O TRABALHO DE QUEM VIVE DO LIXO - Polêm! - UERJ
O TRABALHO DE QUEM VIVE DO LIXO - Polêm! - UERJ
O TRABALHO DE QUEM VIVE DO LIXO - Polêm! - UERJ
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
LABORE<br />
Laboratório de Estudos Contemporâneos<br />
POLÊMICA<br />
Revista Eletrônica<br />
O <strong>TRABALHO</strong> <strong>DE</strong> <strong>QUEM</strong> <strong>VIVE</strong> <strong>DO</strong> <strong>LIXO</strong>: <strong>DE</strong>SIGUALDA<strong>DE</strong> SOCIAL E SUAS<br />
DIMENSÕES SIMBÓLICAS<br />
ALEXANDRE BARBOSA FRAGA<br />
É Graduado em Ciências Sociais pela UFRJ e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e<br />
Antropologia da UFRJ<br />
alexbfraga@yahoo.com.br<br />
palavras-chave: trabalhador informal; desigualdade social; emprego<br />
1 – Introdução<br />
O objetivo deste artigo é refletir a respeito da relação entre desigualdades sociais e<br />
suas dimensões simbólicas, a partir da representação simbólica que os catadores de material<br />
reciclável das ruas do meio urbano fazem do lixo e do trabalho que desempenham. Isso<br />
pôde ser feito por meio de algumas entrevistas com catadores no bairro de Vila Isabel, Zona<br />
Norte da Cidade do Rio de Janeiro.<br />
2 – A atividade de catador e as representações simbólicas sobre o lixo<br />
Muitos homens e mulheres, excluídos de formas ‘reconhecidas de trabalho’,<br />
encontram na atividade de catar e vender lixo a forma de terem a identidade de<br />
trabalhadores recuperada. É a partir das sobras, do resto, que eles voltam a prover<br />
financeiramente a si mesmos e as suas famílias. O catador vai contra a lógica predominante<br />
na sociedade, de que o lixo é a sobra, aquilo que é rejeitado e tem que ser jogado fora, para<br />
ele o lixo representa algo que ainda pode ser aproveitado, seu meio de vida.<br />
Universidade do Estado do Rio de Janeiro<br />
R São Francisco Xavier, nº 524 - 2º andar, sala 60 - Maracanã - Rio de Janeiro - RJ<br />
CEP 24.590-013 Tels: (0xx21) 2587-7960/ 2587-7961 e-mail: laboreuerj@yahoo.com.br<br />
www.polemica.uerj.br<br />
1
LABORE<br />
Laboratório de Estudos Contemporâneos<br />
POLÊMICA<br />
Revista Eletrônica<br />
O interessante é que ao mesmo tempo em que a sociedade capitalista em que<br />
vivemos apela para que tenhamos um impulsivo consumo e um rápido descarte, ela também<br />
passa a valorizar a chamada ‘cultura do reaproveitamento’. Comprar, descartar e agora<br />
reaproveitar são ações necessárias para a expansão do capital. O reaproveitamento torna-se<br />
um negócio rentável.<br />
O catador não está totalmente excluído, mas também não está totalmente incluído na<br />
sociedade. Dessa forma, ele estaria situado numa fronteira mal definida socialmente, entre<br />
o ‘ser marginal’ e o ‘ser trabalhador’, ocuparia uma posição de liminaridade. "Os tributos<br />
de liminaridade, ou de pessoas liminares são necessariamente ambíguos, uma vez que esta<br />
condição e estas pessoas furtam-se ou escapam à rede de classificações que normalmente<br />
determinam a localização de estados e posições num espaço cultural. As entidades<br />
liminares não se situam aqui nem lá; estão no meio e entre as posições atribuídas e<br />
ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial" (TURNER, 1974: 117).<br />
Segundo Mary Douglas: "Não é exagero dizer que o ritual é mais para a sociedade<br />
do que as palavras são para o pensamento. Pois é bem possível conhecer alguma coisa e<br />
então encontrar palavras para ela. Mas é impossível ter relações sociais sem atos<br />
simbólicos" (<strong>DO</strong>UGLAS, 1976: 80). Dessa forma, a desigualdade social de que o catador<br />
faz parte não é fruto apenas do seu nível financeiro, mas é reforçada por um conjunto de<br />
atos simbólicos e classificações que o levam até essa posição de liminaridade, já que ele<br />
tem uma função na sociedade que além de desprestigiada é mal classificada.<br />
Para essa autora, as categorias são boas para pensar, e mais ainda, são boas para<br />
organizar a vida social, elas ajudam a definir as fronteiras sociais. Existem fronteiras que<br />
não são muito bem definidas, aspectos intermediários e pouco delimitados. Tudo que ocupa<br />
posições mal definidas é uma fonte de poder, é uma fonte de perigo. O sistema<br />
classificatório tem dificuldade em definir e dificuldade em controlar esses elementos<br />
intermediários. Dessa forma, pode ser explicado o porquê das pessoas tomarem cuidado<br />
2<br />
Universidade do Estado do Rio de Janeiro<br />
R São Francisco Xavier, nº 524 - 2º andar, sala 60 - Maracanã - Rio de Janeiro - RJ<br />
CEP 24.590-013 Tels: (0xx21) 2587-7960/ 2587-7961 e-mail: laboreuerj@yahoo.com.br<br />
www.polemica.uerj.br
LABORE<br />
Laboratório de Estudos Contemporâneos<br />
POLÊMICA<br />
Revista Eletrônica<br />
com o catador, como o sistema classificatório tem dificuldade em defini-lo, ele é uma fonte<br />
de perigo.<br />
Para Edmund Leach, as classificações de insulto são criações sociais a partir da<br />
nossa organização social. Elas permitem mostrar como as coisas estão posicionadas. Dessa<br />
forma, frases como ‘seu imundo revirador de lixo’, que, como veremos nas entrevistas, os<br />
catadores ouvem durante o seu trabalho, querem deixar claro como as coisas estão<br />
posicionadas. Insultos como esse trazem uma hierarquia à tona.<br />
Dentre os catadores que entrevistei no bairro de Vila Isabel, destaco dois: Cláudio,<br />
morador de Santa Cruz; e William, morador de Nilópolis. Para ambos, o motivo de terem se<br />
tornado catadores passa pela questão da dificuldade de encontrar um emprego formal:<br />
"Porque não tem serviço. Aí a única forma era trabalhar com a reciclagem" (Cláudio), "Por<br />
causa que emprego tá difícil né, aí eu botei currículo quase no Rio de Janeiro todo, muitas<br />
empresas e até hoje ninguém me chamou, então eu vim trabalhar aqui. Estou esperando o<br />
emprego sair pra mim, não saiu, até hoje eu estou aqui" (William).<br />
Todos os catadores que entrevistei dizem que com esse trabalho conseguem um<br />
dinheiro razoável ou bom para as despesas da família. Mas também deixam claro que estão<br />
nessa atividade por falta de emprego, já que muitos desempenhavam outras profissões,<br />
como William que trabalhava na manutenção da Supervia. O que se percebe é que mesmo<br />
alguns catadores chegando a ganhar mais de 600,00 reais por mês, muitos deles prefeririam<br />
ganhar menos, mas ter um emprego mais reconhecido, que recebesse um dinheiro certo,<br />
que fosse menos pesado e no qual a discriminação não fosse tão forte. A longa jornada de<br />
trabalho é a forma de garantir uma quantidade de material suficiente para um rendimento<br />
satisfatório.<br />
O lixo para grande parte da sociedade aproxima-se dos seguintes significados:<br />
‘aquilo que se joga fora’, ‘sujeira’, ‘o descartável’. Para os catadores, representa emprego e<br />
meio de vida, a forma encontrada para sobreviverem: "Não significa tudo, mas pelo menos<br />
3<br />
Universidade do Estado do Rio de Janeiro<br />
R São Francisco Xavier, nº 524 - 2º andar, sala 60 - Maracanã - Rio de Janeiro - RJ<br />
CEP 24.590-013 Tels: (0xx21) 2587-7960/ 2587-7961 e-mail: laboreuerj@yahoo.com.br<br />
www.polemica.uerj.br
LABORE<br />
Laboratório de Estudos Contemporâneos<br />
POLÊMICA<br />
Revista Eletrônica<br />
o básico para alimentar os meus filhos, significa" (Cláudio). Para o catador William:<br />
"Significa dinheiro pra mim, tudo. Tudo é um dinheiro. Até um rolo de papel higiênico é<br />
dinheiro, papelão, tampa de garrafa, latinha, tudo. Se você não pegar nada disso na rua não<br />
vai ser nada de dinheiro pra você, você não vai arrumar nada".<br />
Por irem contra a lógica de que o lixo é o descartável, eles sentem certa vergonha no<br />
desempenhar do seu trabalho: "É um pouco difícil. Me dá uma vergonha assim quando paro<br />
pra pegar os papelão na rua, garrafas plástica. Eu sinto vergonha, mas o importante não é<br />
ter vergonha não, é ter arrumado um dinheiro" (William).<br />
A discriminação que os catadores sofrem é em parte causada por eles irem contra as<br />
representações sobre lixo que a maioria das pessoas tem. Enquanto é dito que o lixo não<br />
deve ser tocado, é sujo, deve ser descartado, o catador faz o contrário. Ele age contra essa<br />
concepção. Em outras palavras, ele vai contra esse "fato social". O fato social<br />
(DURKHEIM, 1978) tem, entre outras, a característica de ser coercitivo. É esta coerção que<br />
pune quem viola os padrões estabelecidos. A punição aos catadores, ou seja, a coerção que<br />
a sociedade aplica por irem contra o padrão de que o lixo deve ser algo imprestável, vem<br />
por meio de xingamentos e maus tratos.<br />
Esta coerção pode se dar por meios mais discretos: "As pessoas fica tudo assim me<br />
olhando. As pessoas que é bem de vida fica tudo olhando, não têm aquela confiança"<br />
(Cláudio). Mas também por meios diretos: "Já fui chamado de burro, de mendigo, de<br />
muitas coisas. Muitas coisas já passei. Os caras passa de carro e começa a xingar, chama de<br />
mendigo, de burro, burro sem rabo. Mas eu levanto a cabeça e vou em frente, tento não ter<br />
vergonha não" (William). Dessa forma, diariamente os catadores se defrontam com<br />
dimensões simbólicas que reforçam as posições de desigualdade social.<br />
3 – CONCLUSÃO<br />
Universidade do Estado do Rio de Janeiro<br />
R São Francisco Xavier, nº 524 - 2º andar, sala 60 - Maracanã - Rio de Janeiro - RJ<br />
CEP 24.590-013 Tels: (0xx21) 2587-7960/ 2587-7961 e-mail: laboreuerj@yahoo.com.br<br />
www.polemica.uerj.br<br />
4
LABORE<br />
Laboratório de Estudos Contemporâneos<br />
POLÊMICA<br />
Revista Eletrônica<br />
Embora a atividade de catador seja uma atividade desprestigiada e mal classificada,<br />
é capaz de fazer com que os indivíduos voltem a se sentirem integrados a algo e a receber o<br />
dinheiro que devolve a possibilidade de proverem seus lares.<br />
O lixo é carregado de uma simbologia de ser tudo aquilo que a sociedade rejeita e<br />
afasta, e é esse peso que os catadores trazem nos ombros. Eles vão contra essa concepção<br />
de lixo, mais pela necessidade de sobrevivência.<br />
As representações que a sociedade faz do lixo moldam a forma como os catadores<br />
são tratados. Por ocuparem uma posição liminar na sociedade, eles sofrem preconceito.<br />
Essa é a coerção imposta por irem contra a concepção de que o lixo não tem valor, é algo<br />
descartável. Dessa forma, as dimensões sociais e simbólicas são articuladas. Os símbolos<br />
ao mesmo tempo em que expressam as desigualdades, também as reelaboram de formas<br />
específicas.<br />
Através do lixo, os catadores vão mantendo suas famílias e recuperam a sua<br />
identidade de trabalhadores. Diariamente iniciam uma jornada de trabalho longa e<br />
cansativa, deixando de lado a vergonha e o preconceito. O peso que carregam é físico, mas<br />
também é moral. O peso de representações que afirmam as desigualdades sociais.<br />
Referências Bibliográficas<br />
• <strong>DO</strong>UGLAS, M. Pureza e perigo. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1976.<br />
• DURKHEIM, Émile. "Que é fato social?" In: As Regras do Método Sociológico. 9 a ed.<br />
São Paulo: Editora Nacional, 1978.<br />
• LEACH, E. "Aspectos antropológicos da linguagem: categorias animais e insulto<br />
verbal" In: Edmund Leach, Col. Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ed. Ática, 1983.<br />
• TURNER, Victor. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Vozes, 1974.<br />
Universidade do Estado do Rio de Janeiro<br />
R São Francisco Xavier, nº 524 - 2º andar, sala 60 - Maracanã - Rio de Janeiro - RJ<br />
CEP 24.590-013 Tels: (0xx21) 2587-7960/ 2587-7961 e-mail: laboreuerj@yahoo.com.br<br />
www.polemica.uerj.br<br />
5