14.04.2013 Views

Frankenstein de Mary Shelley e sua mensagem perene - Nepas.org.br

Frankenstein de Mary Shelley e sua mensagem perene - Nepas.org.br

Frankenstein de Mary Shelley e sua mensagem perene - Nepas.org.br

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Introdução<<strong>br</strong> />

<strong>Frankenstein</strong> é talvez o primeiro e mais famoso trabalho <strong>de</strong> ficção<<strong>br</strong> />

que se volta para o mundo da ciência numa época em que os autores<<strong>br</strong> />

usavam os avanços na Medicina para imaginar práticas diabólicas ou<<strong>br</strong> />

<strong>br</strong>ilhantes cirurgiões que praticavam transplantes <strong>de</strong> mem<strong>br</strong>os 1-4 . A<<strong>br</strong> />

o<strong>br</strong>a ten<strong>de</strong> a reflexões filosóficas intrincadas, influenciadas pela filiação<<strong>br</strong> />

da autora <strong>Mary</strong> <strong>Shelley</strong> e seu marido Percy <strong>Shelley</strong> – fato que a mesma<<strong>br</strong> />

reitera na introdução <strong>de</strong> seu livro: “Não é <strong>de</strong> se admirar que eu, sen-<<strong>br</strong> />

do filha <strong>de</strong> duas céle<strong>br</strong>es personalida<strong>de</strong>s literárias, tivesse muito cedo<<strong>br</strong> />

inclinações para a escrita”. Ou então: “(...) os estudos, sob a forma da<<strong>br</strong> />

leitura ou das tentativas <strong>de</strong> sofisticar-me intelectualmente através do<<strong>br</strong> />

convívio com meu marido, que era bem mais culto do que eu, eram toda<<strong>br</strong> />

a ativida<strong>de</strong> literária em que eu estava envolvida”. <strong>Mary</strong> <strong>Shelley</strong> era uma<<strong>br</strong> />

mulher avançada para seu tempo, uma ouvinte <strong>de</strong>vota das conversas<<strong>br</strong> />

entre seu marido e o amigo da família, Lord Byron, costume esse que<<strong>br</strong> />

fomentou <strong>sua</strong> criativida<strong>de</strong> e culminou no surgimento do romance: “(...)<<strong>br</strong> />

ao longo <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>ssas conversas, várias doutrinas filosóficas foram<<strong>br</strong> />

discutidas – entre outras, o princípio da vida e se havia alguma proba-<<strong>br</strong> />

bilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se chegar à <strong>sua</strong> <strong>de</strong>scoberta e divulgação” 5 .<<strong>br</strong> />

O intuito era escrever uma história <strong>de</strong> terror, assustadora ao ex-<<strong>br</strong> />

tremo e que, como diz a autora, “<strong>de</strong>ixasse o espectador com medo <strong>de</strong><<strong>br</strong> />

olhar ao seu redor, que lhe enregelasse o sangue e lhe acelerasse as<<strong>br</strong> />

batidas do coração”. Esse efeito <strong>de</strong> fato foi alcançado e a história se<<strong>br</strong> />

converteu numa produção cinematográfica* cuja caracterização, mais<<strong>br</strong> />

talvez do que o livro, fez com que <strong>Frankenstein</strong> se tornasse conhecido<<strong>br</strong> />

pelo público do mundo inteiro por várias décadas 4,6 . Todavia, o que nos<<strong>br</strong> />

intriga é o porquê <strong>de</strong>sse enredo se perpetuar década após década. O<<strong>br</strong> />

que há <strong>de</strong> tão mo<strong>de</strong>rno e atual nessa história que faz com que continue<<strong>br</strong> />

sendo vista, lida e comentada por todo esse tempo? Numa leitura mais<<strong>br</strong> />

aprofundada da introdução do romance, a própria <strong>Mary</strong> <strong>Shelley</strong> indica<<strong>br</strong> />

uma pista: “A invenção, precisamos humil<strong>de</strong>mente admiti-lo, não con-<<strong>br</strong> />

siste em criar a partir do nada, mas a partir do caos. A matéria-prima<<strong>br</strong> />

<strong>de</strong>ve estar, em primeiro lugar, à nossa disposição: a criativida<strong>de</strong> po<strong>de</strong><<strong>br</strong> />

dar corpo à substância sem cor e sem forma, mas não é capaz <strong>de</strong> criar a<<strong>br</strong> />

substância em si”. Nesse caso, a substância <strong>de</strong> que <strong>Mary</strong> <strong>Shelley</strong> fala é<<strong>br</strong> />

da ciência e seus avanços, tema que se mantém sempre atual e que serve<<strong>br</strong> />

<strong>de</strong> subsídio para <strong>sua</strong> o<strong>br</strong>a. O fato <strong>de</strong> ouvir as conversas tanto so<strong>br</strong>e as<<strong>br</strong> />

técnicas científicas que eram discutidas nos séculos 17 e 18 sinalizando<<strong>br</strong> />

para a origem da ciência e experimentação, quanto so<strong>br</strong>e a construção<<strong>br</strong> />

dos fundamentos so<strong>br</strong>e os quais várias das experiências médicas sub-<<strong>br</strong> />

sequentes foram realizadas, influenciou a escritora em <strong>sua</strong> criação 7 . O<<strong>br</strong> />

motor da história é sem dúvida a <strong>de</strong>senfreada busca e ansieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> co-<<strong>br</strong> />

nhecimento do Dr. Victor <strong>Frankenstein</strong>, que <strong>de</strong> personagem principal<<strong>br</strong> />

da trama, passa a um papel secundário na mente e na concepção dos<<strong>br</strong> />

espectadores que empo<strong>de</strong>ram a criatura <strong>de</strong> uma imagem ficcional tão<<strong>br</strong> />

possante passando a chamá-lo <strong>de</strong> <strong>Frankenstein</strong>, não sendo este, no en-<<strong>br</strong> />

tanto, o nome do monstro, mas sim <strong>de</strong> seu criador 2 . O romance nos<<strong>br</strong> />

* Kenneth Branagh, director. <strong>Mary</strong> <strong>Shelley</strong>’s <strong>Frankenstein</strong>. Tristar Pictures, 2004.<<strong>br</strong> />

Ruiz CR<<strong>br</strong> />

mostra, em primeiro lugar, um homem se<strong>de</strong>nto <strong>de</strong> conhecimento que<<strong>br</strong> />

<strong>de</strong>dica <strong>sua</strong> vida a essa busca, e que ao mesmo tempo se <strong>de</strong>para com o<<strong>br</strong> />

po<strong>de</strong>r que lhe é conferido quando se <strong>de</strong>sco<strong>br</strong>e <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> tanto conhe-<<strong>br</strong> />

cimento. Em <strong>sua</strong> jornada, esquece <strong>de</strong> <strong>sua</strong> condição humana e passa a<<strong>br</strong> />

uma condição doentia <strong>de</strong> criador que não me<strong>de</strong> esforços para alcançar<<strong>br</strong> />

seus objetivos e provar <strong>sua</strong> autorida<strong>de</strong> e seu po<strong>de</strong>r. Ao concluir <strong>sua</strong><<strong>br</strong> />

o<strong>br</strong>a, porém, envergonha-se <strong>de</strong> seus atos e tenta se livrar da horrível<<strong>br</strong> />

criatura que resulta <strong>de</strong> <strong>sua</strong> criação. No fim, arrepen<strong>de</strong>-se totalmente e<<strong>br</strong> />

em conversa com o capitão que o salva no meio do oceano, alerta-o<<strong>br</strong> />

para os perigos da se<strong>de</strong> infindável <strong>de</strong> conhecimento e po<strong>de</strong>r que po<strong>de</strong><<strong>br</strong> />

levar o homem à loucura e a <strong>de</strong>sgraça. Este artigo propõe uma discus-<<strong>br</strong> />

são acerca dos avanços tecnológicos e a atitu<strong>de</strong> humana frente à ciência<<strong>br</strong> />

e tecnologia fundamentada na ética da responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Hans Jonas<<strong>br</strong> />

e na crítica so<strong>br</strong>e o uso <strong>de</strong>smedido da tecnologia.<<strong>br</strong> />

A obsessão pelo conhecimento<<strong>br</strong> />

“Tanto já foi feito, exclamou a alma <strong>de</strong> <strong>Frankenstein</strong> – mais, muito<<strong>br</strong> />

mais é o que alcançarei; seguindo os passos que já foram dados, serei<<strong>br</strong> />

pioneiro num outro caminho, explorarei po<strong>de</strong>res <strong>de</strong>sconhecidos e reve-<<strong>br</strong> />

larei ao mundo os mais profundos mistérios da criação”.<<strong>br</strong> />

Durante <strong>sua</strong> estada na universida<strong>de</strong>, o Dr. Victor <strong>Frankenstein</strong><<strong>br</strong> />

mostra um entusiasmo na busca <strong>de</strong> novos conhecimentos que se torna<<strong>br</strong> />

doentio e obsessivo, afastando-o <strong>de</strong> tudo e <strong>de</strong> todos e transformando-o<<strong>br</strong> />

num homem que vai ao extremo da loucura em nome <strong>de</strong> <strong>sua</strong>s pesqui-<<strong>br</strong> />

sas. Ele reconhece a sedutora excitação da <strong>de</strong>scoberta científica 7 . Como<<strong>br</strong> />

diz Von Zuben 8 , em virtu<strong>de</strong> da tecnociência, o homem é contempla-<<strong>br</strong> />

do com superpo<strong>de</strong>res, o que lhe propicia intenso sentimento <strong>de</strong> eufo-<<strong>br</strong> />

ria pela conquista, tendo como resultado a crença ingênua <strong>de</strong> que as<<strong>br</strong> />

tecnociências resolverão todos os problemas da humanida<strong>de</strong>. Para o<<strong>br</strong> />

personagem, nada é indigno, profano, intolerável, para que seus pres-<<strong>br</strong> />

supostos sejam testados. Em nome do progresso <strong>de</strong> seu trabalho, viola<<strong>br</strong> />

túmulos, <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> comer e dormir, afasta-se <strong>de</strong> seus parentes e amigos,<<strong>br</strong> />

viola regras da universida<strong>de</strong>, e consi<strong>de</strong>ra todas essas ações pertinentes<<strong>br</strong> />

para alcançar seus objetivos. “(...) eu parecia ter perdido minha alma e<<strong>br</strong> />

toda a sensibilida<strong>de</strong> ao que fosse exterior àquela busca”.<<strong>br</strong> />

Dr. Victor se torna cego e sem limites. De acordo com De La<<strong>br</strong> />

Rocque e Teixeira 2 , é essa crítica à falta <strong>de</strong> balizamento ético da ciên-<<strong>br</strong> />

cia, traduzida na ambição <strong>de</strong>smedida <strong>de</strong> conhecimento materializada<<strong>br</strong> />

no personagem o que mais chama atenção na o<strong>br</strong>a. No filme, isso fica<<strong>br</strong> />

explícito por <strong>sua</strong> pesquisa não ser submetida à comunida<strong>de</strong> científica e<<strong>br</strong> />

acadêmica, pela não-aprovação <strong>de</strong> <strong>sua</strong>s idéias pelo professor que antes o<<strong>br</strong> />

incentivava, e pelo segredo que o mesmo tem so<strong>br</strong>e seu estudo, ao invés<<strong>br</strong> />

<strong>de</strong> compartilhá-lo com os <strong>de</strong>mais. Esses pontos são exemplos <strong>de</strong> como<<strong>br</strong> />

<strong>sua</strong> pesquisa estava em total <strong>de</strong>sacordo com a ética, sendo o tempo todo<<strong>br</strong> />

regida pela ambição <strong>de</strong> glória pessoal. A contenção do conhecimento<<strong>br</strong> />

e <strong>sua</strong> exclusão <strong>de</strong> um fórum social on<strong>de</strong> os prós e os contras po<strong>de</strong>m<<strong>br</strong> />

ser discutidos e refletidos não é uma imagem totalmente fictícia. Para<<strong>br</strong> />

Arq Bras Ciên Saú<strong>de</strong>, Santo André, v.34, n. 3, p. 196-200, Set/Dez 2009<<strong>br</strong> />

197

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!