na qual infiéis muçulmanos atocharam fiéis cristãos - Inteligência
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88 ENTARDECER<br />
NA QUAL INFIÉIS MUÇULMANOS<br />
ATOCHARAM FIÉIS CRISTÃOS
Nesses tempos bicudos em que vivemos, não é difícil imagi<strong>na</strong>r que todo<br />
o muçulmano decentemente informado sente engulhos estomacais só em<br />
ouvir a menção do termo “Cruzada”. A comunidade judaica, aliás, poderia<br />
justificadamente irma<strong>na</strong>r-se em similar mal-estar, pois, tanto <strong>na</strong> Europa<br />
quanto <strong>na</strong> Terra Santa, as mobilizações para as Cruzadas realimentaram<br />
violentas perseguições contra judeus, contidas aqui e ali pelas autoridades<br />
eclesiásticas, ao que parece, mais preocupadas em restaurar a ordem do que<br />
verdadeiramente solidárias quanto às crueldades cometidas contra os filhos<br />
de Abraão.<br />
Logo após o episódio do 11 de Setembro, o presidente dos Estados<br />
Unidos apareceu diante das câmeras e, tal <strong>qual</strong> um São Ber<strong>na</strong>rdo de<br />
Clairvaux revivido – evidentemente desprovido do talento oratório do santo,<br />
que segundo dizem os cronistas era notável - pregou a “Cruzada” pela<br />
defesa da liberdade e contra o terrorismo. O presidente certamente falou<br />
de improviso. Creio que todos os assessores presidenciais do mundo<br />
apreciariam que seus ministérios de ciência e tecnologia fornecessem um<br />
aparelho que, uma vez plugado nos presidentes, produzisse um violento<br />
choque elétrico, toda a vez que suas excelências resolvessem se aventurar<br />
no improviso. Como o tal dispositivo ainda não foi inventado – ou, caso<br />
exista, encontra-se constitucio<strong>na</strong>lmente indisponível – sobrou para os assessores<br />
presidenciais dizer ao presidente dos Estados Unidos para não<br />
repetir o termo “Cruzada” em seus pronunciamentos, a não ser que desejasse<br />
de imediato contar com a repulsa de boa parte dos milhões de <strong>muçulmanos</strong><br />
do mundo, elimi<strong>na</strong>ndo <strong>qual</strong>quer solidariedade inicial pelas vítimas inocentes<br />
produzidas pelo 11 de Setembro.<br />
A opção adotada acabou sendo “Guerra contra o terrorismo”, que passou<br />
a ser martelada <strong>na</strong> mídia insistentemente, justificou a guerra no Afeganistão,<br />
a invasão do Iraque, as prisões de Abu Graib, Guanta<strong>na</strong>mo e os<br />
cárceres clandestinos da CIA especialmente <strong>na</strong> Europa e no Paquistão<br />
e um polpudo aumento do orçamento de defesa dos Estados Unidos.<br />
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Os episódios históricos, especialmente os momentosos como é o caso das Cruzadas, têm o<br />
hábito de jamais desaparecer da memória coletiva sem deixar vestígios. Assombram as gerações futuras<br />
como uma lembrança nem um pouco vaga de ofensas, crueldades e abusos desmedidos. E nesse cenário<br />
específico, as duas culturas, por meio da menção de meras palavras – porém recheadas de robustos significados<br />
– são capazes de causar mal-estar recíproco imediato. Quando os ocidentais se deparam com o termo<br />
Jihad, imediatamente o associam a Guerra Santa, ao fa<strong>na</strong>tismo religioso e a comportamentos extremados<br />
vinculados a obscurantismo. Pouco importa o denodo dos especialistas tentando explicar que, a princípio, o<br />
conceito de Jihad tem sua relevância no sentido de uma luta interior que o crente deve travar para alcançar<br />
a “fé perfeita” e assim concretizar sua mais absoluta submissão à vontade de Deus – pois Islã, como todos<br />
sabemos, significa “submissão”. Este seria, a “Jihad Maior”, um encontro eminentemente pessoal com a fé.<br />
Existe ainda, a “Jihad Menor”, esse, sim, o esforço que os <strong>muçulmanos</strong> devem empreender para levar a<br />
mensagem de Deus para aqueles que a desconhecem.<br />
Contudo, os povos do Ocidente só conseguem perceber a Menor, não dando a mínima importância para a<br />
Maior. Assim, às mentes do senso comum ocidental e muçulmano, o termos “Jihad” e “Cruzada”, causam<br />
idênticos sentimentos de sobressalto e hostilidade. Não há dúvida que auxiliam a alimentar o “choque de<br />
civilizações” mencio<strong>na</strong>do faz uns 25 anos com algum estardalhaço por Samuel Hutington e, de um modo ou de<br />
outro, servem como justificativa para dar suporte aos grupos políticos radicais, ditos fundamentalistas, que<br />
tentam convencer os povos islâmicos a levantarem-se contra seus próprios governos, acusados de <strong>in<strong>fiéis</strong></strong> e de<br />
falsos <strong>muçulmanos</strong>, que contam com o apoio dos “cruzados ocidentais” – idéia inevitavelmente presente nos<br />
comunicados de Osama Bin Laden, por exemplo. Segundo essa tese, o mundo, incluindo o Islã, estaria<br />
prisioneiro de uma nova jahilyya, palavra que desig<strong>na</strong> o “estado de ignorância” em que vivia a humanidade<br />
antes da difusão da mensagem de Deus sussurrada pelo anjo Gabriel junto ao ouvido do profeta Maomé. A<br />
jahillya estaria então de volta, e a razão de as coisas não irem bem para os <strong>muçulmanos</strong> nos últimos tempos<br />
é precisamente causada por este afastamento e esquecimento de Deus.
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O Islã está em toda a parte. A última guerra travada no Sul do Líbano, causou surpresa para muitos<br />
brasileiros ao se aperceberem a quantidade de conterrâneos que residem ou mantêm fortes laços com sua<br />
velha terra. O governo do Brasil, mesmo dispondo de parcos recursos, não fugiu à sua responsabilidade e<br />
prestou toda a ajuda possível a esses cidadãos. Muitos deles são <strong>muçulmanos</strong>. Porém, ainda que saibamos<br />
que existem comunidades islâmicas em todos os países civilizados do planeta, lembremos que a totalidade<br />
das <strong>na</strong>ções majoritariamente islâmicas se localiza no Terceiro Mundo. Tarik Ali, escritor paquistanês, dotado<br />
de adequado estilo literário e com muitas de suas obras publicadas no Brasil, ressalta insistentemente a<br />
presença de um forte sentimento de humilhação dissemi<strong>na</strong>do entre as massas dos países <strong>muçulmanos</strong> em<br />
relação ao Ocidente. O triunfo europeu que se consolidou em fins do século XVIII e ao longo do século XIX,<br />
construiu o conjunto de situações político-econômicas que materializou a oportunidade de uma tutela ocidental<br />
sobre as velhas terras do Islã.<br />
Para os <strong>muçulmanos</strong>, de <strong>na</strong>da adiantou invocar as glórias de seu passado brilhante, a superioridade de<br />
seus poetas, a certeza da veracidade de sua religião revelada. Superados pela tecnologia, economia, máqui<strong>na</strong>s<br />
e capacidade implacável de gerenciar a morte e a destruição em grande escala da parte dos dispositivos<br />
militares dos potentados ocidentais, durante boa parte da era contemporânea, viram-se relegados a mais<br />
dura insignificância política. As tentativas de reação, levadas a cabo após o fim da Segunda Guerra Mundial<br />
com os movimentos de descolonização e as lutas de libertação <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, não obraram ainda em anular as<br />
diferenças e as vantagens materiais do Ocidente desenvolvido. Não obstante alguns países árabes e o Irã<br />
“boiarem” em um mar de petróleo e “flutuarem” em meio a densas nuvens de valioso gás <strong>na</strong>tural, os<br />
processos de independência <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l e modernização desses países não libertou seus povos da pobreza e do<br />
atraso – <strong>na</strong> verdade, em alguns lugares a situação até piorou. Dessa maneira, o tal sentimento de humilhação<br />
descrito por Tarik Ali persiste impávido. O discurso que atribui aos “cruzados ocidentais” importantes fatias<br />
de culpa <strong>na</strong> eternização desse estado de coisas, continua desfrutando de imensa popularidade.<br />
É por isso que para muitos <strong>muçulmanos</strong>, a política america<strong>na</strong>, a cupidez alimentada pelo petróleo, a<br />
invasão do Iraque, Israel, a globalização, a postura “dois pesos, duas medidas” da ONU são interpretadas<br />
como “farinha do mesmo saco”. Vive-se no seio de um sistema inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l firmemente alicerçado numa<br />
“aliança cruzado-sionista” que tutela cruelmente os países do Terceiro Mundo e, entre eles, as terras<br />
muçulma<strong>na</strong>s. Obviamente que podemos considerar uma avaliação como essa como uma espécie de delírio,<br />
fruto de manipulação política ou de um entendimento exageradamente parcial dos acontecimentos. O que<br />
não se pode negar é a popularidade deste tipo de ponto de vista. Ele predomi<strong>na</strong> nos bazares de todo o Oriente<br />
Médio, no bate-papo após as orações <strong>na</strong>s mesquitas e, até mesmo, <strong>na</strong>s palavras desaforadas proferidas<br />
contra as autoridades em meio a uma das espetaculares bebedeiras do ator-diretor Mel Gibson.<br />
A nossa é uma história de como as coletividades trabalham referências históricas à luz de suas questões<br />
e inquietações hodier<strong>na</strong>s. Isso evidentemente não é uma novidade, mas creio que pode nos ensejar um<br />
exercício de algum modo esclarecedor. Os <strong>muçulmanos</strong>, especialmente os árabes-<strong>muçulmanos</strong>, em face das<br />
suas agruras da modernidade, imagi<strong>na</strong>ndo modalidades possíveis para encerrar seu longo período de humilhação,<br />
sonham com Hattin.<br />
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Nos dias 3 e 4 de julho de 1187, num lugar ao Norte da Palesti<strong>na</strong> denomi<strong>na</strong>do “os Cornos de<br />
Hattin”, o exército do reino latino de Jerusalém, tendo à frente o rei Guy de Lusig<strong>na</strong>n, foi fragorosamente<br />
derrotado pelas forças muçulma<strong>na</strong>s combi<strong>na</strong>das do Egito, Síria e Mossul lideradas pelo sultão Saladino. A<br />
vitória de Hattin foi um episódio decisivo para pôr fim a uma humilhação que durava 88 anos, quando em 1099,<br />
Godofredo, duque da Baixa-Lore<strong>na</strong>, liderara o assalto e a tomada da cidade santa de Jerusalém, consolidando<br />
a permanência dos Estados latinos – o reino de Jerusalém, o condado de Trípoli, no litoral do atual Líbano, o<br />
principado de Antioquia e o condado de Edessa – no território da então chamada Grande Síria. A Primeira<br />
Cruzada fora vitoriosa porque chegara ao Oriente num momento de grave divisão intesti<strong>na</strong> do mundo islâmico.<br />
O poder do califa sunita de Bagdá tor<strong>na</strong>ra-se meramente formal; a força militar dos turcos de seldjuk<br />
fenecia; o califado fatímida (xiita) do Egito se encontrava em vertiginosa decadência; os emires da Síria,<br />
divididos, lutavam entre si semelhantes a escorpiões da<strong>na</strong>dos, visando exclusivamente a assegurar seus<br />
parcos <strong>na</strong>cos de poder.<br />
Em Hattin, 88 anos depois, foi possível graças a divisões muito parecidas que começaram a se sedimentar<br />
no campo latino e, de acordo com os cronistas, em virtude da notável engenharia política do sultão Saladino.<br />
Quando os árabes, hoje em dia, sonham com Hattin, de imediato, sonham também com um novo Saladino.<br />
Saladino pertencia a um clã guerreiro curdo, os Ayyúbidas, castelãos de Tikrit, que serviam aos poderosos<br />
chefes militares turcos, os atabegs de Mossul, especialmente ao grande Nur al-Din. No ano provável de seu<br />
<strong>na</strong>scimento, 1138 d.C, recebeu o nome de Yûsuf, que entrava <strong>na</strong> composição do nome completo, Salah al-Din<br />
Yûsuf bin Ayyub. É interessante lembrar que quando o presidente do Iraque, Saddam Hussein, tentava incorporar<br />
“contornos saladínicos” à sua pessoa, a propaganda gover<strong>na</strong>mental insistia em reafirmar que o presidente<br />
<strong>na</strong>scera <strong>na</strong> mesma cidade que fora o berço de Salah al-Din, Tikrit. Naturalmente, o fato de Saddam ser<br />
árabe e do antigo herói ser de procedência curda era convenientemente deixado de lado.<br />
Muito embora tenha <strong>na</strong>scido no Curdistão, logo o clã de Ayyub, seguindo as ordens de seus suseranos,<br />
transferiu-se para Damasco, carregando armas, bagagens e toda a sua prole, incluindo Saladino. Os cronistas<br />
afirmam que mais do que um curdo, Saladino sentia-se um verdadeiro damasceno, pois foi nessa cidade<br />
antiga e famosa que passou boa parte de sua infância, adolescência e recebeu sua educação. Como membro<br />
do clã Ayyub, Saladino mereceu as tintas de uma educação aristocrática. Antes de mais <strong>na</strong>da, aprender a ler<br />
e escrever para ser familiarizado com a Revelação Divi<strong>na</strong> contida no Corão. O ensi<strong>na</strong>mento religioso, o<br />
detalhado conhecimento sobre os conteúdos do “livro dos livros, era imprescindível. Ao que tudo indica, uma<br />
das virtudes de Saladino era sua devoção religiosa. Seus apologistas apreciam propalar que, mesmo sendo<br />
religioso e observador estrito dos rituais <strong>muçulmanos</strong>, Saladino jamais dera guarida para <strong>qual</strong>quer tipo de<br />
fa<strong>na</strong>tismo. A sinceridade e seriedade com que lidava com os assuntos da religião serviam de esteio para sua<br />
liderança e, especialmente, sua popularidade.<br />
A equitação não podia se ausentar no currículo de um futuro emir. Embora não houvesse <strong>na</strong>da de errado<br />
com os pacatos e resistentes camelos, os aristocratas do Islã, em todas as épocas, amavam seus cavalos.<br />
Cobriam os animais das mais tocantes atenções, atentos à sua alimentação, ao estado dos cascos e patas e<br />
às condições das estrebarias. Na literatura islâmica medieval, é muito freqüente a menção ao modo pelo <strong>qual</strong>
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a aristocracia era entusiasta do jogo de pólo. Jogar pólo era uma maneira viril e divertida de trei<strong>na</strong>r equitação.<br />
Como o gosto pela atividade era vivamente difundida entre a nobreza damasce<strong>na</strong>, podemos imagi<strong>na</strong>r o jovem<br />
Saladino entretido em animadas partidas de pólo.<br />
Mas, com todo o deleite que a equitação poderia causar, montar cavalos era acima de tudo uma atividade<br />
de preparação para a guerra. Diferentemente dos cavaleiros ocidentais, que usavam suas montarias – de<br />
preferência, os grandes garanhões de batalha – para o choque, os <strong>muçulmanos</strong> eram trei<strong>na</strong>dos no que era<br />
chamado de “estilo de guerra dos partas”. Os partas, que <strong>na</strong> antiguidade controlavam a velha Pérsia e parte<br />
do Iraque, adotaram para si a modalidade de combate de cavalaria dos povos das estepes, tais como os hunos,<br />
os turcos e os mongóis. Montando cavalos pequenos e velozes, usando blindagem corporal leve, enfatizavam<br />
a velocidade, e não o choque. O método de luta parta utilizava a combi<strong>na</strong>ção mortal do cavaleiro a disparar<br />
do alto de sua cela setas por meio de um pequeno, porém certeiro e resistente arco compósito. Evitavam o<br />
ataque no centro da linha inimiga, dando preferência a acometer pelas alas. Disparavam quando chegavam no<br />
alcance das setas, disparavam novamente no momento que estancavam o cavalo para dar a volta e, fi<strong>na</strong>lmente,<br />
disparavam uma vez mais quando começavam a recuar – este último, um tiro particularmente difícil, pois<br />
significava um disparo com o cavaleiro com o tronco virado para trás <strong>na</strong> cela. Após termi<strong>na</strong>da a correria e<br />
rodopio, reagrupavam para acometer de novo. A intenção era dissolver a coesão do inimigo, atarantando-o<br />
com uma chuva ininterrupta de setas mortais. Uma vez disperso, os cavaleiros podiam atacar com lanças e<br />
espadas, contando com a ajuda de sua própria infantaria.<br />
O leitor há de imagi<strong>na</strong>r que o espetáculo de três ou quatro linhas, cada uma delas com cente<strong>na</strong>s de<br />
cavaleiros armados com arco compósito, evoluindo e disparando organizadamente, deveria ser algo admirável<br />
de se assistir – especialmente se não estivermos entre os alvos do ataque. A luta com espadas, lanças,<br />
dardos e o difícil manejo do arco compósito devia constar <strong>na</strong> lista de aprendizado de um jovem aristocrata<br />
como Saladino.<br />
A trilha que Saladino seguiu para conquistar a liderança política e destacar-se como um adversário<br />
competente do domínio latino <strong>na</strong> Grande Síria não foi aberta exclusivamente por ele. Antes dele, Zengi, o<br />
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atabeg turco de Mossul e seu filho Nur al-Din haviam se destacado como terríveis adversários dos Estados<br />
cruzados. Zengi, durante seu período, contivera vitoriosamente <strong>qual</strong>quer expansão dos cruzados à custa de<br />
território controlado pelos <strong>muçulmanos</strong>. Nur al-Din, por seu turno, foi decisivo em provocar o fracasso da<br />
Segunda Cruzada e, no ano de 1149, derrotou decisivamente a soberba cavalaria cristã do principado de<br />
Antioquia <strong>na</strong> batalha de I<strong>na</strong>b. Raymond de Poitiers, o príncipe de Antioquia, foi morto <strong>na</strong> refrega. Nur al-Din<br />
enviou sua cabeça como um regalo ao califa em Bagdá. Tudo indica que tanto Zengi quanto Nur al-Din<br />
compreenderam o prestígio político, celebridade e fama que amealhavam no mundo muçulmano ao assumirem<br />
a postura de campeões da fé e líderes da Jihad contra os reinos latinos do Oriente. Na condição de turcos,<br />
jamais poderiam esperar alcançar o título supremo de califa, mas certamente cabia ao califa titular reconhecer<br />
seus esforços como Defensores dos Crentes, atribuindo-lhes o título de sultão, isto é, comandante militar<br />
– uma palavra em todo caso de origem turca.<br />
A carreira de Saladino como líder político e guerreiro se iniciou à sombra de seu tio, Shirkuh. Uma das<br />
facções do Egito fatímida, incapaz de obter a vitória sobre seus adversários em meio a uma longa crise<br />
palacia<strong>na</strong>, pede auxílio a Nur al-Din. Este resolve intervir, enviando uma força de aproximadamente sete mil<br />
mamelucos e cavaleiros turcos liderados por Shirkuh. Saladino acompanhou o tio como um de seus ajudantes<br />
de campo. Contava 28 anos de idade.<br />
A interferência dos enviados de Nur al-Din contribuiu decisivamente para pôr um fim às lutas inter<strong>na</strong>s<br />
fatímidas. Mais do que isso, encerrou de vez o próprio califado xiita, substituindo-o por um novo governo,<br />
tendo Shirkuh como vizir, Nur al-Din como sultão e reconhecendo a supremacia do califa sunita de Bagdá, isto<br />
é, uma vez convidadas, as raposas não tardaram a se assenhorar do galinheiro.
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Shirkuk, porém, susteve as rédeas do poder no Egito por pouco tempo. Com sua morte, foi<br />
substituído no vizirato por seu sobrinho, Saladino. A regência do Egito em nome de seu senhor, Nur al-Din, foi<br />
a primeira experiência de Saladino como gover<strong>na</strong>nte de fato. O novo vizir eliminou taxas abusivas que eram<br />
cobradas pelos velhos vizires fatímidas. As costumeiras, contudo, determinou que fossem escrupulosamente<br />
recolhidas ao tesouro. Conta-se que dava o exemplo, comportando-se como um gover<strong>na</strong>nte austero e sério.<br />
O fausto das cortes orientais, o luxo descrito nos contos das mil e uma noites não eram de seu gosto. Vestiase<br />
com simplicidade, jamais ostentava jóias, apreciava boa comida, mas <strong>na</strong>da de extravagâncias em sua<br />
mesa. Observava zelosamente os rituais islâmicos da oração e presenteava os pobres que se agluti<strong>na</strong>vam <strong>na</strong>s<br />
suas portas com a esmola regulamentar.<br />
Logo começou a administrar o Egito como se Nur al-Din não existisse. Esse poderia ser um passo perigoso,<br />
mas Saladino tinha lá suas cautelas. O braço de seu senhor estava longe, e os mamelucos e turcos do exército<br />
de Nur al-Din que vieram para o Egito com Shirkuk há muito recebiam as tâmaras e as dádivas diretamente<br />
das mãos de Saladino. O Egito era rico, e quando gozava de bom governo, tor<strong>na</strong>va-se mais proveitoso ainda.<br />
Isso permitia que Saladino enviasse com regularidade presentes para os emires do norte – da Síria, do Iraque,<br />
Ásia Menor, da Arábia e do Iêmen, não deixando de cumular o califa de Bagdá de dádivas para manifestar seu<br />
respeito.<br />
Quando, no ano de 1174, Nur al-Din veio a falecer, Saladino já se achava <strong>na</strong> prática como sultão do Egito.<br />
O herdeiro do velho líder, al-Salih, era uma criança. Caso lhe fosse permitido chegar à idade adulta, os<br />
Estados em torno de Mossul, Damasco, Alepo e os territórios da Ásia Menor lhe forneceriam poder suficiente<br />
para contestar a posição de Saladino no Egito. Mas o pobre al-Salih <strong>na</strong>da mais era do que uma criança. Sem<br />
emires poderosos a sustentar sua posição, dificilmente herdaria alguma coisa. Saladino, nesse episódio,<br />
demonstrou todo o seu senso de oportunidade. Tal como um raio, reuniu seus guerreiros e partiu em direção<br />
ao norte. Contando com a retaguarda dos recursos econômicos do Egito, angariou o apoio de vários emires<br />
nortistas contra o herdeiro. Nos anos seguintes, uma a uma, as cidades de Mossul, Damasco e Alepo cairiam<br />
em suas mãos. Estendeu seu domínio sobre todos os territórios que antes eram controlados pelos seu antigo<br />
senhor. Ninguém mais teria notícias do paradeiro de al-Salih, e foi assim que se encerraram os dias da<br />
gloriosa casa de Zengi.<br />
Quanto ao califa de Bagdá, nenhuma outra saída lhe restava a não ser reconhecer formalmente o poder<br />
conquistado por Saladino. Ao mesmo tempo, o novo sultão assumiu a responsabilidade quanto à dura luta<br />
contra os Estados latinos do Oriente. Uma olhadela no mapa revela que os cruzados estavam em maus<br />
lençóis. Seus Estados se encontravam totalmente envolvidos por territórios controlados por Saladino. As<br />
relações entre os adversários era sinuosa. Escaramuças e hostilidades eram pausadas por longos períodos de<br />
trégua. Ao longo do período, Saladino comemorou êxitos mas também amargou algumas derrotas.<br />
Mas o rei de Jerusalém e seus vassalos não dispunham de força suficiente para desafiar Saladino. Nesse<br />
sentido, a tática mais correta era a de cair <strong>na</strong> defensiva, confiando que a integridade de seus domínios fosse<br />
garantida pelo controle da grande rede de castelos. A forças móveis só deveriam ser usadas com o fito de<br />
socorrer fortalezas assediadas pelo inimigo. Saladino, de seu lado, só atacaria quando reunisse poder sufi-<br />
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cientemente vasto para tanto. Uma guerra geral contra os Estados cruzados implicava um sem-número de<br />
assédios a castelos, obtenção de máqui<strong>na</strong>s de guerra e capacidade fi<strong>na</strong>nceira para manter um grande<br />
exército mobilizado por um longo período. Ao mesmo tempo, o sultão precisava de forças adicio<strong>na</strong>is para<br />
manter seus vastos domínios sossegados, o que nem sempre era fácil. Via-se assim impedido de empregar<br />
todo o seu poder contra os cruzados.<br />
Para Saladino, tudo se tor<strong>na</strong>ria mais simples se conseguisse atrair o exército de Jerusalém para uma<br />
batalha em circunstâncias que lhe fossem favoráveis, destruí-lo, capturar os principais próceres da nobreza e,<br />
se possível, o próprio rei. Uma vez elimi<strong>na</strong>do o exército e os dig<strong>na</strong>tários, as cidades cairiam em suas mãos com<br />
muito mais facilidade, poupando seus recursos de sustentar sítios dispendiosos. Em outras palavras, o sultão<br />
precisava de um rei de Jerusalém muito desastrado, dotado de uma incompetência militar escandalosa e que<br />
atuasse de modo totalmente inverso aos seus interesses e bom senso. Caso Saladino tenha orado por isso,<br />
encontrou a resposta para suas preces <strong>na</strong> figura do rei Guy de Lusig<strong>na</strong>n, coadjuvado pelo nobre “trânsfuga”<br />
Raymond de Chantillon.<br />
A crise política que produziu a conjuntura cujo ponto culmi<strong>na</strong>nte foi a batalha de Hattin foi obra das<br />
trapalhadas de Ray<strong>na</strong>ld de Chântillon, o senhor de Kerak. Chântillon havia se transferido para a Terra Santa<br />
como membro da Segunda Cruzada. Era valente e um competente líder de homens. Abriu caminho <strong>na</strong> direção<br />
ao topo à custa de intrigas e <strong>na</strong> ponta de sua espada. Mas mesmo seus êxitos só aconteciam após muita bulha<br />
e confusão. Seduziu a princesa de Antioquia e com ela casou-se secretamente. O matrimônio foi cancelado,<br />
pois acontecera sem a autorização do rei Balduíno III de Jerusalém. Acusou o imperador bizantino de não<br />
pagar-lhe uma quantia em dinheiro prometida em recompensa por seus serviços militares. Como compensação,<br />
decidiu invadir Chipre. No entanto, faltava-lhe dinheiro para a empreitada. Resolveu solicitar fundos ao<br />
rico patriarca latino de Antioquia, Aimery de Limoges. O digno prelado recusou-se a colaborar. Chântillon<br />
raptou o patriarca, arrancou-lhe as vestes, untou-o com mel e deixou-o exposto ao sol no topo da cidadela.<br />
Após algumas horas de bronzeamento, Limoges decidiu ser razoável e abriu as algibeiras. Chântillon montou<br />
sua expedição contra Chipre, submetendo a ilha à mais célebre e metódica pilhagem de sua extensa história.<br />
Na volta, enquanto promovia o saque contra aldeias <strong>na</strong> Síria, descuidou-se e foi capturado pelos <strong>muçulmanos</strong>.<br />
Aprisio<strong>na</strong>do como refém em Alepo, suportou 17 anos de cativeiro, sendo fi<strong>na</strong>lmente resgatado pela fabulosa<br />
soma de 120 mil di<strong>na</strong>res de ouro.<br />
A longa prisão de modo algum abrandou seu temperamento. Obtendo a posse do poderoso castelo de<br />
Kerak, situado ao Sul da Palesti<strong>na</strong>, organizou uma frota com a fi<strong>na</strong>lidade de atacar os <strong>na</strong>vios de peregrinos<br />
que faziam a rota de Meca no Mar Vermelho. Atacou ainda cidades costeiras <strong>na</strong> Península Arábica. Propalava<br />
aos quatro ventos que seu plano era o de organizar uma expedição contra a própria Meca, pilhar seus<br />
tesouros e incendiar a Caaba. A ousadia desmedida de Chântillon não o impedia e contar com o apoio de<br />
aliados poderosos entre os senhores francos do Oriente, ainda que não fosse difícil de imagi<strong>na</strong>r que as<br />
conseqüências de seus atos poderiam atingir a todos. Kerak era uma base perfeita para interceptar as<br />
carava<strong>na</strong>s que cruzavam a rota entre o Egito e a Síria. Durante o período de uma trégua firmada entre<br />
Saladino e Guy de Lusig<strong>na</strong>n, no ano de 1186, os cavaleiros de Kerak quebraram o trato atacando uma<br />
carava<strong>na</strong> particularmente rica. Saladino solicitou que Chântillon fosse punido, porém, seus aliados se opuseram<br />
violentamente e Lusig<strong>na</strong>n, um rei fraco, que costumava seguir sempre a última opinião que ouvia ou quem<br />
gritava mais alto, furtou-se a cumprir seu dever e punir Chântillon.
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A trégua estava definitivamente rompida. Retomando as hostilidades no ano seguinte,<br />
Saladino reuniu seus emires, mamelucos, curdos e arqueiros turcomanos, invadindo a Galiléia, impondo<br />
assédio contra a cidade de Tiberíades. Ordenou ainda que os beduínos atacassem os campos controlados<br />
pelos senhores latinos, difundindo insegurança <strong>na</strong> retaguarda do adversário. O sultão levantara um exército<br />
excepcio<strong>na</strong>lmente forte para aquela campanha. Ao todo, segundo os cálculos mais prováveis, seguiam seus<br />
estandartes 45 mil homens: 12 mil cavaleiros profissio<strong>na</strong>is – mamelucos, turcomanos e curdos, sendo o resto<br />
constituído de irregulares beduínos e infantaria. Saladino não esperava que os senhores latinos saíssem em<br />
campo para enfrentar um exército desse porte. Contentava-se em tomar Tiberíades e melhorar sua posição<br />
estratégica no norte. O mês de junho de 1187 findava e o verão seguia tórrido.<br />
Para a imensa surpresa do sultão, o rei de Jerusalém resolvera fazer precisamente o que não devia.<br />
Proclamara um arrière ban – um chamamento geral de todos os vassalos às armas. Ao exército de Jerusalém<br />
juntaram-se as forças do condado de Trípoli, do principado de Antioquia, das cidades da costa e dos feudos de<br />
Outrejourdan. As ordens militares religiosas dos cavaleiros do Templo e de São João do Hospital deixaram<br />
peque<strong>na</strong>s guarnições em seus castelos, reunindo-se ao exército com todos os seus cavaleiros e homens-dearmas.<br />
O rei e os grandes senhores alugaram também o serviço de numerosos turcopolos, guerreiros mercenários<br />
do Oriente equipados ao estilo parta. O Rei Guy tinha consigo a força militar total dos Estados latinos:<br />
por volta de 1.200 cavaleiros pesados, 4.000 cavaleiros ligeiros (homens-de-armas e turcopolos) e por volta de<br />
15.000 a 18.000 infantes (entre lanceiros, arqueiros e besteiros). Por esses números, Saladino desfrutava de<br />
uma vantagem de 3 x 2 em relação aos senhores latinos.<br />
Apesar do verão abrasador, o exército partiu <strong>na</strong> direção do norte para levantar o sítio contra Tiberíades.<br />
Raymond, conde de Trípoli, comandava a vanguarda; o rei liderava o centro onde estava o núcleo do exército<br />
de Jerusalém; Ray<strong>na</strong>ld de Chântillon e Balian de Ibelin estavam à frente da retaguarda junto com as ordens<br />
militares, a gente do senhor de Ibelin e os cavaleiros de Kerak. A infantaria marchava <strong>na</strong>s alas do exército,<br />
com o intuito de proteger com seus escudos os grandes cavalos, pois era hábito dos <strong>muçulmanos</strong> realizarem<br />
sortidas repenti<strong>na</strong>s disparando flechas a distância para ferir as montarias do inimigo. Junto com o exército,<br />
como uma garantia de proteção divi<strong>na</strong> e vitória, seguia a Verdadeira Cruz.<br />
Os batedores de Saladino não perdiam de vista os movimentos do exército inimigo. Ao saber de sua<br />
aproximação, deixou uma peque<strong>na</strong> tropa mantendo Tiberíades bloqueada e marchou ao encontro do inimigo.<br />
Lusig<strong>na</strong>n escolheu muito mal o lugar para seu acampamento. Ordenou erguer as tendas próximas a um poço<br />
seco. Domi<strong>na</strong>va sua posição a coli<strong>na</strong> de Hattin, uma elevação rochosa de 30 metros de altura, encimada por<br />
dois cumes. O povo da aldeia próxima chamava o lugar de “os Cornos de Hattin”. Saladino acampou junto a<br />
um vale verdejante. Ao preparar seu estratagema de batalha, elegeu como a chave do combate o problema do<br />
acesso às fontes de água. Seu exército tinha toda a água que precisava, mas Lusig<strong>na</strong>n, que escolhera<br />
desastradamente seu campo, não.<br />
O que se seguiu, no alvorecer abrasador do dia 4 de julho de 1187, foi um combate no <strong>qual</strong> o rei de<br />
Jerusalém e seus vassalos estavam derrotados antes mesmo de começar. Os <strong>muçulmanos</strong> domi<strong>na</strong>vam o<br />
campo com seus velozes cavalos. Seus arqueiros impediam que os sedentos latinos alcançassem a água doce<br />
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98 ENTARDECER<br />
I N S I G H T<br />
INTELIGÊNCIA<br />
do mar da Galiléia. Saladino, de seu posto de comando, estava atento a tudo. Inquietava-se quando percebia<br />
que os cavaleiros <strong>cristãos</strong> se agrupavam para uma carga. Dias antes, advertira todos os seus emires e<br />
comandantes de unidade para prestarem atenção. A ordem era de não enfrentar o choque. Deviam dispersar,<br />
sair da frente, deixando que os cavaleiros pesados carregassem sobre o vazio. Deviam, após dispersar,<br />
rodopiar as montarias e contra-atacar pelas alas, mirando suas setas nos grandes cavalos de batalha. Uma<br />
vez a pé, com o calor do sol e a agonia da sede, os pesados cavaleiros <strong>cristãos</strong> tor<strong>na</strong>vam-se presa fácil para<br />
a leve infantaria muçulma<strong>na</strong> que enxameava por todo o terreno. Com o passar do dia, o calor piorando e o<br />
exército cristão desmoralizado pela sede, os guerreiros de Saladino e o próprio sultão, deixaram de lado a<br />
cautela e partiram para o confronto desejando resolver a peleja. Passaram ao ataque geral, visando a atingir<br />
o cimo da coli<strong>na</strong>, onde ser erguia o pavilhão vermelho do rei de Jerusalém. Para o filho de Saladino, al-Afdal,<br />
Hattin era sua primeira batalha. Estando o tempo todo ao lado do pai, deixou-nos um vívido relato do que se<br />
passava <strong>na</strong>quele terrível dia:<br />
“Depois de o rei franco se retirar para o cimo da coli<strong>na</strong>, os seus cavaleiros fizeram uma elegante<br />
investida e repeliram os <strong>muçulmanos</strong> sobre meu pai. Observei a sua conster<strong>na</strong>ção. Empalideceu e deu<br />
repelões <strong>na</strong> barba, para em seguida avançar velozmente gritando: ‘Ataquem o diabo!’ Portanto, os<br />
nossos homens caíram sobre o inimigo, o <strong>qual</strong> se retirou coli<strong>na</strong> acima. Quando vi os francos fugirem,<br />
gritei com alegria: ‘Expulsamo-los!’ , mas eles voltaram a investir e repeliram os nossos homens de<br />
volta para onde meu pai se encontrava. Mais uma vez, este exortou os nossos homens a avançar, e<br />
mais uma vez, estes forçaram o inimigo a subir a coli<strong>na</strong>. De novo gritei: ‘Expulsamo-los!’. Mas meu pai<br />
voltou-se para mim e disse: “cala-te. Não os derrotamos enquanto aquela tenda ali estiver de pé.”<br />
Nesse momento a tenda caiu por terra. Então meu pai desmontou, curvou-se para o solo, dando<br />
graças a Deus, com lágrimas de júbilo.“
I N S I G H T<br />
INTELIGÊNCIA<br />
O exército de Jerusalém jazia destruído e seu rei capturado. Muitos cavaleiros haviam conseguido<br />
abrir caminho e fugir. A maioria, no entanto estava morta, ferida ou capturada. Dizem os cronistas que<br />
Saladino sacou sua espada e executou pessoalmente Chântillon, o senhor de Kerak, que caíra prisioneiro.<br />
Para ele, Ray<strong>na</strong>ld de Chântillon não passava de um bandido. Não havia como perdoar que este, sequer, tenha<br />
pensado em conspurcar Meca. Todos os cavaleiros capturados foram poupados para resgate, menos os<br />
templários e os hospitalários. Eram detestados pelos <strong>muçulmanos</strong> e foram devidamente passados a fio de<br />
espada. Nos meses que se seguiram, Tiberíades, Acre, Nablus, Toron, Jafa, Sidon, Beirute e Jabail caíram <strong>na</strong>s<br />
mãos do Islã. Jerusalém também não resistiu. Mas diferentemente de Godofredo, Saladino aceitou a rendição<br />
da cidade e permitiu que quem desejasse partisse, levando os pertences que pudessem carregar. Primeiro<br />
exigiu resgate. Depois, simplesmente deixou que se fossem. Não foi coagido a isso por causa de uma resistência<br />
brilhante e corajosa da cidade. Saladino agiu desse modo porque quis, e <strong>na</strong>da mais. Poderia ter executado<br />
quem desejasse, vingando assim a chaci<strong>na</strong> de antanho. Mas simplesmente não quis.<br />
Os problemas entre os <strong>muçulmanos</strong> e os <strong>cristãos</strong> não termi<strong>na</strong>riam com a momentosa vitória de Hattin.<br />
Saladino cometeu o erro de não tomar Tiro, permitindo a manutenção de uma cabeça-de-ponte cruzada <strong>na</strong><br />
região. Passou também maus momentos enfrentando as forças da Terceira Cruzada, cujo maior guerreiro foi<br />
Ricardo Coração de Leão. O sultão viria a falecer em 1193, contando com aproximadamente 55 anos de idade.<br />
Seu corpo jaz até hoje em sua cidade favorita, Damasco.<br />
Em julho de 1920, sua memória foi incomodada por uma tolice arrogante, tipicamente gaulesa. O general<br />
Henri Gouraud ao tomar posse de Damasco em nome da França, visitou o túmulo de Saladino, junto à Grande<br />
Mesquita, e exclamou:<br />
¨Saladino, nós voltamos. Minha presença aqui consagra a vitória da Cruz sobre o Crescente.<br />
Teriam os <strong>muçulmanos</strong> sido justificadamente acometidos pela fúria? Creio que seria desnecessário. Esse<br />
foi um dos momentos em que a França foi apeque<strong>na</strong>da, envergonhada mesmo por um de seus generais. Os<br />
feitos de Saladino não podem ser empa<strong>na</strong>dos pela tagarelice desrespeitosa de um mero general. E muitos<br />
<strong>muçulmanos</strong> continuaram sonhando com Hattin.<br />
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