me cobrar.<br />
— Nossa... Nessa cena eu queria até fazer figuração...<br />
Cristina entrando num avião da Varig, com toda sua discrição<br />
e graciosida<strong>de</strong>, cumprimentando aquelas aeromoças chiquerésimas<br />
— ironizou Alicinha, emendando o cruel comentário<br />
com uma sonora gargalhada.<br />
— Às vezes você sabe ser tão escrota, Alicinha... Tão escrota...<br />
Percebendo o aborrecimento da amiga, Alicinha pôs-se<br />
a cutucá-la com um sorriso sacana, provocando cócegas por<br />
todo seu corpo até ouvir o pedido <strong>de</strong> rendição.<br />
— É... Ia ser engraçado mesmo... Eu sei... Agora pára... Pára<br />
com isso, Alicinha... Assim eu faço xixi nas calças... Pára... Eu<br />
já disse que ia ser engraçado... Pára — admitiu <strong>Letícia</strong> às gargalhadas,<br />
chamando a atenção <strong>de</strong> todos os <strong>de</strong>mais passageiros.<br />
A brinca<strong>de</strong>ira acabou servindo para atenuar a ansieda<strong>de</strong>,<br />
já que a viagem prometia nada menos que uma verda<strong>de</strong>ira<br />
epopéia. Na semana anterior, as duas haviam entrado numa<br />
livraria à procura <strong>de</strong> um atlas, curiosas por <strong>de</strong>scobrir a distância<br />
exata entre Porto Velho e Rio <strong>de</strong> Janeiro. Custaram a localizar<br />
as duas cida<strong>de</strong>s no mapa, mas, quando o fizeram — com<br />
a ajuda <strong>de</strong> um prestimoso ven<strong>de</strong>dor —, espantaram-se <strong>de</strong><br />
quanto ficavam separadas. Não sabiam mensurar exatamente<br />
o quanto aqueles estados no meio do caminho — Mato Grosso,<br />
Goiás, Minas Gerais e São Paulo — significavam em termos<br />
<strong>de</strong> quilômetros, mas o tempo estimado <strong>de</strong> viagem informado<br />
pela empresa <strong>de</strong> ônibus — cinqüenta e quatro horas — não<br />
• A <strong>inevitável</strong> <strong>história</strong> <strong>de</strong> <strong>Letícia</strong> <strong>Diniz</strong><br />
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• <strong>Marcelo</strong> <strong>Pedreira</strong><br />
20<br />
<strong>de</strong>ixava dúvida <strong>de</strong> que era uma aventura e tanto. Conheciam o<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro das revistas, das novelas da Globo e das bichas<br />
mais antigas <strong>de</strong> Porto Velho que já haviam feito a vida por lá.<br />
Juntas, colecionavam recortes sobre a Cida<strong>de</strong> Maravilhosa e,<br />
também juntas, assistiam à transmissão pela tevê do baile <strong>de</strong><br />
carnaval Scala Gay, on<strong>de</strong> bonecas <strong>de</strong> todos os lugares do Brasil<br />
e do mundo se reuniam numa noite <strong>de</strong> in<strong>de</strong>scritível glamour.<br />
— A bomba<strong>de</strong>ira é <strong>de</strong> confiança, Lê. A Monique me explicou<br />
tudinho. Parece que <strong>de</strong>pois que ela dá a injeção, o silicone<br />
fica feito uma bola <strong>de</strong>baixo da pele. Aí, ela começa a mo<strong>de</strong>lar<br />
tua bunda com as mãos, enten<strong>de</strong>u? Até o silicone espalhar e<br />
ficar na forma. Tipo bonequinho <strong>de</strong> barro, sabe?<br />
Durante os primeiros quilômetros <strong>de</strong> estrada, ainda no estado<br />
<strong>de</strong> Rondônia, Alicinha <strong>de</strong>u seu show habitual, tagarelando<br />
<strong>de</strong> forma espalhafatosa e incomodando propositadamente os<br />
<strong>de</strong>mais passageiros. Porém, segundo as anotações <strong>de</strong> <strong>Letícia</strong>,<br />
nenhuma daquelas pobres almas se atreveu a reclamar, “nem<br />
mesmo um psiu se ouviu”. A extroversão maníaca <strong>de</strong> Alicinha<br />
quase sempre intimidava seus “adversários”, filhos pobres<br />
ou ricos da socieda<strong>de</strong> burguesa, que abominam igualmente<br />
qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escândalo ou embaraço público<br />
envolvendo uma travesti. Apresentando suas cre<strong>de</strong>nciais <strong>de</strong><br />
“barraqueira”, Alicinha precisou <strong>de</strong> poucos minutos para<br />
sagrar-se rainha do pedaço, senhora absoluta daquele ônibus<br />
em procissão pelo coração do Brasil, transportando, em sua<br />
maioria, migrantes humil<strong>de</strong>s dispostos a encontrar trabalho nos<br />
estados do Su<strong>de</strong>ste. Por várias vezes, <strong>Letícia</strong> pediu inutilmente<br />
que a colega baixasse seu tom <strong>de</strong> voz, mas logo percebeu que<br />
ainda se passariam algumas horas até que toda aquela excitação<br />
se esvaziasse.<br />
— Lá no Rio as monas são todas bombadas, você vai ver...<br />
Cada uma mais mo<strong>de</strong>lada que a outra... Você olha pro lado,
vê a bicha se dando bem, conseguindo mais cliente, aí você<br />
começa a se mo<strong>de</strong>lar também. Eu quero fazer logo bunda e<br />
quadril. Tudo gran<strong>de</strong>, mais perfeito que <strong>de</strong> mulher. Não tem<br />
jeito, Lê. Tem que mo<strong>de</strong>lar, tem que mo<strong>de</strong>lar... Hormônio<br />
<strong>de</strong>mais <strong>de</strong>ixa a gente brocha, e você sabe, mesmo com esse teu<br />
jeitinho <strong>de</strong> princesa, ainda vai ter que comer o rabo <strong>de</strong> muita<br />
maricona nessa vida.<br />
Alicinha continuou a falar ininterruptamente por quase<br />
duas horas seguidas, até sucumbir ao inexorável cansaço <strong>de</strong><br />
uma trabalhadora da noite. Eram aproximadamente quatro da<br />
tar<strong>de</strong> e Alicinha passara toda a noite anterior na rua tentando<br />
amealhar mais alguns trocados. <strong>Letícia</strong> suspirou aliviada ao<br />
constatar que a colega adormecera com a cabeça encostada na<br />
janela. Conhecendo Alicinha e seu sono pesado, contava com<br />
algumas boas horas <strong>de</strong> folga, quando po<strong>de</strong>ria, talvez, escrever<br />
finalmente a primeira página <strong>de</strong> seu diário. O silêncio, porém,<br />
evocou <strong>de</strong> imediato a imagem do tio. Sem se dar conta, já chorava<br />
baixinho, ainda compungida pela dor recente da separação.<br />
Amparada por seu ascen<strong>de</strong>nte em Câncer, entregou-se então a<br />
uma nostalgia melancólica, que se tornaria crônica com o passar<br />
dos anos, percorrendo aleatoriamente as páginas <strong>de</strong> sua recémfinalizada<br />
“biografia”. E riu sozinha ao lembrar-se <strong>de</strong> como<br />
apreciava observar o tio aprontando-se para a “batalha”...<br />
Sentado na beirada da cama, acompanhava como um aluno<br />
atento o passo a passo da maquiagem. E, apesar do <strong>de</strong>sejo<br />
cada dia mais premente <strong>de</strong> experimentar em si mesmo aquela<br />
máscara luminosa, o ainda menino cumpria com fervor a<br />
promessa feita ao tio, que, por sua vez, aproveitava esses perigosos<br />
momentos <strong>de</strong> proximida<strong>de</strong> para reforçar seus conselhos<br />
surrados.<br />
• A <strong>inevitável</strong> <strong>história</strong> <strong>de</strong> <strong>Letícia</strong> <strong>Diniz</strong><br />
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• <strong>Marcelo</strong> <strong>Pedreira</strong><br />
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— Não gosto quando você fica me olhando assim, com esse<br />
jeitinho <strong>de</strong> que também quer... Se você gosta mesmo <strong>de</strong> homem,<br />
quer dizer, isso você ainda vai ter que <strong>de</strong>scobrir na prática, não<br />
tenho nada contra. Mas é melhor ser bicha gay que travesti.<br />
Sempre te digo: bicha gay po<strong>de</strong> trabalhar em qualquer lugar,<br />
com qualquer coisa, mas travesti, não. Só sobra isso que você tá<br />
vendo... Olha em volta. Já são mais <strong>de</strong> trinta anos fazendo meu<br />
cu <strong>de</strong> boceta e o que é que eu consegui? É num pardieiro <strong>de</strong>sse<br />
tipo que você quer terminar teus dias? Hein?! Além disso, você<br />
acha que é agradável sair <strong>de</strong> casa a essa hora da noite pra chupar<br />
os paus leprosos <strong>de</strong>sses homens daqui?! Não tem nada <strong>de</strong> glamouroso<br />
nisso, meu amor, fique sabendo... Agora, mudando <strong>de</strong><br />
assunto, que <strong>história</strong> é essa <strong>de</strong> matar aula escondido, hein?!<br />
Des<strong>de</strong> que acolhera o sobrinho em seu conjugado, tio Cristina<br />
assumira as funções <strong>de</strong> um educador rigoroso. Obrigara o<br />
menino a continuar freqüentando o mesmo colégio e checava<br />
diariamente o cumprimento <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> casa. Parecia<br />
ter encontrado sentido para sua vida na tarefa <strong>de</strong> salvá-lo do<br />
mesmo <strong>de</strong>stino torto que o con<strong>de</strong>nara a uma existência <strong>de</strong><br />
semimarginalida<strong>de</strong> e humilhação. Zelava para manter seu protegido<br />
o mais afastado possível do mundo cão on<strong>de</strong> chafurdava,<br />
cumprindo tal missão com o fervor <strong>de</strong> uma obsessão.<br />
— Dona Clei<strong>de</strong> me disse que te viu na rua, ontem <strong>de</strong> manhã,<br />
bem na hora do colégio. Não, não precisa me dizer nada. Só vou<br />
te dar um aviso. Um aviso que vai ser o primeiro e o último:<br />
se te pegar <strong>de</strong> novo <strong>de</strong> vadiagem, a coisa vai ficar feia pro teu<br />
lado, tá me ouvindo?! Veado tem que estudar <strong>de</strong>z vezes mais,<br />
tem que ser <strong>de</strong>z vezes mais inteligente pra vencer na vida.<br />
E quando <strong>de</strong>vidamente paramentada para a “batalha”,<br />
Cristina <strong>de</strong>spedia-se do sobrinho sempre com um carinhoso<br />
beijo na testa.
— Que Deus te abençoe. E que a Nossa Senhora Desatadora<br />
dos Nós te dê juízo, viu? Muito juízo pra não se per<strong>de</strong>r<br />
na vida.<br />
O menino então rolava na cama <strong>de</strong> casal que dividia com<br />
o tio, esperando em vão pelo sono que não vinha. Algumas<br />
vezes, cedia à tentação <strong>de</strong> experimentar alguma peça <strong>de</strong> roupa<br />
feminina largada pelo quarto, mas logo <strong>de</strong>sistia, tomado por<br />
profunda culpa. Adormecia apenas após aliviar-se por duas,<br />
três, quatro vezes seguidas. E quando <strong>de</strong>spertava pela manhã,<br />
com o tio roncando ao seu lado, ficava a observá-lo longamente,<br />
imaginando por quantos paus, cus e línguas ele havia passado<br />
por mais uma noite a fim <strong>de</strong> trazer algum dinheiro para<br />
casa. Vestia então o uniforme do colégio, recolhia os trocados<br />
<strong>de</strong>ixados para o ônibus, beijava a bochecha já pinicando <strong>de</strong><br />
barba <strong>de</strong> seu protetor e saía <strong>de</strong> mochila nas costas como um<br />
irrepreensível garotinho...<br />
Já era noite quando <strong>Letícia</strong> <strong>de</strong>spertou sobressaltada, sacudida<br />
por Alicinha. Havia pegado no sono pouco <strong>de</strong>pois da amiga<br />
e parecia momentaneamente <strong>de</strong>sorientada, sem saber on<strong>de</strong><br />
estava. O ônibus fazia então sua segunda parada, já no estado<br />
<strong>de</strong> Mato Grosso. Um microposto <strong>de</strong> gasolina la<strong>de</strong>ado por<br />
um bar-restaurante vagabundo encravado no meio do nada.<br />
Alicinha parecia ansiosa para esticar as pernas após dormir<br />
pesadamente por cerca <strong>de</strong> cinco horas seguidas.<br />
— Levanta, Lê. Vai... Deixa <strong>de</strong> moleza.<br />
<strong>Letícia</strong> resmungou mal-humorada e, num ato reflexo,<br />
tateou sua bolsa à procura do espelhinho <strong>de</strong> mão. Não po<strong>de</strong>ria<br />
fazer uma aparição pública, mesmo tratando-se daquele<br />
pontinho do mapa esquecido por Deus, sem antes retocar a<br />
maquiagem e conferir o penteado.<br />
• A <strong>inevitável</strong> <strong>história</strong> <strong>de</strong> <strong>Letícia</strong> <strong>Diniz</strong><br />
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• <strong>Marcelo</strong> <strong>Pedreira</strong><br />
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— Vamo logo, princesinha. Eu tô morrendo <strong>de</strong> fome. Você<br />
tá linda.<br />
Os <strong>de</strong>mais passageiros, sonolentos e já <strong>de</strong>vidamente intimidados<br />
por Alicinha, não se atreveram sequer a encará-las no<br />
restaurante quase <strong>de</strong>serto. Misturadas àquela gente sem brilho,<br />
as duas aguardavam seus pedidos <strong>de</strong> café com leite e mistoquente<br />
<strong>de</strong>bruçadas sobre o longo balcão, quando, após viajar<br />
num longo suspiro, <strong>Letícia</strong> especulou com ar melancólico:<br />
— Será que um dia a gente vai sentir sauda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Porto<br />
Velho, Alicinha?<br />
— Cruzes! Vira essa boca pra lá, amiga! Eu quero é sucesso!<br />
— E se a gente não gostar do Rio? E se não for nada do que<br />
a gente pensa?<br />
— De novo esse papo, Lê?! Eu te avisei, não te avisei? Antes<br />
<strong>de</strong> ir pro Rio faz um estágio comigo, apren<strong>de</strong> as manhas<br />
da pista, ganha experiência, dá o cu, come uns cus, paga uns<br />
boquetes... Mas você não quis me ouvir. Agora tá se borrando<br />
toda na calcinha... Teu problema é que você é muito romântica,<br />
bicha. Tá sempre esperando por um “príncipe encantado”, quer<br />
dizer, no teu caso, por uma “maricona encantada”... Porque<br />
homem que gosta <strong>de</strong> travesti não po<strong>de</strong> ser boa coisa. Nunca<br />
vai dar um bom marido. Mais dia menos dia vai querer trocar<br />
<strong>de</strong> papel e aí... Aí você sabe, né... Que romantismo resiste a um<br />
homem dando o cu?<br />
— Ai, Alicinha, você fala cada coisa... Em vez <strong>de</strong> me ajudar,<br />
me <strong>de</strong>ixa ainda mais arrasada. Eu fico passada com você, passada...<br />
Perdi até a fome... Pe<strong>de</strong> pra embrulhar o meu misto, tá? Eu<br />
vou fumar um cigarro lá fora. A gente se encontra no ônibus.<br />
— Ih, o que é que te <strong>de</strong>u agora, bicha?! Tá menstruada?!<br />
Enfia um ob no cu então — <strong>de</strong>bochou Alicinha, fazendo uso<br />
<strong>de</strong> um tom <strong>de</strong> voz exageradamente alto. — E você, velho! Tá<br />
olhando o quê?! Per<strong>de</strong>u alguma coisa nessa direção?!
<strong>Letícia</strong> ignorou o barraco da colega, <strong>de</strong>ixou o restaurante<br />
cabisbaixa e caminhou alguns metros na direção da beira da<br />
estrada em meio a uma escuridão abissal. Sentou-se numa pequena<br />
amurada <strong>de</strong> concreto, acen<strong>de</strong>u um cigarro e, sem saber<br />
por quê, pôs-se a chorar. Dessa vez não era por seu tio. Tratava-se<br />
<strong>de</strong> algo que nem ela mesma conseguia <strong>de</strong>finir. Olhava a<br />
estrada com uma sensação <strong>de</strong> <strong>de</strong>samparo profundo, um pavor<br />
repentino <strong>de</strong> contar apenas consigo mesma, uma nostalgia<br />
doída por algo distante do qual nem sequer se lembrava. Fazia<br />
parte <strong>de</strong> uma caravana <strong>de</strong> zés-ninguéns saída das entranhas da<br />
selva amazônica, numa longa romaria por estradas <strong>de</strong>sertas e<br />
esburacadas em busca do sonho incerto em terras paulistas e<br />
cariocas. Não se sentia corajosa por isso, tampouco. Não se<br />
tratava <strong>de</strong> coragem, em absoluto. Quando nada se tem a per<strong>de</strong>r,<br />
é possível empreen<strong>de</strong>r qualquer coisa, acreditava. Sem saber<br />
ao certo como enfrentaria o dragão daquele mundão imenso,<br />
retirou o ca<strong>de</strong>rninho da bolsa, iluminou-o com a luz do isqueiro<br />
e registrou ali mesmo, tomada por profunda comoção, as<br />
primeiras palavras <strong>de</strong> seu diário:<br />
“Nem papai, nem mamãe, nem ninguém pra te bancar. É<br />
só você, <strong>Letícia</strong>. É só você... Por isso mesmo, coloca <strong>de</strong> uma vez<br />
por todas nessa tua cabecinha <strong>de</strong> vento: travesti tem quer ser<br />
<strong>de</strong>z vezes mais forte, <strong>de</strong>z vezes mais forte que o mais forte dos<br />
mortais. Tristeza é luxo que só os bem-nascidos po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>sfrutar.<br />
Meu caminho nesse mundo, eu sei, vai ter um brilho incerto<br />
e louco. Mas essa é a minha <strong>história</strong> e ela começa aqui.”<br />
De volta ao ônibus, aproveitando o sono ferrado <strong>de</strong> Alicinha,<br />
<strong>Letícia</strong> encheu as primeiras páginas do diário, <strong>de</strong>screvendo<br />
minuciosamente tudo o que ocorrera até então. Tinha o hábito<br />
<strong>de</strong> escrever a lápis, a fim <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r lançar mão da borracha e<br />
reescrever trechos inteiros quando o resultado não a satisfazia.<br />
• A <strong>inevitável</strong> <strong>história</strong> <strong>de</strong> <strong>Letícia</strong> <strong>Diniz</strong><br />
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• <strong>Marcelo</strong> <strong>Pedreira</strong><br />
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Somente então cobria cuidadosamente as palavras com caneta<br />
vermelha, como se escrevesse com o próprio sangue.<br />
“Mais outra parada. O motorista ficou me olhando no<br />
restaurante. Acho que ficou a fim... Alicinha bateu boca com<br />
dois caminhoneiros bêbados. Quase entrou na porrada.”<br />
Um verda<strong>de</strong>iro teste <strong>de</strong> resistência física e emocional. É o<br />
que se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r dos curtíssimos comentários registrados<br />
no diário durante as mais <strong>de</strong> quarenta e cinco horas <strong>de</strong><br />
maratona rodoviária que se seguiram...<br />
“Não <strong>de</strong>u para ler direito a placa. Passou voando. Mas acho<br />
que estamos em algum lugar no meio <strong>de</strong> Goiás.” “A pilha do<br />
discman está acabando. Minha única diversão. Na próxima<br />
parada, lembrar <strong>de</strong> comprar pilhas.” “Tem uma criança lá na<br />
frente que não pára <strong>de</strong> chorar. Goiás não tem fim. Estou no<br />
inferno.” “Não achei pilhas. Tédio, tédio, tédio.” “Não agüento<br />
mais esse cheiro <strong>de</strong> mijo. O banheiro está uma imundície só.<br />
Que bosta <strong>de</strong> povo porco. Vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> esculhambar todo mundo.”<br />
“Parada. O motorista veio cheio <strong>de</strong> graça falar comigo.<br />
Me chamou <strong>de</strong> maravilhosa. Gostei do jeitão <strong>de</strong>le, mas me fiz<br />
<strong>de</strong> difícil.” “Reclamação <strong>de</strong> Alicinha que achei engraçada: Já<br />
pensou se eu já tivesse colocado silicone na bunda? Como é que<br />
eu ia agüentar ficar sentada tanto tempo nessa poltrona? Com<br />
silicone na bunda, só <strong>de</strong> avião, e, assim mesmo, <strong>de</strong> primeira<br />
classe. Só ela mesmo para me fazer rir.” “Parada. O motorista<br />
me pagou um café. Chupei o pau <strong>de</strong>le nos fundos do posto<br />
só para ver qual era a sensação <strong>de</strong> me sentir uma puta. Ficou<br />
apaixonado, coitado... Me <strong>de</strong>u até o telefone <strong>de</strong>le em São Paulo.”<br />
“Estou toda melada. Dava tudo por um banho. Faz muito<br />
calor na merda <strong>de</strong>sse ônibus. É impossível manter a classe<br />
nessas condições.” “A <strong>de</strong>sgraçada da criança voltou a chorar.<br />
Alicinha cochichou no meu ouvido que mais um pouco e vai
esgoelar mãe e filho. Man<strong>de</strong>i ela mascar um chiclete. Está com<br />
um bafo horroroso.” “Parada. O motorista disse que estamos<br />
perto <strong>de</strong> São Paulo. Quis que eu pagasse um boquete <strong>de</strong> novo,<br />
mas a carruagem da Cin<strong>de</strong>rela já tinha virado abóbora. Sinto<br />
muito, respondi com a pouca finesse que me restava.” “Sauda<strong>de</strong>s<br />
do meu tio. Penso nele para agüentar toda essa tortura. Não<br />
imaginava que fosse ser tão difícil.” “Não tenho mais posição<br />
para sentar. Desisti <strong>de</strong> dormir. Meu estômago está embrulhado.<br />
Tá me batendo <strong>de</strong>sespero. Vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> gritar.” “Bal<strong>de</strong>ação em<br />
São Paulo. Vamos trocar <strong>de</strong> ônibus, que Deus seja louvado! A<br />
rodoviária daqui é gigantesca. Imagina como não <strong>de</strong>ve ser a<br />
do Rio... Tentamos tomar banho no banheiro feminino, mas<br />
Alicinha foi <strong>de</strong>scoberta e nós duas barradas. Falaram que ali<br />
não era o nosso lugar. Mas on<strong>de</strong> seria então? No masculino?!<br />
Duas criaturas <strong>de</strong> cabelos compridos, maquiadas, <strong>de</strong>piladas,<br />
com bundas e seios fartos, vestidinhos <strong>de</strong>cotados e sapatinhos<br />
<strong>de</strong> salto alto em meio a marmanjões com pintos <strong>de</strong> fora num<br />
recinto fechado?!” “Ônibus novo com cheirinho <strong>de</strong> eucalipto.<br />
Disseram que agora são apenas cinco horas até o Rio. Fiquei <strong>de</strong><br />
bom humor e resolvi compartilhar meu discman com Alicinha.<br />
Escutamos a mesma música umas <strong>de</strong>z vezes seguidas: Mas se<br />
você achar que eu tô <strong>de</strong>rrotado, saiba que ainda estão rolando os<br />
dados, porque o tempo, o tempo não pára. Dias sim, dias não,<br />
eu vou sobrevivendo sem um arranhão da carida<strong>de</strong> <strong>de</strong> quem me<br />
<strong>de</strong>testa... Virou meu hino nacional. E o <strong>de</strong> Alicinha também.”<br />
“Rodoviária <strong>de</strong> Resen<strong>de</strong>. Faltam só duas horas para realizar<br />
meu sonho. Comprei um jornal do Rio só para colar a primeira<br />
página no meu diário. Recordação histórica <strong>de</strong>sse dia <strong>de</strong> glória.”<br />
“Próxima e última parada: Cida<strong>de</strong> Maravilhosa! A Cida<strong>de</strong> Maravilha!<br />
Estou ansiosa... Ansiosa <strong>de</strong>mais... Não consigo parar <strong>de</strong><br />
pensar: como será o Rio?! Eu digo: <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. Mal saímos <strong>de</strong><br />
• A <strong>inevitável</strong> <strong>história</strong> <strong>de</strong> <strong>Letícia</strong> <strong>Diniz</strong><br />
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• <strong>Marcelo</strong> <strong>Pedreira</strong><br />
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Resen<strong>de</strong> e toda hora Alicinha jura que viu o Cristo Re<strong>de</strong>ntor,<br />
pequenininho, quase invisível lá no horizonte... Pior é que toda<br />
vez eu confiro, mesmo sabendo que não é, só pra ver se é ele<br />
mesmo.” “Escutei o velho atrás <strong>de</strong> mim dizer avenida Brasil.<br />
Nenhuma árvore, favelas nos dois lados da pista, mas até a feiú-<br />
ra <strong>de</strong>ssas boas-vindas me parece pura poesia.” “Eu e Alicinha<br />
acabamos <strong>de</strong> aprontar um verda<strong>de</strong>iro escândalo. Acordamos<br />
o ônibus inteiro gritando feito loucas e batendo com as mãos<br />
na janela. Porque <strong>de</strong>ssa vez é pra valer, nem tão longe assim,<br />
o Cristo Re<strong>de</strong>ntor! Preciso retocar a maquiagem, escovar os<br />
cabelos, porque quando o ônibus entrar na rodoviária eu já<br />
quero estar <strong>de</strong> pé, na porta, a primeira a sair.”<br />
Rodoviária Novo Rio. Trinta e dois graus. Uma noite sem<br />
brisa. <strong>Letícia</strong> <strong>de</strong>sce lentamente as escadas do ônibus, como<br />
se aprisionada <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um filme e aquele fosse o clímax da<br />
primeira parte. Nos fones do discman, quase estourando os<br />
tímpanos, seu “hino nacional” executado com toda a pompa:<br />
“Disparo contra o sol, sou forte, sou por acaso, minha metralhadora<br />
cheia <strong>de</strong> mágoas, eu sou o cara, cansado <strong>de</strong> correr na direção<br />
contrária, sem pódios <strong>de</strong> chegada ou beijo <strong>de</strong> namorada, eu sou<br />
mais um cara...” Sob a onipresente bênção <strong>de</strong> seu “irmão <strong>de</strong><br />
alma” Cazuza, a princesinha <strong>de</strong> Porto Velho pisa pela primeira<br />
vez em solo carioca, como se o mundo inteiro a acompanhasse<br />
paralisado, como aos passos <strong>de</strong> um Neil Armstrong chegando à<br />
Lua. Olha para um lado, para o outro — como se atuasse para<br />
câmeras imaginárias dispostas em eixo — e quase acena para a<br />
pequena multidão espremida atrás da gra<strong>de</strong>, como se aquela<br />
gente estivesse ali apenas para aplaudir seu triunfo. Enquanto<br />
aguarda as malas, abre o diário e, com graciosida<strong>de</strong> quase<br />
coreografada, beija a foto do tio. Em seguida, após <strong>de</strong>ixar o<br />
olhar per<strong>de</strong>r-se teatralmente ao redor, anota uma resolução
lacônica, como se fosse uma voz soando <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> sua cena<br />
cinematográfica: “A partir <strong>de</strong> hoje, minha <strong>história</strong> sou eu que<br />
escrevo, meu tio abençoa e Deus dirige.”<br />
Guarda então o diário com um gesto estudado e, <strong>de</strong> nariz<br />
empinado, abre caminho por entre a multidão feia e malvestida<br />
como quem cruza um tapete vermelho sob a reverência<br />
abobalhada dos simples mortais. O motorista do táxi amarelo,<br />
maravilhado, abre gentilmente a porta <strong>de</strong> trás. Alicinha, a<br />
coadjuvante, entra primeiro. <strong>Letícia</strong>, a estrela, ainda lança um<br />
último olhar pela plataforma <strong>de</strong> <strong>de</strong>sembarque até sumir <strong>de</strong>ntro<br />
do automóvel, quando, em sua fértil e glamourosa imaginação,<br />
a divinda<strong>de</strong> diretora do filme <strong>de</strong> sua vida finalmente grita<br />
“corta!”. O táxi dobra a esquina, a rodoviária some <strong>de</strong> vista e<br />
Porto Velho torna-se <strong>de</strong>finitivamente <strong>história</strong> <strong>de</strong> mau gosto,<br />
meras páginas introdutórias <strong>de</strong> um livro glorioso, excitante e<br />
<strong>de</strong> extraordinários capítulos.<br />
• A <strong>inevitável</strong> <strong>história</strong> <strong>de</strong> <strong>Letícia</strong> <strong>Diniz</strong><br />
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