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Frankenstein de Mary Shelley e sua mensagem perene - Nepas.org.br

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A cena do confronto entre o criador e a criatura <strong>de</strong>monstra clara-<<strong>br</strong> />

mente o espanto do Dr. Victor quando fica cara a cara com <strong>sua</strong> criação,<<strong>br</strong> />

percebendo a enormida<strong>de</strong> do monstro e <strong>sua</strong> fraqueza perante aquele<<strong>br</strong> />

colosso. Isso mostra o quanto o po<strong>de</strong>r do produto da ciência e da tecno-<<strong>br</strong> />

logia po<strong>de</strong>m se tornar-se maiores que o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> quem o cria. Mostra<<strong>br</strong> />

também como é fácil per<strong>de</strong>r o controle so<strong>br</strong>e o que foi criado ou ficar<<strong>br</strong> />

paralisado frente aos dilemas gerados pelo seu uso in<strong>de</strong>vido. De acordo<<strong>br</strong> />

com Davies 7 , Dr. Victor apren<strong>de</strong> como po<strong>de</strong> ser perigosa a aquisição <strong>de</strong><<strong>br</strong> />

conhecimentos científicos. A consciência <strong>de</strong>ssa fragilida<strong>de</strong> do homem<<strong>br</strong> />

como homo faber não é percebida até que a o<strong>br</strong>a é concluída. Posterior-<<strong>br</strong> />

mente é que a socieda<strong>de</strong> ou a humanida<strong>de</strong> começa a perceber os efeitos<<strong>br</strong> />

nocivos e funestos <strong>de</strong> muitas tecnologias e a sofrer as consequências,<<strong>br</strong> />

enquanto os criadores tentam <strong>de</strong>sesperadamente domar <strong>sua</strong> criação.<<strong>br</strong> />

Basta recordar que a mesma energia nuclear que é hoje utilizada na<<strong>br</strong> />

radioterapia para a cura do câncer foi a mesma que dizimou milhares<<strong>br</strong> />

<strong>de</strong> pessoas em Hiroshima e Nagasaki 11 . É nesse panorama que se chama<<strong>br</strong> />

a atenção para a responsabilida<strong>de</strong> tão urgente, como diz Edgar Morin 9 :<<strong>br</strong> />

“A questão da responsabilida<strong>de</strong> do investigador perante a socieda<strong>de</strong> é,<<strong>br</strong> />

portanto, uma tragédia histórica, e seu terrível atraso em relação á ur-<<strong>br</strong> />

gência torna-a ainda mais urgente.”<<strong>br</strong> />

O alerta so<strong>br</strong>e a responsabilida<strong>de</strong><<strong>br</strong> />

Em 1979, o filósofo alemão Hans Jonas, escreve <strong>sua</strong> o<strong>br</strong>a O prin-<<strong>br</strong> />

cipio responsabilida<strong>de</strong>: ensaio <strong>de</strong> uma ética para a civilização tecnológica,<<strong>br</strong> />

<strong>de</strong>monstrando que os perigos da ciência sem consciência não estão ape-<<strong>br</strong> />

nas nos sonhos e na criativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Mary</strong> <strong>Shelley</strong>, mas sim no meio <strong>de</strong><<strong>br</strong> />

nossa socieda<strong>de</strong>. Cerca <strong>de</strong> vinte anos <strong>de</strong>pois, o texto <strong>de</strong> Hans Jonas,<<strong>br</strong> />

atualíssimo, serve aqui <strong>de</strong> suporte para a discussão da responsabilida<strong>de</strong><<strong>br</strong> />

na pesquisa científica.<<strong>br</strong> />

No romance, Dr. Victor, ao ser resgatado por um navio, conhece<<strong>br</strong> />

o capitão Robert Walton, que viaja pelos oceanos gelados também em<<strong>br</strong> />

busca <strong>de</strong> conhecimentos e <strong>de</strong> glória. Ao perceber essa tendência, Dr.<<strong>br</strong> />

Victor é veemente em <strong>sua</strong> fala: “Não hei <strong>de</strong> conduzi-lo, in<strong>de</strong>feso e apai-<<strong>br</strong> />

xonado, exatamente como eu era então, a <strong>sua</strong> <strong>de</strong>struição e inevitável<<strong>br</strong> />

<strong>de</strong>sgraça. Aprenda comigo – se não com meus preceitos, ao menos com<<strong>br</strong> />

o meu exemplo – o quão perigosa é a aquisição <strong>de</strong> conhecimento...”<<strong>br</strong> />

Nesse momento, em que já tem consciência <strong>de</strong> seus atos e já sofreu<<strong>br</strong> />

as consequências <strong>de</strong> <strong>sua</strong> ânsia <strong>de</strong>smedida, o Dr. Victor tem condições <strong>de</strong><<strong>br</strong> />

perceber que os novos tipos e limites do agir exigem uma ética <strong>de</strong> previ-<<strong>br</strong> />

são e responsabilida<strong>de</strong> compatíveis com esses limites, que seja tão nova<<strong>br</strong> />

Referências<<strong>br</strong> />

1. Glicenstein J. Allotransplantation, literature and movie. Ann Chir Plast<<strong>br</strong> />

Esthet 2007;52(5):509-12.<<strong>br</strong> />

2. <strong>de</strong> La Rocque L; Teixeira LA. <strong>Frankenstein</strong>, <strong>de</strong> <strong>Mary</strong> <strong>Shelley</strong> e Drácula, <strong>de</strong><<strong>br</strong> />

Bram Stoker: gênero e ciência na literatura. Hist Cienc Sau<strong>de</strong> Manguinhos<<strong>br</strong> />

2001;8(1):10-34.<<strong>br</strong> />

Ruiz CR<<strong>br</strong> />

quanto as situações com as quais tem que lidar. Ora, já que a ética tem a<<strong>br</strong> />

ver com o agir, a consequência lógica disso é que a natureza modificada<<strong>br</strong> />

do agir humano também imponha uma modificação na ética 12 . É por<<strong>br</strong> />

esse motivo que Dr. Victor alerta o capitão so<strong>br</strong>e uma reflexão mais<<strong>br</strong> />

profunda so<strong>br</strong>e seu modo <strong>de</strong> ser e <strong>de</strong> pensar o conhecimento humano.<<strong>br</strong> />

Ele prevê que o capitão po<strong>de</strong> seguir o mesmo caminho tortuoso que ele<<strong>br</strong> />

próprio seguiu e tenta <strong>de</strong>sesperadamente traçar um outro caminho para<<strong>br</strong> />

o personagem, evitando que o mesmo caia em tentação como ele.<<strong>br</strong> />

“Não sei se o relato dos meus <strong>de</strong>sastres lhe será útil, mas, quando<<strong>br</strong> />

penso que o senhor está trilhando o mesmo caminho, expondo-se aos<<strong>br</strong> />

mesmos perigos que fizeram <strong>de</strong> mim o que sou, imagino que possa <strong>de</strong>-<<strong>br</strong> />

duzir do meu relato a moral a<strong>de</strong>quada: aquela que possa mostrar-lhe a<<strong>br</strong> />

direção, se for bem sucedido em seu empreendimento, e consolá-lo se<<strong>br</strong> />

falhar”.<<strong>br</strong> />

É claro que nem tudo é previsível e que, <strong>de</strong> acordo com Jonas 12 ,<<strong>br</strong> />

“na questão do cálculo prévio so<strong>br</strong>e progressos futuros, ingressa-se<<strong>br</strong> />

forçosamente em uma zona <strong>de</strong> penum<strong>br</strong>a, na qual não se po<strong>de</strong>m traçar<<strong>br</strong> />

claramente as fronteiras do que é lícito fazer, ou seja, so<strong>br</strong>e o que se<<strong>br</strong> />

assume responsabilida<strong>de</strong>”. Porém, é possível minimizar os riscos e as<<strong>br</strong> />

consequências incluindo a reflexão so<strong>br</strong>e a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma ética<<strong>br</strong> />

da preservação e da proteção, e não só uma ética do progresso e do<<strong>br</strong> />

aperfeiçoamento.<<strong>br</strong> />

Ao pensar no futuro, é preciso pensar no coletivo, <strong>de</strong>ixando o an-<<strong>br</strong> />

tropocentrismo <strong>de</strong> lado e se preocupando com o todo. Para Jonas 12 , o<<strong>br</strong> />

futuro da humanida<strong>de</strong> é o primeiro <strong>de</strong>ver do comportamento coletivo<<strong>br</strong> />

humano na ida<strong>de</strong> da civilização técnica, que se tornou ‘todo-po<strong>de</strong>rosa’<<strong>br</strong> />

no que tange ao seu potencial <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição. Para tanto, o elo entre a<<strong>br</strong> />

responsabilida<strong>de</strong> e a solicitu<strong>de</strong>, a proporcionalida<strong>de</strong> inversa entre o<<strong>br</strong> />

po<strong>de</strong>r e o <strong>de</strong>ver, a ausência da correlação entre direitos e <strong>de</strong>veres e a<<strong>br</strong> />

presença in<strong>de</strong>lével pela existência são aspectos da ética jonasiana que<<strong>br</strong> />

intervém diretamente na socieda<strong>de</strong> atual 10 .<<strong>br</strong> />

Conclui-se, assim, que a saída para o homem atual é o reconhe-<<strong>br</strong> />

cimento <strong>de</strong> <strong>sua</strong>s falhas <strong>de</strong> comportamento por meio da reeducação, da<<strong>br</strong> />

reflexão e <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s conscientes que possam minimizar o hiato entre<<strong>br</strong> />

a força <strong>de</strong> previsão e o po<strong>de</strong>r do agir, evitando os efeitos negativos da<<strong>br</strong> />

tecnologia e da ciência so<strong>br</strong>e a humanida<strong>de</strong>. Fica claro, neste encerra-<<strong>br</strong> />

mento, que <strong>Frankenstein</strong> é um ícone da saga prometeica, que <strong>de</strong>ixa <strong>sua</strong><<strong>br</strong> />

marca pelo tempo. É uma <strong>mensagem</strong> <strong>perene</strong> do que Jonas 12 nomeia <strong>de</strong><<strong>br</strong> />

‘heurística do temor’, em que “somente a previsível <strong>de</strong>sfiguração do<<strong>br</strong> />

homem nos ajuda a alcançar aquele conceito <strong>de</strong> homem que há <strong>de</strong> ser<<strong>br</strong> />

preservado <strong>de</strong> tais perigos.”<<strong>br</strong> />

3. Kaplan PW. Mind, <strong>br</strong>ain, body, and soul: a review of electrophysiological<<strong>br</strong> />

un<strong>de</strong>rcurrents for Dr. <strong>Frankenstein</strong>. J Clin Neurophysiol 2004;21(4):<<strong>br</strong> />

301-4.<<strong>br</strong> />

4. Netto SP. <strong>Frankenstein</strong> no laboratório mental. Rev Problemas Brasileiros<<strong>br</strong> />

1997;(322):25-33. Disponível em: http://www.sesc-sp.com/sesc/<<strong>br</strong> />

Arq Bras Ciên Saú<strong>de</strong>, Santo André, v.34, n. 3, p. 196-200, Set/Dez 2009<<strong>br</strong> />

199

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