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Revista Recine 2004.pmd - Arquivo Nacional

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<strong>Revista</strong> do Festival Internacional de Cinema de <strong>Arquivo</strong> Ano 1 Nº 1 <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> Setembro de 2004


© 2004 by <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong><br />

Praça da República, 173<br />

CEP 20211-350 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil<br />

Presidente da República<br />

Luiz Inácio Lula da Silva<br />

Ministro-Chefe da Casa Civil da Presidência da República<br />

José Dirceu de Oliveira e Silva<br />

Secretário-Executivo da Casa Civil<br />

da Presidência da República<br />

Swedenberger do Nascimento Barbosa<br />

Diretor-Geral do <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong><br />

Jaime Antunes da Silva<br />

Coordenação Geral de Processamento<br />

e Preservação do Acervo<br />

Mônica Medrado<br />

Coordenação Geral de Divulgação e Acesso<br />

à Informação Documental<br />

Alexandre Manuel Esteves Rodrigues<br />

Editores<br />

Clovis Molinari Jr. e Márcia Mello<br />

Supervisão Editorial<br />

Alba Gisele Gouget<br />

Alzira Reis<br />

Giselle Teixeira<br />

Edição de Texto e Revisão<br />

Alba Gisele Gouget<br />

Projeto Gráfico e Diagramação<br />

Alzira Reis<br />

Capa e Ilustração Primeira Página<br />

Marília Nogueira<br />

Pesquisa de Imagens<br />

Clovis Molinari Jr.<br />

Márcia Mello<br />

Sérgio Lima<br />

Tereza Eleutério de Souza<br />

Tratamento e Digitalização Fotográfica<br />

Mauro Domingues<br />

Fabiana Lopes<br />

Flávio Ferreira<br />

Lucas Molinare<br />

Assistente de Coordenação<br />

Inez Stampa<br />

Haroldo Mescolin Regal<br />

Apoio Administrativo<br />

Janaína Cristina Vilar Elias<br />

Mirian Kaufmann<br />

Sheila Moreira Ceccheitti<br />

Agradecimentos<br />

Agence France Presse<br />

João Luiz Vieira (UFF)<br />

Jurandyr Noronha<br />

Michel Marie<br />

Silvio Tendler<br />

Tempo Glauber Rocha<br />

Apresentação 7<br />

Clovis Molinari Jr.<br />

Nasce uma idéia 12<br />

Boleslaw Matuszewski<br />

Vanguarda revolucionária: Eisenstein, Vertov<br />

e o construtivismo cinematográfico 16<br />

João Luiz Vieira<br />

Cultura Cinematográfica 28<br />

Jean Epstein<br />

Falsificações 32<br />

Marc Ferro<br />

Cinema, história e Marc Ferro 44<br />

Sheila Schvarzman<br />

A história pode ser feita com arquivos fílmicos? 54<br />

Laurent Véray<br />

EZTETYCA DA FOME 66<br />

Glauber Rocha<br />

Jurandyr Noronha, um homem de cinema 70<br />

Mauro Domingues<br />

A reconstrução da memória 72<br />

Silvio Tendler<br />

Filmes de arquivos 82<br />

Yann Beauvais<br />

Os murmúrios do mundo<br />

O Ateliê de Pesquisa Cinematográfica em Maio 68 94<br />

Sébastien Layerle<br />

Depois das revoluções... 106<br />

Ilana Feldman<br />

Luz, câmera, revolução 115<br />

Clóvis Brigagão


Conflito entre<br />

estudantes e policiais<br />

na Avenida Rio Branco.<br />

Rio de Janeiro,<br />

21/6/1968. Acervo<br />

Correio da Manhã<br />

AN PH/FOT/ 229(5)


“ Um jornal ou uma<br />

revista precisa ser<br />

como os gatos,<br />

ter sete vidas;<br />

ou como a chuva<br />

que molha as ruas,<br />

não pode acabar;<br />

ou como a noite<br />

que sempre cai mas<br />

nunca se machuca. ”<br />

A comparação<br />

pode parecer insólita, mas<br />

quem a fez com certeza viveu na carne o<br />

esforço de experimentar a produção editorial pela<br />

sobrevivência do pensamento livre. O tempo da<br />

frase anônima, juntando uma sabedoria aqui<br />

outra ali, era de luta forte, às vezes sangrenta, e<br />

já se passaram mais de vinte anos desde que os<br />

dias de chumbo foram derretidos no Brasil.<br />

A cada periódico que surge, a frase repercute<br />

como uma advertência que enuncia um desejo<br />

e um receio. Neste ano de 2004, junto com o<br />

<strong>Recine</strong> – Festival Internacional de Cinema de<br />

<strong>Arquivo</strong>, realizado desde 2002 no <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>,<br />

esta publicação que acaba de nascer pretende<br />

acompanhar o tema de cada ano do evento cinematográfico,<br />

e reunir textos consistentes de<br />

pensadores cuja criação se mantém em permanente<br />

atividade, com os olhos voltados para a vida<br />

passada em imagens em movimento. Se no primeiro<br />

ano o <strong>Recine</strong> exibiu os filmes mais antigos<br />

do cinema brasileiro; e no segundo remexeu o baú<br />

da censura, agora se volta para as revoluções que<br />

aconteceram na segunda metade do século XX.<br />

Como o tema do <strong>Recine</strong> 2004 são os movimentos<br />

políticos e culturais do pós-guerra, reunimos<br />

nesta edição artigos que contribuem para<br />

o estudo do cinema como fonte de pesquisa e<br />

produção de audiovisual. O cinema nasceu e praticamente<br />

se desenvolveu por todo o século XX, e<br />

a partir dos seus cinqüenta anos já estaria suficientemente<br />

maduro para reconhecer a importância<br />

e seriedade do acervo acumulado. Os arquivos<br />

e cinematecas demoraram muito para se estabelecer.<br />

Mas, quando isso se deu, cresceram as<br />

chances de olhar com uma atenção especial, até<br />

mais de uma vez, para tudo o que se passava na<br />

tela. Então, os filmes já não foram mais vistos<br />

apenas como uma oportunidade de diversão ou<br />

meros exemplares probatórios de um determinado<br />

período ou acontecimento histórico. A visão<br />

imediata deu lugar à compreensão de que<br />

fazer um filme, mesmo uma simples reportagem,<br />

é afirmar um conceito. Sendo assim, os realizadores<br />

dos filmes não são retratistas neutros da<br />

história, mas produtores que manipulam o tempo<br />

e o espaço. E um olhar minucioso iria revelar<br />

mais claramente que os filmes mostram muito<br />

mais do que querem seus realizadores.<br />

Desde que o cameraman polonês Boleslaw<br />

Matuszewski chamou a atenção para o fato de<br />

que as películas cinematográficas necessitavam<br />

ser preservadas e vistas como importantes registros<br />

que favoreceriam o trabalho dos historiadores,<br />

confirmando a compreensão de Jurandyr<br />

Noronha – quando disse que mesmo um<br />

filme de ficção, com o tempo, acaba por se<br />

tornar em documentário –, muitos estudos tiveram<br />

início tendo como base as imagens em<br />

movimento, até então apreciadas apenas pelo<br />

público em sua prática corrente de entretenimento.<br />

Por isso publicamos o manifesto do livreto<br />

de 1898, Une nouvelle source de l’histoire.<br />

Esta edição traz também estudos que datam<br />

de pouco tempo, alguns ainda inéditos,<br />

sobre os filmes de arquivo e sua inesgotável<br />

utilidade como ferramenta. Do cineasta Yann<br />

Beauvais, “Filmes de arquivos”; do realizador<br />

e autor de textos Laurent Véray, “A história<br />

pode ser feita com arquivos fílmicos?”; do cineasta<br />

Silvio Tendler, “A reconstrução da me-<br />

REVOLUÇÕES<br />

7


mória”; e da historiadora Sheila Schvarzman,<br />

“Cinema, história e Marc Ferro”.<br />

Apesar do inquietante peso da dúvida, se efetivamente<br />

seria possível reviver uma experiência<br />

histórica – se alguém seria mesmo capaz de reconstruir<br />

o passado, dado o fato de que estamos<br />

todos submetidos ao presente que sempre se esvai<br />

e, sendo assim, o passado só poderia ser construído<br />

–, os filmes também existem para alimentar<br />

máquinas críticas que reinterpretam o passado<br />

e rompem com a tradição para produzir o<br />

novo. O filme não é uma imagem do mundo,<br />

mas uma imagem do criador de imagens que está<br />

em um determinado mundo. Com essa nova abordagem,<br />

não estamos a assistir à morte do filme,<br />

mas diante de outra maneira de ver. Nesse conceito,<br />

em um filme não há nada para entender,<br />

mas muito por utilizar. Não há nada por interpretar<br />

nem significar, mas muito por experimentar.<br />

Não é por acaso que juntamos nesta edição as<br />

reflexões do historiador francês Marc Ferro, em<br />

uma entrevista que revela as técnicas que podem<br />

falsificar a produção audiovisual, que podem enganar<br />

a compreensão de um espectador ainda entorpecido<br />

pelo espetáculo e acostumado à idéia de<br />

que na tela a vida passa como num espelho que<br />

reflete o mundo, como se as imagens, de tão eloqüentes,<br />

superassem seus próprios inventores.<br />

Ser revolucionário é ser percorrido pela própria<br />

vida, ter um poder idêntico à vida. Se a<br />

vida é um modo de vida, uma revolução é um<br />

movimento para outras maneiras de viver. Isso<br />

também acontece no plano da estética. Assim,<br />

publicamos um capítulo do livro Sprit de cinéma,<br />

de Jean Epstein, no qual ele trata da “Cultura<br />

cinematográfica”, e o estudo do professor João<br />

Luiz Vieira “Vanguarda revolucionária: Eisenstein,<br />

Vertov e o construtivismo cinematográfico”.<br />

As revoluções mais recentes, das quais ainda<br />

se pode sentir o cheiro de pólvora no ar, estão<br />

no manifesto Uma estética da fome, do cineasta<br />

Glauber Rocha e em “Murmúrios do mundo:<br />

o Ateliê de Pesquisa Cinematográfica em<br />

maio de 68”, de Sébastien Layerle, para deixar<br />

também marcada a presença forte da potência<br />

criadora de Jean-Luc Godard.<br />

Mas, nenhuma renovação ou revolução estética<br />

seria fértil para as gerações se não existisse<br />

quem se preocupasse com a preservação. Por isso<br />

a homenagem ao cineasta brasileiro Jurandyr<br />

Noronha é a forma que encontramos de fazer<br />

justiça à memória, e demonstrar como uma vida<br />

pode realizar o que há de melhor para não cair<br />

no abismo, levantar a cabeça e ver como funcionam<br />

o cinema e a história. O artigo de Ilana<br />

Feldman, “Depois das revoluções...”, é um levantamento<br />

dessas possibilidades. Com tanto<br />

esforço, gente e talento, o cinema perdeu seu<br />

antigo rosto de fotografias vivas e indiscutíveis,<br />

para dar por iniciada a construção de um novo<br />

corpo e uma nova aventura.<br />

Os trabalhos aqui reunidos podem concorrer<br />

para o acompanhamento das fotos expostas e dos<br />

filmes exibidos, em sessões de longas e curtasmetragens,<br />

dentro do <strong>Recine</strong> 2004. O mundo na<br />

segunda metade do século XX assistiu a muitos<br />

filmes, enquanto os acontecimentos sociais eclodiam<br />

por toda parte. Na França, o fluxo desordenado<br />

do maio de 68 colocou em xeque o status<br />

quo, apenas com pedras nas mãos. No Vietnã,<br />

um povo nu resistiu, como num grande épico, a<br />

um gigante com roupas e armas avançadas. Em<br />

Portugal, uma ditadura desmoronou, repercutindo<br />

nas colônias da África. No Chile, um governo<br />

popular e poético caiu pela força das armas. Nos<br />

Estados Unidos, jovens abandonaram a família<br />

nuclear e dançaram na eletricidade da fumaça e<br />

na chuva ácida do rock and roll. Na Irlanda e na<br />

Espanha, grupos separatistas explodiram teimosamente<br />

suas fúrias. Na China, uma revolução pela<br />

primeira vez foi chamada de cultural. O Muro de<br />

Berlim desabou sobre as duas Alemanhas, enquanto<br />

as repúblicas soviéticas se desgarravam de uma<br />

grande célula de ferro. No Oriente Médio, a Guerra<br />

dos Seis Dias veio para nunca mais acabar,<br />

mudando de tempos em tempos o território do<br />

terror. A Primavera de Praga passou como uma<br />

breve estação da liberdade, no enigmático ano de<br />

1968. Não foi assim tão passageira uma das cora-<br />

josas revoluções latino-americanas, que mexeu<br />

com vara curta a grande fera do maior dos impérios<br />

capitalistas. O mundo ficou ameaçado de<br />

acabar sob bombas atômicas e esse medo foi chamado<br />

de Guerra Fria. Os astronautas chegaram à<br />

lua, os estudantes e operários foram à luta, artistas<br />

livres romperam com tudo que era convencional:<br />

o segundo ato do século XX foi de arrepiar!<br />

A história vê o cinema, o cinema vê a história.<br />

Esse é o sentido do <strong>Recine</strong>, o evento e a<br />

revista. Pensar o cinema em suas imbricações<br />

com a história parece redundância, pois o cinema<br />

está sempre na história. O cinema faz e revisita<br />

a história, nutre-se de estórias, constrói a<br />

história, ainda que iludido muitas vezes pela inclinação<br />

de querer encontrar uma verdade. E<br />

dentro da história, dentro do cinema, ali estão<br />

as revoluções. As revoltas, as conflagrações, as<br />

sublevações, as transgressões, as transformações<br />

radicais, suas tentativas e oposição.<br />

Uma revolução pode ser armada ou desarmada,<br />

pode acontecer em minutos ou séculos, mas<br />

sempre compreenderá um salto: a efetiva instalação<br />

do novo e, por conseqüência, a deflagração de<br />

uma série de novas relações. Uma revolução pode<br />

acontecer na explosão de uma estrela nova; num só<br />

planeta ou em suas sociedades; em grupos menores<br />

ou maiores, e até na solidão da vida de um<br />

corpo em sua infinita multiplicidade.<br />

Poderemos ver nos filmes e nas fotos, que nas<br />

revoluções e contra-revoluções existiram sempre<br />

alguns personagens recorrentes que nunca estiveram<br />

ali por acaso: o militar, o sacerdote, o legislador,<br />

o político, o subversivo, o artista, o anônimo.<br />

A revolução é uma contenda, um intenso e<br />

violento debate físico e de idéias, embora em todos<br />

os planos venham a ocorrer golpes e contragolpes;<br />

isto é, uma ruptura de encadeamentos que<br />

traz a derrota, porque também faz parte do plano<br />

o fracasso. De insucesso em insucesso, mesmo<br />

assim, as revoluções não param de acontecer.<br />

Por isso as revoluções assustam aos que temem<br />

as marolas vibrantes da vida. Não foram raras<br />

e nem foi a última vez na história que alguém se<br />

antecipou para dizer: “Antes que os revolucionários<br />

façam a revolução, façamo-la nós!” Existem<br />

falsas mudanças que se realizam para impedir verdadeiras<br />

mudanças. Há um medo espreitando as<br />

revoluções. Um povo invadido, um filho rebelde,<br />

um vizinho tresloucado, um professor irreverente,<br />

um pensamento diferente. É dessas incríveis<br />

combinações que deriva o desejo de revolver.<br />

Por isso a idéia de revolução nunca envelhece,<br />

e nem os revolucionários que se mantêm vivos na<br />

ebulição de cada dia. Sempre existirá alguém que<br />

se levantará na noite sombria das assembléias, secretas<br />

ou não, para dizer: “Não estou de acordo!”<br />

Mas, quem tem medo do novo? O que é o novo?<br />

Teria sido revolucionário o que vimos nos últimos<br />

cinqüenta anos? O que temos visto? Somos verdadeiramente<br />

capazes de ver? O <strong>Recine</strong> 2004 é uma<br />

verificação, através das imagens, das chamadas revoluções<br />

contemporâneas. As agitadas e necessárias;<br />

heróicas e equivocadas; corajosas e arriscadas<br />

lutas que varreram da face da terra milhares de<br />

vidas, se pensarmos apenas nos acontecimentos da<br />

segunda metade do século XX. Uma sucessão de<br />

imagens e pensamentos sobre esse período – Meio<br />

Século de Revoluções – nos levará a tomar contato<br />

com experiências bastante recentes. Como, por<br />

exemplo, a construção e desconstrução do socialismo;<br />

a difícil e custosa batalha contra o imperialismo<br />

econômico e cultural; o agitado inconformismo<br />

contra a fome e as ditaduras, fossem elas capitalistas<br />

ou comunistas, na América, Ásia e Europa.<br />

Todas essas interrogações estão postas nesta<br />

publicação que se inicia e dialoga com a programação<br />

do <strong>Recine</strong> 2004. Ao tomar a revolução<br />

como tema, convidamos o Cinema e a História,<br />

os que fazem história e cinema, os que falam de<br />

cinema e de história; os que ainda encontram<br />

forças revolucionárias para ver filmes, mudar a<br />

história e conquistar a Vida.<br />

Clovis Molinari Jr.<br />

Coordenação de Documentos Audiovisuais<br />

e Cartográficos do <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> do Brasil<br />

REVOLUÇÕES<br />

9


Comício pelas reformas<br />

de base na Central do<br />

Brasil. Rio de Janeiro,<br />

13/3/1964. Acervo<br />

Agência <strong>Nacional</strong> AN EM / COC - P / 8001 (14)


Boleslaw Matuszewski Cameraman polonês, empregado da Lumière, propôs a criação do Depósito Cinematográfico Histórico,<br />

assim reconhecendo a significação de preservar o material filmado para a posteridade.<br />

Nasce uma idéia 1<br />

O filme<br />

cinematográfico, em que de mil fotos<br />

se compõe uma cena e que, passado entre<br />

um foco luminoso e uma tela branca, faz se<br />

erguerem e andarem os mortos e os ausentes,<br />

essa simples fita de celulóide impressionada constitui<br />

não só um documento histórico, mas uma<br />

parcela da história, e da história que não desapareceu,<br />

que não precisa de um gênio para ser<br />

ressuscitada. Está aí apenas adormecida, e como<br />

aqueles organismos elementares que, vivendo uma<br />

vida latente, reanimam-se após alguns anos, com<br />

um pouco de calor e umidade, só necessita, para<br />

acordar e viver novamente as horas do passado,<br />

de um pouco de luz que atravesse uma lente no<br />

seio da escuridão!...<br />

Trata-se de dar a essa fonte talvez privilegiada<br />

da história a mesma autoridade, a mesma<br />

existência oficial, o mesmo acesso que aos outros<br />

arquivos já conhecidos...<br />

Bastará dotar as fitas cinematográficas<br />

que tiverem um caráter histórico de uma<br />

seção de museu, de uma prateleira de biblioteca,<br />

de um armário de arquivo. O<br />

depósito oficial será feito na Biblioteca<br />

<strong>Nacional</strong>, ou na do Instituto, sob a<br />

guarda de uma das academias que se<br />

ocupam de história, ou no <strong>Arquivo</strong>, ou ainda no<br />

Museu de Versalhes. Vamos escolher e decidir.<br />

Uma vez realizada a fundação, as remessas gratuitas<br />

ou mesmo pagas não deixarão de chegar.<br />

O preço do aparelho de filmagem, assim como o<br />

dos filmes cinematográficos, muito alto nos primeiros<br />

dias, diminui rapidamente e tende a cair<br />

ao alcance dos simples amadores da fotografia.<br />

Muitos deles, sem contar os profissionais, começam<br />

a se interessar pela aplicação cinematográfica<br />

dessa arte e só desejam contribuir para a<br />

constituição da história. Os que não trouxerem<br />

sua coleção voluntariamente nos deixarão o legado.<br />

Um comitê competente receberá e separará<br />

os documentos propostos, depois de ter apreciado<br />

o seu valor histórico. Os rolos negativos<br />

aceitos serão lacrados em estojos, etiquetados,<br />

catalogados; serão os tipos em que não se tocará.<br />

O mesmo comitê decidirá das condições de<br />

acesso aos positivos e deixará em reserva aqueles<br />

que, por questões de conveniência particular,<br />

só poderão estar liberados para o público<br />

depois de decorridos alguns anos. Faz-se a mesma<br />

coisa em alguns arquivos. Um conservador do<br />

estabelecimento escolhido terá a seu cargo a guarda<br />

dessa coleção nova, pouco numerosa a princípio,<br />

e fundar-se-á uma instituição futura. Paris<br />

terá seu Depósito de Cinematografia Histórica.<br />

1 Este texto foi extraído de Une nouvelle source de l’historie (création d’un dépôt de cinématographie historique). Brochura<br />

publicada em Paris, em março de 1898, na qual Boleslaw Matuszewski lançou pioneiramente a idéia de criar arquivos de cinema.<br />

Publicado em Correio da Unesco, ano 12, n. 10, out. 1984. Tradução de Eliane Zagury<br />

Ilustração extraída do jornal<br />

La Cinémathèque Française, nº 6,<br />

fevereiro de 1986<br />

REVOLUÇÕES<br />

13


Comício pelas reformas<br />

de base na Central do<br />

Brasil. Rio de Janeiro,<br />

13/3/1964. Acervo<br />

Agência <strong>Nacional</strong> AN EM / COC - P / 8001 (42)


João Luiz Vieira Doutor em Estudos Cinematográficos pela New York University. Crítico, pesquisador e professor do Departamento<br />

de Cinema e Vídeo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Imagem e Informação da Universidade Federal Fluminense.<br />

Vanguarda revolucionária:<br />

Eisenstein, Vertov<br />

e o construtivismo cinematográfico<br />

In Mount, Christopher. Stenberg brothers: constructing a revolution in soviet design. New York: The Museum of Modern Art, 1997<br />

Cartaz do filme O homem da câmera<br />

(1929), criação dos irmãos Vladimir<br />

e Georgi Stenberg<br />

O<br />

termo vanguarda, no âmbito do cinema,<br />

refere-se diretamente à tradição de seu uso<br />

a partir da avant-garde francesa, conforme testemunhamos<br />

já no final da primeira década do século<br />

XX e, com toda a força, na década seguinte.<br />

De forma mais abrangente, a avant-garde referese<br />

ao conjunto de movimentos artísticos de radical<br />

renovação e profunda ruptura com o passado,<br />

movimentos esses iniciados ainda na primeira metade<br />

do século XIX, que, conforme expõe Linda<br />

Nochlin, vão equacionar arte revolucionária com<br />

uma política também revolucionária depois dos<br />

eventos de 1848 na França. 1 No caso do cinema,<br />

entretanto, esse impulso vanguardista ganhou contornos<br />

diferentes, visto que a mobilização não só<br />

era voltada para o então presente da forma cinematográfica<br />

como, surpreendentemente, para seu<br />

próprio futuro. Mal soavam as trombetas do futurismo<br />

italiano, já se configurava uma forma específica<br />

de representação de imagens em movimento.<br />

Tal forma, que vinha se esboçando desde o<br />

limiar do registro das imagens em movimento,<br />

talvez pela própria natureza mimética da imagem<br />

fotográfica e seu poder de copiar “fielmente” a<br />

realidade, foi ganhando um contorno que, aliado<br />

à herança de formas narrativas anteriores – em<br />

especial o teatro e o romance do século XIX –,<br />

acabou por definir um rumo mais ou menos único<br />

para o cinema. Identificado com o cinema narrativo,<br />

clássico, cuja matriz é Hollywood, essa forma<br />

dominante, esse modo institucional de representação<br />

era calcado na orientação psicológica dos<br />

personagens, centrados, por sua vez, na busca de<br />

uma continuidade narrativa encontrada na lógica<br />

1 NOCHLIN, Linda. The invention of the avant-garde: France, 1830-80. In: HESS, Thomas e ASHBERRY, John. Avant-garde<br />

art. New York: MacMillan, 1968. p. 3-24.<br />

Este ensaio é resultado de pesquisas e anotações de aula dos cursos Cinema soviético, O cinema de Eisenstein e Vertov e a avant-garde<br />

realizados durante o meu doutorado na New York University, oferecidos pela professora Annette Michelson, e também de muitas conversas<br />

informais com o professor Jay Leyda. A eles – Jay Leyda, in memoriam, pelo rigor dos debates, inspirada interlocução e pela amizade,<br />

dedico este texto.<br />

da causa e efeito. Buscava-se o efeito naturalista<br />

em consonância com as tradições da forma linear<br />

e do espaço ilusionista.<br />

Por outro lado, enquanto essa forma hegemônica<br />

se configurava como regime narrativo dominante,<br />

começavam a surgir reações ligadas a<br />

outras manifestações artísticas como as artes plásticas,<br />

a literatura, a poesia, a música e a arquitetura,<br />

que colocavam em xeque esse modo de representação.<br />

É Fernand Léger, em Funções da pintura,<br />

quem parece ter esboçado uma definição<br />

bastante particular daquilo que veio a se compreender<br />

como cinema de vanguarda. Diz ele que<br />

“[...] a história dos filmes de vanguarda é muito<br />

simples. É uma reação direta contra os filmes de roteiro<br />

e o estrelismo. É a fantasia e o jogo indo de encontro à<br />

ordem comercial dos outros. E isto não é tudo: é a<br />

revanche dos pintores e dos poetas. Numa arte como<br />

esta, onde a imagem deve ser tudo, há que se defender<br />

e provar que as artes da imaginação, relegadas a meros<br />

acessórios, poderiam, sozinhas, por seus próprios meios,<br />

construir filmes sem roteiro, considerando a imagem<br />

móvel como personagem principal”. 2<br />

Léger, por ser fundamentalmente um artista<br />

plástico, trouxe uma interpretação bastante pessoal<br />

para uma forma de expressão do cinema da avantgarde,<br />

ou seja, aquela mais ligada diretamente às<br />

funções pictóricas da imagem em movimento e suas<br />

qualidades gráfico-plásticas. A formulação de Léger,<br />

2 LÉGER, Fernand. Funções da pintura. São Paulo: Estúdio Nobel, 1990.<br />

pensada mais como uma maneira de romper com<br />

os limites da própria pintura, encontrará ressonância<br />

em artistas tão singulares e diferentes quanto,<br />

por exemplo, Francis Picabia, Marcel Duchamp,<br />

Man Ray, Moholy-Nagy e Salvador Dali.<br />

Ainda na década de 1910, período-chave para<br />

a configuração dos contornos gerais do cinema<br />

dominante clássico e logo após o período de formação<br />

na produtora American Biograph, levada a<br />

cabo por David Wark Griffith entre 1908 e 1913,<br />

surgem duas reações alternativas para o paradigma<br />

hegemônico. Em 1916, enquanto Hollywood<br />

estreava Intolerância, seu mais ambicioso projeto<br />

cinematográfico até então, na Europa era lançado<br />

o manifesto do cinema futurista, ligado à literatura<br />

e à poesia, enfatizando a vertigem da vida urbana<br />

moderna ao consagrar a máquina como quintessência<br />

do futuro. Muito mais retórico do que<br />

efetivamente prático – só um filme chegou a ser<br />

feito dentro desses parâmetros, Vita futurista, de<br />

Arnaldo Ginna, nesse mesmo ano de 1916 –, o<br />

manifesto promovia o ritmo e a rapidez dos novos<br />

tempos, antecipando, de uma certa maneira, o investimento<br />

efetuado na montagem pelos soviéticos<br />

durante os primeiros anos da década seguinte.<br />

Na Alemanha, agora vinculado mais às artes<br />

plásticas e à arquitetura, o expressionismo também<br />

reagia contra a ditadura da chamada “vocação<br />

natural” do cinema para o naturalismo, radicalizando<br />

a realidade pró-fílmica como forma<br />

de compensar o determinismo mimético fotográfico<br />

presente no aparato ótico de registro. Já<br />

REVOLUÇÕES<br />

17


: E<br />

, V<br />

V ANGUARDA<br />

ANGUARDA ANGUARDA REVOLUCIONÁRIA<br />

REVOLUCIONÁRIA: REVOLUCIONÁRIA : EEISENSTEIN<br />

E ISENSTEIN<br />

ISENSTEIN, ISENSTEIN , VVERTOV<br />

V ERTOV E O CONSTRUTIVISMO CONSTRUTIVISMO CINEMATOGRÁFICO CINEMATOGRÁFICO<br />

REVOLUÇÕES<br />

que não se poderia, àquela altura, alterar a configuração<br />

ótica que produzia um olhar naturalista,<br />

que se alterasse, então, tudo o que existia à<br />

frente das câmeras. Cenários, iluminação, vestuário,<br />

interpretação e movimentação de atores<br />

são investidos de uma radical estilização, criando-se<br />

um visual único, que, anos mais tarde, entre<br />

outros frutos, serviu de inspiração para os fotógrafos<br />

e diretores do film noir norte-americano.<br />

Com o início da década de 1920, outras possibilidades<br />

foram sucessivamente experimentadas,<br />

sobretudo na França. Analogias com a música, a<br />

poesia e o sonho foram articuladas dentro de princípios<br />

mais ou menos comuns. O surrealismo, por<br />

exemplo, ao procurar paralelos entre a visão fílmica<br />

e os mecanismos do inconsciente, capazes<br />

de produzir condensações e deslocamentos, contribuiu<br />

para subverter a noção tradicional do tempo<br />

e espaço e da linearidade entre causa e efeito<br />

defendida pelo cinema dominante. É essa vertente,<br />

por exemplo, que vai influenciar a primeira<br />

geração de realizadores norte-americanos que deslancharam<br />

o New American Cinema no início da<br />

década de 1940, nos trabalhos pioneiros de Maya<br />

Deren, Kenneth Anger e Jonas Mekas.<br />

In Gray, Camilla, The russian experiment<br />

in art: 1863-1922. New York: Harry Abrams, 1971<br />

Essa busca e necessidade de experimentação,<br />

de procurar alternativas para a já então inevitável<br />

consagração de um modo único de se fazer e<br />

consumir cinema, encontraram seu campo mais<br />

fértil na União Soviética nos primeiros anos da<br />

Revolução de Outubro. É Alexei Gan, teórico<br />

influente desses primeiros tempos, quem explica:<br />

“Não podemos nos esquecer de que nossa sociedade<br />

atual é de transição, do capitalismo para o comunismo,<br />

e que o construtivismo não pode ser dissociado da<br />

base, isto é, da realidade econômica de nossa atual sociedade;<br />

os construtivistas consideram sua única escola a<br />

realidade prática do sistema soviético, no qual são desenvolvidos<br />

experimentos sem fim, de forma incansável<br />

e persistente”. 3<br />

Esse cinema, em sua prática – e como qualquer<br />

outro –, só pode ser mais bem compreendido<br />

quando colocado dentro do contexto geral<br />

histórico, sociopolítico e econômico do qual se<br />

originou. Cineastas soviéticos, conforme sabemos,<br />

atuaram num momento histórico decisivo<br />

para o século XX. Portanto, enquanto membros<br />

Cenografia desenhada por Varvara Stepanova para a peça A morte de Tarelkin,<br />

produção de Meyerhold, Moscou, 1922<br />

3 GAN, Alexei. Constructivism. In: BANN, Stephen (ed.). The tradition of constructivism. New York: Viking, 1974, p. 40.<br />

de uma vanguarda artística, cineastas como Serguei<br />

Eisenstein, Dziga Vertov, Ester Schub, entre<br />

outros, desempenharam seus papéis de forma<br />

análoga à vanguarda política de seu país. Cada<br />

um, dentro de perspectivas particulares, desenvolveu<br />

uma prática cinematográfica de acordo com<br />

as novas necessidades revolucionárias exigidas de<br />

qualquer trabalhador seriamente engajado na construção<br />

do então novo estado socialista.<br />

Aqui, a idéia de construção deixa de ser apenas<br />

um mero recurso retórico para se transformar<br />

num projeto maior, incluindo o movimento<br />

estético que moldou a nova cultura soviética durante<br />

os anos 20. As diversas artes, tais como a<br />

pintura, escultura, arquitetura, teatro, desenho<br />

industrial e cinema, possuíam um idioma comum<br />

que refletia a necessidade de reconstrução do todo<br />

do organismo social, estabelecendo um forte<br />

equilíbrio entre arte e sociedade, que fez dos anos<br />

20 na União Soviética um momento privilegiado<br />

da história da cultura do século XX.<br />

Com o objetivo de entender melhor os aspectos<br />

mais salientes da prática cinematográfica soviética<br />

enquanto articulação do projeto geral construtivista,<br />

é necessário ter-se em mente que, em<br />

consonância com outros movimentos de vanguarda<br />

que o precederam, as noções prévias de arte<br />

foram rejeitadas ao se estabelecerem novos papéis<br />

para o artista e para o objeto de arte. A articulação<br />

daquele projeto cultural originava-se dentro dos novos<br />

parâmetros socioeconômicos mais amplos possibilitados<br />

pela Revolução de Outubro, que, sob<br />

condições muito especiais, permitiram a convergência<br />

de objetivos práticos e criativos. Em manifesto<br />

publicado em 1922, intitulado Construtivismo,<br />

Alexei Gan já declarava guerra à arte. Tal atitude<br />

não era de forma alguma inédita, especialmente<br />

durante a segunda metade da década anterior,<br />

como já vimos, rica numa profusão de manifestos<br />

propondo novos objetivos para a arte, de<br />

acordo com agendas variadas e muito específicas.<br />

Nas palavras de Gan, porém, o ataque ao conceito<br />

de arte ganhava uma perspectiva diferente, clara-<br />

mente animada pelas condições sociais ditadas pelo<br />

pensamento marxista revolucionário. Em franca<br />

oposição à noção de arte como mera expressão isolada,<br />

romântica, individual, natural e emocional –<br />

indissoluvelmente ligada à teologia, à metafísica e<br />

ao misticismo –, a polêmica diatribe de Gan, conforme<br />

sua definição, propunha a expressão comunista<br />

das construções materiais, do trabalho artístico<br />

organizado, pertinente à nova era industrial.<br />

“A arte está morta... Arte e religião são atividades<br />

escapistas, portanto perigosas... Vamos acabar com a nossa<br />

atividade especulativa (pintar quadros) e assumir as bases<br />

saudáveis da arte – cor, linha, formas e materiais –<br />

no campo da realidade, da construção prática.” 4<br />

Dois anos antes do manifesto de Gan, Alexander<br />

Rodchenko e sua mulher, a pintora e artista<br />

gráfica Varvara Stepanova, publicaram o programa<br />

do grupo produtivista, uma outra instância do<br />

impulso construtivista em que a influência do pensamento<br />

marxista – em especial da primeira parte<br />

de A ideologia alemã (1845) – é seminal. Com os<br />

produtivistas, formula-se um postulado que afirma<br />

o conhecimento e a percepção das tentativas<br />

experimentais dos soviéticos como resultado de<br />

um transplante das atividades experimentais do<br />

abstrato (transcendental) para o real. 5 A tarefa exigida<br />

por aquele novo posicionamento implicava,<br />

entre outras coisas, a participação real da produção<br />

intelectual como elemento importante na construção<br />

da nova cultura comunista. Isto significou,<br />

principalmente, um contato direto com todos os<br />

centros produtivos e órgãos principais do mecanismo<br />

soviético unificado, que tornou possível,<br />

na prática, novas formas de vivência e experiência.<br />

A ordem, então, era sair para as ruas, para as<br />

fábricas, únicos locais onde os artistas poderiam<br />

reformular os conceitos materialistas e realizá-los<br />

na vida prática, sintetizando as idéias de Marx<br />

referentes aos cientistas, ou seja, os artistas, nas<br />

mais variadas formas, têm interpretado o mundo,<br />

mas sua tarefa é transformá-lo.<br />

4 Idem. 5 RODCHENKO, Alexei e STEPANOVA, Varvara. Program of the productivist group. In: The tradition of constructivism, p. 19.<br />

19


: E<br />

, V<br />

V ANGUARDA<br />

ANGUARDA ANGUARDA REVOLUCIONÁRIA<br />

REVOLUCIONÁRIA: REVOLUCIONÁRIA : EEISENSTEIN<br />

E ISENSTEIN<br />

ISENSTEIN, ISENSTEIN , VVERTOV<br />

V ERTOV E O CONSTRUTIVISMO CONSTRUTIVISMO CINEMATOGRÁFICO CINEMATOGRÁFICO<br />

REVOLUÇÕES<br />

Bule de chá desenhado por Kasimir<br />

Malevich em 1920 para a Cerâmica do<br />

Estado, Leningrado<br />

In Gray, Camilla, op. cit.<br />

In Gray, Camilla, op. cit.<br />

Capa de Construtivista, revista internacional<br />

de artes, desenhada por El Lissitzky e<br />

editada, em Berlim, em 1922<br />

A ênfase na produção e na produtividade encontrava-se<br />

profundamente enraizada na determinação<br />

geral que caracteriza a primeira década da<br />

então nova sociedade soviética. A construção do<br />

socialismo passava pela reconstrução da economia<br />

e da indústria, profundamente abaladas desde<br />

a I Guerra Mundial. De uma maneira geral,<br />

essa tarefa implicava um competente planejamento<br />

e administração da modernização econômica,<br />

através de um processo de industrialização em que<br />

as máquinas desempenhariam um papel fundamental.<br />

O país precisava desesperadamente satisfazer<br />

três condições básicas que levariam à recuperação<br />

econômica, a saber: a necessidade de energia<br />

elétrica – cujo projeto principal seria a construção<br />

da hidrelétrica de Dnieprostroi; a construção<br />

de estradas de ferro – o projeto Turksib seria a<br />

meta principal, pois possibilitaria levar cereais do<br />

norte para as regiões algodoeiras da Ásia Central;<br />

e a mecanização da agricultura com a construção<br />

da fábrica de tratores de Stalingrado. Foi emoldurado<br />

dentro desse panorama geral que se desenvolveu<br />

o trabalho cultural, e artistas, escritores e<br />

cineastas, num esforço inédito e coletivo, dirigiram<br />

suas atenções e energias para a construção da<br />

então nova sociedade.<br />

Na medida em que qualquer processo de desenvolvimento<br />

econômico e social necessita de<br />

graus extremos de organização e planejamento,<br />

o mesmo acontece com as formas culturais, e o<br />

conceito de arte seria, rapidamente, amalgamado<br />

às idéias de produção e utilitarismo. O papel<br />

do artista ganha novos contornos com a idéia de<br />

um “artista-engenheiro”, sublinhando a nova síntese<br />

entre arte e tecnologia. A preocupação com<br />

formas e materiais – exemplos claros no trabalho<br />

de Vladimir Tatlin e de Rodchenko – ligava-se<br />

diretamente à indústria e os artistas tornavam-se<br />

técnicos, aprendendo a usar ferramentas e materiais<br />

da produção moderna com o objetivo de<br />

canalizar todas as energias em benefício do proletariado.<br />

Esta era a função da arte, almejada pela<br />

nova cultura revolucionária. Alexei Gan diria:<br />

“nada ao acaso, não calculado, partindo de um<br />

gosto cego, e de uma arbitrariedade estética. Tudo<br />

deve ser tecnicamente e funcionalmente dirigido”. 6<br />

In Gray, Camilla, op. cit.<br />

Os grandiosos cenários construtivistas<br />

concebidos por Alexandra Exter e Isaac<br />

Rabinovich para o filme Aelita (1924)<br />

Por meio da liderança iluminada de Anatoli<br />

Lunacharsky, Comissário do Povo para a Educação,<br />

no período compreendido entre 1918 e<br />

1929, o novo sistema político e social continuamente<br />

confrontava artistas com esse novo papel<br />

para a arte. As ruas são os nossos museus,<br />

arte dentro da vida e arte para as massas tornaram-se<br />

os slogans principais adotados por artistas<br />

que trabalharam materiais diferentes tirados<br />

de setores diversos da produção industrial, tais<br />

como ferro, vidro, metal ou madeira. Voltando-se<br />

para outros domínios da vida em que a<br />

síntese entre arte e tecnologia tornava-se mais<br />

palpável, artistas como Varvara Stepanova e Liubov<br />

Popova preocupavam-se com aspectos práticos<br />

e industriais como, na área têxtil, a estamparia<br />

de tecidos, enquanto outros, como<br />

Rodchenko ou os irmãos Vladimir e Georgii<br />

Stenberg, criavam cartazes de propaganda e trabalhavam<br />

com fotografia, fotomontagem e ti-<br />

pografia. Kasimir Malevich, além de ser o<br />

mestre do suprematismo, desenhava peças de<br />

porcelana enquanto os irmãos Stenberg logo<br />

se especializaram no design de cartazes para<br />

filmes. Foi o trabalho conjunto desse grupo<br />

de artistas que lançou os fundamentos do moderno<br />

desenho industrial e gráfico, provocando<br />

um impacto forte e decisivo no desenvolvimento<br />

de uma tipografia européia nos anos de<br />

1920, com ressonâncias até os nossos dias.<br />

Grandes áreas chapadas de cor sob formas geométricas<br />

básicas, a imagem agressiva e frontal<br />

das fotomontagens, a dinâmica das composições<br />

em diagonal e a utilização de letras vazadas<br />

em cartazes, capas de livros e revistas<br />

tornaram-se marcas visuais características de<br />

toda uma época. 7 Tanto o teatro quanto principalmente<br />

o cinema, em razão do seu caráter<br />

essencial de produto voltado para as massas,<br />

formaram os outros canais por meio dos quais<br />

a visão construtivista do artista ordenando o<br />

mundo tornou-se realidade. Foi através do teatro<br />

que Eisenstein, então trabalhando como<br />

cenógrafo para Meyerhold, teve um contato<br />

mais próximo com outros artistas, como Vesnin,<br />

Popova e Stepanova, todos mergulhados<br />

na busca dos meios mais radicais de expressão<br />

criativa. Uma instância que hoje restaura<br />

um bom exemplo ilustrativo do visual de um<br />

projeto construtivista de cenografia pode ser<br />

observada no filme Aelita (1924), de Yakov<br />

Protazanov, em que as seqüências imaginárias<br />

no planeta Marte foram acentuadas pelo uso<br />

de um palco gigantesco, cenários que privilegiavam<br />

diagonais e um vestuário futurista criados<br />

por Alexandra Exter e Isaac Rabinovich.<br />

Dziga Vertov também trabalhou com Rodchenko<br />

na série de cinejornais Kino-Pravda<br />

(1922-25). Ambos – Eiseinsten, mais diretamente,<br />

e Vertov – foram, por sua vez, influenciados<br />

6 Afirmação atribuída a Gan, segundo o crítico Standish Lawder em Eisenstein and constructivism. In: The essential cinema.<br />

New York: Anthology Film Archives/NYU, 1975, p. 60. 7 Além dos cartazes, um ótimo exemplo da forma como a tipografia<br />

afetou o cinema pode ser observado nos letreiros dos filmes. Vertov usou letreiros de forma sofisticada através de um cuidado<br />

extremo com a composição formal dos títulos, baseada geralmente em grandes blocos de letras que enchem toda a tela. Na série<br />

de cinejornais Avante Sovietes! (1926) a função dessas composições gráficas era reforçar os elementos que carregavam os<br />

significados mais fortes, de forma a combiná-los numa cadeia sintagmática que reduplicava o sentido das imagens. Como<br />

exemplo podemos citar as cartelas de números 39, 40, 41 e 42, compostas em letras maiúsculas e minúsculas da seguinte forma:<br />

LENINE LENINE LENINE LENINE LENINE no no no no no balcão balcão balcão balcão balcão dos dos dos dos dos SOVIETES SOVIETES SOVIETES SOVIETES SOVIETES clama/ clama/ clama/ clama/ clama/ por por por por por grandes grandes grandes grandes grandes SACRIFÍCIOS.<br />

SACRIFÍCIOS<br />

SACRIFÍCIOS<br />

SACRIFÍCIOS<br />

SACRIFÍCIOS<br />

21


: E<br />

, V<br />

V ANGUARDA<br />

ANGUARDA ANGUARDA REVOLUCIONÁRIA<br />

REVOLUCIONÁRIA: REVOLUCIONÁRIA : EEISENSTEIN<br />

E ISENSTEIN<br />

ISENSTEIN, ISENSTEIN , VVERTOV<br />

V ERTOV E O CONSTRUTIVISMO CONSTRUTIVISMO CINEMATOGRÁFICO CINEMATOGRÁFICO<br />

REVOLUÇÕES<br />

por uma outra cineasta, Esther Schub, companheira<br />

do principal teórico do construtivismo, Alexei<br />

Gan. O trabalho destes três cineastas só pode ser<br />

mais bem compreendido e analisado dentro dos<br />

parâmetros estabelecidos pela moldura construtivista,<br />

não apenas no que diz respeito às exigências<br />

sociais cobradas ao artista revolucionário, como<br />

também, e principalmente, em relação às formas<br />

específicas pelas quais ambos realizaram sua prática<br />

cinematográfica. Vertov corporifica um desejo<br />

de desenvolver os princípios do construtivismo<br />

em todos os níveis de expressão cinematográfica,<br />

do formal e técnico ao social e ideológico.<br />

Assim como Alexei Gan, ele rejeitava a noção de<br />

um cinema de “arte” que, para ele, sempre estivera<br />

associado à burguesia da Rússia pré-revolucionária<br />

através de um cinema definido exatamente<br />

pelos seus padrões hegemônicos, clássicos, excessivamente<br />

teatrais e narrativos, calcado na interpretação<br />

de atores. No primeiro manifesto do<br />

grupo liderado por Vertov, os kinoks, também havia,<br />

logo de início, a inevitável decretação da<br />

morte do “cinema de arte”: “Declaramos que os<br />

velhos filmes dramatizados são leprosos! Não se<br />

aproxime deles! Não os veja! Perigo de morte! Contagioso!<br />

Declaramos que o futuro da arte cinematográfica<br />

está na negação do seu presente!” 8<br />

Entre as anotações retiradas de seu diário,<br />

podemos, igualmente, encontrar uma melhor definição<br />

e proposição para o ataque à idéia de um<br />

cinema de “arte” e aos roteiros:<br />

“Opomo-nos ao cinema de ‘arte’. Com as migalhas<br />

que sobram dos recursos utilizados pelo cinema de arte e<br />

sem recursos de espécie alguma, às vezes construímos nossos<br />

filmes. Naturalmente, preferimos os cinejornais secos<br />

à interferência do roteiro na vida diária dos seres vivos.<br />

Não interferimos na vida de ninguém. Filmamos os fatos<br />

e os organizamos para apresentá-los, na tela, diretamente<br />

à consciência dos trabalhadores. Nossa tarefa principal,<br />

conforme a entendemos, é a interpretação da vida”. 9<br />

O cine-olho de Vertov em O homem da<br />

câmera (1929)<br />

Fotograma de O homem da câmera<br />

(1929), dirigido por Dziga Vertov<br />

O trabalho de Esther Schub também defendia<br />

a perspectiva de um cinema sem atores, na<br />

medida em que ela privilegiava apenas a realidade<br />

intrínseca do material documental, trabalhado<br />

na mesa de montagem a partir de sobras e<br />

fragmentos de filmes abandonados e resgatados<br />

de depósitos e arquivos. Sua própria contribuição,<br />

além de ter sido provavelmente a primeira<br />

pessoa a chamar atenção para o material fílmico<br />

como documento e, conseqüentemente, para a<br />

8 VERTOV, Dziga. Textes et manifestes, Cahiers du Cinéma, n. 220-221, edição especial de maio-junho de 1970. Paris: Éditions<br />

de l’Étoile, 1970. A tradução é de minha autoria. 9 MICHELSON, Annette (ed.). Kino-eye: the writings of Dziga Vertov. Berkeley:<br />

University of California Press, 1984, p. 49. A tradução é de minha autoria.<br />

In Michelson, Annette (org). Kino-eye, the writings of Dziga<br />

Vertov. Berkeley: The University of California Press, 1984<br />

In Michelson, Annette (org.), op. cit.<br />

necessidade de preservação da memória cinematográfica,<br />

localizava-se na fase de montagem. 10<br />

A “interpretação da vida”, segundo a leitura<br />

de Marx feita por Vertov, implicava uma crença<br />

de que a câmera era um meio poderoso de revelação<br />

da verdade e do conhecimento. Indo ao<br />

encontro de um forte preceito construtivista, Vertov<br />

era igualmente fascinado pelas máquinas. Para<br />

ele, a câmera seria o olho aperfeiçoado que os<br />

homens não possuíam. A câmera era um novo<br />

olho, uma nova máquina para se ver e entender<br />

melhor o mundo. Tal qual os mais influentes artistas<br />

construtivistas, Vertov buscava entender o<br />

mundo pelo prisma de sua própria técnica e,<br />

como Tatlin, exercer, através de seu material de<br />

trabalho, o controle sobre todas as formas encontradas<br />

no novo cotidiano.<br />

Assumindo o fato de que o cinema seria um<br />

instrumento filosófico que nos revelaria mais sobre<br />

a vida do que qualquer outra forma de arte,<br />

Vertov iria, então, elaborar todo um projeto de<br />

filmes calcado no desenvolvimento de estratégias<br />

específicas de filmagem, que materializariam<br />

os poderes epistemológicos daquele meio. Se existe<br />

um filme que literalmente ilustra a inscrição<br />

direta da câmera-máquina dentro do seu modo<br />

de produção é O homem da câmera (1929), que<br />

mostra imagens do operador de câmera e sua<br />

máquina sobrepostas a diferentes cenas de rua e<br />

da vida de uma cidade. A presença da câmera<br />

também aponta para o fato de que estamos diante<br />

de um filme que está sendo feito, em processo,<br />

incorporando em si um discurso sobre seu<br />

modo de produção específico e, com isso, definindo<br />

o cameraman como mais um produtor-trabalhador,<br />

simetricamente nivelado aos outros<br />

setores da produção econômica, como a indústria<br />

têxtil. Em determinada seqüência do filme,<br />

fica mais clara a posição mediadora do fotógra-<br />

fo, sobreposto em fusão a imagens da represa<br />

hidrelétrica e da fábrica têxtil. A câmera-máquina,<br />

através dos olhos de Vertov, olhava para outras<br />

máquinas como algo vivo, não apenas mecânico<br />

e sim animado, orgânico, em conjunto com<br />

certos princípios construtivistas.<br />

De forma brilhante, Eisenstein também nos<br />

dá um ótimo exemplo de como impregnar a máquina<br />

com vida, na famosa seqüência do separador<br />

de creme em A linha geral (1929). A câmera<br />

de Eisenstein, já no plano de abertura do seu primeiro<br />

longa-metragem, está montada numa grua<br />

Sergei Eisenstein, na plataforma superior,<br />

ensaiando a peça Máscaras de gás<br />

(1924), dentro da Usina de Gás<br />

de Moscou<br />

10 Esther Schub (1894-1959) foi uma pioneira do chamado filme de compilação, de acordo com o historiador Jay Leyda em Film<br />

beget films (New York: Hill and Wang, 1971). Segundo Leyda, ela era uma excelente e talentosa montadora, responsável por dar ao<br />

jovem Eisenstein o seu primeiro emprego em cinema. Schub defendia ardorosamente em sua prática as noções construtivistas de<br />

uma atitude analítica frente à verdade dos materiais e à destruição de objetivos puramente estéticos. De sua filmografia, vale a pena<br />

destacar A queda da dinastia dos Romanov (1927), O grande caminho (1928) e A Rússia de Nicolau II e Leon Tolstoy (1928). Junto<br />

com Vertov, ela é uma das mais influentes realizadoras no desenvolvimento do documentário no período pós-revolucionário.<br />

In Leyda, Jay & Voynov, Zina. Eisenstein at work. New York: Pantheon/The Museum of Modern Art, 1982<br />

23


: E<br />

, V<br />

V ANGUARDA<br />

ANGUARDA ANGUARDA REVOLUCIONÁRIA<br />

REVOLUCIONÁRIA: REVOLUCIONÁRIA : EEISENSTEIN<br />

E ISENSTEIN<br />

ISENSTEIN, ISENSTEIN , VVERTOV<br />

V ERTOV E O CONSTRUTIVISMO CONSTRUTIVISMO CINEMATOGRÁFICO CINEMATOGRÁFICO<br />

REVOLUÇÕES<br />

mecânica que avança por dentro do espaço de uma<br />

fábrica, afinal o lugar mais natural para a arte,<br />

como o próprio Eisenstein já havia experimentado<br />

antes, ao montar a produção da peça Máscaras<br />

de gás (1924), também no espaço interno de<br />

uma fábrica. É interessante observar aqui a formulação<br />

concreta dessa nova ordem construtivista<br />

de “sair para as fábricas” animando diversas<br />

propostas artísticas soviéticas que, embora em<br />

contextos e com significados diferentes, testemunham<br />

a apropriação da presença industrial da fábrica<br />

em, pelo menos, três momentos emblemáticos:<br />

a fábrica de atrações, de Eisenstein, a fábrica<br />

de fatos, de Vertov, e a fábrica do ator excêntrico-<br />

FEKS, de Grigori Kosintsev e Leonid Trauberg.<br />

O desenvolvimento de estratégias de realização<br />

do projeto vertoviano de dimensões epistemológicas<br />

insistiria, sobretudo, na materialidade<br />

concreta do cinema, por meio de uma organização<br />

extrema dos recursos cinematográficos<br />

e da posição-chave desempenhada nesse processo<br />

pela montagem. A ênfase na organização<br />

encontrava eco na noção construtivista de uma<br />

arte de produção introduzida na vida como um<br />

aspecto maior do esforço criativo do artista em<br />

estabelecer, sob novas formas, a aparência externa<br />

da vida e da complexidade dos objetos<br />

que circundam o nosso ambiente. Segundo interesses<br />

específicos, os artistas também conseguiram<br />

transformar em prática a análise em laboratório<br />

dos materiais que constroem as formas.<br />

Para Vertov, a questão principal localizava-se<br />

no significado real da montagem. A resposta<br />

vinha mediante uma radicalização do processo<br />

a partir da filmagem do material, em que<br />

já se pressupunha uma seleção de temas, lugares,<br />

tamanho dos planos, enquadramento, e daí<br />

para a sala de montagem, com a articulação de<br />

seus diferentes estágios, tais como a avaliação<br />

dos documentos, planejamento e duração dos<br />

planos (síntese da montagem), discussão das relações<br />

gráficas da justaposição de diferentes imagens,<br />

entre outros procedimentos. O homem da<br />

câmera, mais uma vez, é o filme-chave, no qual<br />

aparece uma exposição literal do processo. Enfatizando<br />

a noção construtivista do contato mais<br />

íntimo entre artista, trabalhador e máquina, são<br />

apresentadas, nesse filme, imagens da moviola<br />

e do montador organizando o material fílmico<br />

dentro da sala de montagem, onde o filme está<br />

sendo editado. Tal nível de reflexividade se constrói<br />

diante do espectador, apresentado na materialidade<br />

ótica das tiras de filme que Elizaveta<br />

Svilova, a montadora do filme (e companheira<br />

de Vertov), mantém penduradas lado a lado,<br />

e das quais seleciona, isola, fragmentos e planos<br />

específicos (como o da garotinha olhando<br />

para a câmera, ou o da velha senhora), trazendo-os<br />

à vida, outra vez, na fluidez da cadência<br />

dos fotogramas agora em movimento.<br />

Num processo idêntico ao da pintura construtivista,<br />

iniciado no momento em que os artistas<br />

deixaram de representar em suas telas a aparência<br />

externa do mundo, privilegiando as formas<br />

construtivas que repousam na base da realidade<br />

visual, Vertov, na tentativa de desmistificar<br />

o ilusionismo cinematográfico, também desenvolveu<br />

um conjunto de procedimentos materiais<br />

com o objetivo de revelar a verdade que existe<br />

por trás da ilusão. E chegou à conclusão de que,<br />

de todos os artifícios disponíveis ao cineasta, os<br />

mais poderosos eram aqueles ligados às características<br />

do cinema enquanto um meio temporal,<br />

ou seja, o congelamento da imagem e o movimento<br />

reverso, como se você estivesse vendo<br />

tudo de trás para frente. Tais conclusões devemse<br />

ao fato de que os dois procedimentos, ao representarem<br />

o conhecimento, enfatizam exatamente<br />

processos cognitivos encontrados diretamente<br />

no cinema. A primeira série dos cinejornais<br />

Kino-Glaz (1924) sintetiza muito bem tais<br />

procedimentos ao mostrar os modos de produção<br />

de carne e pão através da negação do tempo,<br />

onde os espectadores são capazes de recompor<br />

todo o desenvolvimento inverso do processo, do<br />

produto final até suas origens. Nesse movimento<br />

ao contrário, a ligação entre campo e cidade<br />

fica também estabelecida, reiterando na sociedade<br />

soviética a natureza da produção de um bem<br />

material. A lição é clara para quem ainda não desconfiava:<br />

o pão comido em Moscou é feito do<br />

trigo que vem de outras regiões mais distantes.<br />

De igual modo, Eisenstein desenvolveu estratégias<br />

específicas no sentido de provar o potencial<br />

fílmico ao expor o ilusionismo em termos<br />

da violação de uma cronologia pró-fílmica,<br />

através das distensões temporais, como na famosa<br />

seqüência do levantamento da ponte em<br />

Outubro (1927). Os resultados das formulações<br />

específicas, tanto de Vertov quanto de Eisenstein,<br />

com relação a um cinema que procurava<br />

decisões intelectuais por parte do espectador,<br />

estavam em perfeita consonância com o credo<br />

construtivista que definia o racionalismo e o axioma<br />

do controle consciente do processo criativo<br />

como elementos a serem refletidos na obra de<br />

arte. Assim, inseridos na paisagem histórica da<br />

primeira década da sociedade soviética, os filmes<br />

desse período, no plano formal, também fizeram<br />

a crônica de temas originados da reconstrução<br />

da economia soviética, em sintonia com<br />

a base construtivista para o trabalho teatral, ou<br />

seja, movimento e ação. A câmera, montada nas<br />

mais diversas ferramentas industriais, tais como<br />

gruas e guindastes, trens suspensos, vagões ou<br />

roldanas, seria um olho privilegiado que se move<br />

por cima de uma hidrelétrica, nas mãos do operador,<br />

ou avança através da extensão da fábrica,<br />

quase junto ao teto, movendo-se da frente para<br />

o fundo, tal como em A greve (1925), ou em O<br />

11° ano, de Vertov (1928). Outra peça montada<br />

por Eisenstein, intitulada O sábio (1923), também<br />

projetava um ator sobre as cabeças dos espectadores,<br />

numa espécie de “invasão” do espa-<br />

In Michelson, Annette (org.), op. cit.<br />

ço espectatorial semelhante às esculturas construtivistas<br />

de Tatlin, com seus contra-relevos ou<br />

relevos-de-canto, construídos a partir de uma superfície<br />

bidimensional, mas que se projetavam<br />

para a frente do espectador, numa galeria de arte<br />

ou num museu. No filme O 11° ano, Vertov também<br />

“seqüestra” o espectador sentado em sua<br />

poltrona em termos puramente visuais. Um plano,<br />

logo no início do filme, mostra a enorme pá<br />

mecânica de uma escavadeira que avança em sentido<br />

frontal para a platéia e invade o espaço do<br />

espectador. Numa perspectiva inteiramente construtivista,<br />

esse movimento cinético enfatizava<br />

dois fatos principais. Primeiro, que o cinema<br />

soviético, em sua fase considerada heróica, lançou<br />

mão e ampliou consideravelmente o repertório<br />

de movimentos de câmera existente até<br />

então no cinema. Segundo, que a qualidade desse<br />

movimento em Vertov é um correspondente<br />

formal do próprio movimento de construção da<br />

indústria e da sociedade. Desta maneira podemos<br />

afirmar que os cineastas soviéticos nos anos<br />

de 1920 literalmente escreveram, de maneira cinematográfica,<br />

e numa perspectiva construtivista,<br />

o processo de industrialização da União Soviética.<br />

Revendo o passado desses mais de cem<br />

anos de existência das imagens em movimento,<br />

e talvez com uma ultrapassada, porém quase que<br />

inevitável nostalgia, me dou conta, de repente,<br />

de como o cinema já esteve muito mais interligado<br />

com a sociedade, refletindo, construindo e,<br />

sobretudo, transformando a História do século XX.<br />

O trabalho da montagem explicitado em<br />

O homem da câmera (1929)<br />

25


Soldado cubano<br />

vigiando maquinário<br />

doado pelo governo<br />

soviético. Havana, Cuba,<br />

25/5/1964. Acervo<br />

Correio da Manhã<br />

AN PH/FOT/ 4636(51)


Jean Epstein<br />

Cultura Cinematográfica<br />

O cinema<br />

tem cinqüenta anos, 1<br />

e um quarto de século se passou<br />

desde o momento em que Canudo<br />

inventou chamá-lo de o caçula,<br />

a sétima das artes. Efetivamente,<br />

o cinema era então – e devia permanecer<br />

ainda durante alguns anos<br />

– uma arte menor, uma arte parasita.<br />

Ele vivia de empréstimos feitos<br />

a todas as outras artes, a todos os<br />

outros meios de expressão. O roteiro<br />

imitava a fabulação de um romance<br />

ou de uma peça de teatro.<br />

Os atores representavam como se<br />

estivessem em cena. O câmera mais<br />

ambicioso procurava quadros à<br />

Brueghel, iluminações à Rembrandt,<br />

imagens vaporosas à Carrière. Um<br />

maquiador e um figurinista mais<br />

ousados faziam cubismo sobre o rosto<br />

e sobre as roupas dos personagens.<br />

Um subtitulador depositava uma dissertação<br />

entre as imagens. E estas retiravam<br />

o que lhes faltava em poder<br />

emocionante de um acompanhamento<br />

musical contínuo. Assim, simultânea<br />

ou sucessivamente, todos os<br />

gêneros literários, todos os ramos da<br />

técnica teatral, todos os estilos da<br />

pintura, da arquitetura, da música,<br />

impregnavam a arte do filme.<br />

Em uma época – que ainda não<br />

passou completamente – foi moda<br />

monografar as influências de cada<br />

uma das outras artes sobre o cinema,<br />

que aparecia crivado de dívidas<br />

insolúveis. Hoje, a posição do<br />

cinema é muito diferente. Há doze<br />

anos já, Gilbert Mauge anotava em<br />

seus Moralistas da inteligência:<br />

1 Escrito em 1945.<br />

“1436: Gutemberg e Furst imaginam<br />

a imprensa. 1936: o livro é<br />

abandonado; as idéias entram diretamente<br />

pelas orelhas e as imagens<br />

diretamente pelos olhos.”<br />

Na verdade, não é preciso exagerar<br />

a importância e a novidade do<br />

ensino recebido pela orelha, primeiro<br />

porque o ouvido só exerce, sobre<br />

a formação intelectual, uma ação<br />

muito inferior à que é exercida pela<br />

vista; também porque o ouvido transmite<br />

principalmente o que já se acha<br />

congelado no velho molde clássico da<br />

linguagem falada, muito semelhante<br />

à linguagem escrita; enfim, porque<br />

o rádio, novo meio de detecção e<br />

transmissão nesse domínio, permaneceu<br />

até agora em um estágio primitivo<br />

de impessoalidade. A prodigiosa<br />

expansão da imagem, e sobretudo<br />

da imagem animada, é que<br />

constitui o fato novo, comandando<br />

a aparição de uma nova forma de<br />

cultura diretamente visual.<br />

Atualmente, o homem da rua,<br />

que talvez não tenha lido quinze livros,<br />

desde que saiu da escola até os<br />

seus quarenta anos, viu seguramente,<br />

ainda que à razão de um espetáculo<br />

por mês, uns trezentos filmes. Esse<br />

homem, quando sabe alguma coisa da<br />

existência do padre Foucauld, dos<br />

costumes dos esquimós, da inteligência<br />

das formigas, aprendeu não pelo<br />

livro, pela via analítica das palavras<br />

abstratas, reunidas logicamente no<br />

quadro da sintaxe raciocinada, mas<br />

pelo filme, pela via emocionante, in-<br />

tuitiva, de imagens justapostas de<br />

modo muito simples, representações<br />

muito mais sintéticas e próximas da<br />

realidade concreta. Que falem ou leiam<br />

a seu respeito, o padre Foucauld<br />

é um nome, uma data, um itinerário,<br />

uma citação moral, um esquema seco<br />

de palavras que tendem natural e rapidamente<br />

a se descolorir completamente<br />

no esquecimento; mas, na tela,<br />

é a solidão de um eremitério perdido<br />

na imensidão das areias, um rosto<br />

emagrecido e apaixonado, um olhar<br />

fervoroso e bom, um sorriso que perdoa<br />

de antemão os assassinos: família<br />

de imagens supersaturadas de emoção,<br />

de signos dramáticos que continuam<br />

a viver por muito tempo na lembrança,<br />

com vida própria e também<br />

a se multiplicar e a crescer, por sua<br />

própria força interior. Seria fácil acumular<br />

outros exemplos, todos mostrando<br />

que, na cultura geral do homem<br />

médio, a parte livresca e verbal<br />

é agora obrigada a ceder algo de sua<br />

preponderância a uma parte imagética,<br />

cujos elementos mais ativos são<br />

de origem cinematográfica. Evidentemente,<br />

por cultura entendemos<br />

aqui, não a erudição de minorias especializadas<br />

por longos estudos, mas<br />

esse fundo disparatado de conhecimentos<br />

que constitui o dominante do<br />

clima mental de uma época e do qual<br />

todo espírito se ocupa, sem o procurar,<br />

exercendo banalmente suas faculdades.<br />

Cultura sumária, mas difundi-<br />

Texto e foto extraídos do livro Esprit de cinéma, de Jean Epstein, Éditions Jeheber, Genève-Paris, 1955. Tradução de Luiz Izidoro.<br />

da infinitamente e utilizada continuamente,<br />

por toda parte, sob cuja luz<br />

todo mundo é cultivado sem o saber;<br />

cultura que hoje o filme forma mais<br />

do que o livro, alimentando de imagens<br />

muito poderosas nossa memória<br />

e nossa imaginação.<br />

Além dessa influência geral sobre<br />

os espíritos, sensível de modo<br />

particular nos meios pouco letrados,<br />

o cinema exerce também uma ação,<br />

cujos resultados são aparentes, sobre<br />

os escritores e os artistas. Os jornais,<br />

as revistas que apresentam “filmes”<br />

de tal ou tal acontecimento em uma<br />

seqüência de ilustrações subtituladas<br />

de modo conciso; as propagandas de<br />

publicidade, os cartazes que utilizam<br />

visões fragmentárias, o primeiro plano,<br />

os aspectos deformados pelo movimento;<br />

o estilo literário que se esforça<br />

freqüentemente para rivalizar<br />

em rapidez com o desenvolvimento<br />

cinematográfico da ação, renunciando,<br />

por causa disso, à correção gramatical<br />

plena, que, além do mais,<br />

substitui uma exposição didática muito<br />

longa pela sugestão de uma imagem<br />

visual; a decoração e a moda, que<br />

se inspiram em modelos criados para<br />

o filme; até mesmo a técnica teatral<br />

que se esforça, por sua parte, para se<br />

separar do que tem de factício e afetado,<br />

para se aproximar da variedade<br />

e da verdade documentária da miseen-scène<br />

e da interpretação na tela; todas<br />

essas artes, por sua vez, encontram-se<br />

doravante devedoras em relação<br />

ao cinema. E é preciso reconhecer<br />

que nenhuma outra técnica de<br />

expressão possui atualmente uma esfera<br />

de influência tão vasta. O cinema<br />

tornou-se realmente uma arte<br />

maior, que conduz mais do que se<br />

deixa guiar. A sétima? A julgar pelas<br />

multidões a que se dirige e por sua<br />

influência sobre suas mentalidades,<br />

parece mais justo tomá-la pela primeira<br />

ou em via de se tornar.<br />

Assim, a cultura cinematográfica<br />

manifesta-se como transformação<br />

dos elementos e dos modos de pensar<br />

mais simples e mais comuns e<br />

também como modificação das artes<br />

e das técnicas, dos sistemas de<br />

expressão mais elevados. Por que um<br />

poder revolucionário tão geral? Porque<br />

o cinema é não só uma arte do<br />

espetáculo, capaz de suplantar o teatro,<br />

e uma linguagem imagética, podendo<br />

rivalizar com a palavra e a escritura,<br />

mas também, e antes de<br />

tudo, um instrumento privilegiado<br />

que revela, como a luneta ou o microscópio,<br />

aspectos do universo desconhecidos<br />

até então. Se telescópios<br />

e microscópios, colocando ao alcance<br />

da vista seja o infinitamente grande<br />

e longínquo, seja o infinitamente<br />

pequeno e próximo, renovaram a<br />

cultura humana, o cinema, por sua<br />

vez, permite ao olhar penetrar o<br />

movimento e o ritmo das coisas,<br />

analisar o infinitamente rápido e o<br />

infinitamente lento. Certamente, as<br />

ciências, a filosofia, a religião, a<br />

consciência que o homem tem de si<br />

próprio, tudo isso mudou graças às<br />

imagens criadas pelas lentes de aumento,<br />

mas essa revolução teria sido<br />

ainda mais rápida, seria ainda mais<br />

profunda, se existisse uma arte espetacular<br />

da telescopia e da microscopia,<br />

que assegurasse às aparências dos<br />

astros e das moléculas uma publicidade<br />

verdadeiramente popular. Ora,<br />

o cinema realiza precisamente essa<br />

conjuntura de um divertimento pú-<br />

blico e de uma descoberta de realidades<br />

novas, em um mesmo aparelho.<br />

Compreendemos então que as<br />

inovações trazidas pelo filme se propagam<br />

largamente, ainda que o cinema<br />

tenha, até agora, sacrificado<br />

sua missão de descobridor a seu papel,<br />

mais lucrativo, de animador.<br />

É preciso procurar os caracteres<br />

essenciais da cultura cinematográfica,<br />

cujo nascimento assistimos, nos caracteres<br />

do instrumento que a constrói,<br />

que a propaga. Pois um fato evidente<br />

na história da civilização é que<br />

todo instrumento refaz, recria, mais<br />

ou menos, à sua maneira, o espírito<br />

que o concebeu, que o criou. O cinema<br />

é, por excelência, o aparelho de<br />

detecção e de representação do movimento,<br />

isto é, da variação de todas<br />

as relações no espaço e no tempo, da<br />

relatividade de toda medida, da instabilidade<br />

de todas as referências, da<br />

fluidez do universo. Profundamente,<br />

portanto, a cultura cinematográfica<br />

será a inimiga de todos os sistemas<br />

que supõem modelos absolutos, valores<br />

fixos; inimiga de todas as concepções,<br />

ainda em vigor atualmente, que<br />

se fundam sobre a experiência extracinematográfica,<br />

cem vezes milenar, de<br />

um mundo estável e sólido; logo, inimiga<br />

também das formas muito rígidas<br />

de expressão, da bela linguagem,<br />

das palavras escritas ou faladas, concreções<br />

de pensamentos envelhecidos,<br />

petrificados como mortos; inimiga ainda<br />

dos racionalismos clássicos, que pretendem<br />

apreender a perpétua mobilidade<br />

do sentimento em uma regra invariável.<br />

Cultura revolucionária, sem<br />

dúvida, e que, à primeira vista, pode<br />

parecer bárbara, mas na qual já adivinhamos<br />

extremas sutilezas.<br />

REVOLUÇÕES<br />

29


“Pelotão de soldados<br />

da Frente de Libertação<br />

<strong>Nacional</strong> – FLN”.<br />

Argélia, 20/8/1960.<br />

Acervo Correio da Manhã<br />

AN PH/FOT/ 5640(57)


E N T R E V I S T A concedida por Marc Ferro a Bernado Frey, Jacques D’Arthuys, Priscila Soares e Vitor Martins, em Portugal, no final<br />

da década de 1970, e divulgada no Brasil pela Coordenação Central de Atividades de Extensão da PUC-Rio, em apostila do Departamento de História.<br />

Falsificações<br />

Falsificações<br />

M: Qual é, para o senhor, a diferença<br />

entre o documento escrito e o<br />

documento filmado e como tratá-los?<br />

MF: Digamos que o documento<br />

filme tem uma dependência maior<br />

relativamente às instituições que<br />

organizam a sociedade do que o<br />

documento escrito, tradicional, e<br />

mesmo do que o discurso. Porque<br />

geralmente o historiador que escreve<br />

apóia-se em fontes institucionalizadas,<br />

isto é, fontes políticas que<br />

pertencem a partidos ou sindicatos,<br />

contas de empresa ou estatísticas<br />

de gestores, o que equivale a dizer<br />

que a maior parte desses documentos<br />

que servem de suporte ao trabalho<br />

histórico têm uma função de<br />

regulamentação da sociedade, de<br />

regulamentação da produção, portanto<br />

são fontes que têm maior<br />

importância pelo seu funcionamento<br />

do que na verdade pelo seu conteúdo.<br />

Por exemplo, se eu quiser<br />

escrever uma história da URSS e<br />

me ativer às fontes escritas, vou<br />

encontrar milhões de estatísticas<br />

sobre a produção agrícola, e sabemos<br />

bem que esses livros cheios de<br />

estatísticas são duplamente falsos,<br />

porque as estatísticas são falsas e<br />

pouco interessa a razão disso – aliás,<br />

dar-se-ia a mesma coisa se se tratasse<br />

do poder de compra dos franceses<br />

ou dos portugueses, ou dos<br />

investimentos americanos no Chile.<br />

O que eu quero dizer é que toda<br />

esta visão da história que se apóia<br />

sobre as fontes referidas como sendo<br />

justas, exatas, precisas, científicas,<br />

nos dá finalmente um discurso<br />

completamente falso sobre a sociedade,<br />

nos dá apenas reflexos de<br />

um discurso oficial – oficial que<br />

não é apenas o do governo mas também<br />

o da oposição, ou seja, de todos<br />

os grupos políticos, econômicos,<br />

sociais, que têm por finalidade<br />

tomar a sociedade sob sua alçada.<br />

Naturalmente os historiadores<br />

de qualidade tentam fazer a crítica<br />

desses documentos escritos, mas<br />

dois algarismos falsos não podem<br />

evidentemente dar uma adição exata,<br />

ou seja, não é pelo fato de fazer<br />

a crítica dos dados da produção de<br />

trigo na União Soviética e mostrar<br />

que ela é falsa, segundo os números,<br />

que passo a ter uma visão exata<br />

do problema da produção de trigo<br />

na União Soviética. Dá-se o mesmo<br />

no que se refere ao preço do<br />

petróleo, acerca do qual todos os tipos<br />

de dados oficiais nos advertiram<br />

que deveria baixar, dados esses<br />

estabelecidos pelos melhores estatísticos,<br />

analistas, economistas e<br />

historiadores, quando afinal o preço<br />

do petróleo subiu porque se tinha<br />

emitido um certo número de<br />

fatores que não figuravam na tradição<br />

escrita nem mesmo oral.<br />

É certo que um bom número de<br />

documentos fílmicos sofre do mesmo<br />

defeito, são também documentos<br />

parcialmente falsos, porque<br />

emanam de instituições também<br />

elas interessadas em dirigir a sociedade.<br />

Por exemplo, a televisão<br />

© Sophie Bassouls/Sygma<br />

AN PH/FOT/ 13761(78)<br />

francesa ou a empresa econômica<br />

Fox enviam repórteres para filmar<br />

qualquer coisa, dão suas ordens<br />

para que se filme Chipre no momento<br />

de uma crise, ou Portugal<br />

no momento das eleições. Percebemos<br />

que há mil documentos sobre<br />

a desordem em Chipre, os turcos<br />

matando os gregos, ou os gregos a<br />

matar os turcos, mas que nunca há<br />

documentos sobre a vida cotidiana<br />

em Chipre, fora dos momentos de<br />

crise, quando é justamente essa<br />

vida cotidiana que está na origem<br />

da crise. Assim, o documento fílmico<br />

é por vezes tão falso, ou antes,<br />

tão parcial como o documento<br />

escrito, respondendo às necessidades<br />

dos organismos que lhe dão<br />

lugar, ingleses ou americanos, porque<br />

no final das contas o que todos<br />

esses documentos mostram é que<br />

em Chipre as pessoas não podem<br />

se governar sozinhas, porque passam<br />

a vida a matar-se; esses docu-<br />

AN PH/FOT/ 113761(21)<br />

mentos nunca procuram examinar<br />

a origem do fenômeno.<br />

Portanto, o documento fílmico<br />

pode apresentar o mesmo tipo de<br />

inconveniente que o documento<br />

escrito, a diferença é que o primeiro<br />

traz, sem querer, uma informação<br />

que vai contra as intenções<br />

daquele que filma, ou da empresa<br />

que mandou filmar. Por exemplo,<br />

quando se filma a cerimônia de<br />

condecoração de um general, naturalmente<br />

as câmeras do exército<br />

estão presentes, as câmeras do governo<br />

francês (se isto se passar na<br />

França) estão lá e filmam o general<br />

no momento em que um outro general<br />

lhe coloca a medalha. Mas,<br />

se por detrás, ao mesmo tempo, há<br />

pessoas que se manifestam ou riem,<br />

ou que protestam, a câmera também<br />

os apanha, enquanto num texto<br />

nunca ficarão vestígios desse<br />

tipo de fenômeno. Se eu pegar, por<br />

exemplo, uma das manifestações do<br />

1º de Maio de 1976 a que tive ocasião<br />

de assistir no Porto, e se comparar<br />

um filme ou uma fotografia<br />

das manifestações de ontem com<br />

uma das manifestações do ano passado,<br />

percebo imediatamente um<br />

fenômeno formidável, é que já não<br />

há soldados de uniforme. E nos jornais<br />

que leio não se fala desse problema.<br />

Esse problema não está presente<br />

nas análises das organizações<br />

que fazem textos sobre a Revolução<br />

em Portugal e a evolução da situação,<br />

porque o seu sistema tático,<br />

estratégico, é talvez falar de outras<br />

coisas, e o seu discurso escrito vai<br />

esconder um fenômeno que o discurso<br />

cinematográfico ou fotográfico<br />

pode nos dizer. Eis um primeiro<br />

ponto. Portanto, o discurso com o<br />

filme é necessariamente diferente do<br />

discurso com os textos e pode fornecer<br />

uma história que não é mais<br />

exata nem melhor, mas que é dife-<br />

Protesto de ingleses<br />

contrários à visita do<br />

primeir-ministro<br />

português, Marcelo<br />

Caetano. Londres,<br />

16/7/1973. Acervo<br />

Correio da Manhã<br />

REVOLUÇÕES<br />

33


F ALSIFICAÇÕES ALSIFICAÇÕES<br />

REVOLUÇÕES<br />

Presidente Charles De Gaulle cumprimentando argelinos. Argélia, s.d.<br />

Acervo Correio da Manhã<br />

rente e se confronta com as outras<br />

histórias e com as outras análises.<br />

Utilizo essa possibilidade de confrontação,<br />

por exemplo, no filme sobre a<br />

guerra de 1914, em que os documentos<br />

são com freqüência usados no<br />

sentido contrário ao da significação<br />

que tinham quando foram filmados.<br />

M: As instâncias do poder nunca<br />

tentaram se apoderar dos arquivos<br />

fílmicos do mesmo modo que o fizeram<br />

com os arquivos de textos?<br />

MF: O poder naturalmente procura<br />

lançar mão dos arquivos, mas a<br />

multiplicação das câmeras e as necessidades<br />

da produção industrial<br />

criam uma contradição que leva ao<br />

seguinte resultado: num país em que<br />

são controladas de um modo particular<br />

as fontes de informação sobre<br />

a sociedade, como por exemplo<br />

na União Soviética, há também<br />

um grande número de filmes que<br />

escapam ao controle do poder, porque<br />

há milhares de jovens cineastas<br />

e indivíduos, simples cidadãos,<br />

que com uma câmera e meios mo-<br />

AN PH/FOT/ 18837(244)<br />

destos chegam a fazer filmes. Esses<br />

filmes não figuram nos arquivos<br />

oficiais de Moscou, mas nem por<br />

isso deixam de existir e ser vistos,<br />

um dia na França, outras vezes no<br />

interior, por pequenos grupos na<br />

Geórgia ou em Samarcand, e é de<br />

notar que há muitos desses filmes<br />

nas repúblicas mais afastadas do<br />

centro do poder político. Por conseguinte,<br />

há sempre uma vontade<br />

de controle. O governo de De Gaulle,<br />

por exemplo, não propriamente<br />

De Gaulle mas alguns dos seus<br />

servidores, suprimiu dos arquivos<br />

documentos que mostram Georges<br />

Bideau, no dia da libertação, ao<br />

lado de De Gaulle. Já não é possível<br />

encontrar esse documento. Portanto,<br />

há sempre uma vontade de<br />

controle e se dou este exemplo é<br />

porque na França é o mais conhecido,<br />

o mais simples. E apesar de<br />

tudo não há muitos exemplos, porque<br />

os poderes políticos ainda não<br />

compreenderam o papel que o filme<br />

pode desempenhar como elemento<br />

de crítica política e social.<br />

Além do mais, porque os dirigentes<br />

políticos não sabem ler o filme,<br />

não sabem utilizá-lo, olham para o<br />

argumento, para o comentário, mas<br />

as censuras que fazem são simplistas.<br />

Por exemplo, Pompidou foi vaiado<br />

em Reims em 1971; nas atualidades<br />

é possível vê-lo ao vivo, depois<br />

de ser cortada a seção em que<br />

foi vaiado e depois de uma montagem.<br />

Todos os regimes fazem isso,<br />

toda organização censura, não creio<br />

que se possa considerar que a censura<br />

seja privilégio de um tipo de<br />

regime e que apenas a democracia...<br />

Mas onde reina a democracia?<br />

M: O senhor não acha que o poder,<br />

além de manipular um certo<br />

número de documentos incômodos,<br />

é ele próprio quem produz a<br />

maior parte destes documentos; é<br />

ele próprio quem produz a maior<br />

parte dos documentos fílmicos sobre<br />

um acontecimento, um período<br />

etc., e finalmente, mesmo se<br />

existe um documento contestatório,<br />

a grande massa dos que se podem<br />

recolher sobre um período é influenciada<br />

pelo menos pelo pensamento<br />

dominante da época?<br />

MF: Sim, certamente, foi o que<br />

Godard disse e dou-lhe completamente<br />

razão. Mas isso não impede<br />

que o filme seja matéria na qual há<br />

o maior número de lapsos, isto é,<br />

em que uma certa realidade, para<br />

além daquela que se quer mostrar,<br />

aparece apesar de tudo. Algumas<br />

vezes há lapsos nos textos, mas no<br />

filme há lapsos a todo o momento,<br />

porque a realidade que se quer representar<br />

não chega a esconder uma<br />

realidade independente da vontade<br />

do operador de câmera. Quero dizer<br />

que, se agora se fizer um filme<br />

sobre Portugal, há toda uma quantidade<br />

de imagens que reproduzi-<br />

rão o discurso oficial das organizações,<br />

isto é, do governo, dos socialistas,<br />

dos comunistas, dos sindicatos,<br />

mas a câmera mostrará, apesar<br />

de tudo, que as pessoas que<br />

votam em partidos diferentes se<br />

vestem todas da mesma maneira,<br />

que têm por vezes o mesmo estilo<br />

de vida, toda espécie de verdade<br />

que o discurso oficial das organizações<br />

recusa ver. Por conseguinte,<br />

mesmo uma ideologia dominante<br />

que financia e ordena um armazenamento<br />

de informação orientada<br />

fornece matéria para uma contrahistória,<br />

contra a sua vontade.<br />

M: Para além dessas questões, o<br />

senhor pensa que algum dia o cinema<br />

deixará de ser utilizado apenas<br />

para desmascarar o discurso<br />

oficial para mostrar a realidade,<br />

para passar a dar conta da realidade,<br />

da verdadeira realidade social?<br />

MF: Creio que se assiste a uma<br />

grande vontade de agir nesse sentido,<br />

mas ao mesmo tempo creio que<br />

nunca há uma grande eficácia porque,<br />

no atual estado das sociedades,<br />

que vivem na opressão social,<br />

na alienação do trabalho, o filme é<br />

ainda compreendido, na atual condição<br />

e por grande parte das pessoas,<br />

como um elemento de distração.<br />

Portanto, todo filme que, para<br />

ser militante, reproduz as condições<br />

e as dificuldades da realidade social<br />

não tem sucesso, porque aponta<br />

para uma verdade que as pessoas<br />

que sofrem não querem conhecer.<br />

Porque, quando se aponta para<br />

as razões reais de seu sofrimento,<br />

as pessoas ficam de tal modo desesperadas<br />

que perdem completamente<br />

a esperança. Daí que seja necessário<br />

que mascarem em si próprias<br />

uma parte da realidade. Mostrar a<br />

origem da realidade não é possível<br />

senão em períodos de crise, durante<br />

um ou dois anos, como em Maio<br />

de 1968, na França, ou ainda, talvez,<br />

mais seis meses ou um ano aqui<br />

em Portugal. Pode-se imaginar um<br />

cinema militante ativo que as pessoas<br />

aceitarão porque estão em plena<br />

fase de abertura, mas se já têm<br />

essa capacidade de modo concreto,<br />

imediato, real, os filmes que<br />

analisam a realidade social finalmente<br />

só serão eficazes e só darão<br />

prazer aos que o fizeram. Seria preciso<br />

imaginar um outro estágio em<br />

que já não houvesse separação de<br />

poder entre o cineasta e a sociedade<br />

que filma; que chegasse um<br />

momento em que a própria sociedade<br />

se filmasse a si própria, aí<br />

então ter-se-ia libertado dos problemas<br />

porque se sentiria criadora, já<br />

não estaria dominada por voyeurs<br />

que analisam os seus dramas, o que<br />

nunca é agradável porque ninguém<br />

gosta que penetrem na sua vida<br />

social ou privada. Se você mostrar<br />

a um operário que ele é explorado,<br />

iludido, enganado pelo seu patrão,<br />

pelo seu sindicato, pelo seu partido<br />

político etc., e se não houver<br />

uma solução imediata, ele não vai<br />

querer saber disso, porque não há<br />

lugar para a esperança.<br />

M: Os nazis na Alemanha fizeram<br />

trucagem com as fotografias...<br />

MF: Evidentemente que o fizeram,<br />

mas foram mesmo a ponto de falsificar<br />

os documentos. Não penso que<br />

a trucagem material seja o instrumento<br />

favorito de um sistema institucional.<br />

Penso que se lhe dá uma<br />

maior atenção porque é uma manifestação<br />

da capacidade do cinema<br />

de representar uma falsa realidade.<br />

Somos mais marcados por uma falsa<br />

realidade na imagem do que pelo<br />

mesmo efeito no discurso. Quando<br />

se faz um discurso falso e “trucado”<br />

é normal... Mas, quando se mostra<br />

uma imagem “trucada”, é considerado<br />

diabólico. Evidentemente que<br />

há documentos “trucados”, mas a<br />

falsificação não participa assim tanto<br />

de processos mecânicos. Conheço<br />

alguns exemplos, mas não especialmente<br />

alemães... Alguns são<br />

americanos, outros russos, mas não<br />

creio que por isso se possa dizer que<br />

os americanos fizeram mais falsificados<br />

que os nazis. Os nazis “trucaram”<br />

mil vezes mais, mas de maneira<br />

diferente, não por processos técnicos,<br />

“trucaram” porque tinham<br />

um conhecimento mais preciso da<br />

capacidade do cinema de mostrar<br />

uma falsa realidade sem usar a trucagem.<br />

Ousaram e souberam utilizar<br />

o cinema como uma arma política,<br />

levando-a mais longe que os outros,<br />

não “trucaram” propriamente as<br />

imagens como quem conta uma<br />

mentira num discurso porque tinham<br />

outros meios, não valia a pena.<br />

M: O senhor disse uma vez a Serge<br />

Daney que apenas os nazis privilegiaram<br />

os filmes porque eram<br />

plebeus que não tinham tido acesso<br />

a outra cultura. O senhor é capaz<br />

de precisar essa importância<br />

dada pelos nazis à imagem, ao filme,<br />

ao filmado?<br />

MF: Sim. A maior parte dos nazis,<br />

exceto talvez Goebbles, não era<br />

o que se pode chamar homens de<br />

biblioteca, diferentemente do que<br />

acontece com os marxistas, como<br />

disse aos Cahiers du Cinéma. Pertenciam<br />

a uma outra camada social,<br />

35


AN PH/FOT/ 25934(35)<br />

AN PH/FOT/ 25934(45)<br />

F ALSIFICAÇÕES ALSIFICAÇÕES<br />

REVOLUÇÕES<br />

Adolf Hitler falando ao povo alemão em uma festa cívica<br />

em Bückeberg e discursando no Reichstag, em Berlim.<br />

Acervo Correio da Manhã<br />

mais plebéia, pequeno-burguesa; e<br />

não apenas no que se refere à sua<br />

clientela, mas também quanto à sua<br />

origem social, ao seu gosto. Era<br />

uma gente que ia muito ao cinema,<br />

enquanto os marxistas da mesma<br />

época, quer os comunistas alemães,<br />

quer os russos ou os franceses,<br />

não iam nunca ao cinema. A<br />

primeira vez que os comunistas<br />

franceses pensaram no cinema de<br />

uma maneira ativa foi em 1936,<br />

quando pediram a Jean Renoir para<br />

fazer um filme de propaganda para<br />

as eleições, portanto, de um modo<br />

muito objetivo, preciso, e foi uma<br />

coisa excepcional, um pouco como<br />

se organiza uma feira, uma exposição,<br />

não era hábito se ocuparem<br />

de cinema; enquanto os nazis per-<br />

tenciam a um meio diferente<br />

do ponto de vista<br />

social e iam sempre<br />

e acima de tudo ao cinema.<br />

Hitler, Goering<br />

etc., todo o período de<br />

1925 a 1942, estando<br />

ou não no poder, passavam<br />

a vida indo ao<br />

cinema. Viram os filmes<br />

de Fritz Lang dez<br />

ou vinte vezes, tinham<br />

uma grande cultura cinematográfica,<br />

mas isso<br />

não se chamava cultura<br />

na época. Para eles,<br />

era natural se dirigirem<br />

pela propaganda para<br />

organizar as multidões<br />

ou através do discurso<br />

teatral, que Hitler e<br />

Goebbles praticavam;<br />

foram eles os primeiros<br />

a organizar o discurso<br />

teatral. Sempre que Hitler<br />

e Goebbles falavam,<br />

davam o máximo de aatenção<br />

à iluminação, aos microfones,<br />

à sincronia entre a música e<br />

o discurso. As pessoas de outros<br />

partidos políticos, ou de outros países,<br />

os homens políticos na Franca,<br />

na Inglaterra etc., teriam considerado<br />

escandaloso, ridículo, absurdo<br />

e degradante utilizar processo<br />

de ator para falar em público. O<br />

resultado disso é que eram menos<br />

ouvidos, não sabiam falar, não produziam<br />

tanto efeito mágico entre os<br />

espectadores. Quando as pessoas<br />

ouviam Hitler, por um lado, ouviam<br />

mais ou menos o que ele dizia,<br />

mas, sobretudo, eram envolvidas em<br />

num espetáculo de som, luz, drama,<br />

muito mais espetacular; e assim iam<br />

a essas manifestações sem se preocuparem<br />

muito com o que no fun-<br />

do era dito sobre o capitalismo, um<br />

pouco como quem vai à missa, para<br />

a cerimônia, para encontrar os amigos,<br />

os cheiros, a música, sem ouvir<br />

muito bem o que diz o padre,<br />

exceto, é claro, em momentos excepcionais.<br />

Para os nazis, era perfeitamente<br />

normal utilizar os filmes como instrumento<br />

de massas para fazer passar<br />

as suas idéias, e é o que explica,<br />

primeiro, que tenham conferido<br />

às pessoas que faziam cinema<br />

uma dignidade de criadores, que<br />

não lhes teria sido reconhecida na<br />

sociedade burguesa, porque aí o<br />

criador era o escritor, o professor.<br />

É de notar que Goebbles tenha dito<br />

“quando ouço falar de cultura puxo<br />

o revólver”. Ora, para ele, a cultura<br />

eram os textos, os livros, a ponto<br />

de queimar os livros hostis. Desenvolveram<br />

a sua visão da sociedade<br />

alemã através dos filmes porque<br />

para eles era o meio de continuar<br />

a comunicação global com<br />

milhões de pessoas, que encontravam<br />

no filme as duas horas de repouso,<br />

de divertimento, de que todas<br />

as pessoas têm necessidade<br />

quando vivem numa sociedade em<br />

que trabalham, em que a vida é<br />

difícil. Houve, portanto, uma compreensão<br />

global do fenômeno cinematográfico<br />

muito maior, o que<br />

não quer dizer que os filmes da<br />

época nazi tenham tido um papel<br />

particularmente importante: foram<br />

numerosos, atraíram o público,<br />

mas sabe-se que, do ponto de vista<br />

artístico, não foram os melhores.<br />

O certo é que não se pode medir<br />

se essa política cinematográfica<br />

teve êxito, sabe-se apenas que ela<br />

foi um dos pontos principais da<br />

política nazi.<br />

M: E isso explica certamente o gesto<br />

de Goebbles enquanto discursava...<br />

MF: Sim, no filme que montei vêse<br />

que Goebbles estudava e ensaiava<br />

os seus discursos, um pouco<br />

como hoje na televisão, depois da<br />

vitória de Kennedy, todos os homens<br />

políticos franceses sabem que<br />

é necessário ter muita atenção à<br />

imagem que dão de si na televisão.<br />

Agora os homens políticos têm lições<br />

com atores, exigem ver a gravação<br />

para saber com que cara ficam,<br />

como falam, e isso foram os<br />

nazis os primeiros a compreender,<br />

porque utilizavam o cinema como<br />

se utiliza hoje a televisão.<br />

M: Essa importância dada pelos nazis<br />

ao cinema explica de algum modo<br />

a insistência com que convidam os<br />

cineastas alemães que estavam no<br />

estrangeiro a regressar à Alemanha.<br />

Foi o que se passou com Fritz Lang,<br />

a quem convidaram a ficar em Berlim<br />

para dirigir o departamento de<br />

cinema alemão. O mesmo, aliás,<br />

aconteceu com outros cineastas.<br />

MF: Sim, para os nazis do estadomaior,<br />

no fundo, foram os cineastas<br />

que desempenharam o papel que<br />

para os outros dirigentes de organizações<br />

políticas desempenhava a<br />

cultura escrita. Hitler, para só dar<br />

um exemplo, sabemo-lo hoje, utilizava<br />

os gestos que em M, o vampiro<br />

de Dusseldorf são gestos do<br />

chefe das organizações de gangsters<br />

da cidade. Quando se conhece bem<br />

o filme de Lang e se vê as imagens<br />

dos discursos de Hitler, percebemos<br />

como ele copia, como faz exatamente<br />

os mesmos gestos. O que<br />

quer dizer que para os nazis os cineastas<br />

foram uma espécie de pais-<br />

educadores do ponto de vista cultural.<br />

Talvez não seja tão claro<br />

como isto, de qualquer modo foi<br />

esse seu papel. Do mesmo modo<br />

que um regime político como o<br />

comunista quis conservar os seus<br />

intelectuais, para ter uma grande<br />

imagem da marca cultural, os nazis<br />

quiseram conservar os cineastas,<br />

e Goebbles e Hitler pediram a<br />

Fritz Lang para não partir. Ele respondeu<br />

“mas sou judeu, serei perseguido”,<br />

ao que eles replicaram<br />

“não, não, não, não. Você é cineasta,<br />

portanto o caso é diferente”.<br />

M: E, no entanto, Lang não ficou,<br />

apesar de muitos o considerarem<br />

um homem de direita.<br />

MF: Não creio que se possa considerar<br />

Lang como um homem de<br />

direita. Lembre-se que em Metropolis,<br />

por exemplo, que é seu filme<br />

político mais claro, ele se situa na<br />

perspectiva da exploração dos trabalhadores<br />

pelo capital. Hoje dizemos<br />

que o filme é de direita porque<br />

no final os operários, ou antes,<br />

o contramestre – e as pessoas<br />

nunca repararam que é o contramestre<br />

– aperta a mão do patrão.<br />

Nós hoje, e à distância que o tempo<br />

permite, damo-nos conta de que<br />

o filme transforma a luta de classes<br />

numa colaboração de classes. Aliás,<br />

já em 1930 algumas revistas<br />

notaram isso, não muitas, mas algumas.<br />

Mas é porque, segundo a<br />

nossa análise de hoje, a colaboração<br />

de classes corresponde a uma<br />

opção dos corporativistas e de um<br />

certo número de organizações de<br />

direita para esconder e para aniquilar<br />

a luta de classes, que podemos<br />

ser levados a dizer que Fritz<br />

Lang é um homem de direita.<br />

M: Brecht disse, sobre as posições<br />

de Lang na América: é um tipo que<br />

procura posições privilegiadas em<br />

Hollywood, que tenta fazer esquecer<br />

que é um exilado, mas nem por<br />

isso deixa de apresentar para explicar<br />

o seu exílio razões de ordem<br />

política, e que se aproveita desse<br />

estatuto para defender os seus interesses,<br />

que são, afinal, ganhar alguns<br />

milhões.<br />

MF: De acordo; mas apresentado<br />

da maneira como o faz Brecht e lido<br />

hoje, pode-se dizer que Fritz Lang<br />

visa alcançar uma glória pessoal, o<br />

lucro, o que não o define necessariamente<br />

como um homem de direita<br />

ou de esquerda, porque muita<br />

gente procura a glória e o lucro,<br />

e no entanto estes tomam formas<br />

diferentes: uns amam o dinheiro,<br />

outros o poder. Isto é um primeiro<br />

ponto. Agora um segundo ponto:<br />

quando se fala de Hollywood e,<br />

sobretudo, quando este é visto através<br />

de Brecht, tem-se imediatamente<br />

uma imagem de capitalismo...<br />

Mas é preciso dar conta de um certo<br />

aspecto de Hollywood e dos Estados<br />

Unidos: enquanto Fritz Lang<br />

está em Hollywood, a América é o<br />

país do mundo que combate mais<br />

fortemente o nazismo. É preciso<br />

não esquecer que Roosevelt foi o<br />

primeiro antinazi, com muito mais<br />

vigor do que o que tiveram na mesma<br />

altura os dirigentes políticos<br />

franceses, com muito mais lucidez<br />

que os franceses ou os ingleses; que<br />

Roosevelt é o democrata americano<br />

e que todos os refugiados de<br />

todos os países mantiveram na<br />

América um discurso antifascista<br />

muito mais conseqüente do que nos<br />

outros lugares. Foi a América a<br />

primeira a armar-se... Sem dúvida<br />

37


F ALSIFICAÇÕES ALSIFICAÇÕES<br />

REVOLUÇÕES<br />

que foi surpreendida em Pearl Habour<br />

por um erro do estado-maior,<br />

o que não passa de um detalhe, mas<br />

Roosevelt esteve dez vezes mais<br />

atento ao perigo de fascistização e<br />

nazificação da Europa e do mundo.<br />

No contexto americano foram<br />

feitos muitos filmes antinazis, mas<br />

não se fizeram filmes antinazis na<br />

França ou na Inglaterra. Se vocês<br />

virem filmes ingleses de 1935-<br />

1940, perceberão que os maus, os<br />

espiões, têm sotaque russo. O anticomunismo<br />

é mais forte do que<br />

o antinazismo no nível da classe<br />

dirigente, o que não se passa na<br />

América. Na América, antes de<br />

1942, o anticomunismo existe, é<br />

provável, mas não é virulento, não<br />

é de modo nenhum violento, enquanto<br />

o antinazismo é extremamente<br />

vigoroso. Antes de 1941-<br />

1942, antes da declaração de guerra,<br />

fizeram-se mais de cinqüenta<br />

filmes antinazis nos EUA e paralelamente<br />

mostravam-se filmes soviéticos,<br />

enquanto na França não se<br />

mostravam filmes soviéticos e não<br />

se faziam filmes antinazis, e do<br />

mesmo modo na Inglaterra.<br />

M: E na URSS?<br />

MF: Também os soviéticos fizeram<br />

um certo número de filmes antinazis,<br />

fizeram uma boa dúzia deles, e<br />

mesmo no momento do Pacto, o que<br />

prova que nem tudo estava bem organizado,<br />

se é que posso me exprimir<br />

assim. Não pretendo defender<br />

Fritz Lang, mas apenas refletir sobre<br />

o seu comportamento. Fritz Lang<br />

poderia considerar que estava num<br />

país onde podia julgar da natureza<br />

do nazismo, dizer aos americanos o<br />

que se passava. No interior desse<br />

quadro geral, em que tinha boa cons-<br />

ciência de cumprir o seu dever de<br />

democrata, talvez tenha procurado o<br />

seu lucro pessoal, mas daí a dizer que<br />

é um homem de direita corresponde<br />

a não enquadrar as coisas no seu verdadeiro<br />

lugar na época.<br />

M: Os revolucionários não podem<br />

usar o cinema como fizeram os<br />

nazis, com constante manipulação;<br />

o que era possível fazer então? Por<br />

exemplo, o que fizeram os russos<br />

depois da Revolução para despertar<br />

a consciência das pessoas para<br />

alguns de seus problemas?<br />

MF: A experiência soviética de utilização<br />

do cinema é muito particular,<br />

e isto se deve ao fato de os comunistas<br />

russos, os bolcheviques,<br />

não terem qualquer cultura cinematográfica,<br />

exceto talvez Lunatcharsky,<br />

não pensaram noutra coisa senão<br />

em dominar o cinema, mas fizeram-no<br />

de uma forma superficial.<br />

Durante alguns anos houve um cinema<br />

de revolução, Eisenstein,<br />

Pudovkin, mas digamos que este<br />

cinema escapava às instâncias bolcheviques,<br />

isto é, ao partido; é por<br />

isso que o acolhimento dado a esses<br />

filmes na Rússia e nomeadamente<br />

pelo partido bolchevique não era<br />

entusiástico. “De acordo, o Encouraçado<br />

Potemkin é muito bom”,<br />

mas já Outubro esteve sujeito a<br />

muitas críticas e A greve ainda<br />

mais. Por quê? Porque esses cineastas<br />

escapavam à organização do<br />

Partido Comunista e contavam a<br />

Revolução como a tinham visto, e<br />

na sua história da revolução nunca<br />

falavam do partido bolchevique. Se<br />

repararem bem, nos filmes de Eisenstein<br />

nunca se fala do partido<br />

bolchevique, exceto em alguns inserts,<br />

o que não entra na estrutura<br />

do argumento, no cerne da história<br />

da revolução. São as massas, são<br />

os sovietes, são os comitês, os soldados,<br />

os camponeses, os operários<br />

que fazem a revolução, mas não<br />

o partido. Assim, a cada passo falase<br />

do partido operário, mas para<br />

que não fique esquecido, embora<br />

não entre no argumento, se é que<br />

posso me exprimir assim. Em Outubro<br />

fala-se um pouco de Lenin,<br />

mas o partido como força organizacional<br />

não está presente. O resultado<br />

é que os dirigentes comunistas<br />

ficaram contentes com esse<br />

cinema, porque era um cinema<br />

grandioso, belo, que glorificava e<br />

justificava o sucesso da Revolução,<br />

mas não tinha a mesma preocupação<br />

que os dirigentes em mostrar<br />

o papel do próprio partido bolchevique.<br />

Nesses filmes compreendem-se<br />

um pouco todos os revolucionários,<br />

os socialistas revolucionários,<br />

os mencheviques, os bolcheviques...<br />

Não, os mencheviques<br />

são criticados... Não é claramente<br />

definida a identidade de cada grupo,<br />

todos são revolucionários, só<br />

que há os bons e os maus, mas no<br />

interior dos bons não são mostradas<br />

as categorias. Os comunistas<br />

levaram muito tempo para compreender<br />

esses problemas, e houve<br />

muitos filmes que podem ser qualificados,<br />

que eles, os bolcheviques,<br />

qualificaram de contra-revolucionários,<br />

durante a Revolução, em<br />

1917, 18, 19, 20, 25, 28... Vi alguns<br />

filmes que são a favor da revolução<br />

mas contra o partido bolchevique.<br />

O partido bolchevique<br />

acabou por compreendê-lo, e a partir<br />

de 1927, 1928, o que se chama<br />

de época stalinista, mas não ainda<br />

a era de Stalin, mas sim de Jdanov<br />

etc., quis fazer filmes que exprimis-<br />

sem a visão dos dirigentes. É a época<br />

de filmes como Tchapaiev, dos<br />

irmãos Vassiliev, que é um exemplo<br />

típico; é também a época dos<br />

filmes de Donskoi, a versão da Mãe<br />

feita por Donskoi é completamente<br />

diferente da primeira versão, de<br />

Pudovkin, é muito mais do lado dos<br />

bolcheviques do que A mãe de Pudovkin,<br />

que era mais revolucionária<br />

e nada bolchevique.<br />

Esse cinema terá tido mais eficácia?<br />

Não se pode dizer, porque<br />

quanto ao primeiro não se sabe se<br />

chegou a ser eficaz, porque o público<br />

russo que vivia nas cidades e<br />

que compreendia, muitas vezes<br />

militava no partido e era formado<br />

por revolucionários da França ou<br />

da Espanha, que diziam “que belos<br />

filmes revolucionários”. E as massas<br />

populares não compreendiam<br />

uma linguagem cinematográfica tão<br />

vanguardista, tão modernista como<br />

a de Eisenstein, por exemplo. As<br />

alegorias e os símbolos não eram<br />

compreendidos. Era um cinema<br />

para cineastas ou para pessoas esclarecidas.<br />

Não se pode dizer se<br />

esse cinema foi eficaz mesmo em<br />

relação à própria Rússia. Penso que<br />

só após mais de vinte anos é que os<br />

cineastas soviéticos têm um papel<br />

na sociedade; em filmes como Lágrimas<br />

ou como Soyez les bienvenus,<br />

nos filmes da época da desestalinização,<br />

sobretudo no período de Krutchev,<br />

é que os cineastas têm oportunidade<br />

de desempenhar o papel<br />

que desejam na sociedade, isto é,<br />

alertar as pessoas para os problemas.<br />

Para responder à sua pergunta, penso<br />

que numa outra sociedade, revolucionária,<br />

o problema é um pouco<br />

diferente. Penso que o fim do ca-<br />

minho será no dia em que toda gente<br />

tiver uma câmera ou uma máquina<br />

fotográfica para tomar consciência<br />

por si mesma das coisas importantes.<br />

No início, isto não é ainda<br />

pensável por razões econômicas e<br />

sobretudo por razões de mentalidade.<br />

Aqui, por exemplo, neste país,<br />

é evidente que a função revolucionária<br />

do filme não é compreensível<br />

de modo nenhum, as pessoas vão<br />

querer primeiro ver os filmes que<br />

lhes dêem prazer porque sofreram<br />

muito; sendo assim, penso que se<br />

quisermos evitar essa fase, será um<br />

fracasso. É necessário que as organizações<br />

revolucionárias, utilizando<br />

o cinema, façam uma seleção cuidadosa<br />

dos filmes, para que a sua<br />

mensagem não seja contra-revolucionária;<br />

é preciso que a mensagem<br />

seja compreendida, que não seja demasiado<br />

difícil, mas é necessário<br />

que as pessoas que vão vê-los tenham<br />

um pouco de prazer na vida, e que<br />

associem também as organizações e<br />

os filmes que vêem às pessoas que<br />

participam na sua emancipação. Se<br />

se começar a fazer filmes de vanguarda,<br />

filmes sobre lutas em fábricas,<br />

não me parece que as pessoas a<br />

quem os filmes dizem respeito possam<br />

ver nesse cinema de combate o<br />

que desejam os organizadores. Verão<br />

esse cinema como um jornal político<br />

que, como qualquer outro,<br />

dará origem a discussões criadoras<br />

certamente, mas que só terão efeito<br />

sobre pequenos grupos, muito reduzidos.<br />

Os filmes militantes na<br />

França têm sucesso em meio operário,<br />

camponês... O filme O Lazarc,<br />

por exemplo, não teve sucesso no<br />

Lazarc, só teve sucesso em Paris,<br />

entre aqueles que protestam por causa<br />

do Lazarc. Penso que é necessário<br />

refletir esses problemas e que um<br />

filme político não é necessariamente<br />

um filme para militantes, um filme<br />

pode exercer uma função política<br />

por outros meios. E pessoalmente<br />

creio que os filmes devem ser um<br />

pouco enquadrados, de uma maneira<br />

discreta: no programa de um cineclube<br />

se diz “vamos apresentar tal<br />

filme”, mas é preciso fazê-lo em<br />

quatro linhas e não em quatro páginas<br />

– este filme mostra de que modo<br />

um operário pode ser explorado sem<br />

dar por isso em determinada situação.<br />

E basta. Depois se mostra o<br />

filme, e se for agradável, a pessoa<br />

reflete. Isto numa primeira etapa.<br />

M: Aqui em Portugal foi apresentado<br />

o Encouraçado Potemkin em fábricas<br />

e quartéis e o resultado foi bom!<br />

MF: Sim, mas o Encouraçado é um<br />

filme que se pode mostrar por toda<br />

parte e em qualquer momento. Não<br />

está entre os filmes que foram contestados,<br />

é um filme que tem um<br />

sucesso universal. Mas não se pode<br />

passar eternamente o Encouraçado...<br />

Aliás, penso que o sucesso do<br />

Encouraçado faz refletir. Assim,<br />

enquanto as estruturas sociais de<br />

diferentes países são variáveis –<br />

Espanha, França, Itália, Rússia –,<br />

a estrutura interna de uma organização<br />

militar como o exército ou a<br />

marinha é semelhante. Isto quer<br />

dizer que um marinheiro português<br />

compreende todo o Encouraçado,<br />

um oficial português, grego, turco<br />

ou argentino também compreende<br />

tudo. Mas se for um filme sobre a<br />

classe operária, ou sobre a burguesia,<br />

ou o prazer e erotismo da vanguarda<br />

parisiense, não estou certo<br />

de que seja compreendido noutros<br />

países. É necessário refletir um<br />

pouco sobre a história paralela das<br />

39


In Mount, Christopher. Stenberg brothers: constructing<br />

a revolution in soviet design. New York: The Museum of Modern Art, 1997<br />

F ALSIFICAÇÕES ALSIFICAÇÕES<br />

REVOLUÇÕES<br />

Cartaz de Outubro<br />

sociedades para ver se um filme<br />

pode ou não funcionar, pois há filmes<br />

que só funcionam na sociedade<br />

em que foram produzidos.<br />

M: O senhor falou de Eisenstein,<br />

Pudovkin... mas, e Vertov?<br />

MF: Creio que há dois Dziga Vertov,<br />

um que sonha com uma câmera-olho<br />

presente em toda parte, que<br />

faz atualidade de que eu gosto muito<br />

e é o inventor que compreendeu<br />

a função do cinema, sua função<br />

política e social, desse eu gosto<br />

muito. E há um outro Dziga Vertov,<br />

que é o mesmo, que faz filmes<br />

em que revela mais a vontade de<br />

poder do cineasta de utilizar as imagens<br />

para comunicar a sua visão do<br />

mundo, é o caso de O homem da<br />

câmera, e onde utiliza essencialmente<br />

efeitos de cinema, uma prática<br />

muito refinada e muito refletida da<br />

capacidade do cinema de criar o<br />

sonho, uma certa visão da realidade,<br />

este Dziga Vertov interessame<br />

menos do ponto de vista das<br />

lutas políticas e sociais e desconfio<br />

disso como desconfio de todas<br />

as instâncias que utilizam um processo,<br />

seja ele qual for, para conseguir<br />

poder. Desse Dziga Vertov<br />

já não gosto. Mas é uma questão<br />

de gosto pessoal. Há demasiadas<br />

pesquisas técnicas com o fim de<br />

justificar o direito do criador, do<br />

artista, de mostrar a sua visão da<br />

sociedade e da realidade. No fundo,<br />

nos filmes desse Dziga Vertov,<br />

como em O homem da câmera, os<br />

problemas sociais foram esquecidos,<br />

há muitos efeitos de câmera.<br />

Mas, e numa perspectiva revolucionária,<br />

como é a Rússia de 1926?<br />

Utilizar a câmera de doze maneiras<br />

para representar uma realidade<br />

seria o trabalho fundamental?<br />

E o outro Vertov, o revolucionário,<br />

teria compreendido que, pela captação<br />

da realidade com a câmera,<br />

se pode educar, se pode ajudar a<br />

elevar o nível de consciência geral?<br />

O segundo Vertov não terá matado<br />

o primeiro? Ao dizer isto, vou contra<br />

os fanáticos de Dziga Vertov.<br />

M: E nota-se diferença na recepção,<br />

por parte do povo e dos dirigentes<br />

russos, do primeiro Dziga<br />

Vertov relativamente ao segundo?<br />

MF: Sim, e mesmo com Eisenstein.<br />

Sabe-se que no filme A greve, a<br />

cena do talho, onde Eisenstein alterna<br />

os planos de fuzilamento dos<br />

camponeses com o plano do talho<br />

em que se abatem reses, o sangue<br />

dos bois simbolizando o sangue dos<br />

operários, é uma alegoria para explicar<br />

que o Estado se comporta<br />

como um carniceiro relativamente<br />

à sociedade. O espectador russo<br />

culto, da intelligentsia, compreende,<br />

e hoje nós, na França, em Portugal,<br />

que temos estudos, que temos<br />

uma formação clássica, que<br />

sabemos o que é um discurso, uma<br />

alegoria, uma representação, um<br />

símbolo, um parêntese, compreendemos<br />

essa linguagem, mas o próprio<br />

Eisenstein contou que, quando<br />

apresentou o filme no campo,<br />

os camponeses riram e disseram:<br />

“Olha, olha, agora nos mostram<br />

bois, por quê?” Por outro lado,<br />

nem sequer ficaram emocionados<br />

ao ver correr todo aquele sangue,<br />

porque matar um boi para um<br />

camponês é uma coisa banal, cotidiana<br />

e de nenhum modo o símbolo<br />

de um crime, pelo que a intenção<br />

do filme, que consistia em<br />

dramatizar a maneira como o regime<br />

czarista assassinava os trabalhadores,<br />

falhou por completo.<br />

Portanto o cineasta deve refletir e<br />

saber para quem se dirigem os seus<br />

filmes, sob pena de que o discurso<br />

se perca completamente.<br />

M: Que trabalho é necessário para<br />

filmar a História?<br />

MF: Refere-se à história que se faz<br />

ou à história do passado?<br />

M: Talvez seja melhor o senhor dividir<br />

a sua resposta segundo as suas<br />

conveniências. De qualquer modo,<br />

eu estava falando em A tomada do<br />

poder por Luís XIV, de Rosselini, e<br />

nos filmes de Allio, mas também<br />

nos seus filmes sobre a história<br />

contemporânea. São duas maneiras<br />

diferentes de filmar a história. E<br />

de qualquer maneira, a I Guerra<br />

Mundial também já é passado.<br />

MF: Então eu vou responder a essas<br />

questões de maneira diferente.<br />

Primeiro, creio que não há fronteiras<br />

entre o passado e o presente...<br />

Pode-se filmar ao mesmo tempo o<br />

passado e o presente. O que quer<br />

dizer que se pode muito bem fazer<br />

um filme, como eu nunca fiz, mas<br />

que talvez venha ainda a fazer, que<br />

mostra como numa sociedade – vocês<br />

podem pensar em Portugal e eu<br />

na França ou na Itália, tanto faz – o<br />

que se julga ser o presente, participa<br />

em camadas, níveis, sedimentações<br />

de épocas diferentes. Quer dizer, há<br />

nos comportamentos sociais, individuais<br />

ou coletivos, seções que são<br />

completamente modernas, atuais, no<br />

discurso como na realidade social,<br />

que são criação imediata, há seções<br />

que derivam da experiência de toda<br />

uma vida, há seções que participam<br />

de duas ou três gerações, como há<br />

as que participam de uma história<br />

fortemente enraizada. Para dar apenas<br />

um exemplo, veja-se o caso em<br />

que há um comportamento social<br />

muito modernista e revolucionário<br />

e um comportamento familiar muito<br />

tradicional e reacionário. Ou o inverso,<br />

pode-se ter um comportamento<br />

familiar e sexual modernista e um<br />

comportamento profissional e técni-<br />

In Mount, Christopher, op. cit.<br />

co tradicionalista. Por conseguinte,<br />

creio que um dos trabalhos do filme<br />

é tentar referenciar os estratos numa<br />

realidade social e ver o peso relativo<br />

da modernidade, da tradição e das<br />

permanências, que não são sequer<br />

compreendidas como permanências,<br />

na família, no trabalho artesanal ou<br />

noutra coisa. Isto, para dizer que a<br />

oposição formal entre a história do<br />

presente e a história do passado não<br />

me parece ser uma oposição exata.<br />

E eu diria que os filmes correspondem<br />

a duas categorias (não filmes<br />

sobre o séc. XX ou filmes sobre o<br />

passado, como Allio etc.): os filmes<br />

que sobre o passado fazem compreender<br />

o presente e filmes que sobre<br />

o passado ficam fechados no passado<br />

e não têm utilidade ou significação<br />

para explicar o presente.<br />

É por isso que a escolha do período<br />

me parece um falso problema,<br />

ou melhor, um problema que depende<br />

de imperativos técnicos,<br />

porque não se pode fazer um filme<br />

sobre a época de Luís XIV da mesma<br />

maneira que um filme sobre a<br />

revolução portuguesa. No entanto<br />

não estou assim tão certo disso. Se<br />

eu fosse com um gravador de som<br />

ou uma câmera para uma região<br />

qualquer e interrogasse os campo-<br />

neses, doutores, e padres sobre o<br />

que se passou há cinqüenta anos,<br />

cem anos, sobre as recordações que<br />

têm, sobre o que lá se conta sobre<br />

o cerco de La Rochelle na época<br />

de Luís XV, ao mesmo tempo que<br />

obtendo uma narração do que<br />

numa aldeia se conservou como<br />

recordação do que se contava, mesmo<br />

que falso, estou mais próximo<br />

de uma história do passado, que é<br />

recente e atual porque dela ficou o<br />

rasto. Se, por outro lado, utilizar as<br />

gravuras do Museu do Louvre sobre<br />

o cerco de La Rochelle no Poitou<br />

e frases de Luís XIII e de Mazarino<br />

ou de Richelieu, já não sei<br />

bem, sobre o que diziam os protestantes,<br />

e o que diziam os católicos,<br />

faço um filme que pode ser mais<br />

histórico, mas que não tem de modo<br />

algum a mesma função. Para mim,<br />

a fronteira não é entre o passado e<br />

o presente, mas entre os filmes ou<br />

as obras escritas (e aí não faço distinção)<br />

que têm uma prolongação no<br />

presente, que fornecem uma explicação<br />

do nosso tempo, e as obras,<br />

filmes, escritos ou livros que permanecem<br />

no passado, como um<br />

sonho, como uma evasão, sem que<br />

o leitor ou o espectador faça uma<br />

ligação particular com sua situação<br />

ou o seu estatuto atual.<br />

Cartaz de O Encouraçado<br />

Potemkin<br />

41


Estudantes franceses<br />

montam barricada<br />

no Quartier Latin.<br />

Paris, França,<br />

23/5/1968. Acervo<br />

Correio da Manhã<br />

AN PH/FOT/ 4320(43)


Sheila Schvarzman<br />

Multimeios da Unicamp.<br />

Cinema, história<br />

e Marc Ferro<br />

Doutora em História pela Unicamp, professora visitante do Programa de Pós-Graduação do Departamento de<br />

In Cadernos do Terceiro Mundo<br />

Passados mais de trinta anos do surgimento<br />

dos estudos sobre cinema e história, já é<br />

possível historiar como e por que filmes começam<br />

a interessar os historiadores. Se visões<br />

de história são datadas, as formas de abordálas<br />

também. Cabe então revê-las. Se escrever<br />

a história é um exercício incessante, se visões<br />

se sobrepõem umas as outras, este texto tratará<br />

não apenas de como se pode trabalhar historicamente<br />

com filmes, mas sobretudo de<br />

como esse trabalho foi também historicamente<br />

determinado. 1<br />

É da natureza do cinema registrar a realidade.<br />

Pode-se especular sobre o fato de esta arte<br />

aparecer no século do realismo, em que a literatura<br />

se empenhou em copiar a natureza, em<br />

recriar os fatos tal como são susceptíveis de<br />

acontecer.<br />

Se durante anos foi possível discutir se o cinema<br />

era ou não uma arte, tal disputa ocorria<br />

exatamente a partir da capacidade do cinema de<br />

reproduzir as coisas tais como são. Em A arte do<br />

cinema, Rudolph Arnheim compara as possibilidades<br />

do cinema com as da pintura:<br />

“Na pintura, o caminho da realidade ao quadro<br />

passa pelo olhar do artista, seu sistema nervoso, sua<br />

mão, e por último pelo pincel que aplica toques sucessivos<br />

sobre a tela. O processo nada tem de mecâni-<br />

co, ao contrário do que se produz na fotografia, em<br />

que a reflexão de raios luminosos sobre um objeto,<br />

ligada por um sistema de lentes e dirigida sobre uma<br />

placa luminosa, provoca precipitações químicas”. 2<br />

Essa natureza “objetiva” destina ao cinema<br />

o papel de produtor constante de documentos<br />

sobre a realidade e a maneira como se constitui.<br />

Puras ficções ou o que efetivamente acontece,<br />

a presença da câmera é a garantia de permanência.<br />

3 Assim, a história está inscrita no<br />

cinema: a trama das imagens absorve, conscientemente<br />

ou não, o momento histórico de sua<br />

produção: móveis, roupas, penteados e gestos<br />

documentam modos de se relacionar com as<br />

coisas, testemunham maneiras de observá-las.<br />

Quer se trate de um filme histórico (como O<br />

Encouraçado Potemkin, de Eisenstein, de<br />

1925), quer de um drama (Sangue mineiro, de<br />

Humberto Mauro, de 1929), as imagens que<br />

deslizam sobre a tela oferecem um ângulo privilegiado<br />

de observação – ao mesmo tempo<br />

constroem e são essa realidade. Diante do mais<br />

simples dos filmes (digamos, A chegada do trem<br />

na gare Ciotat, dos irmãos Lumière, de 1895),<br />

o observador não pode se furtar à constatação<br />

tão óbvia quanto revolucionária: esses seres que<br />

desfilam na tela existiram; a locomotiva, os funcionários,<br />

as pessoas que aguardam na plataforma<br />

nos informam sobre uma maneira de estar<br />

nas coisas, de presenciá-las, de experimentá-las.<br />

1 “A historicidade obriga a inserir a história numa perspectiva histórica. Há uma historicidade da história que implica o<br />

movimento que liga uma prática interpretativa a uma prática social”. LE GOFF, Jacques. Enciclopédia Eunaudi. Lisboa:<br />

Einaudi, 1984, p. 159. 2 ARNHEIM, Rudolf. A arte do cinema. Lisboa: Aster, 1960 (original de 1933), p. 21. 3 BAZIN,<br />

André. Qu’est-ce que le cinéma? Paris: Cerf, 1975, p. 9.<br />

REVOLUÇÕES<br />

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F<br />

C INEMA INEMA,<br />

INEMA , HISTÓRIA HISTÓRIA E MMARC<br />

M ARC FFERRO<br />

F ERRO REVOLUÇÕES<br />

No entanto, o cinema foi desdenhado pelos<br />

historiadores porque se baseia em imagens, é invenção<br />

que ilude o espectador com montagens, truques<br />

e técnicas que fogem ao seu campo de conhecimentos.<br />

Mas a história é tão diferente assim?<br />

Marc Ferro, história,<br />

historiografia e cinema<br />

Quando Marc Ferro se decide pelo estudo<br />

do cinema como fonte historiográfica (1969), as<br />

bases de seu pensamento histórico já estavam<br />

lançadas. Historiador da Revolução Russa, enfrenta<br />

constantemente o controle dos documentos<br />

necessários à sua pesquisa nos arquivos de<br />

Moscou. O cinema será uma fonte da qual lança<br />

mão para, evitando a censura às fontes escritas,<br />

poder realizar o seu trabalho de forma autônoma.<br />

Observando suas obras, quer tratem da relação<br />

com o cinema, ou da Revolução Russa, notaremos<br />

como é pela exposição da pluralidade<br />

de visões sobre um mesmo objeto que monta a<br />

sua argumentação. Da La Révolution Russe de<br />

1917 – Octobre, naissance d’une societé, de 1976, 4<br />

até o programa de televisão “Histoire Parallèle”,<br />

que apresentou numa emissora francesa (1989-<br />

2002), onde são analisados filmes de atualidades<br />

que enfocam um mesmo assunto de diferentes<br />

pontos de vista – alemão e francês, por exemplo<br />

–, o que torna a história possível, no seu<br />

exercício, é a pluralidade e a contraposição de<br />

visões. Trabalhando o cinema, Ferro contesta<br />

o poder do historiador que determina o que é<br />

ou não digno de história.<br />

Em entrevista em 1975, Ferro falava do ofício<br />

do historiador como o de “devolver à sociedade<br />

a história tomada pelos aparelhos (Estado,<br />

partidos políticos, sindicatos etc.)”. Assim fazendo,<br />

enuncia a pertinência política de seu ofício:<br />

um resgate que se propõe autônomo em relação<br />

aos documentos pesquisados e às visões históri-<br />

cas já existentes, produzidas sob a influência de<br />

partidarismos que o historiador deve criticar e<br />

dos quais deve ser capaz de se desprender, e contra<br />

uma visão una que, necessariamente, implica<br />

a sobreposição de outras.<br />

Isso significa dizer que, a partir do cinema,<br />

é possível mostrar as virtualidades de uma história<br />

crítica em seus pressupostos, que se faz não<br />

pela reunião de documentos, mas pelo seu contraponto,<br />

pela tensão que se estabelece entre eles.<br />

Múltipla e multifacetada.<br />

No segundo tomo do livro sobre a Revolução<br />

Russa, Outubro, nascimento de uma sociedade,<br />

por exemplo, Ferro opõe a “revolução imaginada<br />

e a revolução imaginária”. Compõe um<br />

quadro de como os diferentes segmentos sociais<br />

construíram suas idéias e ideais sobre a revolução,<br />

e de como esta foi vivenciada na prática. A<br />

partir daí é capaz de mostrar qual das visões prevaleceu<br />

e de que forma o seu grupo porta-voz<br />

pôde dominar pela força, pela censura e pelo<br />

controle da sociedade, os outros sentidos que<br />

informavam a revolução na sua origem. Esse grupo<br />

detém a “verdade”, a visão que preponderou<br />

sobre as outras e que justificou toda a opressão<br />

e o controle em seu nome. “A revolução, tal como<br />

os revolucionários a haviam imaginado antes de<br />

1917, era uma revolução imaginária. No entanto,<br />

como, de acordo com suas previsões, ela havia<br />

efetivamente estourado, eles não colocaram<br />

em causa nem suas análises, nem suas certezas.” 5<br />

A história não se organiza por uma verdade<br />

que o historiador descobre e elege nos documentos.<br />

Ao contrário, o historiador assinala a fatuidade<br />

desses documentos, e a sua constante ressignificação<br />

a serviço de cada momento histórico,<br />

em busca de autonomia, contra a imposição<br />

de verdades “universais” que instrumentalizam o<br />

domínio de uma cultura pela outra. É a emergência<br />

do discurso do “outro”, não apenas daquele<br />

por quem a história sempre foi escrita.<br />

4 FERRO, Marc. La Révolution de 1917, 2. Octobre, naissance d’une société. Paris: Aubier-Montaigne, 1976. 5 Ibidem, p. 13.<br />

Dessa forma, de uma maneira singular, própria,<br />

Ferro se juntava a seus pares que nos anos<br />

de 1970 já procuravam abrir a história para aqueles<br />

a quem o discurso histórico tinha antes calado:<br />

operários, mulheres, pobres, camponeses,<br />

povos colonizados. Se Michelle Perot, Le Goff,<br />

Pierre Nora, Le Roy Ladurie procuravam demarcar<br />

seus campos e seus objetos, Ferro o fazia<br />

tendo por tema a construção de uma nova sociedade<br />

e, por fonte, expressões próprias ao tempo<br />

que interrogava, dentre elas, o cinema. Assim,<br />

Cinema e história foi gestado como uma tática<br />

de guerrilha do conhecimento histórico.<br />

Esta idéia – apenas aparentemente cabotina<br />

– expressa, com termos vizinhos ao universo<br />

que a gestou, a natureza dos processos e<br />

das questões de que procura dar conta.<br />

Quando Ferro começou a usar o filme para<br />

estudar a União Soviética, em 1969, o cinema<br />

fazia o papel de partisan 6 que, clandestinamente,<br />

furava o cerco do inimigo poderoso no seu próprio<br />

campo. Através dele, obtinha um conhecimento<br />

parcial, aos pedaços, e que tirava sua riqueza<br />

não de um corpo documental coerente,<br />

mas elementos de contraponto que, ao fornecerem<br />

uma outra visão sobre o mesmo tema, eram<br />

capazes de colocá-lo em questão.<br />

Se essas imagens de “combatente clandestino”<br />

aparecem, elas não vêm por acaso. Em<br />

primeiro lugar, evocam o universo que Ferro<br />

estudou inicialmente, a União Soviética, a eclosão<br />

de uma revolução. Em segundo lugar, o<br />

momento em que Ferro trabalhou essas idéias:<br />

depois de 1968. Evocam também menções discretas<br />

de Ferro a sua participação na Resistência<br />

durante a guerra, o quanto esse período é<br />

embaraçoso para os franceses. Evocam a Europa,<br />

e o universo de onde tudo isso se origina.<br />

E evocam também os Annales e seus primeiros<br />

historiadores.<br />

Uma relação datada?<br />

A relação entre história e cinema, como foi<br />

desenvolvida por Marc Ferro no início dos anos<br />

de 1970, é determinada pela natureza dos fenômenos<br />

que analisava. Os filmes lhe dão a possibilidade<br />

de penetrar em dados que seria impossível<br />

acessar por outras fontes.<br />

As imagens, o caráter artístico e ficcional do<br />

cinema, dificultam o controle das instituições (Estado,<br />

partidos políticos, sindicatos etc.) sobre o seu<br />

conteúdo. Dificultam, sobretudo, o controle por<br />

burocratas acostumados a ver no som, e não na<br />

imagem, o verdadeiro perigo. O controle político<br />

incide sobre o som, sobre o que os personagens<br />

dizem, enquanto a censura moral é que corta o que<br />

o filme mostra. 7 A natureza do cinema permitia<br />

que lapsos de toda ordem se evidenciassem. Se havia<br />

censura, havia um conteúdo latente. E o cinema,<br />

baseado em imagens, permitia que esses fragmentos<br />

do não-dito aflorassem, apesar dos controles.<br />

Analisá-los possibilitava ao historiador o acesso a<br />

uma documentação inédita e diferente daquela encontrável<br />

nos arquivos controlados pelo Estado, ou<br />

pelo Partido Comunista.<br />

Antes disso, em 1964, Ferro participa como<br />

consultor histórico da produção de um documentário<br />

sobre a Primeira Guerra Mundial. O contato<br />

com os chamados “filmes de atualidade”, documentários<br />

e cinejornais produzidos oficialmente, leva o<br />

historiador a constatar, de imediato, a necessidade<br />

de conhecer a linguagem do meio para usá-lo como<br />

fonte. O Estado, produtor desses filmes, usa o efeito<br />

de credibilidade da imagem para “vender” os acontecimentos<br />

mostrados como absolutamente verídicos.<br />

Ferro encontrou entre esses filmes trechos<br />

em que a câmera filmava o exército inimigo de<br />

frente, atirando. Ora, isso supunha que o cinegrafista<br />

encarregado de fixar essas imagens fosse menos<br />

um cinegrafista do que um alvo privilegiado.<br />

6 Combatente clandestino da Resistência francesa durante a ocupação nazista na Segunda Guerra Mundial. 7 FERRO, Marc.<br />

Cinéma et histoire. Paris: Denoel, 1977, p. 85. Neste sentido, é interessante a consulta ao capítulo “Critique du document filmique,<br />

critique du film de montage” em FERRO, M. Analyse de film, analyse de sociétés. Paris: Hachette, 1976, p. 18 a 38.<br />

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M<br />

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C INEMA INEMA,<br />

INEMA , HISTÓRIA HISTÓRIA E MMARC<br />

M ARC FFERRO<br />

F ERRO REVOLUÇÕES<br />

Daí poder-se concluir que o documentário, em vez<br />

de documentar cenas “reais”, compunha-se com<br />

freqüência da montagem de cenas registradas no<br />

campo de batalha com outras, encenadas.<br />

Essa conclusão – hoje evidente – não invalida<br />

o “filme de atualidade”, nem o cinema em<br />

geral como fonte, embora reafirme a necessidade<br />

de o historiador colocar em xeque, permanentemente,<br />

suas fontes. De outro ponto de vista,<br />

ela chega a alargar, mesmo, a importância<br />

dessas imagens, na medida em que elas passam a<br />

informar, desde que vistas convenientemente,<br />

sobre uma série de outros fenômenos, que vão<br />

desde a batalha travada pelo controle e difusão<br />

da informação visual, seu impacto sobre o moral<br />

das populações, tal como visado pelos estadosmaiores,<br />

até o tipo de imagem que cada estado<br />

envolvido nos conflitos procura difundir deles: a<br />

sua “verdade”, tal como se traduz em imagens. 8<br />

A partir do estudo de uma série de filmes soviéticos,<br />

Ferro começa então a utilizar o cinema como<br />

fonte de uma outra história, que permite ao historiador<br />

criticar, reformular ou, ao contrário, reafir-<br />

AN PH/FOT/ 5622(1)<br />

Desfile militar na Praça Vermelha em comemoração aos 40 anos da Revolução Russa.<br />

Moscou, 9/11/1957<br />

mar o conhecimento existente a partir de documentos<br />

escritos. O segundo tomo de sua La Revolution<br />

Russe de 1917 (Octobre, naissance d’une societé)<br />

contém amostras da abrangência desse procedimento.<br />

É o caso de uma das cenas do filme A<br />

vida em um subsolo, de 1925: um casal consulta<br />

uma folhinha para calcular quando vai nascer o filho<br />

que esperam. O calendário, de tipo comum,<br />

tem a data de 1924: mas já está ornado por um<br />

grande retrato de Stalin. Ora, uma folhinha de 1924<br />

não poderia ter uma foto de Stalin: teria sido impressa<br />

em 1923. Em 1925, ao contrário, Stalin já<br />

se apossava pessoalmente, por assim dizer, do aparelho<br />

de Estado, inclusive o de propaganda. Assim,<br />

a folhinha do filme “erra”, do ponto de vista<br />

realista. Mas, é justamente quando pratica esse erro<br />

grosseiro que o filme torna-se um indicador precioso<br />

da cronologia da tomada do poder por Stalin,<br />

e dos métodos que usou para tomá-lo. Esses<br />

erros são reveladores da tensão entre o que se diz e<br />

o que se quer dizer, o que se pode e deve dizer. 9<br />

Isso lhe permite “legitimar a imagem como<br />

fonte histórica em relação às fontes sagradas, os<br />

textos oficiais, as estatísticas econômicas, os ar-<br />

8 Nesse sentido, ver capítulo “Critique du document filmique, critique du film de montage”, op. cit., p. 18 a 38. 9 FERRO, Marc.<br />

Cinéma et histoire, p. 104.<br />

quivos notariais”. 10 Desta forma, Ferro ataca dois<br />

problemas do historiador ao mesmo tempo: por<br />

um lado, romper com o controle sobre os documentos,<br />

e por outro, ter, diante de seus pares, uma justificativa<br />

suficientemente científica para a inclusão<br />

do cinema entre os seus objetos de interesse.<br />

A esse respeito é interessante notar que, se o<br />

uso do cinema pelo historiador já é incluído no<br />

terceiro volume da obra Faire de l’histoire, de Le<br />

Goff e Pierre Nora 11 – que trata dos novos objetos,<br />

com um artigo de Ferro a respeito – um<br />

historiador dos Annales como Peter Burke, em<br />

1990, 12 trata de Ferro como um dos únicos “historiadores<br />

novos” a trabalhar com a época contemporânea,<br />

citando suas obras sobre a Primeira<br />

Guerra Mundial e a União Soviética, sem qualquer<br />

menção ao trabalho com o cinema. Certamente<br />

essa omissão de Burke não é desinformação.<br />

Revela como o assunto é evitado ou tratado<br />

com desconfiança pelo historiador. É como se essa<br />

questão fosse exterior ao livro que escreve, quando<br />

na realidade não o é. Muito pelo contrário.<br />

São os pressupostos teóricos dos Annales e da<br />

nova história, com suas propostas de uma história<br />

das mentalidades, seu interesse pelo material,<br />

o cotidiano, a psicologia, uma história crítica em<br />

relação aos documentos, interdisciplinar nas abordagens<br />

e com novos objetos, que permitem a Ferro<br />

introduzir o cinema como assunto de interesse<br />

e como um documento estratégico para evitar o<br />

controle da informação e, conseqüentemente, o<br />

controle sobre a história que se produz.<br />

O trabalho com o cinema e o controle sobre as<br />

informações conduzem Ferro a incluir no seu universo<br />

de interesses outros meios que vêm invadindo e<br />

controlando a memória dos homens desde os fins do<br />

século XIX: o ensino primário, a imprensa e a televi-<br />

são. Michel Foucault analisou como esses meios e<br />

mais a literatura popular contribuíram para a perda<br />

da memória das experiências pessoais passadas, substituída<br />

por outra, encenada e retocada. Ferro vai justamente<br />

mostrar, em suas obras sobre esses assuntos,<br />

como o livro didático, as emissões de TV e a imprensa<br />

se apropriam da história, tomando-a para si. 13<br />

Sua abordagem e preocupações fazem eco também<br />

com o que escreviam e pensavam colegas seus,<br />

como Michel de Certeau, que na “Operação histórica”<br />

14 fala da influência e do controle das instituições<br />

sobre o que o historiador produz. Les lieux<br />

de mémoire, de Pierre Nora, 15 ao tratar da institucionalização<br />

da memória, dialoga com Ferro, que<br />

procura no filme a memória permitida.<br />

Mas essa relação, como outras tantas no próprio<br />

conhecimento, tem história. Por um lado, a<br />

apropriação do cinema como fonte de estudos para<br />

o historiador é tardia. Embora o cinema tenha<br />

mais de cem anos, foi só há cerca de trinta que<br />

passou a ser estudado pelos historiadores de forma<br />

sistemática. Por outro lado, o que se buscava<br />

então no cinema e as formas de obtê-lo foram<br />

determinantes dos métodos que se estabeleceram,<br />

e de como o cinema era visto, de modo a permitir<br />

sua introdução no exercício historiográfico.<br />

Um percurso individual?<br />

Há ainda um último ponto a introduzir nesta<br />

“gênese” de cinema e história. O trajeto pessoal de<br />

Marc Ferro, que, ao menos na França, parece ter<br />

sido efetivamente o primeiro a propor esses estudos.<br />

Marc Ferro viveu na Argélia, onde foi professor<br />

do curso secundário. A vivência e o contato<br />

com outra cultura diametralmente oposta à sua, a<br />

situação de colonizador que partilha também as<br />

10 GARÇON, François e SORLIN, Pierre. De Braudel à ‘Histoire parallèle’, entretien avec Marc Ferro. Cinemáction, n. 65, Paris,<br />

Corlet-Télérama, 1992, p. 53. 11 LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre (org.). Faire de l’histoire. Paris: Gallimard, 1974. 12 BURKE,<br />

Peter. A escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da historiografia. São Paulo: Unesp, 1991. 13 Nas obras A<br />

manipulação da história no ensino e nos meios de comunicação (São Paulo: Ibrasa, 1983), sobre as visões de história construídas<br />

pelos livros didáticos; O Ocidente diante da Revolução Russa, trad. Carlos Nelson Coutinho (São Paulo: Brasiliense, 1984), sobre<br />

como os jornais ocidentais reportaram os eventos da revolução de 1917; e em artigos como Médias et intelligence du Monde,<br />

publicado no Le Monde Diplomatique de janeiro de 1993, sobre a televisão. 14 CERTEAU, Michel de. Operação histórica. In: LE<br />

GOFF, J. e NORA, P. (org.), op. cit., p. 3-41. 15 NORA, Pierre. Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1984. v. I e II.<br />

49


,<br />

M<br />

F<br />

C INEMA INEMA,<br />

INEMA , HISTÓRIA HISTÓRIA E MMARC<br />

M ARC FFERRO<br />

F ERRO REVOLUÇÕES<br />

experiências do colonizado, deram-lhe uma visão<br />

multifacetada da realidade. Como colonizador,<br />

transmitia seus conceitos, sua cultura; em resposta<br />

ouvia o contraponto de alunos que exprimiam<br />

seus próprios valores. O que para ele podia ser<br />

positivo, para o outro era a perda da identidade.<br />

Assim, percebe na prática que não há um discurso,<br />

uma verdade, uma interpretação da história.<br />

Elas são muitas, se excluem, encobrem, mas por<br />

questões políticas, uma se sobrepõe a outra e procura<br />

inclusive abarcá-la (como o caso que cita<br />

sobre os livros didáticos africanos: povos negros<br />

sob dominação francesa aprendiam que seus ancestrais<br />

foram gauleses!). O que é certo para os<br />

argelinos, é deplorável para os franceses.<br />

Em 1962, de volta à França, ainda como professor<br />

do ensino médio, observa que a televisão já<br />

se constituía, entre os estudantes, numa cultura fora<br />

da escola, baseada em imagens. Chocou-se. Foi a<br />

partir desse momento que começou a fazer filmes<br />

didáticos, o primeiro deles em 1964 sobre a Primeira<br />

Guerra Mundial. Estudou cinema. “Foi realizando<br />

este filme que comecei a fazer a minha terceira<br />

reflexão histórica: as imagens que eu via eram<br />

diferentes dos livros que eu tinha lido, ainda que<br />

fossem a mesma história. Logo, havia duas versões<br />

da história. Não somente para os árabes e franceses,<br />

mas também para textos e imagens.” 16<br />

Dessa forma, seu pensamento e sua crítica<br />

se constroem sobre dualidades: há versões dos<br />

colonizadores e dos colonizados, do texto e da<br />

imagem, do visível e do não-visível. Toda a sua<br />

crítica se baseia nessas constatações. A sua tarefa<br />

como historiador é desvendar um discurso que<br />

se sobrepõe a outro. Não apenas como ideologia,<br />

mas também a partir de diferentes “focos” 17<br />

que produzem a história, conceito que desenvolve<br />

em seu livro A história vigiada, de 1985, no<br />

qual trata do discurso feito pelas instituições<br />

como o Estado, o Partido Comunista russo, e<br />

das contra-histórias que aparecem na literatura,<br />

no cinema, nas festas populares. Aí localiza as<br />

fissuras, os lapsos, os silêncios que lhe permitem<br />

operar o seu trabalho. 18<br />

Assim, a segunda tarefa do historiador, de<br />

acordo com ele, consiste em confrontar os diferentes<br />

discursos para descobrir por detrás deles<br />

o que se esconde: “O historiador deve ajudar a<br />

sociedade a tomar consciência dessa mistificação.<br />

Desta forma pode devolver à sociedade a<br />

História tomada pelos aparelhos”. 19<br />

Em 1975, as questões do desvendamento conformam<br />

o âmbito das pesquisas de Ferro até aquele<br />

momento, pela natureza dos fenômenos que estudava<br />

e dos filmes que “lia”: stalinismo, nazismo,<br />

filmes franceses da época de Vichy, que inegavelmente<br />

são produtos de uma tensão entre a realidade<br />

da época, entre o que se podia e o que se devia<br />

mostrar dela. Diante desse universo fílmico, onde<br />

consciente ou inconscientemente os filmes procuram<br />

transmitir mensagens políticas e uma certa<br />

apropriação da história, é possível entender o papel<br />

que tem o conceito de ideologia nesse universo<br />

conceitual, para a compreensão do cinema.<br />

Já em 1985, em A história vigiada, obra de<br />

historiografia, sua preocupação não está centrada<br />

na dualidade dos significados. A ênfase central é<br />

quanto à apropriação e controle sobre a obra de<br />

história. Aborda os vários “focos” que produzem<br />

visões de história, e as possibilidades desses focos<br />

na construção de visões pluralistas, tornando<br />

possível de novo fugir do controle das instituições.<br />

Os focos vão dos silêncios da história, das<br />

festas à memória popular, ao cinema. 20 Aqui Ferro<br />

agrega as idéias de Michel de Certeau (“Operação<br />

histórica”), de Pierre Nora (Les lieux de<br />

mémoire), de Hobsbawm (A invenção das tradições).<br />

21 A multiplicidade de focos emissores de<br />

visão da história sucede à dualidade. A noção de<br />

controle sobre a história, de seus usos e abusos,<br />

toma o lugar da ideologia e do desvendamento.<br />

16 Marc Ferro e a imagem da História. Folha de S. Paulo, São Paulo, 12 ago. 1986. p. A.36. 17 No original, “foyers”.<br />

18 FERRO, Marc. A história vigiada. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1989. 19 FERRO, Marc. Histoire et cinéma, p. 91.<br />

20 Idem. 21 HOBSBAWN, Eric. A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1984.<br />

Nesse livro, ao tratar do cinema como “foco”<br />

produtor de visões de história, e não apenas como<br />

fonte, preocupa-se não com as informações inéditas,<br />

mas com o tipo de construção que o cineasta é capaz<br />

de produzir. Nessa e em obras posteriores, deixa de<br />

sugerir classificações pelo tipo de tratamento que a<br />

história tem nos filmes, e se interessa por aqueles que<br />

são capazes de produzir filmes – visões de história –<br />

autônomos. “Quando o cineasta é capaz de uma análise<br />

autônoma, exprime sua própria visão do mundo,<br />

independente das ideologias e das instituições no poder.”<br />

22 E a contribuição desses filmes reside justamente<br />

em serem capazes de colocar a história em<br />

questão e não apenas valorizá-la pela encenação.<br />

Em Révoltes, révolution, cinéma, de 1989, 23 passa<br />

em revista as revoltas e revoluções que foram encenadas<br />

pelo cinema no mundo todo. Na introdução,<br />

Ferro historia como os homens haviam construído<br />

as noções de revolta e de revolução e como o<br />

cinema as aplica. No caso da Revolução Francesa,<br />

diz: “Observa-se que os filmes franceses sobre a<br />

Revolução Francesa nunca lhe são completamente<br />

favoráveis”; ou sobre a utilização de uma revolução<br />

no enredo dos filmes: “A revolução no cinema exerce<br />

a função da catástrofe que se abate na vida dos<br />

personagens, que interfere em sua vida pessoal...” 24<br />

Por outro lado, na China, a revolução que se encena<br />

é sempre tributária do regime. 25 Na Hungria, “o cinema<br />

dos anos 80 ficou estreitamente ligado à história<br />

nacional, através da qual se perfila a dolorosa lembrança<br />

de 1956. Assim, numerosos filmes fizeram da<br />

sua evocação o tema principal desse período”. 26<br />

Dessa forma, o interesse se desloca do significado<br />

dos filmes para como os filmes constroem<br />

a história: “Percebe-se que o tema de um filme<br />

tem menos importância do que o seu tratamento.<br />

Os cineastas que tratam explicitamente de um fenômeno<br />

revolucionário procuram valorizá-lo, ao<br />

invés de colocá-lo em questão. Mas a ação revolucionária<br />

dos cineastas se exerce de outra forma”. 27<br />

A forma privilegiada de tratar a história para<br />

a maioria dos cineastas é a reconstituição, mas<br />

não é essa forma que efetivamente contribui para<br />

a compreensão histórica. Nada que um livro de<br />

ilustrações ou um romance de época não traga.<br />

“Nota-se que a maior parte dos cineastas que aborda<br />

o filme histórico identifica a história a um e um só<br />

dos seus procedimentos, a narrativa de reconstituição,<br />

e não à análise ou questionamento dos problemas que<br />

coloca o passado e sua relação com o presente. [...] A<br />

narrativa de reconstituição na ordem histórica representa<br />

o grau zero de análise, ao menos suas premissas.<br />

Já Encouraçado Potemkin é uma grande reconstrução.” 28<br />

Assim, a questão que se coloca é efetivamente<br />

de filmes que contribuam para a compreensão<br />

da história sem reconstituição, ou seja, sem ilustrar<br />

a história, apenas reiterando o que já se conhece,<br />

em visões de história já consagradas, mas<br />

“descobrindo pelo imaginário uma via real para<br />

compreender a história e torná-la inteligível”. 29<br />

22 FERRO, Marc. 1975-19.. Le cinéma au service de l’histoire. Cinémaction 60, Paris, Corlet-Telérama, juillet 1991, p. 172. 23<br />

FERRO, Marc; DELAGE, C.; FLEURY-VILATTE, B. (org). Révoltes, révolutions, cinéma. Paris: Éditions Centre Pompidou, 1989. 24<br />

Ibidem, p. 32-33. 25 Ibidem, p. 133. 26 Ibidem, p. 125. 27 Ibidem, p. 34. 28 Ibidem, p. 35. 29 Idem. Nessa categoria, além de<br />

Eisenstein, ele cita filmes como Os deuses malditos, de Visconti, Napoléon, de Abel Gance e Ceddo, filme do africano Osmane Sembene.<br />

51


“Abrindo os braços<br />

para o Novo Mundo”:<br />

visita do presidente<br />

Charles De Gaulle ao<br />

Brasil. Rio de Janeiro,<br />

outubro/1964. Acervo<br />

Correio da Manhã<br />

AN PH/FOT/ 18837(315)


Laurent Véray Conferencista da Universidade de Paris X – Nanterre e secretário-geral da Association Française de Recherche sur<br />

l’Histoire du Cinéma (AFRHC). Realizador de filmes e de instalações de vídeo com imagens de arquivo para museus e autor de textos sobre<br />

história do cinema e a relação entre cinema e história.<br />

A história 1 pode ser feita<br />

com arquivos fílmicos?<br />

“ A prova cinematográfica, onde milhares de clichês compõem uma cena, e<br />

que, desenrolada entre uma fonte luminosa e um pano branco, faz levantar<br />

os mortos e os ausentes, essa simples tira de celulóide impressa constitui<br />

não só um documento histórico, mas também uma parcela da história. ”<br />

Boleslaw Matuszewski, Une nouvelle source de l’histoire: le cinématographe (1898)<br />

“ Os historiadores fazem o mesmo que os artistas: falam da vida e da<br />

morte dos homens. ” René Allio, Carnets (1991)<br />

“Cameraman no front em 1916: poderia ser um dos dois personagens do filme...“ (Coleção do autor)<br />

1 A história aqui é considerada como disciplina científica, prática interpretativa do passado. Neste artigo, não se trata de falar de arquivos<br />

fílmicos como fontes históricas, mas de refletir, então, sobre sua utilização como objeto, material para uma escrita documentária da história.<br />

Este artigo foi publicado em 1895 – Archives, Revue de l’Association Française de Recherche sur l’Histoire du Cinéma, n. 41,<br />

octobre 2003. p. 71-83. Tradução de Ivana Medeiros.<br />

As cinematecas são lugares de memória, no<br />

sentido definido por Pierre Nora, que conservam<br />

milhares de quilômetros de arquivos<br />

fílmicos salvos do desaparecimento. Inumeráveis<br />

visões documentárias, de atualidades do passado.<br />

Registros de acontecimentos quaisquer ou<br />

excepcionais, públicos ou privados. Traços, fragmentos<br />

da vida cotidiana de nossos predecessores.<br />

Tantos instantes únicos e sombras projetadas<br />

da realidade subtraídas do tempo que passa. Mergulhar<br />

nessas imagens variadas, com sua quantidade<br />

de detalhes infinitamente realistas (os famosos<br />

“efeitos de realidade” de que falamos após<br />

as visões Lumière), mas também suas numerosas<br />

lacunas (nem tudo é “visível”, longe disso),<br />

suas representações convencionais de autenticidade<br />

duvidosa (a parte da encenação pode ser<br />

importante e manipuladora), sempre me provoca<br />

o mesmo júbilo. Sobretudo porque elas constituem<br />

formidáveis terrenos de exploração e de<br />

experimentação para possíveis abordagens<br />

fílmicas da história contemporânea. 2<br />

Meu objetivo, no âmbito muito limitado<br />

deste artigo, não é entrar no detalhe de uma<br />

reflexão teórica (que permanece por ser feita)<br />

sobre a escrita fílmica da história com base em<br />

imagens de arquivo, mas evocar, mediante um<br />

caso concreto, uma experiência pessoal de realização<br />

documentária, uma tentativa voltada modestamente<br />

para esse sentido. 3 Entretanto, algu-<br />

mas observações prévias se impõem. Quando<br />

se fala em filmes de história, pensa-se imediatamente,<br />

com ou sem razão, em filmes de arquivos<br />

– os filmes de montagem, como se dizia<br />

em uma época –, que integram planos de natureza<br />

e de proveniências diversas, utilizando ao<br />

máximo seu estatuto de verossimilhança. Eles<br />

representam apenas uma categoria documental<br />

entre outras, mas cuja especificidade faz-nos<br />

considerá-los quase espontaneamente como os<br />

melhores exemplos na matéria.<br />

A prática não data de ontem, visto que as<br />

primeiras montagens inteiramente compostas de<br />

imagens de arquivos parecem ter sido realizadas<br />

no fim da Primeira Guerra Mundial. À época, já<br />

se insistia sobre o valor documental das imagens<br />

registradas durante o conflito e sua excepcional<br />

capacidade em “fazer a história”. 4 Uma afirmação,<br />

entre muitas outras, de Ricciotto Canudo,<br />

datando de 1923, é suficiente para confirmar isso:<br />

“Os únicos filmes históricos, no sentido puro e<br />

emocionante da palavra, são evidentemente aqueles<br />

que em cinema se denominam ‘atualidades’,<br />

dos quais os mais trágicos permanecem os<br />

documentários da guerra”. 5<br />

Em seguida, a produção de tais filmes, sobre<br />

diferentes assuntos, foi relativamente constante,<br />

mas sem atingir proporções significativas. Entretanto,<br />

é preciso mencionar um dentre eles,<br />

2 A representação em imagem de um passado mais antigo coloca, em contrapartida, inúmeros problemas. 3 Trata-se de um<br />

documentário, L’heroïque cinématographe (50 min; Quark Productions/France 2), co-realizado com Agnés de Sacy em<br />

2002-2003. 4 Ver VÉRAY, Laurent. Fiction et non-fiction dans les films sur la Grande Guerre de 1914 à 1928: la bataille<br />

des images. 1895 – Revue de l’Association Française de Recherche sur l’Histoire du Cinéma, n. 18, out. 1995. p. 235-257.<br />

5 CANUDO, Ricciotto. Films historiques. Paris-Midi, 27 janeiro 1923.<br />

REVOLUÇÕES<br />

55


A<br />

A<br />

A HISTÓRIA HISTÓRIA PODE PODE SER SER FEITA FEITA COM COM ARQUIVOS ARQUIVOS FÍLMICOS<br />

FÍLMICOS? FÍLMICOS<br />

REVOLUÇÕES<br />

porque sem dúvida alguma constitui uma data<br />

marcante na utilização dos arquivos: Paris 1900<br />

(1947), de Nicole Vedrès. 6 André Bazin, jovem<br />

crítico no L’Écran Français, fortemente impressionado<br />

por esse filme, fala a seu respeito de<br />

“cinema puro”, de “pureza dilacerante até as lágrimas”.<br />

7 Sua reação, muito emocionada e impregnada<br />

de nostalgia, testemunha o imenso interesse<br />

que atribui a essas imagens apresentadas<br />

não só como traços reais e incomparáveis do tempo<br />

passado, mas também, e sobretudo, como alguma<br />

coisa fundamental do ponto de vista estético,<br />

eis a quintessência do cinema:<br />

“Nicole Vedrès, e a pequena equipe da qual sei<br />

que seria profundamente injusto separar dela, realizaram,<br />

com esse filme de montagem composto apenas de<br />

documentos autênticos, algo monstruosamente belo,<br />

cuja aparição embaralhou as normas estéticas do cinema,<br />

tão profundamente quanto a obra de Marcel Proust<br />

pôde embaralhar o romance. [...] Proust encontrava<br />

sua recompensa do Tempo reencontrado na alegria inesgotável<br />

de mergulhar em sua lembrança. Aqui, ao contrário,<br />

a alegria estética nasce de uma dor, pois essas<br />

‘lembranças’ não nos pertencem. Elas realizam o paradoxo<br />

de um passado objetivo, de uma memória exterior<br />

à nossa consciência. O cinema é uma máquina para<br />

reencontrar o tempo para melhor perdê-lo. Paris 1900<br />

marca o nascimento da Tragédia especificamente cinematográfica,<br />

a do Tempo. Que não se acredite, entretanto,<br />

que o mérito dos autores seja diminuído pela<br />

existência de todos os documentos cinematográficos<br />

de época que utilizaram exclusivamente. Seu triunfo é<br />

devido, ao contrário, a um sutil trabalho de médium, à<br />

inteligência de sua escolha num material imenso. Ao<br />

tato e à inteligência da montagem, a todas as astúcias<br />

refinadas do gosto e da cultura que seria preciso colocar<br />

na obra para aprisionar esses fantasmas”. 8<br />

O que são eles hoje? Após uma quinzena de<br />

anos, os documentários de arquivos conhecem<br />

uma espantosa retomada de interesse, 9 e é sintomático<br />

que seu número ainda recentemente tenha<br />

aumentado, tanto nas televisões hertzianas<br />

quanto nas emissoras temáticas a cabo. 10 Quaisquer<br />

que sejam, evidentemente, várias precauções<br />

são tomadas, e todas as compilações de atualidades<br />

antigas não poderiam ser consideradas como<br />

documentários históricos dignos desse nome. Primeiro,<br />

o essencial é não só o interesse do projeto,<br />

isto é, simultaneamente a escolha do assunto, o<br />

sentido e o alcance da demonstração, mas igualmente<br />

a forma escolhida, pois se trata, não o esqueçamos,<br />

de cinema. É importante, portanto,<br />

considerar a especificidade desse modo de expressão,<br />

sua própria história, as questões apaixonantes<br />

mas complexas que ele provoca. Enfim, acredito<br />

que somente a partir de uma verdadeira reflexão,<br />

longa e minuciosa, sobre os arquivos cinematográficos,<br />

é possível sair dos lugares-comuns<br />

e, por meio dos cruzamentos da imagem e do tempo,<br />

imaginar outros usos mais pertinentes orientados<br />

para um caminho propriamente histórico.<br />

A utilização dos arquivos sem esforço de conhecimento<br />

e de pensamento não apresenta interesse<br />

para a historiografia. O risco maior é a perda de<br />

sentido de todas essas imagens polissêmicas, pois<br />

nem sempre temos os bons referentes socioculturais<br />

para compreender e interpretar corretamente<br />

o que elas representam. O analista deve, portanto,<br />

na medida do possível, desembaraçar-se dos<br />

prejulgamentos retrospectivos que podem influenciar<br />

sua percepção e, conservando sua subjetividade,<br />

esforçar-se para recontextualizar os arquivos<br />

e deles extrair plenamente o conteúdo.<br />

Apesar de tudo, é forçoso reconhecer que<br />

“fazer história” dessa maneira suscita ainda in-<br />

6 É necessário assinalar de passagem que ela foi precedida por duas realizações pioneiras do filme de arquivos: Esther Choub (La<br />

chute de la dynastie des Romanov, 1927) e Germaine Dulac (Le cinéma au service de l’histoire, 1935). 7 BAZIN, André. Paris<br />

1900. À la recherche du temps perdu. L’Écran Français, 30 set. 1947, retomado em Qu’est-ce que le cinéma? Paris: Cerf, 1958,<br />

tomo 1, e em Le cinéma français de la liberátion à la Nouvelle Vague (1945-1958). Paris: Cahiers du Cinéma, coll. Essais,<br />

1983, p. 167. 8 Ibidem, p. 167-168. 9 Depois da queda do muro de Berlim e da abertura dos fundos cinematográficos dos<br />

países do Leste, assistiu-se a uma multiplicação dos filmes de arquivo (ver, a esse respeito, Les images venues de l’Est<br />

renouvellent le documentaire historique, Le Monde, suplemento televisão de 9-10 fevereiro 1997). 10 Arte contribuiu<br />

amplamente para o renascimento do documentário em geral, e do filme de arquivos em particular, por meio de casos emblemáticos<br />

como “Les mercredis de l’histoire”, “Grand format” e “La Lucarne”.<br />

terrogações, dúvidas, talvez reticências da parte<br />

dos historiadores profissionais cuja fonte principal<br />

não é a imagem. É evidente que um filme e<br />

uma obra histórica não podem representar de<br />

maneira equivalente o passado. No entanto,<br />

como admitia com lucidez o historiador Henry<br />

Rousso, há documentários que, considerando a<br />

diversidade dos arquivos, e pelos efeitos que lhes<br />

são próprios, chegam a recriar os movimentos<br />

do tempo e permitem assim melhor apreender<br />

as mudanças ocorridas no curso do século XX. 11<br />

É verdade que os métodos empregados por certos<br />

realizadores não estão tão distantes daqueles<br />

que se poderia creditar aos historiadores. Chegam,<br />

inclusive, a se assemelhar singularmente.<br />

Filmando ou escrevendo, ambos investem na<br />

busca de arquivos, empregando um cuidado extremo<br />

nessa investigação. Escolhem, então, entre<br />

os materiais heterogêneos do passado dos<br />

documentos, examinam-nos, separam-nos, colocam-nos<br />

em perspectiva, articulam-nos uns em<br />

relação aos outros, interpretam-nos segundo uma<br />

problemática dada (sendo evidentemente o interesse<br />

das imagens diretamente proporcional ao<br />

fundamento das questões que lhes são colocadas).<br />

De fato, a exemplo das duas concepções possíveis<br />

da história, pode-se dizer que existem dois<br />

tipos de documentários históricos com base em<br />

arquivos. Por um lado, há o documentário clássico,<br />

pelo qual por muito tempo se privilegiou a<br />

acumulação de planos sem muita preocupação<br />

com sua origem exata, nem com seu verdadeiro<br />

sentido. Como o discurso positivista, esse gênero<br />

de filme pretende dar conta da história, consoante<br />

uma trama cronológica dos acontecimentos<br />

a partir de um conjunto de imagens “representando<br />

o real” ou, pelo menos, que se quer<br />

fazer passar por ele. Ora, o objetivismo da imagem<br />

dita autêntica é muito aleatório: há muito<br />

se sabe que visões idênticas, segundo as circunstâncias,<br />

podem servir a interpretações absolutamente<br />

contrárias (parece-me que, precisamente<br />

durante a Grande Guerra, se assiste a um primeiro<br />

questionamento das pretensões da imagem<br />

mecânica a exprimir a realidade de um acontecimento).<br />

Por outro lado, há uma forma de escrita<br />

documentária que, oposta à precedente, renuncia<br />

à busca ilusória da objetividade total. Próxima<br />

da pesquisa histórica moderna (a que se desenvolveu<br />

depois da escola dos Annales), ela se<br />

elabora numa perspectiva crítica, em particular<br />

em relação às imagens montadas e ao que supostamente<br />

significam de maneira evidente ou subjacente.<br />

Desde então, o documentarista, como o<br />

historiador, porém, com meios de significação<br />

diferentes, se distancia para se interrogar sobre<br />

a ordenação de seu assunto e os princípios de<br />

inteligibilidade do real que emprega. Essa escrita<br />

fílmica da história assume também uma parte<br />

da imaginação e uma forma de sensibilidade em<br />

relação à maneira de considerar o passado. É uma<br />

conduta com um ponto de vista de autor que,<br />

finalmente, está muito próxima da que reivindicava<br />

o eminente medievalista Georges Duby,<br />

grande apaixonado das imagens, 12 quando afirmava<br />

no fim de sua brilhante carreira: “Meu trabalho<br />

concerne mais à arte que à ciência, pois<br />

nele entra uma parte decisiva de subjetividade”. 13<br />

Isso implica, no mínimo, duas coisas: primeiro,<br />

qualquer que seja o acontecimento relatado, o<br />

que conta é o ponto de vista expresso; depois, o<br />

sentido e a verdade podem emergir completamente<br />

por meio de uma relação entre o real e o<br />

imaginário.<br />

A esse título, vários nomes de cineastas se<br />

impõem. Na primeira fila deles figuram Chris<br />

Marker, Harun Farocki, Edgardo Cozarinsky,<br />

Peter Forgacs ou Pierre Beuchot, cujos filmes,<br />

abundantemente compostos de arquivos (poderse-ia<br />

dizer inclusive que constituem a matériaprima<br />

de seu trabalho), são simultaneamente<br />

criações e obras audaciosas de caráter histórico,<br />

com seus meios próprios de expressão, a<br />

11 Ver Filmer le passe dans le cinema documentaire: les traces et la mémoire. Paris: L’Harmattan, coll. Cinéma Documentaire<br />

n. 3, mai. 2003, p. 62. 12 Aliás, seu gosto pelas imagens levou-o não só a considerar sua decifração, enquanto historiador, mas<br />

também a criar para a televisão obras audiovisuais de caráter histórico, sobretudo em 1985 para o canal cultural Sept, que<br />

presidiu durante aqueles anos. 13 DUBY, Georges. L’histoire continue. Paris: Odile Jacob, 1991.<br />

57


A<br />

A<br />

A HISTÓRIA HISTÓRIA PODE PODE SER SER FEITA FEITA COM COM ARQUIVOS ARQUIVOS FÍLMICOS<br />

FÍLMICOS? FÍLMICOS<br />

REVOLUÇÕES<br />

originalidade de seu estilo; em oposição aos<br />

lugares-comuns, eles se inclinam para as diferentes<br />

maneiras de se apropriar das imagens.<br />

Seu objetivo consiste menos em tentar reconstituir<br />

uma hipotética verdade histórica de que<br />

seriam a ilustração mais ou menos fiel, do que<br />

em refletir suas significações profundas. Os arquivos<br />

fílmicos trazem, com efeito, o traço de<br />

uma época, ou mais exatamente de um olhar<br />

voltado para uma época. Por conseqüência, não<br />

se coloca mais prioritariamente a questão de<br />

sua exatidão. A reconstituição do passado já não<br />

é a única motivação, nem o único foco de interesse.<br />

Assim como os historiadores, esses cineastas<br />

não procuram reconstituir a realidade de<br />

ontem em estado bruto. Ao contrário, eles interrogam<br />

o engano evidente das imagens que<br />

utilizam, questionam sua pretensa objetividade,<br />

propõem outras leituras. Sabendo que não<br />

podem ensinar com exatidão sobre todos os aspectos<br />

do passado, reorganizam-nas, associamnas<br />

a sons e a vozes, confrontam-nas com outros<br />

documentos, sublinham as contradições,<br />

tudo para tentar dar-lhes uma consistência de<br />

história. Elaborando seu assunto a partir de elementos<br />

encontrados nos arquivos (stock-shots<br />

ou outros), eles também mantêm uma distância,<br />

adotam um ponto de vista, constroem seu<br />

objeto com atenção. Às vezes encenam-no jogando<br />

com a polivalência das imagens e dos signos<br />

que as compõem. Esse recurso ao artifício<br />

pode surpreender à primeira vista. Ora, como<br />

sublinha com justiça Jean-Louis Comolli, o engano<br />

e o artifício no cinema documental não são<br />

forçosamente inimigos da verdade, às vezes eles<br />

são inclusive os meios de emergência; 14 por fim,<br />

o interessante não é a clivagem entre realidade e<br />

ficção, mas sim a maneira de combiná-las.<br />

Desse ponto de vista, o documentário não<br />

é o contrário da ficção, que, aliás, não é forçosamente<br />

estranha ao real (já se sabe há muito<br />

que a oposição simplista entre documentário e<br />

ficção não é verdadeiramente operante). Conforme<br />

o raciocínio de Jacques Rancière, que<br />

parte do exemplo emblemático do filme dedicado<br />

a Alexandre Medvedkine, Le tombeau<br />

d’Alexandre, de Chris Marker (aquele que,<br />

provavelmente, entre os cineastas que fizeram<br />

dos arquivos um de seus assuntos prediletos,<br />

melhor soube forjar um estilo pessoal, reconhecível<br />

entre milhares: um dos pensadores<br />

mais exigentes na matéria), poder-se-ia dizer<br />

que o filme de arquivo, no melhor dos casos,<br />

pelo tratamento que se impõe a esse material<br />

de origem – podendo às vezes modificar completamente<br />

sua significação –, 15 visa instaurar<br />

um discurso analítico coerente. Esse discurso,<br />

como explica o filósofo, fundado a partir de<br />

diversas representações do real – que jamais lhe<br />

são idênticas –, procura propor possibilidades<br />

de pensar de outra maneira a história.<br />

“O cinema documentário [...] por sua própria<br />

vocação retira do real as normas clássicas da conveniência<br />

e da verossimilhança; pode, melhor que o<br />

cinema dito de ficção, jogar concordâncias e discordâncias<br />

entre vozes narrativas e séries de imagens de<br />

idade, de proveniência e de significação variáveis.<br />

Ele pode unir o poder de impressão, o poder de<br />

palavra que nasce do encontro do mutismo da máquina<br />

e do silêncio das coisas, com o poder da montagem<br />

– no sentido amplo, não técnico, do termo –<br />

que constrói uma história e um sentido pelo direito<br />

que se arroga de combinar livremente as significações,<br />

de re-ver as imagens, de encaixá-las de outro<br />

modo, de restringir ou ampliar sua capacidade de<br />

sentido e de expressão.” 16<br />

Rancière acrescenta mais adiante, sempre em<br />

referência ao filme de Marker, que se trata de<br />

uma “ficção histórica documentária vindo a identificar-se<br />

a um filme do cinema sobre seu próprio<br />

poder de história”. 17<br />

14 COMOLLI, Jean-Louis em BIZERN, Catherine (dir.). Cinéma documentaire: manières de faire, formes de pensée. Paris:<br />

Yellow Now, 2002, p. 77. 15 Aliás, o sentido das imagens é freqüentemente modificado sob o efeito de seus usos sucessivos.<br />

16 RANCIÈRE, Jacques. La fable cinématographique. Paris: Le Seuil, 2001, p. 206. 17 Ibidem, p. 214.<br />

Em definitivo, esse entrelaçamento entre as<br />

noções de história, de documentário e de ficção,<br />

e as relações que mantêm entre si para criar<br />

sentidos, atingir uma parte de verdade, não está<br />

tão afastado que se poderia creditá-lo à historiografia.<br />

Sabe-se, com efeito, sobretudo depois dos<br />

escritos de Michel de Certeau, que as narrativas<br />

históricas são determinadas não só pelos caracteres<br />

específicos dos objetos de pesquisa, mas<br />

também por estratégias e dificuldades discursivas.<br />

Desde então, fazer história é proceder a uma<br />

construção metódica, um agenciamento ordenado<br />

de fatos e idéias correspondente a um argumento.<br />

A narração histórica não é a verdade definitiva<br />

do que se passou e a pretensa objetividade<br />

do historiador e de seu aparelho explicativo é<br />

apenas uma ilusão: “Considera-se rapidamente<br />

uma realidade da história o que é somente a coerência<br />

de seu discurso historiográfico, e uma<br />

ordem na sucessão dos fatos o que é somente a<br />

ordem postulada ou formulada por seu pensamento”.<br />

18<br />

Entendamos bem, isso não chega a contestar<br />

a legitimidade científica da narrativa histórica,<br />

mas a reconhecer que ela repousa sobre condições<br />

de ordenações particulares, sobre diferentes<br />

categorias de análise, de argumentação, visando<br />

todas (em graus variáveis) certa veridicidade<br />

e plausibilidade que, como todos sabem,<br />

evoluem consideravelmente ao longo do tempo.<br />

Enfim, os laços estreitos entre essa história e o<br />

presente de sua escrita são igualmente conhecidos.<br />

Lucien Febvre já os sublinhava em 1948:<br />

“O passado, dizia ele, é uma reconstituição das<br />

sociedades e dos seres humanos de outrora por<br />

homens e para homens engajados no tecido das<br />

realidades humanas de hoje”. 19<br />

Assim como a história em sua escrita não<br />

pode se subtrair aos procedimentos literários, o<br />

registro em filme da história não pode ser feito<br />

sem levar em conta as características do cinema.<br />

Desse fato, a questão da dupla competência (em<br />

história e em cinema) apresenta-se invariavelmente.<br />

Pode-se utilizar conscientemente as imagens<br />

fílmicas provenientes dos arquivos numa perspectiva<br />

histórica independentemente do conhecimento<br />

científico e prático de sua realização? É<br />

interessante notar que, em 1971, pouco depois<br />

do lançamento de seu célebre filme Le chagrin<br />

et la pitié, Marcel Ophuls apresentava suas expectativas<br />

em relação a uma evolução das formações<br />

audiovisuais nessa direção:<br />

“Espero que em vinte ou trinta anos o gênero<br />

de trabalho que faço atualmente já não exista. Porque<br />

acredito que a cultura audiovisual exige uma<br />

nova forma de especialização, e, portanto, que certos<br />

trabalhos até o presente separados serão reunidos<br />

num só trabalho, numa só e mesma pessoa; isto<br />

é, não vejo razão para que no futuro haja uma formação<br />

universitária científica para os realizadores<br />

[...], não deveria haver qualquer justificativa para<br />

que pessoas como André Harris e eu – por formação<br />

jornalística inteiramente clássica, ou por formação<br />

de realizador e técnico do cinema – ainda possam<br />

fazer isso. Se por enquanto o fazemos, é porque ainda<br />

não há substitutos, pessoas com diplomas, uma<br />

formação universitária que deveria corresponder ao<br />

nível do professorado. O que quero dizer bem precisamente<br />

é que, no futuro, o trabalho de professor<br />

de história, ou de ciências políticas e o trabalho de<br />

realizador de documentários políticos ou históricos<br />

serão dois trabalhos que deverão se reencontrar e<br />

unificar-se na mesma pessoa”. 20<br />

Essa aspiração expressa por Ophuls, há trinta<br />

anos, não se concretizou.<br />

Ainda hoje, o papel do historiador se limita<br />

ao de “conselheiro histórico”, conforme a fórmula<br />

consagrada, às vezes de autor, raramente de<br />

realizador. Deve-se isso a essa ausência de apren-<br />

18 CERTEAU, Michel de. L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, reedição 2002, p. 349. 19 FEBVRE, Lucien. Avant-propos<br />

à Charles Morazé, Trois essais sur histoire et culture, Armand Colin, Cahiers des Annales, 1948, p. VIII. 20 OPHULS,<br />

Marcel. L’honnêteté et la méthode, Jeune Cinéma, n. 55, mai. 1971, p. 9.<br />

59


A<br />

A<br />

A HISTÓRIA HISTÓRIA PODE PODE SER SER FEITA FEITA COM COM ARQUIVOS ARQUIVOS FÍLMICOS<br />

FÍLMICOS? FÍLMICOS<br />

REVOLUÇÕES<br />

dizagem (na universidade ou alhures) dos modos<br />

de utilização dos arquivos fílmicos numa perspectiva<br />

de escrita documentária da história? É possível.<br />

Em todo caso, é lamentável que nenhuma formação<br />

propriamente dita associe a teoria e a prática,<br />

o passado e a maneira de interpretá-lo em<br />

imagens (sem contar que seria necessário estabelecer<br />

uma estreita parceria entre as universidades,<br />

os lugares de criação e de difusão, as cinematecas,<br />

assim como todos os centros de arquivamento).<br />

Decerto, “a ficção histórica documentária”,<br />

para retomar a expressão de Rancière, não<br />

pode reorientar os assuntos e os suportes da pesquisa<br />

da história. Deve-se para isso renunciar,<br />

quando se é historiador, a servir-se das imagens<br />

fílmicas para fazer seu trabalho de outra maneira?<br />

Talvez seja tempo de reconsiderar a questão, de<br />

ir mais longe. De considerar com atenção, como<br />

há muito tempo já fazem certos pesquisadores<br />

americanos como Robert A. Rosenstone, 21 uma<br />

outra escrita histórica, pensada e inteiramente<br />

constituída de imagens animadas (considerando<br />

inteiramente sua especificidade), com trama (o<br />

que notadamente apresenta a vantagem de ampliar<br />

a difusão do conhecimento histórico a um outro<br />

público que o dos especialistas). Uma forma<br />

documentária teatralizada que renove as narrativas<br />

tradicionais tomando emprestado as regras da<br />

ficção, quiçá da dramaturgia. Se é incontestável<br />

que o arquivo fílmico não pode substituir o escrito,<br />

ele pode, em contrapartida, participar da reconstrução<br />

do passado à sua maneira, com os<br />

meios que lhe são próprios, isto é, considerando<br />

suas possibilidades e suas lacunas. Uma escrita<br />

fílmica original, singular em sua concepção, rigorosa<br />

em sua demonstração, mas não despida de<br />

inovações criadoras. Reagenciadas como fontes<br />

históricas, as imagens, sob o olhar atento do historiador<br />

cineasta, dão a pensar tanto ou mais que<br />

dão a ver. Escrever a história e filmar a história<br />

pode depender de um mesmo regime de sentido e<br />

de verdade. A tarefa é cada vez mais necessária,<br />

pois as imagens de arquivos agora fazem parte da<br />

atualidade midiática. 22 Com efeito, todo mundo<br />

pode constatar que, no quadro do frenesi das comemorações,<br />

as emissoras de televisão utilizamnas<br />

cada vez mais como caução histórica, como<br />

aposta de memória.<br />

L’héroïque cinématographe é um filme que já<br />

tem muito tempo. Como todos os filmes, ele tem<br />

sua própria história. Difícil, com momentos de<br />

dúvida, acasos que seria cansativo detalhar aqui. 23<br />

Mas também, felizmente, uma história feita de<br />

entusiasmos, de encontros ricos e estimulantes, é<br />

que lhe permitiu nascer. A esse título, o encontro<br />

com Agnès de Sacy, que é cenarista de ficção, 24<br />

foi determinante. Nossos caminhos se cruzaram<br />

em 1996, em torno de uma filmagem em Belgrado,<br />

justo após os acordos de Dayton que, acreditem,<br />

colocavam fim ao conflito na ex-Iugoslávia.<br />

Discutimos sobre essa experiência comum insólita,<br />

depois lhe falei de um projeto de documentário<br />

que escrevera sobre o percurso de dois cameramen<br />

durante outra guerra, a de 1914-1918.<br />

Decidimos então desenvolvê-lo juntos. 25<br />

21 Ver ROSENSTONE, Robert A. Visions of the past: the challenge of film to our idea of history. Harvard University Press,<br />

1955; e Film historique/vérité historique, em XXe Siècle, Revue d’Histoire, n. 46, abr.-jun. 1995, Christian Delage (dir.).<br />

22 Assiste-se inclusive atualmente a uma espécie de fascinação pelos arquivos fílmicos: ver a esse respeito a admiração do público<br />

pelas montagens de imagens em cores da Segunda Guerra Mundial (Ils ont filme la guerre em couleurs, recentemente difundido<br />

por France 2, reuniu 20% do mercado na primeira parte da exibição, o que é um recorde de audiência para um filme desse tipo).<br />

23 Não é inútil precisar que os parâmetros econômicos têm um papel decisivo na realização de um filme de arquivos como esse.<br />

Assim, um dos maiores obstáculos reside no custo da operação. Os detentores dos direitos das imagens exigem, de fato, tarifas<br />

freqüentemente proibitivas (em torno de 1.500 euros por minuto utilizado para uma difusão televisiva em escala européia). Isso<br />

explica em grande parte as dúvidas das emissoras e o fato de elas só se dirigirem a realizadores considerados “experientes” que, com<br />

muita freqüência, se ligam a uma concepção tradicional do gênero, o que constitui evidentemente um entrave à sua renovação. Outra<br />

conseqüência é que os produtores, na maior parte do tempo, só se lançam na aventura do filme de arquivos quando fazem um<br />

acordo no mínimo com uma cinemateca. Por fim, o filme se constrói unicamente, ou quase, com as imagens disponíveis (isto é,<br />

livres de direito), o que, é óbvio, limita consideravelmente a margem de manobra do documentarista. 24 Ela colaborou, entre<br />

outros, com os cenários do filme de Hélène Angel, Peau d’homme, coeur de bête (1999) e de Orso Miret, De l’histoire ancienne<br />

(2000). 25 Outras colaborações foram igualmente preciosas. As de Patrick Winocour e Juliette Guigon, os produtores, que<br />

constantemente sustentaram o projeto; e certamente a de Françoise Bernard, a montadora, que, por sua experiência com arquivos (ela<br />

particularmente montou La foi du siècle de Patrick Rotman e o filme Roman Karmen, um cinéaste au service de la révolution, de<br />

Patrick Barberis e Dominique Chapuis), teve um papel considerável.<br />

Tudo começou no início dos anos de 1990<br />

por uma pesquisa ligada a minha história pessoal,<br />

a lembranças de infância sempre presentes<br />

num canto de minha memória. Isso se traduziu<br />

por um estudo aprofundado sobre os noticiários<br />

realizados durante a Grande Guerra,<br />

conduzidos num enquadramento universitário.<br />

Centenas de horas passadas para projetar filmes<br />

montados ou rushes. Um longo trabalho<br />

de gestação ao longo do qual aprendi a me familiarizar<br />

com as imagens dessa época, tentei<br />

compreender sua especificidade para embaralhar<br />

as antigas certezas provenientes de uma<br />

visão superficial desses arquivos. Uma pesquisa<br />

a partir da qual a idéia de realizar um documentário<br />

amadureceu, até tornar-se uma verdadeira<br />

necessidade. Decidi então construir<br />

uma narrativa em torno de duas personagens,<br />

dois operadores de câmera, um francês e um<br />

alemão, a fim de oferecer maior diversidade de<br />

percepção. Supus que cada um fez um diário<br />

em que teria inscrito suas impressões e comentários<br />

sobre as imagens rodadas que vemos. Inventado<br />

a partir da observação atenta das próprias<br />

imagens, de fontes variadas e de experiências<br />

vividas, o percurso desses dois homens<br />

(eles não aparecem na tela, somente em voz off)<br />

é organizado num todo coerente para colocar<br />

em evidência e em perspectiva as apostas da<br />

representação filmada desse acontecimento.<br />

Essa aproximação comparativa, sob forma de<br />

montagem paralela, é finalmente um atalho que<br />

atravessa a história, um atalho de cinema.<br />

De fato, poderia dizer que meu desejo do<br />

filme partiu de uma paixão e de um sentimento<br />

de raiva. A paixão é, como diz com justiça a<br />

historiadora Arlette Farge, “o gosto do arquivo”<br />

e sua parte de nostalgia. É verdade que meu trabalho<br />

de reflexão provocou uma atração particular<br />

por essas imagens cinematográficas. Primeiro<br />

pelo que têm suscitado em mim de intensas<br />

sensações, de reações afetivas. Em seguida, porque<br />

fiquei surpreso pela extraordinária qualidade<br />

estética de algumas dentre elas. A descoberta<br />

dessas visões animadas silenciosas, raiadas de<br />

chuva e tachadas de negro sob a ação do tempo,<br />

26 lembranças visuais de uma época longínqua<br />

saída de sua caixa, é sempre emocionalmente<br />

forte. É um pouco como se esse mundo dos<br />

desaparecidos que é o passado surgisse de súbito<br />

das silhuetas felizes ou patéticas. Uma espécie<br />

de vida que não é dita pelas palavras, que não<br />

podemos extrair dos textos contemporâneos.<br />

Ainda hoje, tenho a impressão de que os filmes,<br />

abolindo o tempo, permitem, para retomar uma<br />

expressão de Michelet a propósito da história,<br />

“ressuscitar os mortos” (“a morte deixará de ser<br />

absoluta”, anunciava o jornal La Poste a propósito<br />

dos primeiros filmes Lumière em 1895), lhes<br />

dar nova vida. 27 Sua capacidade para restituir<br />

figuras do real, ilustres ou desconhecidas, é de<br />

fato surpreendente.<br />

Esse peso de existências referenciais de que<br />

são dotados os arquivos (o valor ontológico da<br />

imagem de outrora evocada por Bazin que, con-<br />

26 Os defeitos devidos ao desgaste ou à deterioração química da película de nitrato produzem uma dimensão estética nova,<br />

que, acentuando o charme melancólico das imagens, materializam igualmente, de maneira simbólica, a passagem do tempo.<br />

Yervant Gianikian e Ângela Ricci Lucchi, verdadeiros artistas do arquivo, servem-se deles (colorindo-os e às vezes enquadrando-os<br />

com o que denominam sua “câmera analítica”) há muitos anos para evocar poeticamente o passado, revelar por trás<br />

da inquietante tranqüilidade das imagens o terrível caos do século XX. É também o caso do americano Bill Morrison, que<br />

desenterra da Biblioteca do Congresso partes de atualidades dos anos de 1910 aos anos de 1940, apresentando uma<br />

decomposição parcial da emulsão para explorar seu potencial pictórico, o lado quase abstrato. É preciso mencionar também<br />

o trabalho dos videastas e dos autores de instalações multimídia, sobretudo o de Bárbara Lattanzi. Esta última, na linhagem<br />

das reflexões levadas durante os anos 70 pelo cineasta experimental americano Hollis Frampton, reutiliza imagens de<br />

arquivos que reúne a elementos díspares, a fim de criar novas obras (sempre interativas) destinadas principalmente a Net.<br />

É possível assim descobrir atualmente alguns de seus movies clips realizados a partir de planos do filme de F.W. Murnau,<br />

Nosferatu (1922) em seu website: www.wildernesspuppets.net (para mais informações sobre a originalidade dos dispositivos<br />

utilizados por essa artista, ver HILL, Chris. (Re)performing the Archive: Bárbara Lattanzi & Hollis Frampton in<br />

dialogue, Millennium Film Journal, n. 39-40, Winter 2003, p. 66-81). 27 Jules Michelet pensava que ao historiador cabe<br />

a tarefa de defender a memória e fazer justiça aos homens deliberadamente ignorados. Dizia ele: “Jamais em minha carreira<br />

perdi de vista esse dever do historiador. Dei a vários mortos esquecidos a assistência da qual eu mesmo teria necessidade.<br />

Exumei-os para uma segunda vida”; prefácio de L’histoire du XIXe siècle, 1873.<br />

61


A<br />

A<br />

A HISTÓRIA HISTÓRIA PODE PODE SER SER FEITA FEITA COM COM ARQUIVOS ARQUIVOS FÍLMICOS<br />

FÍLMICOS? FÍLMICOS<br />

REVOLUÇÕES<br />

soante ele, “serve para salvar os desaparecidos<br />

de uma segunda morte espiritual”) 28 reveste-se<br />

a meus olhos de uma importância capital. Entre<br />

essas aparências carnais gravadas na emulsão<br />

sensível da película, são os traços deixados,<br />

as marcas de vidas comuns de homens e mulheres<br />

pertencentes à massa dos esquecidos da história<br />

que mais me tocam. Essa potência da ilusão<br />

(o famoso “isso foi” de que falava Barthes),<br />

tornando visíveis rostos anônimos, corpos em<br />

movimento, gestos sem importância ou excepcionais<br />

em via de se efetuar, é simultaneamente<br />

apaixonante e perturbadora. Toca-se, sem<br />

dúvida, nessa possibilidade essencial que essas<br />

imagens têm de estabelecer laços. Com efeito,<br />

esses olhares, esses sorrisos, esses gestos, esses<br />

signos efetuados na direção do câmera, somos<br />

nós, espectadores atuais, doravante seus destinatários.<br />

O espaço de um instante, o espaço de<br />

uma projeção, os vivos de então, esses que habitualmente<br />

não se vê, e que a morte aniquilou,<br />

renascem, revivem sob nossos olhos. Eles se<br />

agitam e parecem se comunicar conosco, antes<br />

de reencontrar a imobilidade, a obscuridade das<br />

cinematecas. Esses reinos de sombras que os<br />

abrigam. Sempre fui igualmente impressionado<br />

pela potência de evocação desses planos. Em<br />

muitos deles, há uma infinidade de acontecimentos<br />

minúsculos, de subentendidos, de elementos<br />

que permanecem da ordem do enigma,<br />

sem significação aparente ou, ao contrário, plenos<br />

de sentido que só pedem para ser explicitados:<br />

dito de outra maneira, simplesmente, uma<br />

formidável potencialidade para relatar alguma<br />

coisa. Entre as imagens da Grande Guerra, há<br />

inúmeras que têm essa impressionante capacidade<br />

de deixar entrever os horrores do conflito,<br />

aí compreendidos quando a priori nada se<br />

passa, e mesmo na artificialidade das encenações,<br />

e malgrado o papel da censura ou da propaganda.<br />

Não é raro, com efeito, que a câmera<br />

registre o imprevisto, o acaso. Aparece então,<br />

enfiada sob sua pretensa realidade, essa incomparável<br />

alteridade (uma parte de inesperado e<br />

de inocência) reenviando para o que é escondido,<br />

proibido: hors champ. Por essa razão a noção<br />

de traços me interessa enormemente. Sou muito<br />

sensível a eles, pois com freqüência são mais<br />

evocativos que a própria ação que quase sempre<br />

permanece invisível. Desde então, como não<br />

evocar esses inúmeros planos seqüências (figuras<br />

favoritas dos operadores da época), essas<br />

longas panorâmicas do no man’s land, lancinantes<br />

e melancólicos, que são tantos alongamentos<br />

do espaço e do tempo, carregados de marcas<br />

e cicatrizes indeléveis. Há aí, para mim,<br />

uma verdadeira especificidade cinematográfica<br />

que deve ser estudada e utilizada como uma<br />

espécie de conceito histórico.<br />

A raiva foi sentida ao observar a maioria<br />

dos documentários sobre o assunto. Freqüentemente<br />

realizados num quadro comemorativo e<br />

no esquecimento da história, eles integram imagens<br />

de arquivos destacadas de seu contexto de<br />

origem para ilustrar um discurso redigido a<br />

posteriori. Eles me incitaram a considerar um<br />

outro filme. Como uma recusa da interpretação<br />

global do acontecimento (que é impossível)<br />

e de sua presumida verdade (que é sem cessar<br />

inacessível). A Primeira Guerra Mundial é uma<br />

das maiores tragédias do século XX, sempre<br />

presente na consciência coletiva, sobretudo pelo<br />

viés das inúmeras imagens chegadas até nós.<br />

Ora, a maioria delas é utilizada pelo que presumivelmente<br />

mostra e não pelo que é realmente.<br />

Acontece também dessa utilização ser totalmente<br />

falaciosa. Em particular, quando se decide mostrar<br />

os combates: simplesmente porque não há<br />

imagem de batalha, as que aparecem em todos<br />

os filmes de montagem não são autênticas. Foram<br />

reconstituídas no decorrer e sobretudo após<br />

a guerra, durante os anos 60. Algumas delas,<br />

aliás, acabaram por mudar de estatuto, tornando-se<br />

“falsas verdadeiras imagens de arquivos”.<br />

Os realizadores, na falta de efeitos espetaculares,<br />

ainda se servem delas regularmente. Os filmes<br />

de atualidade rodados durante a Grande<br />

28 BAZIN, André. Ontologie de l’image photographique, em Qu’est-ce que le cinéma? op. cit., p. 10.<br />

Guerra, como todos os documentos de época,<br />

são portadores de realidade e de mentiras (a<br />

cena sob controle das representações da guerra<br />

pelo poder civil e militar implica evidentemente<br />

diversas manipulações).<br />

Sabemos, com efeito, que as imagens, quaisquer<br />

que sejam, podem ser enganosas. Elas escondem<br />

da mesma maneira que mostram. É fácil<br />

fazê-las dizer tudo e o contrário. Por conseqüência,<br />

importa desconfiar da semelhança e<br />

da verossimilhança que parecem impor. São<br />

arquivos nem mais nem menos reais que outras<br />

fontes. Não têm de modo algum valor de prova.<br />

Daí a necessidade de identificá-las bem, de<br />

lhes colocar questões (algumas das quais fazem<br />

eco com as interrogações atuais), de torná-las<br />

inteligíveis. Dito de outra maneira, de tornálas<br />

um objeto de história, reapropriando-se delas.<br />

Um objeto para reinventar em função de<br />

hipóteses pertinentes, sem excesso nem falta de<br />

imaginação. Decerto, não se tratava de ilustrar<br />

minha tese, mas de encontrar uma forma original,<br />

a fim de oferecer um esclarecimento inédito<br />

sobre essa imensa matéria bruta e sensível.<br />

Sublinhei isso anteriormente: as imagens fílmicas<br />

são documentos que, considerada sua própria<br />

natureza, impõem exigências para sua utilização<br />

numa perspectiva histórica. Desde então,<br />

entre trabalho de pesquisa e criação, refleti<br />

sobre uma construção discursiva adaptada ao<br />

objeto estudado, uma espécie de análise cinematográfica<br />

da história que, operando uma narração<br />

(com sua parte de artifício), possa tornar<br />

melhor perceptível sua especificidade. Isto é,<br />

restituir às imagens de arquivos seu sentido<br />

verdadeiro ancorando-as no presente com o qual<br />

elas entram inevitavelmente em ressonância.<br />

Daí a idéia de inventar duas personagens<br />

cuja palavra foi construída a partir de diversos<br />

materiais de época (testemunhos de cameramen,<br />

correspondências, diários, extratos de romances...)<br />

associados entre si. O texto que, para<br />

parafrasear Marker, não comenta as imagens<br />

sem que as imagens ilustrem o texto. Criar esses<br />

dois itinerários, era uma maneira de dar<br />

sentido às imagens sem ser obrigado a utilizar<br />

um comentário didático dizendo: “Essa é a verdade!”<br />

Ainda mais que esses personagens são<br />

não só contemporâneos dos acontecimentos,<br />

mas também partes integrantes de suas representações,<br />

visto que se supõe que rodaram as<br />

imagens constituintes do filme. Isso permite<br />

esclarecer, tanto quanto possível, as circunstâncias<br />

de sua elaboração e “analisá-las” sem fazer<br />

didatismo, oferecendo ao contrário vários níveis<br />

de leitura. O tratamento sonoro é similar.<br />

A banda sonora foi concebida para ser constitutiva<br />

da narrativa fílmica, mais do que adicional<br />

e ilustrativa. Seria preciso evitar a todo custo<br />

a sonorização forçada, os abusos de sonoplastia:<br />

portanto, recriamos sons que, evocando<br />

essas imagens, foram inteiramente elaborados<br />

a partir de elementos contemporâneos sem<br />

qualquer relação com a época representada,<br />

como um distanciamento indispensável para<br />

melhor compreender. Em seguida, esses sons<br />

foram misturados a alguns registros de época<br />

reencontrados nos arquivos e a uma criação<br />

musical original. 29<br />

Marc Bloch afirmava que toda obra de história<br />

é forçosamente um compromisso entre o<br />

presente e o passado, o próximo e o longínquo.<br />

L’héroïque, à sua maneira, é uma narrativa<br />

metonímica no sentido em que, por meio do<br />

percurso dos dois operadores de câmera, falase<br />

da guerra de 1914-1918, mas trata-se sobretudo<br />

de propor, entrecruzando a história desse<br />

conflito e a do cinema, uma reflexão histórica<br />

sobre a representação da guerra no cinema. Não<br />

só da Primeira Guerra Mundial, mas finalmente<br />

de todas as guerras mediatizadas da época<br />

até nossos dias. É um pouco, para retomar uma<br />

fórmula godardiana, uma outra maneira de<br />

abordar “a história do cinema, o cinema de atualidade,<br />

e a atualidade da história”.<br />

29 A concepção sonora é de Martin Wheeler (um verdadeiro expert em samples...), a música original é de Stephane Bortoli e Martin Wheeler.<br />

63


GLAUBER<br />

“ O século está entrando numa barra pesada...<br />

Não aceito a sociedade em que vivo e o sistema moral que<br />

a rege. Pode-se contribuir de uma forma efetiva para<br />

que essas coisas sejam modificadas. Nesse sentido eu me<br />

considero um revolucionário. Digo isso sem orgulho, sem<br />

empáfia, sem me colocar numa posição moral avantajada.<br />

Eu, inclusive, me dou a liberdade de duvidar do que<br />

acredito. Mas dentro dessa medida, sou um revolucionário<br />

”<br />

com a maior humildade possível.<br />

Tempo Glauber Rocha<br />

Tempo Glauber Rocha<br />

AN PH/FOT/ 40260(3)


Glauber Rocha<br />

EZTETYCA DA FOME<br />

Tese apresentada durante as discussões em torno do<br />

Cinema Novo, por ocasião da retrospectiva realizada<br />

na Resenha do Cinema Latino-Americano, em<br />

Gênova, janeiro de 1965, sob o patrocínio do<br />

Columbianum. O tema proposto pelo secretário Aldo<br />

Viganó foi Cinema Novo e cinema mundial.<br />

Contingências forçaram a modificação: o paternalismo<br />

do europeu em relação ao Terceiro Mundo – foi o<br />

principal motivo da mudança de tom.<br />

Dispensando a introdução informativa que se<br />

transformou na característica geral das discussões<br />

sobre a América Latina, prefiro situar<br />

as relações entre nossa cultura e a cultura civilizada<br />

em termos menos reduzidos do que aqueles<br />

que, também, caracterizam a análise do observador<br />

europeu. Assim, enquanto a América Latina<br />

lamenta suas misérias gerais, o interlocutor estrangeiro<br />

cultiva o sabor dessa miséria, não como<br />

um sintoma trágico, mas apenas como um dado<br />

formal em seu campo de interesse. Nem o latino<br />

comunica sua verdadeira miséria ao homem civilizado<br />

nem o homem civilizado compreende<br />

verdadeiramente a miséria do latino.<br />

Eis – fundamentalmente – a situação das<br />

Artes no Brasil diante do mundo: até hoje, somente<br />

mentiras elaboradas da verdade (os exotismos<br />

formais que vulgarizaram problemas sociais)<br />

conseguiram se comunicar em termos quantitativos,<br />

provocando uma série de equívocos que<br />

não terminam nos limites da Arte mas contaminam<br />

sobretudo o terreno geral do político.<br />

Para o observador europeu, os processos de<br />

criação artística do mundo subdesenvolvido só<br />

interessam na medida que satisfazem sua nostalgia<br />

do primitivismo; e este primitivismo se apre-<br />

senta híbrido, disfarçado sob as tardias heranças<br />

do mundo civilizado, mal compreendidas porque<br />

impostas pelos condicionamentos colonialistas.<br />

A América Latina permanece colônia e o que<br />

diferencia o colonialismo de ontem do atual é<br />

apenas a forma aprimorada do colonizador: e além<br />

dos colonizadores de fato, as formas sutis daqueles<br />

que também sobre nós armam futuros botes.<br />

O problema internacional da América Latina<br />

é ainda um caso de mudança de colonizadores,<br />

sendo que uma libertação possível estará ainda<br />

por muito tempo em função de uma nova dependência.<br />

Este condicionamento econômico e político nos<br />

levou ao raquitismo filosófico e à impotência, que,<br />

às vezes inconsciente, às vezes não, geram no primeiro<br />

caso a esterilidade e no segundo a histeria.<br />

A esterilidade: aquelas obras encontradas fartamente<br />

em nossas artes, onde o autor se castra<br />

em exercícios formais que, todavia, não atingem<br />

a plena possessão de suas formas. O sonho<br />

frustrado da universalização: artistas que não<br />

despertaram do ideal estético adolescente. Assim,<br />

vemos centenas de quadros nas galerias,<br />

Tempo Glauber Rocha<br />

Este texto foi extraído de Revolução do Cinema Novo, Rio de Janeiro, Alhambra-Embrafilme, 1981.<br />

empoeirados e esquecidos; livros de contos e<br />

poemas; peças teatrais, filmes (que, sobretudo<br />

em São Paulo, provocaram inclusive falências)...<br />

O mundo oficial encarregado das artes gerou<br />

exposições carnavalescas em vários festivais e<br />

bienais, conferências fabricadas, fórmulas fáceis<br />

de sucesso, coquetéis em várias partes do mundo,<br />

além de alguns monstros oficiais da cultura,<br />

acadêmicos de Letras e Artes, júris de pintura<br />

e marchas culturais pelo país afora. Monstruosidades<br />

universitárias: as famosas revistas<br />

literárias, os concursos, os títulos.<br />

A histeria: um capítulo mais complexo. A<br />

indignação social provoca discursos flamejantes.<br />

O primeiro sintoma é o anarquismo que marca<br />

a poesia jovem até hoje (e a pintura). O segundo<br />

é uma redução política da arte que faz má política<br />

por excesso de sectarismo. O terceiro, e mais<br />

eficaz, é a procura de uma sistematização para a<br />

arte popular. Mas o engano de tudo isso é que<br />

nosso possível equilíbrio não resulta de um corpo<br />

orgânico, mas de um titânico e autodevastador<br />

esforço no sentido de superar a impotência;<br />

e, no resultado desta operação a fórceps, nós nos<br />

vemos frustrados, apenas nos limites inferiores<br />

do colonizador; e se ele nos compreende, então,<br />

não é pela lucidez de nosso diálogo, mas pelo<br />

humanitarismo que nossa informação lhe inspira.<br />

Mais uma vez o paternalismo é o método de<br />

compreensão para uma linguagem de lágrimas<br />

ou de mudo sofrimento.<br />

A fome latina, por isto, não é somente um sistema<br />

alarmante: é o nervo de sua própria sociedade.<br />

Aí reside a trágica originalidade do Cinema<br />

Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade<br />

é nossa fome e nossa maior miséria é que<br />

esta fome, sendo sentida, não é compreendida.<br />

De Aruanda a Vidas secas, o Cinema Novo<br />

narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou,<br />

excitou os temas da fome: personagens comendo<br />

terra, personagens comendo raízes, personagens<br />

roubando para comer, personagens matando<br />

para comer, personagens fugindo para comer,<br />

personagens sujas, feias, descarnadas, morando<br />

em casas sujas, feias, escuras: foi esta galeria de<br />

famintos que identificou o Cinema Novo com o<br />

miserabilismo tão condenado pelo Governo, pela<br />

crítica a serviço dos interesses antinacionais,<br />

pelos produtores e pelo público – este último não<br />

suportando as imagens da própria miséria. Este<br />

miserabilismo do Cinema Novo opõe-se à tendência<br />

do digestivo, preconizada pelo crítico-mor<br />

da Guanabara, Carlos Lacerda: filmes de gente<br />

REVOLUÇÕES<br />

67


E ZTET ZTET ZTETY ZTET ZTET CA CA CA DA DA DA FOME FOME<br />

REVOLUÇÕES<br />

rica, em casas bonitas, andando em automóveis<br />

de luxo; filmes alegres, cômicos, rápidos, sem<br />

mensagens, de objetivos puramente industriais.<br />

Estes são os filmes que se opõem à fome, como<br />

se, na estufa e nos apartamentos de luxo, os cineastas<br />

pudessem esconder a miséria moral de<br />

uma burguesia indefinida e frágil ou se mesmo<br />

os próprios materiais técnicos e cenográficos<br />

pudessem esconder a fome que está enraizada na<br />

própria incivilização. Como se, sobretudo, neste<br />

aparato de paisagens tropicais, pudesse ser<br />

disfarçada a indigência mental dos cineastas que<br />

fazem este tipo de filme. O que fez do Cinema<br />

Novo um fenômeno de importância internacional<br />

foi justamente seu alto nível de compromisso<br />

com a verdade; foi seu próprio miserabilismo,<br />

que, antes escrito pela literatura de 30, foi<br />

fotografado pelo cinema de 60; e, se antes era<br />

escrito como denúncia social, hoje passou a ser<br />

discutido como problema político. Os próprios<br />

estágios do miserabilismo em nosso cinema são<br />

internamente evolutivos. Assim, como observa<br />

Gustavo Dahl, vai desde o fenomenológico (Porto<br />

das Caixas), ao social (Vidas secas), ao político<br />

(Deus e o Diabo), ao poético (Ganga Zumba), ao<br />

demagógico (Cinco vezes favela), ao experimental<br />

(Sol sobre a lama), ao documental (Garrincha,<br />

a alegria do povo), à comédia (Os mendigos), experiências<br />

em vários sentidos, frustradas umas,<br />

realizadas outras, mas todas compondo, no final<br />

de três anos, um quadro histórico que, não por<br />

acaso, vai caracterizar o período Jânio-Jango: o<br />

período das grandes crises de consciência e de<br />

rebeldia, de agitação e revolução, que culminou<br />

no Golpe de Abril. E foi a partir de abril que a<br />

tese do cinema digestivo ganhou peso no Brasil,<br />

ameaçando, sistematicamente, o Cinema Novo.<br />

Nós compreendemos esta fome que o europeu<br />

e o brasileiro na maioria não entende. Para<br />

o europeu, é um estranho surrealismo tropical.<br />

Para o brasileiro, é uma vergonha nacional. Ele<br />

não come, mas tem vergonha de dizer isto; e,<br />

sobretudo, não sabe de onde vem esta fome. Sabemos<br />

nós – que fizemos estes filmes feios e tristes,<br />

estes filmes gritados e desesperados onde nem<br />

sempre a razão falou mais alto – que a fome não<br />

será curada pelos planejamentos de gabinete e que<br />

os remendos do tecnicolor não escondem, mas<br />

agravam seus tumores. Assim, somente uma cultura<br />

da fome, minando suas próprias estruturas,<br />

pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre<br />

manifestação cultural da fome é a violência.<br />

A mendicância, tradição que se implantou<br />

com a redentora piedade colonialista, tem sido<br />

uma das causadoras de mistificação política e da<br />

ufanistas mentira cultural; os relatórios oficiais<br />

da fome pedem dinheiro aos países colonialistas<br />

com o fito de construir escolas sem criar professores,<br />

de construir casas sem dar trabalho, de ensinar<br />

o ofício sem ensinar o alfabeto. A diplomacia<br />

pede, os economistas pedem, a política pede:<br />

o Cinema Novo, no campo internacional, nada<br />

pediu: impôs-se a violência de suas imagens e sons<br />

em vinte e dois festivais internacionais.<br />

Pelo Cinema Novo: o comportamento exato<br />

de um faminto é a violência, e a violência de um<br />

faminto não é primitivismo. Fabiano é primitivo?<br />

Antão é primitivo? Corisco é primitivo? A<br />

mulher de Porto das Caixas é primitiva?<br />

Do Cinema Novo: uma estética da violência<br />

antes de ser primitiva é revolucionária, eis aí o<br />

ponto inicial para que o colonizador compreenda<br />

a existência do colonizado: somente conscientizando<br />

sua possibilidade única, a violência, o<br />

colonizador pode compreender, pelo horror, a<br />

força da cultura que ele explora. Enquanto não<br />

ergue as armas, o colonizado é um escravo: foi<br />

preciso um primeiro policial morto para que o<br />

francês percebesse um argelino.<br />

De uma moral: essa violência, contudo, não<br />

está incorporada ao ódio, como também não diríamos<br />

que está ligada ao velho humanismo colonizador.<br />

O amor que esta violência encerra é<br />

tão brutal quanto a própria violência, porque não<br />

é um amor de complacência ou de contemplação,<br />

mas um amor de ação e transformação.<br />

O Cinema Novo, por isto, não fez melodramas:<br />

as mulheres do Cinema Novo sempre fo-<br />

Tempo Glauber Rocha<br />

Glauber em ação<br />

ram seres em busca de uma saída possível para o<br />

amor, dada a impossibilidade de amar com fome:<br />

a mulher protótipo, a de Porto das Caixas, mata<br />

o marido; a Dandara de Ganga Zumba foge da<br />

guerra para um amor romântico; Sinhá Vitória<br />

sonha com novos tempos para os filhos; Rosa<br />

vai ao crime para salvar Manuel e amá-lo em<br />

outras circunstâncias; a moça do padre precisa<br />

romper a batina para ganhar um novo homem; a<br />

mulher de O desafio rompe com o amante porque<br />

prefere ficar fiel ao seu mundo burguês; a<br />

mulher em São Paulo S.A. quer a segurança do<br />

amor pequeno-burguês, e para isto tentará reduzir<br />

a vida do marido a um sistema medíocre.<br />

Já passou o tempo em que o Cinema Novo<br />

precisava explicar-se para existir: o Cinema<br />

Novo necessita processar-se para que se explique,<br />

à medida que nossa realidade seja mais<br />

discernível à luz de pensamentos que não estejam<br />

debilitados ou delirantes pela fome. O Cinema<br />

Novo não pode desenvolver-se efetivamente<br />

enquanto permanecer marginal ao processo<br />

econômico e cultural do continente latino-americano;<br />

além do mais, porque o Cinema<br />

Novo é um fenômeno dos povos colonizados<br />

e não uma entidade privilegiada do Brasil:<br />

onde houver um cineasta disposto a filmar a<br />

verdade, e a enfrentar os padrões hipócritas e<br />

policialescos da censura, aí haverá um germe<br />

vivo do Cinema Novo. Onde houver um cine-<br />

Tempo Glauber Rocha<br />

asta disposto a enfrentar o comercialismo, a<br />

exploração, a pornografia, o tecnicismo, aí<br />

haverá um germe do Cinema Novo. Onde houver<br />

um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer<br />

procedência, pronto a pôr seu cinema e<br />

sua profissão a serviço das causas importantes<br />

de seu tempo, aí haverá um germe do Cinema<br />

Novo. A definição é esta e por esta definição<br />

o Cinema Novo se marginaliza da indústria<br />

porque o compromisso do Cinema Industrial<br />

é com a mentira e com a exploração. A integração<br />

econômica e industrial do Cinema Novo<br />

depende da liberdade da América Latina. Para<br />

esta liberdade, o Cinema Novo empenha-se,<br />

em nome de si próprio, de seus mais próximos<br />

e dispersos integrantes, dos mais burros<br />

aos mais talentosos, dos mais fracos aos mais<br />

fortes. É uma questão moral que se refletirá<br />

nos filmes, no tempo de filmar um homem ou<br />

uma casa, no detalhe que observar, na Filosofia:<br />

não é um filme mas um conjunto de filmes<br />

em evolução que dará, por fim, ao público, a<br />

consciência de sua própria existência.<br />

Não temos por isto maiores pontos de contato<br />

com o cinema mundial.<br />

O Cinema Novo é um projeto que se realiza<br />

na política da fome, e sofre, por isto mesmo,<br />

todas as fraquezas conseqüentes de sua<br />

existência.<br />

Cena do filme<br />

Deus e o diabo<br />

na terra do sol<br />

69


JURANDYR<br />

NORONHA<br />

um homem de cinema!<br />

“ A geração nova precisa conhe cer essas histórias que não<br />

podem ser esquecidas. Nossos pioneiros são verdadeiros<br />

heróis nacionais, sem nenhum exagero. É através<br />

do cinema que podemos motivar o nosso povo...<br />

”<br />

Sempre pensei no cinema com esse sentido.<br />

Redator, escritor, cinegrafista,<br />

diretor, pesquisador, entre<br />

tantas outras atribuições, Jurandyr<br />

Noronha nasceu em 1916 na cidade<br />

de Juiz de Fora, em Minas<br />

Gerais, e até hoje está ligado à preservação<br />

do cinema, sua história<br />

e suas personagens.<br />

Na revista Cinearte, Cinédia,<br />

Instituto <strong>Nacional</strong> do Cinema Educativo<br />

(INCE), Departamento de<br />

Imprensa e Propaganda (DIP), TV<br />

Tupi, Instituto <strong>Nacional</strong> de Cinema,<br />

Jurandyr, desde 1936, desenvolveu<br />

diversas atividades profissionais.<br />

Conviveu com Adhemar<br />

Gonzaga, 1 que sempre esteve preocupado<br />

com a melhoria do padrão<br />

técnico do filme brasileiro, e Humberto<br />

Mauro, 2 um dos maiores talentos<br />

do nosso cinema. Além das<br />

grandes personagens do cinema,<br />

Jurandyr conviveu com técnicos<br />

que, normalmente, ficam esquecidos<br />

pelos escritores e documentaristas.<br />

A obra de Jurandyr Noronha<br />

resgata laboratoristas, montadores,<br />

técnicos de som, entre outros.<br />

Na sua experiência como pesquisador,<br />

foi possível perceber a<br />

fragilidade do filme e a necessidade<br />

de arquivos climatizados e de<br />

uma política de restauração de<br />

acervos. Durante o período em que<br />

dirigiu o Departamento do Filme<br />

Educativo do Ministério da Educação,<br />

organizou o primeiro depósito<br />

de matrizes de filmes da América<br />

Latina. Outra iniciativa, na<br />

tentativa de preservar o cinema<br />

brasileiro, foi a criação do Museu<br />

de Cinema. Em 1966, em artigo<br />

publicado na revista Filme Cultura,<br />

da Embrafilme, Jurandyr Noronha<br />

fala da necessidade da criação<br />

de um Museu de Cinema para<br />

dar solidez à memória. Os equipamentos,<br />

fotografias, cartazes vão se<br />

acumulando até que, em 1976, o<br />

1 Rio de Janeiro/RJ, 1901–1978. Produtor, diretor, crítico, pesquisador, ator, fundou no Rio de Janeiro a Cinédia, o primeiro<br />

grande estúdio do país. Dirigiu Barro humano, em 1929, e produziu diversos filmes, tais como Lábios sem beijos (1930) e Ganga<br />

bruta (1933), ambos dirigidos por Humberto Mauro, Bonequinha de seda (1936), dirigido por Oduvaldo Viana e O ébrio (1946),<br />

dirigido por Gilda de Abreu, que se tornou um dos filmes com mais espectadores no Brasil. 2 Volta Grande/MG, 1897–1983.<br />

Diretor, produtor, ator, fotógrafo, dirigiu seu primeiro filme em 1925, Valadião, o cratera, na bitola 9,5mm, em Cataguases/MG.<br />

Junto com o fotógrafo Pedro Comello e os comerciantes Homero Cortes e Agenor de Barros, cria a Phebo Sul América Film. Dirige Na<br />

primavera da vida (1926), Tesouro perdido (1927), Brasa dormida (1928) e Sangue mineiro (1929). . Esse período ficou conhecido<br />

museu é criado pelo Instituto <strong>Nacional</strong><br />

de Cinema.<br />

O longa-metragem Panorama<br />

do cinema brasileiro (1968), os<br />

curtas Inconfidência mineira – sua<br />

produção (1971), Cinegrafista de<br />

Rondon (1979), 3 entre os 35 filmes<br />

de curta e longa-metragem realizados<br />

por Jurandyr Noronha, se utilizam<br />

de fragmentos de filmes perdidos<br />

para sempre, reescrevendo a<br />

história do cinema brasileiro. Seus<br />

livros, No tempo da manivela<br />

(Embrafilme, 1987) e A longa luta<br />

do cinema brasileiro – os pioneiros<br />

(Funarte, 2002), e o CD-ROM<br />

Pioneiros do cinema brasileiro, detalham<br />

como esse cinema foi construído.<br />

Imagens raras de técnicos,<br />

atrizes e equipamentos contam<br />

uma história que durante muitos<br />

anos se julgava perdida.<br />

Os filmes produzidos e dirigidos<br />

por Jurandyr Noronha se encontram<br />

na Cinemateca Brasileira,<br />

em São Paulo, e no Centro<br />

Técnico Audiovisual da Secretaria<br />

do Audiovisual do Ministério da<br />

Cultura, no Rio de Janeiro. Seu<br />

acervo de fragmentos de filmes, fotografias<br />

de diretores, produtores,<br />

atores, técnicos, equipamentos,<br />

salas de cinema, além de textos e<br />

pesquisas relativas ao cinema brasileiro,<br />

foram encaminhados para<br />

o Museu da Imagem e do Som do<br />

Rio de Janeiro.<br />

Seus filmes, livros, e até mesmo<br />

uma simples conversa com<br />

Jurandyr Noronha, nos permitem<br />

compreender um dos mais significativos<br />

períodos do cinema brasileiro.<br />

Mauro Domingues<br />

Fotógrafo /Restaurador<br />

Rio de Janeiro, 2004<br />

como o ciclo de Cataguases. Em 1930, convidado pelo produtor Adhemar Gonzaga, vem para o Rio de Janeiro e dirige Lábios sem<br />

beijos e Ganga bruta, produzidos pela Cinédia. Em 1935 dirige Favela dos meus amores, produzido pela Brasil Vita Filmes, da<br />

produtora Carmen Santos. Ainda no Rio de Janeiro, em 1936, recebe convite de Edgard Roquette-Pinto para trabalhar no Instituto<br />

<strong>Nacional</strong> do Cinema Educativo (INCE), onde realiza centenas de filmes didáticos. Em 1937 dirige para o Instituto do Cacau da Bahia<br />

o longa-metragem O Descobrimento do Brasil. Em 1952 produz e dirige seu último longa-metragem, O canto da saudade. Seu último<br />

filme é o curta-metragem O carro de bois (1974). 3 Disponíveis em vídeo e DVD no Centro Técnico Audiovisual (CTAv) da<br />

Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura – (21)2580-3631.


E N T R E V I S T A concedida a Claudio Bojunga e publicada em Filme Cultura, n. 44, abril-agosto, 1984.<br />

A reconstrução da memória<br />

Silvio Tendler e o resgate da história<br />

política recente através da emoção<br />

FC: Quais as diferenças entre documentário<br />

e ficção? O documentário<br />

é um gênero menos nobre?<br />

Silvio: No filme A chinesa, Jean-<br />

Luc Godard faz um paralelo genial<br />

entre o que ele chama de “cinema<br />

de atualidades” – que é o documentário<br />

– e a ficção. Ele diz que o cinema<br />

nasceu “atualidades”, “documentário”<br />

com Lumière. Lumière filmava<br />

operários saindo da fábrica, um<br />

trem entrando na estação etc... O<br />

cinema se revela ficção com Meliès.<br />

Com Viagem à Lua e outros filmes.<br />

Porém, nos diz Godard, a estética<br />

da época, dos grandes impressionistas,<br />

pintava bancos de praças e trens<br />

entrando nas estações. E Godard<br />

concluiu genialmente que o que<br />

Meliès previa aconteceu realmente,<br />

o homem foi à Lua etc... portanto o<br />

documentarista foi Meliès. Enquanto<br />

que o artista pode muito bem ter<br />

sido Lumière, com seus assuntos<br />

aparentemente prosaicos, que foram<br />

os assuntos de toda a pintura moderna.<br />

Na verdade, as pessoas acham<br />

que a arte se desenvolve a partir do<br />

imaginário e não do real. É um preconceito<br />

contra o real. É como se<br />

elas dissessem que o que você vê na<br />

vida e capta com a câmera é uma<br />

facilidade, que o difícil é a reinvenção<br />

da realidade. Por isso o documentário<br />

acabou como um gênero<br />

menor, a não ser no caso dos grandes<br />

“documentaristas” que peitaram<br />

o preconceito, como Joris Ivens,<br />

Chris Marker e, no Brasil, um cara<br />

como Vladimir Carvalho. É preciso<br />

dizer que no Brasil há excelentes<br />

documentaristas...<br />

FC: Muita gente sustenta que o<br />

Cinema Novo começa com Aruanda,<br />

curta de Linduarte Noronha, e<br />

Arraial do Cabo, curta de Paulo<br />

Cesar Saraceni e Mario Carneiro,<br />

em princípio dois documentários,<br />

um do Norte, o outro do Sul...<br />

Silvio: Justamente. O problema é<br />

que as pessoas vêem o documentário<br />

como um degrau, um negócio<br />

que você faz para aprender a fazer<br />

cinema e então se expressar de verdade.<br />

Aliás, você próprio sempre<br />

cobrou do Chris Marker o fato de<br />

ele não ter desejado chegar à ficção...<br />

FC: Não, só o fato de ele não ter<br />

explorado de forma mais solta sua<br />

poesia, não a ficção. Certa vez me<br />

disse que considerava La jetée seu<br />

filme mais importante. Talvez esti-<br />

vesse deprimido naquele dia, não<br />

sei. Não se trata portanto do prosaico<br />

da ficção tradicional, falava<br />

do delírio possível com imagens<br />

verídicas que La jetée parecia abrir,<br />

como acho que abriu para Alain<br />

Resnais, por exemplo. Mas, você<br />

leva a sério esse negócio de “dar a<br />

palavra ao documento”?<br />

Silvio: Você sabe que o Millôr<br />

nunca morreu de amores pelo Jango.<br />

Mas ele gosta do meu filme e de<br />

mim. Quando ele me encontrou ele<br />

disse: “você fez uma grande fábula”.<br />

FC: Você concorda com ele?<br />

Silvio: Eu quero superar essa coisa<br />

de documentário como degrau.<br />

Acho que cada tema determina sua<br />

forma. Eu posso amanhã fazer um<br />

filme de ficção e, em seguida, voltar<br />

ao documentário. O importante<br />

no caso é que se eu tivesse todo<br />

o dinheiro do mundo e tivesse contado<br />

a história do Jango em ficção<br />

ela não teria a força desse filme<br />

feito com imagens sujas e arranhadas<br />

pelo tempo. A importância<br />

é o resgate dessas imagens. E<br />

as pessoas que se emocionaram<br />

com essas imagens, daquilo que<br />

elas viveram ou desconheciam,<br />

imagens de um país real.<br />

FC: Você não estaria “faturando” a<br />

emoção à custa do verídico?<br />

Silvio: A história joga com o<br />

sentimento. Não há história isenta.<br />

Você pode fazer as pessoas chorarem<br />

hoje contando a história da<br />

Comuna de Paris. Na hora de<br />

contar a história você deve trabalhar<br />

com emoções. Trata-se de cinema,<br />

de arte.<br />

FC: Dessa vez seu trabalho com<br />

as emoções parece mais consciente,<br />

não?<br />

Silvio Tendler: e se o artista fosse Lumière<br />

em vez de Meliès?<br />

Silvio: O discurso cinematográfico<br />

é mais elaborado. Eu tinha<br />

mais maturidade, já tinha feito o<br />

JK, já tinha mesmo levado uns puxões<br />

de orelha do Joris Ivens. A<br />

propósito do JK, ele me disse: o filme<br />

é excelente, mas falta emoção, é<br />

um filme frio. Simples: percebi que<br />

você não precisa ser frio para ser<br />

verdadeiro. Ele me deu um exemplo<br />

dessa frieza: a seqüência dos<br />

marinheiros – um ótimo material –<br />

utilizado de forma fria no JK. No<br />

Jango fiz aquela montagem paralela.<br />

FC: Você acha que o Joris estava<br />

sugerindo um cinema mais engajado?<br />

Menos de historiador?<br />

Silvio: Acho que ele me propôs<br />

mais engajamento, mais envolvimento<br />

emocional com o assunto. Isso<br />

não significa não ser historiador...<br />

FC: O filme é dedicado a ele, Joris<br />

Ivens, e a Chris Marker. Por quê?<br />

Silvio: São os meus mestres...<br />

FC: Queria que você falasse da sua<br />

formação cinematográfica...<br />

Silvio: Bom, eu tenho que voltar<br />

a 1968 e ao fato mais antigo de que<br />

eu sempre tive uma paixão por documentários.<br />

Via sempre os documentários<br />

sobre a guerra, no cine-<br />

REVOLUÇÕES<br />

73<br />

Jango menino: do<br />

álbum de família de<br />

um futuro presidente


A<br />

A<br />

A RECONSTRUÇÃO RECONSTRUÇÃO DA DA MEMÓRIA<br />

MEMÓRIA<br />

MEMÓRIA<br />

ma e na televisão. Em 1968, eu tentei<br />

fazer um primeiro filme (que<br />

não deu certo) sobre o marinheiro<br />

João Cândido, líder da revolta da<br />

Chibata em 1910. Fui mesmo o<br />

último a entrevistá-lo.<br />

FC: Há uma menção à presença<br />

dele no episódio dos marinheiros<br />

em Jango...<br />

Silvio: Verdade. Mas, por essa<br />

época, eu li uma pequena publicação<br />

editada pela Cinemateca do<br />

MAM sobre o Joris Ivens. Mas não<br />

me passou pela cabeça conhecê-lo<br />

pessoalmente. Há um outro fato interessante:<br />

em 1968, um amigo meu<br />

levou uma série de curtas-metragens<br />

para a Europa, 90% dos quais eram<br />

documentários. Filmes que haviam<br />

participado do Festival JB. Em Paris<br />

ele organizou uma sessão e convidou<br />

uma série de pessoas. Surpresa:<br />

a primeira pessoa a chegar foi<br />

Joris Ivens. Em 1972, eu viajo do<br />

Chile para a França e entro em contato<br />

com alguns amigos. Em função<br />

do tipo de cinema que desejo fazer,<br />

me sugerem procurar o pessoal do<br />

grupo Slon, mais tarde grupo Iskra,<br />

ligados a Chris Marker. Eu já tinha<br />

ouvido falar nele, mas eu não o conhecia<br />

muito bem. Mas eu sabia<br />

que ele era ligado à América Latina,<br />

etc... O pessoal do Slon me recebeu<br />

friamente, mas eu deixei, de<br />

qualquer forma, um bilhete do gênero<br />

“compañero estoy aqui” numa<br />

mistura de espanhol e francês arranhado.<br />

Uns 15 dias depois recebo um<br />

telefonema no meu hotel: “compañero,<br />

ici Chris Marker”. Eu pensei que<br />

fosse brincadeira, mas não era não.<br />

Vem então o golpe no Chile e a possibilidade<br />

de trabalhar com a equipe<br />

dele num filme sobre o assunto.<br />

FC: Joris Ivens e Chris Marker<br />

podem trabalhar em equipe, mas<br />

são muito individualistas, muito<br />

particulares, e sempre levam muita<br />

emoção a seus filmes...<br />

Silvio: Cinema é emoção. Os dois<br />

deram certo no documentário porque<br />

sacaram isso. Se não fosse um grande<br />

cineasta, Chris seria um grande escritor.<br />

Mas aí eu vou trabalhar com<br />

eles e – coincidência das coincidências<br />

– quem estava montando na sala<br />

ao lado era o Joris Ivens. Era um grande<br />

estúdio de montagem chamado<br />

Auditel, na avenida du Maine, nº12.<br />

Minha cabeça pirou nesse momento:<br />

no andar de baixo ficava a sala de<br />

montagem de Jean-Luc Godard. Na<br />

época ele estava piradão e achava que<br />

a direita podia atacá-lo a qualquer<br />

hora. A sala dele parecia uma verdadeira<br />

jaula. Na sala ao lado da nossa<br />

ficava o Joris Ivens. E, como se isso<br />

não bastasse, no andar de cima Orson<br />

Welles montava Verdades e mentiras.<br />

Você me imagina aos 23 anos<br />

trabalhando num lugar que era o meu<br />

universo cinematográfico.<br />

FC: A topografia do estúdio de<br />

montagem é reveladora. Você começou<br />

a entrevista falando em Godard,<br />

dedicou Jango a Joris e a<br />

Chris. E Verdades e mentiras de<br />

Orson Welles? Não estará levantada<br />

aí a questão das revelações do<br />

documentário com a ficção?<br />

Silvio: Vamos por partes. A grande<br />

lição que aprendi com Chris<br />

Marker foi deixar o texto desbundar<br />

a imagem verídica – que nem<br />

por isso fica menos verdadeira. O<br />

Chris na verdade me ensinou a<br />

olhar. O olhar dele é fulminante.<br />

Já Joris é importante pelo conjunto<br />

da obra dele, por sua coerência,<br />

seu trajeto. Ele é o documentarista<br />

do nosso século: Espanha, China,<br />

Vietnã, Chile... tem uma frase dele<br />

a respeito: “onde há alguma coisa<br />

pegando fogo, eu estou lá”. Em<br />

1935 ele realiza o primeiro filme<br />

militante do Ocidente: Borinage.<br />

Em seguida, vem a guerra sino-japonesa,<br />

a Guerra Civil espanhola,<br />

a Segunda Guerra Mundial, quando<br />

ele vai aos Estados Unidos aju-<br />

Jango deposto:<br />

imagem arranhada<br />

pelo tempo<br />

dar o Frank Capra naquela série<br />

Por que combatemos. No final da<br />

guerra ele vai à Indonésia como alto<br />

comissário do governo holandês<br />

para fazer cinema. Chega lá, vê que<br />

não é nada daquilo e adere aos rebeldes<br />

indonésios. Por causa desse<br />

apoio ele perde o passaporte holandês<br />

e fica sete anos sem poder<br />

voltar à Holanda. Repara: ele foi<br />

ao Chile já na posse do Allende. É<br />

um sujeito ligado nos problemas do<br />

Terceiro Mundo, Vietnã, Cuba,<br />

Mali, Laos. E nada do que ele faz é<br />

chato. Nunca dispensa a ajuda de<br />

grandes escritores, o próprio Chris<br />

já fez textos para ele. E voltamos<br />

ao texto. Chris Marker me indicou<br />

o caminho do texto para cinema<br />

como algo reflexivo, interpretativo,<br />

não redundante em relação à imagem.<br />

Uma tentativa já presente no<br />

JK. Esse período com o Joris Ivens<br />

e com o Chris Marker foi fundamental.<br />

O Joris é um cara que é<br />

didático, tem o saco de ficar discutindo<br />

com você, montando com<br />

você. Ele dá dicas fundamentais.<br />

FC: Esquecemos o andar de cima:<br />

Orson Welles...<br />

Silvio: Esse é um mito do cinema,<br />

e não só para mim. O que eu<br />

acho fantástico nele é o lado mágico<br />

do cinema. É esse jeito que ele<br />

tem de mexer com o tempo e que<br />

rompe com a linearidade da narrativa.<br />

Dois filmes me marcaram<br />

muito: Cidadão Kane e Verdades e<br />

mentiras. Em Verdades e mentiras ele<br />

brinca com a imagem, com o verdadeiro<br />

e o falso. Em Cidadão Kane<br />

ele brinca com o tempo. Há nesse<br />

filme um corte de 20 anos entre<br />

dois planos: Kane menino diz “Boas<br />

Festas”, tac, 20 anos mais tarde,<br />

“Feliz Ano Novo”. Resumindo: há<br />

na minha formação e nas minhas<br />

influências o lado europeu forte e<br />

discursivo, do outro o negócio da<br />

mágica cinematográfica. E é o que<br />

Godard mais respeita nos americanos,<br />

isso só para fechar essa coisa<br />

dos três andares. A frase é do Godard:<br />

“nós europeus temos o cinema<br />

na cabeça, os americanos têm<br />

Tocar na memória, mas<br />

onde a memória nos toca,<br />

tocar no cinema<br />

o cinema no sangue”. E em Verdades<br />

e mentiras, a relação documentário-ficção<br />

é bastante relativa. Verdades<br />

e mentiras não é um documentário,<br />

mas um documento.<br />

FC: Quais as diferenças entre Os<br />

anos JK e Jango?<br />

Silvio: Em Os anos JK eu tinha<br />

medo de fugir da verdade, caso eu<br />

trabalhasse com a emoção. Foi um<br />

filme contido, reprimido. Na época<br />

eu não sabia disso, mas agora<br />

eu sei que achava que se eu mexesse<br />

com a emoção do espectador<br />

estaria sendo menos honesto, menos<br />

verdadeiro. Havia aquela coisa<br />

de “passar a informação”.<br />

FC: Resquícios de CPC?<br />

Silvio: A estética CPC não é um<br />

problema da minha geração. O JK<br />

é forte onde passa a emoção, onde<br />

eu não introduzo o distanciamento,<br />

basicamente quando fala de um<br />

período que eu já peguei, dos anos<br />

REVOLUÇÕES<br />

75


A<br />

A<br />

A RECONSTRUÇÃO RECONSTRUÇÃO DA DA MEMÓRIA<br />

MEMÓRIA<br />

MEMÓRIA<br />

60 para cá. Quando eu ponho um<br />

coração pulsando no momento da<br />

decretação do AI-5, aquele coração<br />

é o meu, o da gente. Antes disso o<br />

filme é seco: o texto legenda e segura<br />

a imagem. No Jango eu trabalhei<br />

muito a trilha sonora para criar<br />

um clima em que a emoção passasse<br />

junto com a informação.<br />

FC: Entre um filme e o outro você<br />

me disse que ficou apaixonado pelo<br />

Meu tio da América, do Alain Resnais...<br />

Silvio: Um filme que eu gostaria<br />

de ter feito. Um filme que junta<br />

tudo: ficção, documentário, paixão<br />

pelo cinema. Por exemplo: aquela<br />

sacação dele de as pessoas imitarem<br />

inconscientemente os atores. O cara<br />

desce a escada e é o Jean Gabin descendo<br />

a escada. É uma memória que<br />

também é uma homenagem ao cinema,<br />

uma memória que passa por<br />

uma formulação cinematográfica.<br />

Ele toca na memória, mas lá onde a<br />

memória o toca, que é o cinema.<br />

Ele podia tocar na memória como<br />

teatro, como pintura, mas ele vê as<br />

pessoas imitando o cinema.<br />

FC: A memória é então algo de reinventado,<br />

o presente rememorado e<br />

não o passado reconstituído. Você<br />

não diz: “olha, foi assim”. Mas, fala<br />

de um menino que não viveu aquilo<br />

tudo, mas cuja emoção resistiu.<br />

Isto está no poema final, não?<br />

Silvio: Veja, é importante que<br />

um historiador legitime uma versão.<br />

E tire a história dessa coisa<br />

careta e asséptica. Não se pode<br />

deixar a história nas mãos de Pedro<br />

Calmon. Não há história isenta<br />

de um lado, e uma interpretativa<br />

e ideológica do outro. Todas são<br />

ideológicas. Acho que a história<br />

dele é reacionária e a minha não.<br />

FC: Só a direita erra?<br />

Silvio: Claro que não. Há uma<br />

história militante totalmente equivocada,<br />

não porque toma partido,<br />

mas porque subordina a verdade<br />

a uma tese. Na medida em que<br />

você corta, escolhe o plano, redige<br />

um texto, você está selecionando.<br />

E eu acho que a história tem<br />

de ser mesmo interpretativa e opinativa.<br />

Isso não a fará menos verdadeira<br />

de uma outra que se quer<br />

asséptica, mas que não é...<br />

FC: Você fala da história como se<br />

fosse um sonho. A memória funcionando<br />

não como reconstituição,<br />

mas como reconstrução.<br />

Freud observou que no sonho a<br />

gente está sempre presente...<br />

Silvio: Não é gratuito que o filme<br />

atinja seu ápice no momento em que<br />

o Brasil inteiro esteja brigando pelas<br />

eleições diretas como uma etapa<br />

intermediária pela democracia. Nesse<br />

sentido é um sonho brasileiro, a<br />

maneira pela qual a gente se reencontra.<br />

É o tema do reencontro do<br />

cinema com a política. Há momentos<br />

em que a gente fica cético em<br />

relação à política, mas a campanha<br />

pelas diretas, independentemente de<br />

seus resultados práticos, deixa claro<br />

o quanto a política é fundamental<br />

para a nossa vida cotidiana. O<br />

país mudou de cara – isso é da ordem<br />

do sonho. O cidadão emerge<br />

acima dos partidos políticos e das<br />

lideranças carismáticas.<br />

FC: Há quem diga que você fez<br />

um “editorial” e tenta invalidar<br />

Jango em nome do conhecimento<br />

científico...<br />

Silvio: No início fiquei grilado<br />

com o raro consenso formado em<br />

torno do filme. Numa sessão, estavam<br />

sociólogos de postura tão diferentes<br />

como Otavio Ianni, Francisco<br />

Weffort, Bolívar Lamounier.<br />

Claro, houve restrições aqui e ali,<br />

mas todos acharam importante que<br />

essas cartas tenham sido colocadas<br />

na mesa. Veja, aqueles fatos foram<br />

analisados nos livros deles, tanto o<br />

Ianni como o Weffort estudaram<br />

exaustivamente o populismo, etc...<br />

Mas, ver aquelas caras, aquelas<br />

imagens, e alguém interpretando<br />

aquilo tudo lhes pareceu importante.<br />

Tive também receio de certas<br />

objeções vindas do PT. Mas – e<br />

isso pode ser muita pretensão minha<br />

– acredito que o filme não é<br />

estranho ao processo que levou Lula<br />

a chamar Denise Goulart ao palanque<br />

no comício da Candelária. Os<br />

ataques vieram mesmo da direita...<br />

FC: O que você temia nas críticas<br />

da esquerda?<br />

Silvio: Os Anos JK foi o filme criticado<br />

por ter “resgatado o populismo”.<br />

Ora, eu nunca quis resgatar a<br />

imagem do JK. O que eu sempre quis<br />

foi resgatar a democracia no Brasil.<br />

O importante é a questão da democracia.<br />

Compare o comício da Central<br />

com o da Candelária. No primeiro,<br />

havia as lideranças e a massa<br />

que aplaudia. No segundo, o comício<br />

está nas ruas. Achei importante<br />

resgatar o comício anterior para essas<br />

pessoas que hoje estão no asfalto.<br />

FC: Você não teria omitido a crítica<br />

das falsas alianças do populis-<br />

mo? E isso em nome das necessidades<br />

do momento atual?<br />

Silvio: Desde o início eu sabia<br />

que ia fazer um filme simpático ao<br />

Goulart, tanto que não tive o menor<br />

problema em procurar documentos<br />

com sua família. Olha,<br />

houve um momento durante a feitura<br />

do filme que a idéia do Maurício<br />

Dias, o autor do texto, era<br />

cobrar a incompetência da esquerda.<br />

Eu disse francamente para ele<br />

que ele era livre para abandonar o<br />

filme “porque eu não estava a fim<br />

de dar um pau na esquerda”. A<br />

esquerda leva pau há 20 anos. Claro<br />

que eu tenho críticas a fazer à<br />

atuação da esquerda naqueles<br />

anos, atuação de Jango e de Brizola,<br />

mas isso não é o essencial, hoje.<br />

É evidente que se a história brasileira<br />

começar a ser discutida de<br />

forma séria essas críticas terão de<br />

ser aprofundadas. E isso nos livros<br />

ou em outros filmes. Mas, numa<br />

primeira obra que é, sobretudo,<br />

uma provocação, temos que pegar<br />

as coisas pelo outro lado. Quer<br />

dizer: colocar nas páginas da história<br />

uma figura cujo problema era<br />

não de ser pixada, mas de estar<br />

sendo ocultada. Porque o problema<br />

de Jango não é que se tenha<br />

criado durante esses anos todos<br />

uma versão desfavorável a ele. O<br />

problema é a sonegação: simplesmente<br />

ele foi retirado dos livros<br />

de história. Os manuais escolares<br />

têm duas linhas sobre ele. Mas acho<br />

que nesse momento as pessoas compreenderam<br />

a esterilidade dessa<br />

discussão. Se o filme tem alguma<br />

importância não é daqui para trás,<br />

é daqui para a frente. Não se trata<br />

de uma memória nostálgica, é um<br />

troço voltado para o futuro. O que<br />

a gente quer do país daqui para a<br />

frente? A gente quer poder discutir<br />

e ver as pessoas na rua.<br />

FC: A emoção, o patético que o<br />

filme passa, não estão ligados profundamente<br />

à nossa identificação<br />

com a incompetência do Jango-personagem<br />

histórico?<br />

Silvio: Se o Jango estivesse vivo<br />

eu não teria feito o filme. Ele inclusive<br />

não deixou uma herança política.<br />

Muita gente pode reivindicá-la,<br />

mas você não tem uma carta-testamento<br />

janguista. Olha: eu<br />

jamais faria um filme sobre JK se<br />

ele hoje representasse um programa<br />

político. O mesmo vale para<br />

Jango. Não estou endossando correntes<br />

partidárias. Se estivesse, eu<br />

teria que aprofundar certos aspectos<br />

do filme. Mas, na medida em<br />

que o Jango é uma personagem<br />

maldita da história, “o presidente<br />

rico de um país pobre” – como diz<br />

o filme –, um fazendeiro que é o<br />

primeiro presidente do Brasil que<br />

topa falar em reforma agrária etc...<br />

fica difícil questionar as intenções<br />

dele, sobretudo porque ele foi apeado<br />

do poder à força. Dizer que<br />

ele não faria a reforma agrária porque<br />

era dono de terras é pura especulação.<br />

O fato é que ele assinou<br />

um decreto expropriando terras, ao<br />

longo das rodovias. Portanto, ele<br />

iniciou o processo de uma reforma<br />

agrária. Foi também maldito<br />

por ser o único presidente brasileiro<br />

a morrer no exílio. Como<br />

então falar da incompetência de um<br />

presidente deposto à força? Sua<br />

competência poderia ser, sim,<br />

questionada em relação ao fato de<br />

ele não ter organizado a resistência.<br />

Mas isso foi uma opção. Deixo<br />

apenas a imagem de um homem,<br />

de sua classe social, de seu nacionalismo,<br />

de seu reformismo.<br />

Joris Ivens<br />

fotografado por<br />

Silvio Tendler:<br />

“Onde há<br />

alguma coisa<br />

pegando fogo,<br />

eu estou lá”<br />

REVOLUÇÕES<br />

77


A<br />

A<br />

A RECONSTRUÇÃO RECONSTRUÇÃO DA DA MEMÓRIA<br />

MEMÓRIA<br />

MEMÓRIA<br />

FC: Mas, à medida que o filme<br />

avança, vamos ficando deprimidos.<br />

Alguém que não viveu aquela fase<br />

fará perguntas que ficam sem respostas.<br />

Por exemplo, como um presidente<br />

da República que detém o<br />

poder político se reduz a uma peça<br />

dentro de uma engrenagem? Por que<br />

ele não conseguiu dirigir seu próprio<br />

destino?<br />

Silvio: O filme formula interpretações<br />

e faz perguntas. Mas não responde<br />

tudo. Levanta, entretanto,<br />

alguns pontos. Acho, por exemplo,<br />

que o depoimento de Celso Furtado<br />

no filme deixa bem claro como<br />

o Jango ficou de mãos atadas pelo<br />

esquema que deveria controlar. E<br />

isso de forma dramática. Era o vice<br />

de um outro partido e não daquele<br />

que havia eleito o Jânio com maioria<br />

quase absoluta de votos. Mãos<br />

atadas ainda ao PSD que lhe permitia<br />

administrar o Congresso. E,<br />

do outro lado, ao Brizola que lhe<br />

havia dado posse na marra e que<br />

tinha compromissos mais radicais<br />

do que os dele. O governo de Jango<br />

durou muito pouco: de setembro<br />

de 1961 a março de 1964, sendo<br />

que de setembro de 1961 a janeiro<br />

de 1963 ele permaneceu de<br />

mãos atadas por um sistema parlamentar<br />

implantado de forma casuística.<br />

Não teve tempo de exercer<br />

sua personalidade. E quando tentou,<br />

foi deposto. Evidente que poderia<br />

ter havido um outro Jango<br />

que tomasse o poder na marra em<br />

1961 através de um banho de sangue<br />

e com o Congresso fechado.<br />

Em suma, um Jango que traísse<br />

seus compromissos reformistas.<br />

Cada um pode escolher o seu Jango.<br />

O meu foi o que governou através<br />

de soluções de compromisso.<br />

O cara que cai porque empunha a<br />

bandeira das reformas de janeiro a<br />

março de 1964. Mesmo não analisando<br />

tudo, tentei compreender a<br />

coerência dele, por exemplo, não<br />

resistindo militarmente à sua deposição.<br />

Em vez de criticá-lo, do ponto<br />

de vista do seu fracasso, escolhi<br />

compreender a argumentação dele.<br />

FC: É um ponto importante. A propósito<br />

de Os anos JK, Paulo Sergio<br />

Pinheiro levanta a questão. No Filme<br />

Cultura 38/39 ele escreve: “a<br />

personagem de JK é tratada sob a<br />

ótica triunfalista do próprio período<br />

do final dos anos 50. A interpretação<br />

se deixa contaminar pelo<br />

espírito daquela época, o ufanismo<br />

relido através do Plano de Metas,<br />

50 anos em cinco” [...] Mais adiante,<br />

ele hesita em sua crítica e escreve:<br />

[...] “seria pueril cobrar de<br />

Silvio Tendler não ter feito isso no<br />

filme (é sempre fácil cobrar o que<br />

foi feito)” e, mais adiante, a pergunta<br />

fundamental: “quem sabe esse<br />

seria o debate a prolongar entre cineastas<br />

e analistas políticos e historiadores:<br />

se filmes da reconstrução<br />

histórica devem se satisfazer em<br />

recuperar a atmosfera do período<br />

ou se devem levar em conta as revisões<br />

que foram feitas sobre o próprio<br />

período”. Não seria um absurdo<br />

julgar os anos 50 cinematograficamente<br />

do ponto de vista de quem<br />

já sabe que vai haver uma crise do<br />

petróleo no início dos anos 70?<br />

Silvio: Acho que o próprio Paulo<br />

Sergio Pinheiro deve ter revisto<br />

essa postura pois ele escreveu que<br />

Jango é um filme “The day after”<br />

ao qual nós todos sobrevivemos.<br />

Ele já não cobra uma interpretação<br />

crítica a posteriori, ele se deixa en-<br />

volver pela emoção. O período de<br />

Jango, por ser mais controvertido<br />

e contraditório, é mais rico do que<br />

o de Juscelino. O período de JK<br />

pode comportar teses opostas, mas<br />

você conhece o período. O de Jango<br />

é mais obscuro, cada um tem<br />

sua versão, inclusive dentro das<br />

mesmas correntes ideológicas. Dentro<br />

do Partido Comunista, por<br />

exemplo, existem três formas de se<br />

julgar João Goulart.<br />

FC: Sua postura seria então compreensiva<br />

e não partidária...<br />

Silvio: Cinema não é tese. Trabalho<br />

a emoção do documento, não<br />

quis usar a imagem como suporte<br />

para uma tese. Quando escrevi uma<br />

tese, aliás, foi sobre a imagem, o<br />

cinema de Joris Ivens. O que me<br />

incomoda não é tanto o que me dizem<br />

à esquerda, mas de uma cobrança<br />

de direita, e também das<br />

madalenas arrependidas, como, por<br />

exemplo, Paulo Francis, de Nova<br />

Iorque, que deita falação sobre o<br />

João Goulart histórico que ele não<br />

conheceu direito (esteve uma vez<br />

com ele, com um grupo de intelectuais)<br />

do tipo “Jango não tinha programa,<br />

era incompetente, etc...”.<br />

Bobagens. Isto é, na verdade, um<br />

acerto de contas dele com seu passado<br />

que incomoda a ele, não a<br />

mim. Muito pelo contrário: acho<br />

que o Francis está ótimo lá em<br />

Nova Iorque, como um Roberto<br />

Campos que não deu certo. O outro<br />

é o Dines que apoiou 1964, foi<br />

conivente com mil arbitrariedades<br />

praticadas e não vai agora confessar<br />

que errou em ter dado seu apoio<br />

à deposição de um presidente legalmente<br />

empossado. O Dines sempre<br />

apoiou o regime, pelo menos<br />

até o dia em que o regime o defenestrou.<br />

O Dines não o abandonou:<br />

o regime foi quem abandonou o<br />

Dines. Como pode ter ele algum<br />

carinho pelo Jango sem passar por<br />

uma autocrítica?<br />

FC: O sucesso de público de Jango<br />

abre caminho para o documentário?<br />

Silvio: No Cinema Leblon tivemos<br />

uma bilheteria competitiva<br />

com Laços de ternura. Como falar<br />

da inviabilidade comercial do documentário?<br />

Quando um filme fala<br />

das pessoas e elas se reconhecem<br />

nele, elas estão pouco se lixando se<br />

é ficção ou documentário. O importante<br />

é que o filme seja bom. O<br />

filme foi lançado com seis cópias e<br />

agora já tem 19 – uma solicitação<br />

do mercado exibidor. Eu não tenho<br />

marcações a fazer no Norte.<br />

O filme desmistifica ainda praças<br />

até então julgadas impensáveis. O<br />

preconceito não vem do público.<br />

Ele vem de certos cineastas que<br />

parecem hoje estar perdidos.<br />

FC: Você foi criticado por ter recebido<br />

ajuda da família de Goulart...<br />

Silvio: Eu pergunto: se tivesse<br />

sido financiado pelo Estado meu<br />

filme teria sido mais isento? Já recusei<br />

trabalhos mais remunerados.<br />

Eu não estava em busca de isenção,<br />

foi uma adesão consciente da<br />

minha parte. Não se consegue<br />

mentir com emoção. Todos os técnicos<br />

e artistas envolvidos no filme<br />

não receberam um tostão. Foi<br />

tudo na base de percentagem. E<br />

agora que Jango está dando dinheiro<br />

a postura das pessoas continua<br />

a mesma. Não é aquela coisa mesquinha<br />

“quero o meu”. Todos foram<br />

excelentes: Lucio Kodato,<br />

“O período de Jango, por ser mais controvertido e contraditório, é mais rico do que o de Juscelino”<br />

Francisco Sérgio Monteiro, Milton<br />

Nascimento, Wagner Tiso,<br />

Geraldo Ribeiro, José Wilker,<br />

Maurício Dias, etc. etc.<br />

FC: Como foi o encontro do Cinema<br />

Independente, em Gramado?<br />

Silvio: Como diz um amigo meu,<br />

ironicamente, o problema do cinema<br />

independente é que suas reuniões<br />

nem sempre reúnem as mesmas<br />

pessoas. Há uma rotatividade<br />

muito grande, o fracasso é<br />

mortal. Nós somos mais sensíveis<br />

ao mercado porque se esses filmes<br />

não se pagarem, nós vamos para o<br />

brejo. Eu só posso fazer o próximo<br />

filme se o último tiver dado<br />

certo. O bonito em Gramado foi<br />

que os filmes tão diferentes como<br />

Verdes anos, Extremos do prazer<br />

e Jango tivessem encontrado um<br />

terreno comum.<br />

REVOLUÇÕES<br />

79


GODARD<br />

“ Não é em termos de destino e de liberdade que se avalia<br />

Divulgação<br />

AN PH/FOT/ 23731(6)<br />

a direção cinematográfica e, sim, pela<br />

força que tem o engenho<br />

de se lançar sobre os objetos,<br />

com uma invenção perpétua...<br />

Só se olha para o que se sente<br />

e para o que não se deseja<br />

”<br />

ter como segredo.<br />

AN PH/FOT/ 23731(1)


Yann Beauvais Cineasta, curador e pesquisador francês, realizou cerca de trinta filmes, entre eles Work and progress (1999), com<br />

Vivian Ostrovsky e Adrift (2002).<br />

Filmes de arquivos<br />

O cinema<br />

experimental há muitos anos usa<br />

freqüentemente found footage. Esse termo<br />

designa tanto o objeto – uma seqüência escolhida<br />

– como uma prática de montar um filme, apropriando-se<br />

dos elementos encontrados, dissimulados,<br />

retidos, desviados, não filmados pelo cineasta,<br />

mas que ele recicla.<br />

Essa prática engloba tanto os filmes de compilação,<br />

como os filmes mais pessoais que incorporam<br />

um extrato ou uma seqüência de uma ou várias<br />

películas. Diferentemente dos filmes de compilação,<br />

os filmes pessoais não formam catálogos nem<br />

coleções, lançam mão, ocasionalmente, de fragmentos<br />

de noticiários ou de filmes feitos em casa.<br />

Proteiforme, a utilização do found footage não<br />

pode em caso algum definir um gênero: abrange<br />

uma enorme variedade de intervenções por parte<br />

1 Outer space de Peter Tscherkassky<br />

(1999). © Light Cone<br />

dos cineastas. Intervenções estas que se multiplicaram,<br />

depois que o acesso do grande público ao<br />

videocassete e aos computadores se expandiu, tornando<br />

cada usuário um programador em potencial.<br />

O recurso à rede de computação permite manipular<br />

à vontade as informações armazenadas no<br />

sistema binário. Dessa forma, opera-se um deslocamento<br />

que consagra o império da variação: os<br />

dados é que são manipuláveis, não mais a película.<br />

À sombra desse abandono do celulóide em prol<br />

da computação é que se compreendem os últimos<br />

filmes de Peter Tscherkassky (fig. 1) e sua radical<br />

insistência em trabalhar o suporte em prata.<br />

A utilização de found footage não se restringe<br />

aos documentaristas e cineastas experimentais.<br />

As redes de televisão, grandes consumidoras de<br />

imagens, apelam cada vez com mais freqüência<br />

para os arquivos, ao elaborar uma transmissão<br />

Este artigo foi publicado em 1895 – Archives, Revue de l’Association Française de Recherche sur l’Histoire du Cinéma, n. 41.<br />

Paris: AFRHC-FCAFF, p. 57-70, octobre 2003. Tradução de Helen Alexandrevha Pseluiko.<br />

ou seus programas. Por outro lado, os telejornais<br />

ou os programas de atualidades das emissoras<br />

temáticas reprisam as mesmas seqüências, extraídas<br />

dos arquivos dos quais se servem avidamente.<br />

Alguns arquivos chegam a dominar o<br />

mercado; eles tentam então fazer com que o domínio<br />

do cinema evolua segundo o modelo da<br />

fotografia, a saber, constituindo monopólios.<br />

Se os arquivos cinematográficos, durante<br />

muito tempo, privilegiaram a aquisição de filmes<br />

narrativos, desde os anos de 1990 consideraram<br />

outros aspectos do cinema que, até então,<br />

eram do domínio reservado de arquivos<br />

especializados. Paradoxalmente, o recente interesse<br />

dos arquivos pelos filmes até então ignorados<br />

torna o acesso a eles cada vez mais difícil.<br />

Os filmes restaurados, adquiridos prioritária e<br />

quase que exclusivamente pelos estabelecimentos<br />

reconhecidos oficialmente, vêem sua circulação<br />

bastante limitada. A noção de preservação leva<br />

paradoxalmente a uma difusão restrita: o objeto<br />

filme torna-se precioso, visto que restaurado.<br />

Para os cineastas de hoje que queiram trabalhar<br />

o filme com found footage, resta apenas a<br />

possibilidade de se apropriar, mais ou menos legalmente,<br />

dos elementos cobiçados.<br />

Nos anos de 1950, era fácil procurar filmes<br />

educativos, a partir dos quais se podia produzir<br />

uma obra. A movie, primeiro filme de Bruce<br />

Conner, é um bom exemplo do uso que pode ser<br />

feito de filmes educativos e de noticiários. Ele<br />

critica a sociedade de consumo e seu fascínio<br />

pelo espetáculo da destruição, por meio de um<br />

conjunto de seqüências até então reservadas a<br />

um uso doméstico. Essa apropriação contraria<br />

as intenções originais dos filmes; reflexos da sociedade<br />

que os produz, representam seus ritos,<br />

as tragédias humanas ou naturais, cotidianas ou<br />

excepcionais, as catástrofes. No meio da colisão,<br />

da justaposição e do encadeamento, Bruce<br />

Conner suscita outras interpretações. As certezas<br />

que eram pressentidas nesses filmes vacilam;<br />

outras perspectivas surgem graças ao humor das<br />

montagens, os contra-sensos vêm atentar contra<br />

as idéias recebidas.<br />

Bruce Connor trabalha os clichês cinematográficos<br />

de um passado recente e já desvalorizado,<br />

que são, antes de tudo, uma memória comum<br />

a um grupo, uma classe, uma sociedade.<br />

Seus meios ligam-se à apropriação de objetos<br />

domésticos glorificados pela pop art na Inglaterra<br />

e nos Estados Unidos no final dos anos de<br />

1950. Mesmo sendo singular, A movie, como os<br />

filmes de Raphael Montanez Ortiz, Maurice<br />

Lemaître e de alguns outros, desenvolve as seqüências<br />

dos filmes, apropriando-se delas e<br />

reciclando-as, de modo a criar novas relações que<br />

pervertem o sentido original.<br />

Os utilizadores de found footage, retirando as<br />

imagens de seu contexto, revelam seu sentido<br />

oculto, freqüentemente contrário ao sentido original,<br />

assim como os Novos Realistas<br />

recolocavam em evidência a significação primordial<br />

das imagens que era resgatada pela destruição<br />

dos cartazes. Esse deslocamento é essencial,<br />

à medida que marca a apropriação, e também a<br />

irrupção do intempestivo, constituindo uma significativa<br />

inovação. Para designar esse desacordo,<br />

os lettristes falam em burilamento das ima-<br />

REVOLUÇÕES<br />

83


F ILMES ILMES ILMES DE DE ARQUIVOS ARQUIVOS<br />

2 e 3 Instabile Malerei<br />

de Jürgen Reble (1995)<br />

© Light Cone<br />

REVOLUÇÕES<br />

gens e de “discrepância” a propósito do som. 1 À<br />

diferença de outros cineastas, os lettristes não<br />

utilizam apenas o found footage, por vezes rodam<br />

seqüências que alteram de diversas maneiras:<br />

listras, pinturas, aplicação de letras...<br />

Observemos que, naqueles anos, as questões<br />

relativas à propriedade e aos direitos autorais não<br />

eram tratadas da mesma forma que hoje em dia,<br />

o jurídico ainda não era o parâmetro a partir do<br />

qual se definia o estatuto econômico do autor,<br />

tal como se vê freqüentemente nas sociedades<br />

(corporações) que os representam.<br />

A apropriação de seqüências modifica a maneira<br />

pela qual os objetos cinematográficos são<br />

apreendidos: o objeto de desvio não é a totalidade<br />

do filme, 2 mas sim uma ou várias partes.<br />

Sua integridade é colocada em questão, quando<br />

o filme é considerado como um catálogo de planos<br />

e não como um todo indivisível. Estuda-se,<br />

trabalha-se, cita-se, preestabelece-se para formar<br />

um novo objeto. Trabalha-se não mais para<br />

apresentar uma visão original por meio de planos<br />

filmados por nós, mas sim montando as<br />

cenas rodadas por outros. O trabalho do cineasta<br />

consiste, sobretudo, na pesquisa de documentos,<br />

daí a necessidade de se ter acesso às<br />

bibliotecas, aos arquivos públicos ou privados<br />

e aos diversos estabelecimentos comerciais que<br />

vendam cópias de filmes e fitas em geral.<br />

Fazer filmes de found footage, nos anos de 1950<br />

e 1960, é, antes de tudo, trabalhar a partir de<br />

noticiários; cada vez mais raramente ver-se-ão<br />

imagens retiradas de filmes comerciais. O formato<br />

é sempre um grande obstáculo para os cineas-<br />

tas experimentais que não dispõem de meios para<br />

fazer reduções a partir do formato padrão, 35 mm.<br />

Mais tarde, sobretudo a partir dos anos de 1980,<br />

o recurso do found footage receberá outras significações,<br />

que ultrapassarão a crítica das representações.<br />

A importância da imagem animada, seu<br />

impacto sobre o cotidiano, dará origem ao trabalho<br />

de alguns cineastas: eles utilizam imagens que<br />

veneram ou odeiam, invertendo, de uma só vez, a<br />

maneira de encarar a relação com o cinema e a<br />

sua espetacularização do mundo no século XX.<br />

O material facilmente acessível nesses anos é o<br />

16mm: os noticiários cuja atualidade limita-se à<br />

vida útil do suporte e dos filmes educativos. O recurso<br />

a essas imagens manifesta, em primeiro lugar,<br />

a continuidade de uma tradição crítica da arte<br />

moderna, que sempre considerou a dimensão lúdica<br />

da filmagem, junto com sua dimensão política: o<br />

dadaísmo, o surrealismo, o situacionismo e também<br />

a pop art, numa medida menor...<br />

O trabalho de filmagem no cinema, a partir de<br />

found footage, implica a apropriação de um documento<br />

utilizado como é ou transformado; ele é<br />

reciclado. 3 Distancia-se da citação em prol da crítica<br />

e da análise, conforme o projeto artístico do<br />

cineasta. Se, para os lettristes, a incorporação de<br />

seqüências de filmes célebres permite render homenagens<br />

a determinado momento da história do<br />

cinema, na maior parte do tempo, para outros cineastas,<br />

trata-se de atacar a natureza da representação,<br />

como é proposta pelo cinema comercial. Essa<br />

atitude é adotada por Raphaël Montanez Ortiz em<br />

seus primeiros dois filmes, Cow-boy and Indian films<br />

(1958) e News Reel (1958), em que ele trunca, remonta,<br />

transforma e modifica um western, a fim<br />

1 Ver ISOU, Isidore, Esthétique du cinéma e LEMAÎTRE, Maurice, Le film est déjà commencé. ION, número especial sobre o<br />

cinema, 1o abril 1952. Paris: André Bonne, 1952. 2 Por vezes o desvio se efetua sobre a integridade do filme. Joseph Cornell reduz<br />

um longa-metragem a vinte minutos em Rose Hobart (1936), utilizando subtítulos. René Vienet retoma os filmes inteiros em La<br />

dialectique peut-elle casser des briques? (1974) e Les filles de Kamaré (1974). Ou então Ken Jacobs coloca sua assinatura num<br />

filme anônimo (Perfect film). Pierre Huyghe e também inúmeros artistas contemporâneos apropriam-se integralmente de filmes<br />

que mostram lado a lado em suas diferentes versões (Titanic) ou que estendem até 24 horas: 24 hour psycho (Douglas Gordon,<br />

1993). 3 Para uma análise histórica mais detalhada das técnicas empregadas pelos cineastas de found footage, ver LEYDA, Jay. Films<br />

beget film, a study of compilation film. Londres: Georges Allen & Unwin Ltd, 1964; Found Footage Filme aus gefundenem<br />

Material, Blimp, n. 16, Viena, 1991; WEEDS, William. Recycle images, New York, Anthology Film Archives, 1993; BONNET,<br />

Eugeni (dir.). Desmontage: film, video / appropiation, reciclaje, Valence, Ivam 1993; Yann Beauvais, Plus dure sera la chute<br />

(1995), retomado em Yann Beauvais, Poussière d’images, Paris experimental, 1998.<br />

de denunciar a posição adotada, ideológica e racial,<br />

pelas produções hollywoodianas, assim como pelos<br />

noticiários dos anos de 1940 e 1950. News Reel<br />

denuncia a guerra de uma maneira aberta, bem como<br />

alguns de seus promotores, como o papa Pio XII. A<br />

mesma tendência encontra-se nos cineastas e<br />

videoastas contemporâneos, quando questionam a<br />

identidade, o fato de se pertencer a uma raça, uma<br />

cultura, um gênero. Richard Fung, Nguyen-tan<br />

Hoang, Charles Lofton, Wayne Yung e Shawn Durr<br />

incluem em seus vídeos os elementos de found<br />

footage para enfatizar o pertencimento a uma dupla<br />

minoria, gay, asiática ou black na América do Norte.<br />

Seus trabalhos evidenciam um humor corrosivo,<br />

diferente daquele dos anos 50 e 60. 4 A apropriação<br />

de seqüências de filmes de gênero em Nguyen-tan<br />

Hoang ou Charles Lofton favorece uma leitura camp<br />

desses mesmos filmes, que os dinamiza assim como<br />

os dinamita. Atitude reencontrada em 1000<br />

Cumshots (2003) de Wayne Young, que denuncia o<br />

império do macho branco na pornografia gay.<br />

Esse modo de apropriação artística não é<br />

novo: através dos tempos, os músicos, os escritores,<br />

os pintores inspiraram-se em obras mais<br />

antigas, pegando emprestado um motivo, uma<br />

melodia, um tema, uma idéia, até recopiando de<br />

boa vontade toda ou parte de uma obra. Não há<br />

obra sui generis que não apele ou não tome emprestado<br />

obras anteriores. Hoje em dia a diferença<br />

marcante é a transferência do direito do<br />

autor para seus representantes legais, que, em<br />

nome do poder econômico, confiscam o direito<br />

do autor em favor dos interesses que defendem.<br />

Isso explica que o uso de found footage no<br />

cinema e no vídeo contemporâneos seja muitas<br />

vezes adverso à questão da difusão fora de seus<br />

próprios circuitos, à medida que esses últimos<br />

escapam ao controle dos representantes legais.<br />

A reciclagem das imagens pode ser feita em<br />

todos os tipos de filmes, a partir do momento em<br />

4 Em relação a isso, os filmes The situationist life (1958-1967)<br />

de Jens Jorgen Thorsen são exceções, que se inscrevem numa<br />

tradição provocadora herdeira do lettrisme e do surrealismo.<br />

85


F ILMES ILMES ILMES DE DE ARQUIVOS ARQUIVOS<br />

REVOLUÇÕES<br />

que os meios de reprodução e de captura estão disponíveis.<br />

Observemos, sob o ângulo da reciclagem,<br />

dois filmes que são importantes por razões distintas,<br />

os dois se interessam pelos aspectos do cinema<br />

utilizados com menos freqüência nos anos 60 e que<br />

vão nutrir a maior parte de trabalhos do final dos<br />

anos 80 até o presente. La verifica incerta (1964),<br />

de Gianfranco Baruchello e Alberto Gitti, e Au début<br />

(1967), de Artavazd Pelechian.<br />

O filme de Pelechian coloca uma alternativa à<br />

montagem “das atrações” como a definiu Eisenstein,<br />

recorrendo a uma montagem que privilegia as formas<br />

circulares e a constituição de blocos onde as<br />

variações são efetuadas. Trata-se de uma montagem<br />

que, pela repetição de seqüências num mesmo<br />

bloco ou de um bloco a outro, faz explodir o<br />

sentido único em favor da ressonância. Ao lado<br />

dos noticiários de todas as procedências que celebram<br />

as revoltas, figuram extratos de filmes de<br />

Eisenstein e de Vertov. Essa irrupção de clássicos<br />

marca um reconhecimento de dívida com essas<br />

obras, além de revelar a nova maneira de examinar<br />

um filme. Para lhes devolver o impacto que haviam<br />

perdido, Pelechian duplica as seqüências conhecidas<br />

sobre emulsões de alto contraste.<br />

Para fazer seu filme, Grifi e Baruchello resgataram<br />

quarenta e sete cópias de filmes de 35mm<br />

dos anos 50 e 60 antes de sua destruição. 5 Esses<br />

filmes comerciais, na maior parte americanos, são<br />

desfeitos e depois refeitos para produzir um filme<br />

que, embora respeitando a trama dos filmes clássicos,<br />

dessacraliza os clichês hollywoodianos. La<br />

verifica reconhece a importância de Hollywood<br />

como provedor de estereótipos e de clichês fascinantes<br />

ao mesmo tempo que revoltantes, todos<br />

revelando os limites deste empreendimento de<br />

diversão que recorre aos mesmos códigos independentemente<br />

do argumento do filme. Ele propõe<br />

uma crítica lúdica dos clichês, dos códigos<br />

hollywoodianos, que opera por excesso,<br />

superoferta e acumulação. A eficácia da demonstração<br />

decorre da utilização de um grande núme-<br />

ro de seqüências de vários filmes; ela abre uma<br />

via possível de investigação para os cineastas do<br />

futuro, quer tenham visto ou não La verifica. Isso<br />

evidencia, mais uma vez, a necessidade de tornar<br />

os filmes acessíveis. O acesso e a democratização<br />

favorecem a apropriação. Essa “amostragem aleatória”<br />

prefigura os gestos iconoclastas dos cineastas<br />

dos anos de 1990, que, a partir de seus<br />

videocassetes, privilegiam a arte do espectador,<br />

ou mais exatamente do programador, e constituem<br />

coleções de fragmentos escolhidos em detrimento<br />

da integridade de uma obra. O olhar se<br />

desloca graças a ferramentas que permitem o consumo<br />

particular de um entretenimento que, até<br />

então, era um espetáculo de massas. 6<br />

Por seu modo de apropriação e de reciclagem<br />

das imagens, La verifica e Au début anunciam a<br />

prática de amostragem tal qual se desenvolveu<br />

no domínio musical, depois no das imagens em<br />

movimento, no final dos anos 80. Essa arte de<br />

olhar que privilegia a escolha daquele que olha<br />

permite transformar a maneira de abordar as<br />

noções de autor e de obra.<br />

Os filmes e os vídeos contemporâneos examinam<br />

o cinema, fornecedor e difusor das imagens<br />

do real, mas também artífice, manipulador<br />

desta mesma realidade e ao mesmo tempo do<br />

nosso imaginário. A invasão progressiva do cinema<br />

no decorrer do século XX fez com que<br />

muitas das seqüências dos filmes virassem ícones<br />

contemporâneos, imagens públicas que assombram<br />

a memória de cada um. Outras imagens de<br />

caráter privado, vindas dos filmes de família, permitem<br />

que nos revejamos como éramos antigamente<br />

e nos mostram também a maneira como<br />

percebíamos o mundo, retransmitido pelo olhar<br />

das testemunhas próximas ou distantes. Pode-se<br />

então revisitar a história familiar mediante algumas<br />

de suas representações (como o ritual da refeição<br />

em família em Stories, de Cecile Fontaine),<br />

ou por meio de uma verdadeira celebração do tempo<br />

definitivamente determinado em Nikita Kino<br />

5 Para uma apresentação desse filme, CELANT, Germano (dir.). Identité italienne. Paris: Centre Pompidou, 1981. 6 Peter Szendy<br />

descreveu magnificamente essa arte do espectador, no domínio musical, em SZENDY, P. Un art de l’écoute. Paris: Éditions de Minuit, 2000.<br />

4 Lyrisch Nitrat de Peter Delpeut (1990). © Light Cone<br />

(2001), de Vivian Ostrovsky. Esse filme revive a<br />

viagem à URSS, tal qual a havíamos filmado em<br />

conjunto, Vivian e eu, no Work & Progress (1999).<br />

Aqui não é mais a viagem, a descoberta, que desencadeia<br />

a reciclagem de atualidades, mas sim a<br />

visita ao passado através das seqüências colhidas<br />

pela cineasta ao longo dos anos.<br />

Nesse espírito de reconsideração do passado,<br />

os cineastas trabalham os filmes encontrados<br />

aqui e ali, que permitem mostrar outros costumes<br />

do mundo sob a coberta do anonimato.<br />

Peter Tscherkassky apresenta, em Happy end<br />

(1996), uma coleção de filmes de Ano Novo rodados<br />

por um casal dos anos 60 aos anos 80.<br />

Essa investigação faz parte de uma análise que<br />

nos permite captar a evolução do olhar lançado<br />

pelo casal sobre a sua própria imagem. Ela questiona<br />

igualmente a posição de um terceiro, invisível,<br />

de quem nos ocupamos ao assistir ao filme; a<br />

quem se dirige esta família burguesa, quando finge<br />

a felicidade de um ano vindouro? Happy end<br />

pertence à mesma veia que os filmes que se servem<br />

da alteração do suporte para investir no passado.<br />

Não se trata de rever os eventos filmados<br />

no passado, mas sim de tirar proveito da<br />

materialização da passagem do tempo, da transformação<br />

do grão da emulsão. Não está em questão a<br />

sentimentalidade nostálgica, mas sim a estética.<br />

Se La verifica incerta prefigura os trabalhos<br />

de compilação que geraram o cinema experimental<br />

e a arte do vídeo após os anos 80, é porque<br />

trabalha a partir do cinema comercial, que permanece<br />

como a prática dominante do cinema.<br />

A partir dos anos de 1980, as salas de cinema<br />

já não detêm o monopólio do cinema de ficção:<br />

pode-se vê-lo em shoppings ou em casa, graças ao<br />

videocassete. Essa ferramenta permite, bem aceleradamente,<br />

o retorno da duplicação e da compilação.<br />

O consumidor pode então fabricar fitas personalizadas,<br />

a seu gosto; o que significa o aumento<br />

da pilhagem de seqüências, favorecendo simulta-<br />

87


F ILMES ILMES ILMES DE DE ARQUIVOS ARQUIVOS<br />

REVOLUÇÕES<br />

5 Scratch de Christoph Girardet (2002). © Light Cone<br />

neamente a produção de novas obras a partir do<br />

seqüenciamento, da amostragem de filmes de todos<br />

os gêneros. O resultado é um certo número de<br />

trabalhos que propõem somas particulares de situações<br />

(Home stories, 1991, de Matthias Müller;<br />

Scratch, 2002, de Christoph Girardet, fig. 5) ou<br />

gestos (Téléphones, 1995, de Christian Marclay).<br />

Os cineastas obtêm novos significados de filmes<br />

clássicos ou conhecidos. É o caso de Marc<br />

Arnold, que faz uso de imperfeição da imagem<br />

enquanto instância de descobrimento e<br />

eclipsamento em Pièce touchée (1989), assim como<br />

em seus filmes posteriores; é também o caso de<br />

Chun-hui Wu que, em Psycho shower (2001), trabalha<br />

os diferentes planos da célebre cena do chuveiro<br />

do filme de Hitchcock. A partir de uma cena<br />

superconhecida, o cineasta cria uma coreografia<br />

que coloca em cena o corpo estático de uma mulher<br />

antes de sua morte. Nesse filme, como nos<br />

filmes de Arnold ou de Ortiz, o jogo do adiado e<br />

do avanço entrecortado, com seus desvios, suas<br />

reprises, suas demoras, é que constitui o motor da<br />

ação cinematográfica. Trabalho lúdico que coloca<br />

em crise o desfile regrado de uma projeção em favor<br />

do entrecorte, paradigma do cinema, abolido<br />

após o aparecimento da imagem eletrônica.<br />

No entanto, o cinema hollywoodiano também<br />

pode ser objeto de manipulações e de transforma-<br />

ções que permitem escrever histórias que<br />

Hollywood não soube ou não quis contar. No<br />

Meeting of two queens (1991), Cecilia Barriga propõe<br />

uma história de amor entre Greta Garbo e<br />

Marlene Dietrich, a partir de uma montagem de<br />

seqüências que, além das histórias, funcionam como<br />

hábeis campos contracampos fictícios. Por sua vez,<br />

Bárbara Hammer incorpora em Nitrate kisses<br />

(1992) um filme célebre de Watson e Webber, Lot<br />

in Sodom (1933), assim como as seqüências de raios<br />

X de filmes científicos rodados nos anos de 1940<br />

pelo mesmo Watson. Em Matinee idol (1999), Ho<br />

Tam levanta o catálogo do rei do cinema da China<br />

Meridional, dos anos 30 aos anos 60, retirando<br />

curtos extratos em sua filmografia. À diferença de<br />

Home stories ou Phantom (2001) de Matthias<br />

Müller, Matinee idol não mostra uma nova ficção,<br />

é antes de tudo a transformação de um rosto.<br />

Alguns filmes reutilizam filmes de entretenimento.<br />

Eles evocam uma época, um momento<br />

na história do cinema, uma fascinação por um<br />

gênero de cinema, o das estrelas... não criam<br />

mundos, mas comentam simultaneamente o mundo<br />

e o cinema. Propõem novas leituras, novos<br />

conjuntos, arranjos diferentes, trabalhando em<br />

um catálogo de seqüências mais ou menos conhecidas,<br />

que são arquétipos. Matthias Müller<br />

tem muitas obras recentes, constituídas de representações<br />

hollywoodianas, que mergulham<br />

num clima de pura nostalgia. 7<br />

Matthias Müller, como inúmeros cineastas<br />

surgidos nos anos 80, mistura às imagens que rodou<br />

uma grande quantidade de seqüências encontradas<br />

e tomadas de empréstimo da história do<br />

cinema – principalmente melodramas e comédias<br />

musicais hollywoodianas. Seu filme Aus der Ferne<br />

é sintomático dessa fagocitose progressiva de<br />

Hollywood pelos cineastas experimentais nos anos<br />

80. Por sua vez, Mike Hoolboom e Caspar Strake<br />

anexam todo o cinema e não somente os filmes<br />

hollywoodianos. Tom (2001), de Mike Hoolboom,<br />

convoca a história das representações nova-<br />

7 Como sublinhou justamente Isabelle Ribadeau-Dumas, isso se aplica também a muitos episódios do ciclo Phoenix tapes (1999)<br />

co-realizado com Christoph Girardet em torno dos filmes de Hitchcock.<br />

iorquinas no cinema, para fazer a biografia do<br />

cineasta Tom Chomont. Camadas de imagens tecem<br />

uma história composta da cidade. Essas espessuras<br />

de imagens remetem à constante transformação<br />

arquitetônica de Manhattan. Elas evocam<br />

paisagens imaginárias de uma cidade que associa<br />

à nossa visão resíduos de um outro tempo,<br />

bem como numerosos clichês. A cidade já não é<br />

vista diretamente, mas experimentada sob uma<br />

mistura visual que, no entanto, a torna mais tangível,<br />

mais palpável. A sensação torna-se muito<br />

mais física, material: dá vontade de pegá-la. 8 É<br />

como se o vídeo permitisse sentir a pele da cidade<br />

graças às sobreimpressões, superposições de<br />

imagens que são como vitrais.<br />

A textura particular dessas imagens aproxima<br />

o estilo desse filme daquele dos trabalhos que<br />

utilizam o found footage, acentuando a decomposição,<br />

a alteração, portanto, a fragilidade do suporte<br />

cinematográfico. A fascinação pela decomposição<br />

do suporte pode ser considerada como<br />

uma nostalgia da emulsão, de suas qualidades particulares,<br />

de seu grão e de sua textura. Isso leva<br />

os cineastas a trabalharem as seqüências recortadas<br />

de fitas de vídeo, desenvolvendo-as de maneira<br />

artesanal, para lhes dar novamente a qualidade<br />

tão característica do suporte em prata. O<br />

trabalho de Jürgen Reble situa-se exatamente nessa<br />

linha, que visa transformar o suporte, fazendo<br />

explodir literalmente sua materialidade no<br />

Instabile Malerei (1995, fig. 2 e 3), ou em suas<br />

performances filmadas de Alchemy (2000). A<br />

manipulação radical do suporte no processamento<br />

ou durante a produção da cópia, por viragem, e<br />

os ataques químicos efetuam-se sobre elementos<br />

esquecidos pela maior parte dos filmes científicos<br />

ou dos documentários de animais.<br />

Presenciamos um procedimento que revela o<br />

suporte das imagens em detrimento das figuras<br />

que aí se manifestam, a fim de nos conduzir para<br />

outros horizontes pela abolição progressiva dos<br />

elementos figurativos, sem os quais o deslocamento<br />

para esse “além” não poderia ocorrer. Nesse<br />

procedimento inscreve-se uma dimensão mística<br />

que se aproxima do espírito em que trabalha Mike<br />

Hoolboom, mesmo que os objetos cinematográficos<br />

e as intenções difiram e mesmo que o cineasta<br />

há alguns anos prefira o vídeo ao filme. Mike<br />

Hoolboom radicaliza ainda sua proximidade em<br />

certas partes de Imitations of life (2002), estendendo<br />

o campo de suas tomadas aos videoclipes,<br />

às publicidades e aos filmes esportivos que, em<br />

alguns de seus trabalhos, mistura aos filmes<br />

hollywoodianos. Abigail Child e Craig Baldwin trabalharam,<br />

no final dos anos 80, na mesma direção,<br />

misturando diversos gêneros de filmes. Mas,<br />

às vezes, a narração clássica se refaz: quando a<br />

cineasta refilma os home movies anônimos para<br />

fazer Covert action (1984, fig. 6), percebe que<br />

esse material é fonte de ficção. Ignorando a proveniência<br />

desses filmes de família, tendo apenas<br />

fragmentos, ela completa as lacunas para<br />

reconstituir uma história a partir do found footage. 9<br />

Em Mercy (1989), multiplica as fontes de empréstimo,<br />

incorporando filmes educativos e filmes científicos,<br />

sem se referir a qualquer narrativa.<br />

Se uma importante parte dos filmes de found<br />

footage realizados nos anos 90 são vídeos, No<br />

damage (2002), de Caspar Strake, anexa seqüências<br />

inteiras a fim de devolver à cidade sua<br />

pluralidade, mediante a multiplicidade de suas<br />

representações. É o que foi feito com estrondoso<br />

sucesso por Craig Baldwin em Tribulations 99,<br />

Alien anomalies under América, criando, a partir<br />

de um mosaico de documentos cinematográficos,<br />

uma fábula paranóica cujo fio condutor é<br />

constituído pelas vozes da banda sonora. Esses<br />

discursos ligam as representações oriundas de<br />

fontes diversas, numa narrativa que se desenrola<br />

como uma seqüência de complôs, dos quais o<br />

filme será uma das manifestações virtuais. 10<br />

8 Sobre essa qualidade haptique do vídeo contemporâneo, ver MARKS, Laura U. Touch. Minneapolis: University of Minnesota<br />

Press, 2002. 9 Ver Abigail Child em WEES, William. Recycled images, op. cit. 10 A introdução de uma versão livresca do filme<br />

mantém essa interpretação, mediante a assinatura “Jane Austen”, que mais tarde se manifestará de novo num vídeo de Keith Sanborn,<br />

a propósito das noções de apropriação e de copyright, com as quais o filme de Baldwin não se preocupara. Tribulation 99 Craig<br />

Baldwin, New York, ediciones La Calavera, 1991.<br />

89


F ILMES ILMES ILMES DE DE ARQUIVOS ARQUIVOS<br />

REVOLUÇÕES<br />

6 Covert action de Abigail Child<br />

(1996). © Light Cone<br />

7 De profundis de Laurence Brose<br />

(1996). © Light Cone<br />

Em seus últimos trabalhos, Yervant<br />

Gianikian e Angela Ricci Lucchi continuam o<br />

trabalho começado no início dos anos 80, do<br />

qual Dal Polo all Equatore (1986) é um dos maiores<br />

sucessos: o recurso a filmes de arquivos<br />

ou a coleções privadas. Nesse filme e nos seguintes,<br />

eles selecionam, tingem, reenquadram<br />

as seqüências escolhidas, eclipsando-as no material<br />

que colocam em circulação. Nenhum ou<br />

poucos intertítulos são acrescentados, situando<br />

o material. Esse mergulho nostálgico num<br />

passado para sempre terminado oscila entre<br />

fascinação por um tempo da representação no<br />

cinema e plasticidade de um material surrado<br />

pelos anos e estocado em más condições. Em<br />

Dal Polo all Equatore, os dois cineastas reuniram<br />

filmes da coleção de Luca Comerio que,<br />

no fim dos anos de 1920, juntou sob o mesmo<br />

título diferentes seqüências rodadas por<br />

ele – notadamente a do pólo Norte e as da<br />

Primeira Guerra Mundial – e também filmes<br />

científicos rodados por outros cameramen. A<br />

pilhagem do filme inicial limita-se à sua reorganização<br />

em quatro capítulos. 11<br />

Dal Polo all Equatore ilustra o interesse<br />

crescente dos cineastas, a partir dos anos 80<br />

e 90, pela “efemeridade” do suporte, sua<br />

vulnerabilidade, sua degenerescência. Esse objeto<br />

fascinante – o filme – deseja que o suporte<br />

sucumba, se dissolva, se pulverize, se<br />

dobre, numa palavra, se decomponha.<br />

11 Para uma descrição detalhada da prática dos dois cineastas, ver<br />

GIANIKIAN, Yervant e LUCCHI, Angela Ricci. Catálogo do Museu<br />

Nazionale del Cinema. Florence: Hopefulmonster editore, 1992.<br />

Em No damage como no Dal Polo, os cineastas<br />

apropriam-se dos filmes para criar um<br />

outro: respeitam totalmente o suporte, não se<br />

permitindo qualquer deslize para um outro<br />

material ou a partir de um outro material. O<br />

filme só pode ser gerado por um filme. A essa<br />

lógica pertencem o trabalho de Peter Delpeut<br />

em Lyrisch Nitrat (1900, fig. 4) ou os dois<br />

filmes de Gustav Deutsch, Film ist 1-6 (1998)<br />

e sua seqüência Film ist 7-12 (2002), que recorrem<br />

a empréstimos autorizados de filmes<br />

de arquivos.<br />

Em contrapartida, Mike Hoolboom, Marc<br />

Plas e outros não se embaraçam com tais constrangimentos<br />

quando pilham alegremente o cinema:<br />

fazem obra de cinema a partir de imagens<br />

tiradas de cassetes ou de DVD, fontes<br />

mais acessíveis hoje para quem quer trabalhar<br />

a partir de representações existentes. Na China,<br />

por exemplo, artistas desviam e pervertem<br />

filmes publicitários, à semelhança do que<br />

faz Negativland 12 em suas emissões de rádio e<br />

em alguns CDs. Inúmeros videastas agem assim<br />

atualmente, por exemplo, quando têm necessidade<br />

de contrariar a informação oficial<br />

em caso de conflito armado. Durante a segunda<br />

guerra do Golfo, cineastas e videastas produziram<br />

filmes veiculados pela internet, que<br />

se apresentavam como uma alternativa à propaganda<br />

oficial.<br />

Outro domínio de apropriação, considerado<br />

como um gênero menor e reservado na<br />

maior parte do tempo a um uso privado: o<br />

cinema pornográfico. Eis o terreno de apropriação<br />

de Lary Brose (De profundis, 1996,<br />

fig. 7), Steve Reinke (algumas fitas da série<br />

The hundred vídeos), Michael Bryntrupp (All<br />

you can eat, 1993), Yves Mahé (Fuck, 1999 e<br />

Va te faire enculer, 1999). Por vezes os cineastas<br />

retomam as mesmas imagens: All you can<br />

eat utiliza seqüências que também encontramos<br />

em Barely human. 13 Nos dois casos, trata-se<br />

de uma acumulação de planos de rostos<br />

de homens ao longo de um dia, extraídos de<br />

vídeos hard gay. Para Steve Reinke, essa acumulação<br />

de rostos estáticos torna os protagonistas<br />

quase inumanos: não completamente<br />

fantasmas, de preferência anjos. Por sua vez,<br />

De profundis privilegia imagens pornográficas<br />

menos familiares (na maior parte datam<br />

do final dos anos 20), que são refilmadas e<br />

tratadas de modo que sua antiguidade e sua<br />

alteração, pelas agressões que o cineasta lhes<br />

faz sofrer, sejam palpáveis. A manipulação das<br />

imagens, que cria uma textura, torna-as mais<br />

táteis. Elas são por assim dizer (visualmente)<br />

acariciadas. A insistência em devolver o caráter<br />

palpável da película de prata encontra-se<br />

nos videastas, quando, por meio de super e<br />

subexposições, devolvem uma espessura à imagem,<br />

que não passa de uma fina película, mas<br />

que se torna pele.<br />

Utilizando o vídeo ou o DVD, os cineastas<br />

sempre voltam a privilegiar o aspecto material<br />

do filme; procuram torná-lo tangível para<br />

os espectadores. Mesmo quando escolhem<br />

imagens virtuais, buscam fazer passar uma<br />

sensação de textura, não se satisfazem com o<br />

aspecto liso das novas imagens. Apreciam antes<br />

de tudo a materialidade da película, os efeitos<br />

estéticos que só o envelhecimento do suporte<br />

produz. Portanto, parece bem necessário<br />

hoje preservar as imagens animadas, assim<br />

como é necessário favorecer o acesso a<br />

elas. Os arquivos, os bancos de dados, pertencem<br />

freqüentemente a instituições cuja gestão<br />

se revela muito difícil, mas são um mal<br />

necessário: permitem a salvaguarda e a conservação<br />

em condições ótimas e agem como<br />

uma memória que se torna viva com a condição<br />

de partilharem seus tesouros.<br />

12 Negativland é um coletivo de músicos que questionou a noção de uso respeitoso da reciclagem. Seu combate foi ilustrado quando<br />

tomaram emprestado uma canção do U2. Ver o site www.negativland.com. 13 Essa fita é a décima da série The hundred vídeos, de<br />

Steve Reinke. Ver o catálogo com o mesmo nome editado por Philip Monk Power Plant, Toronto, 1997.<br />

91


AN Acervo Correio da Manhã


Sébastien Layerle Doutorando em estudos cinematográficos e audiovisuais da Sorbonne Nouvelle (Paris III) e professor na Université<br />

Michel de Montaigne (Bordeaux III), prepara uma tese dedicada ao cinema militante como testemunho dos acontecimentos de Maio de 68 na França.<br />

Os murmúrios do mundo<br />

O Ateliê de Pesquisa<br />

Cinematográfica em Maio 68<br />

a Pierre David<br />

AN Acervo Correio da Manhã<br />

Este artigo foi publicado foi publicado em CinémAction, n. 110, Le cinéma militant reprend le travail. CinémAction-Corlet, 1 o trim.<br />

2004. p. 66-73. Tradução de Mauro Pinheiro.<br />

Na França, o mês de maio de 1968 suscitou<br />

no cinema militante três orientações sobre<br />

a prática coletiva: as atividades perenes de grupos<br />

afiliados a formações políticas ou sindicais,<br />

os procedimentos espontâneos de comitês de<br />

ação de estudantes, as experiências autônomas<br />

executadas alguns meses antes acerca de Loin<br />

du Viêtnam, da Universidade Crítica e das primeiras<br />

greves com ocupação. Se, por um lado,<br />

o Ateliê de Pesquisa Cinematográfica (Atelier<br />

de Recherche Cinématographique – ARC) decorre<br />

desta última tendência, ele se baseou mais<br />

numa idéia de cinema do que numa ideologia<br />

política exclusiva. 1 Para seus defensores, esta<br />

história de afinidades não foi nada menos do<br />

que uma “evidência”.<br />

A FGERI<br />

Durante o ano de 1967, a Federação de Grupos<br />

de Estudos e de Pesquisas Institucionais (Fédération<br />

de Groupes d’Études et de Recherches<br />

Institutiuonnelles – FGERI) sediou rodas de discussão<br />

nas suas instalações parisienses de Villa<br />

des Ternes. As sessões reuniam médicos, psicólogos,<br />

professores, interessados nos métodos da<br />

psicoterapia institucional. 2 Aplicadas à clínica do<br />

Château de La Borde, perto de Blois, elas orientavam<br />

as relações entres os que curam e os que<br />

são curados no sentido de uma maior abertura<br />

para com o mundo. Os exercícios colocavam o<br />

paciente em um contexto mais denso e sua “liberação”<br />

não pertencia mais ao quadro familiar do<br />

Édipo de Freud ou Lacan. Entre outros meios,<br />

as artes plásticas, o teatro e o cinema tentavam<br />

incentivar a expressão pessoal, deixando a cada<br />

um a iniciativa de se exprimir.<br />

“Em La Borde, fazíamos filmes que não<br />

eram diretamente políticos. O mais importante<br />

era abolir fronteiras, fronteiras entre pessoas<br />

doentes e sadias, entre cineastas e atores”<br />

lembra Jean-Denis Bonan. “Os roteiros<br />

eram elaborados pelos internos e nós filmávamos<br />

com eles. Isso resultava em filmes cujo<br />

produto final não se encontrava sempre à altura<br />

de nossas ambições, mas o essencial era<br />

o próprio procedimento. O projeto, em si,<br />

era muito cativante”. Mireille Abramovici<br />

realizou uma oficina audiovisual. Para ela, “as<br />

relações encontravam-se subitamente invertidas.<br />

Um novo tipo de cinema se abria para<br />

nós. Respeitávamos as pessoas que filmáva-<br />

1 Este artigo se seguiu a uma mesa-redonda organizada em Paris, em 13 de maio de 2001, na presença de seis dos antigos membros<br />

do ARC, por isso constam apenas os depoimentos deles: Mireille Abramovici, Michel Andrieu, Jean-Denis Bonan, Pierre David,<br />

Jacques Kébadian et Renan Pollès. Agradecimentos a Jean-Noël Delamarre. Os filmes do grupo são citados em CinémAction, n.<br />

110, Le cinéma militant reprend le travail, CinémAction-Corlet, 1 o . trim. 2004. 2 Em 1952, o psicanalista francês Georges<br />

Daumezon definiu e teorizou a “psicoterapia institucional para designar uma terapêutica nova e dinâmica da loucura que exige uma<br />

reforma da instituição dos asilos. As experiências pioneiras datam do início do século XX. Na França, a liberalização das estruturas<br />

psiquiátricas se impõe durante a Segunda Guerra Mundial através do engajamento político e da resistência antinazista. A partir de<br />

1943, em Saint-Alban em Lozère, os terapêutas e militantes Lucien Bonnafé (comunista) e François Tosquelles (libertário) realizam<br />

seminários num hospital sobre psiquiatria comunitária. Em 1969, no domínio da FGERI, da crítica institucional e da antipsiquiatria<br />

(cujo resultado é o L’Anti-Œdipe, escrito em 1972 com Gilles Deleuze), Félix Guattari cria o Centro de Estudos, Pesquisa e<br />

Formação Institucional (CERFI), que publicará a revista Recherches.<br />

REVOLUÇÕES<br />

95


O S MURMÚRIO<br />

MURMÚRIOS MURMÚRIO<br />

MURMÚRIO DO DO MUNDO MUNDO<br />

REVOLUÇÕES<br />

mos. Aprendíamos muito sobre elas. Eu sei,<br />

por exemplo, que Jean-Denis maquiou os doentes.<br />

Cada maquiagem era feita de acordo<br />

com a vontade daquele que era filmado. É verdade<br />

que não era algo muito comum na obra<br />

dos cineastas que admirávamos. Era um terreno<br />

que estávamos explorando, mesmo se<br />

havia Jean Rouch e Joris Ivens”.<br />

Libertária, esta prática terapêutica diz respeito<br />

à sociedade inteira. Seus defensores nunca<br />

censuraram suas fortes convicções e seu engajamento<br />

político. Jean Oury e Félix Guattari<br />

cuidaram do estabelecimento de Cour Cheverny.<br />

Fernand Deligny e Jean-Claude Polac trabalharam<br />

nesse local. Em plena contestação à<br />

intervenção americana no Vietnã, essa quarta<br />

geração de psicanalistas, esquerdista, procurou<br />

meios de estender a “liberação” dentro e<br />

fora das fronteiras, apoiando movimentos antiimperialistas.<br />

Para alimentar as discussões,<br />

eles têm a idéia de filmar os movimentos sociais<br />

e as lutas que estão ocorrendo naquele<br />

momento. Jean-Claude Polac apresenta a equipe<br />

de cinema de La Borde a um jovem assistente<br />

de Robert Bresson, em um momento considerado<br />

oportuno para mostrar os textos de Anton<br />

Tchekhov e Edgar Poe com os internos.<br />

Jacques Kébadian criou um pequeno grupo de<br />

realização com antigos colegas do Institut des<br />

Hautes Études Cinématographiques – IDHEC<br />

(Françoise Renberg, Michel Andrieu, Renan<br />

Pollès). Após algumas filmagens selvagens, esta<br />

associação informal de amigos cria um projeto<br />

de atualidades revolucionárias, sem diretriz<br />

nem motivo de adesão. Algo original em uma<br />

década que tem como exemplo a militância<br />

coletiva, a partir da qual surgem os movimentos<br />

de extrema-esquerda, o Comitê Vietnã e o<br />

Comitê de Ação Estudantil.<br />

O IDHEC<br />

Se, por um lado, todos condenaram desde a<br />

adolescência o modelo stalinista e apoiaram as mobilizações<br />

anticolonialistas, Jacques Kébadian é o<br />

único nessa época a aderir a um engajamento coerente<br />

com as militâncias dos anos de 1960. Durante<br />

a guerra da Argélia, ele apóia a FLN (Frente<br />

de Libertação <strong>Nacional</strong>). Quando da revolução cultural<br />

chinesa, ele estabelece novos laços com as<br />

organizações trotskistas e maoístas. Seduzido pela<br />

presença de uma jovem moça que vendia o jornal<br />

Garde Rouge na rua, “um pouco como Jean Seberg<br />

em A bout de souffle” (no Brasil, Acossado),<br />

ele adere à Juventude Comunistas Revolucionária,<br />

mas defende o Pequeno livro vermelho. Nesse<br />

mesmo momento, Michel Andrieu e Renan Pollès<br />

evoluem em uma “espécie de margem ideológica”.<br />

3 Eles recordam ter preferido as inflexões de<br />

“Socialismo ou barbárie” e da Internacional Situacionista<br />

às orientações marxistas-leninistas.<br />

“Sempre tivemos vontade de ter um grupo paralelo<br />

a todos os projetos pessoais de filmes de cada<br />

um”, diz Michel Andrieu. “Nós tínhamos em mente<br />

um trabalho coletivo político e social”. Durante<br />

o inverno de 1963, eles convenceram seus colegas<br />

a filmar a grande greve que paralisava as minas de<br />

carvão no norte da França, e que a ORTF não estava<br />

cobrindo. Os operários do setor nacionalizado<br />

pediam um aumento de salário. O governo Pompidou<br />

estabeleceu contra eles um decreto impopular<br />

de requisição que estendeu o conflito até o mês de<br />

abril. Após as filmagens em Valenciennes, a equipe<br />

improvisada deixou seus rushes (positivos de filme)<br />

nas mãos de uma seção local da CGT. O filme desapareceu.<br />

Uma lição foi tirada desse acidente,<br />

quatro anos mais tarde, nas primeiras manifestações<br />

sindicais contra as reformas que queriam efetuar<br />

no estatuto da Previdência Social. 4 Entre essas<br />

3 Seu perfil se assemelha ao dos “ativos inorganizados” evocado por Élisabeth Salvaresi (“Chamo de inorganizados os numerosos<br />

militantes que, não se reconhecendo no seio de nenhuma organização, e com freqüência hostis à própria idéia de organização, ainda<br />

assim executavam ações políticas e contínuas”, Mai en héritage, coll. Alternatives, éd. Syros, 1988, p. 11). 4 Na primavera de<br />

1967, em vez de se esgotar em confrontos parlamentares, o quarto governo Pompidou tomou a via contestada das ordenações. Cinco<br />

setores estão envolvidos: o emprego (criação da Agência <strong>Nacional</strong> para a Proteção do Emprego), a reforma da Previdência Social (fim<br />

do regime de gestão das caixas por administradores eleitos pelos assegurados), a participação dos trabalhadores nos lucros das<br />

empresas, sua adaptação à concorrência, e a modernização ou reconversão de determinados setores de atividade.<br />

duas datas, e durante o período que separa o final<br />

da guerra na Argélia e as manifestações de solidariedade<br />

ao povo vietnamita, todos tiveram oportunidade<br />

de realizar seu primeiro curta ou de trabalhar<br />

na assistência ou na montagem. 5<br />

Cinéfilos, eles constituem uma geração que<br />

freqüentava assiduamente a cinemateca. Suas primeiras<br />

paixões são o cinema clássico e o film de<br />

genre, aos quais dedicaram seus trabalhos quando<br />

estudantes. O que não significa que suas temáticas<br />

permanecessem insensíveis às emoções<br />

que afetavam direta ou indiretamente a sociedade<br />

francesa. Lembra Jacques Kébadian que, “no<br />

IDHEC e mesmo durante o ano de preparação<br />

ao concurso para o liceu Voltaire, existiam realmente<br />

duas tendências, Alain Resnais e Jean-Luc<br />

Godard: um cinema marxista, Hiroshima mon<br />

amour e, do outro lado, A bout de souffle. Pelo<br />

seu estilo, Godard era freqüentemente tratado<br />

de fascista pelos marxistas, enquanto Robert<br />

Bresson e Jean Grémillon eram rotulados como<br />

cristãos. Eu não concordava com isso, mas havia<br />

uma ideologia muito severa e brutal que dizia<br />

respeito ao conteúdo e ao estilo”. Renan Pollès<br />

vai ainda mais longe. Segundo ele, não se<br />

podia tomar uma posição de maneira pertinente<br />

sem fazer escolhas de ordem estética. “Eu tinha<br />

a impressão de que o que era verdadeiro no cinema<br />

era revolucionário, que o que era falso e<br />

relativamente trabalhado era de direita, e que os<br />

problemas eram mais artísticos do que políticos”.<br />

Com relação a isso, o grupo revela-se pragmático:<br />

vê o ato cinematográfico como um posicio-<br />

namento histórico. A ascensão simultânea das<br />

técnicas leves e sincrônicas serve de resposta formal<br />

a este “desejo de contemporaneidade”. 6 Autoriza<br />

um projeto que era considerado subversivo<br />

na época: o direito de se exprimir.<br />

A circunscrição da FGERI se adapta às aspirações<br />

de cada um: o instante comanda, as divergências<br />

políticas são consideradas ultrapassadas<br />

e a palavra é mais dada do que tomada. No<br />

último trimestre do ano de 1967, um local de<br />

reunião lhes é oferecido. Eles ainda são apenas<br />

um círculo de reflexão a respeito do lugar e do<br />

status do cineasta. 7<br />

A Universidade Livre<br />

Em 1967, a mobilização contra a guerra do<br />

Vietnã se radicaliza. Como reflexo à falta de reação<br />

dos líderes ocidentais, os grupos de protesto<br />

ficam cada vez mais numerosos. 8 Para muitos,<br />

desde o estudante até o operário, o conflito<br />

é uma forma de contestar a ordem mundial do<br />

pós-guerra e as diferentes formas de opressão.<br />

Cabe somente ao estudante materializar os comportamentos<br />

de revoltas antiautoritárias. Na França,<br />

greves selvagens estouram em várias zonas<br />

industriais do interior (Besançon, Mulhouse,<br />

Caen, Redon). Os jovens trabalhadores criticam<br />

a ação sindical dos mais velhos e denunciam suas<br />

condições de trabalho. Responsável pelo texto<br />

coletivo Loin du Viêtnam (março-dezembro), 9 o<br />

grupo SLON se dedica a esses centros de con-<br />

5 Durante o verão de 1967, Jacques Kébadian assina um primeiro curta-metragem engajado, Trotsky (50min, 16mm, Cor).<br />

6 A expressão é de Pascal Ory (“Introduction à l’histoire culturelle de l’après-Mai”, La décentralisation théâtrale: Mai 68, le<br />

tournant, tome III, Cahiers n. 8, éd. Actes Sud Papier, 1994, p 169 e s.). As experimentações espontâneas com a obra nos<br />

happenings dos anos de 1960 traíam uma obsessão da historicidade. Confundem duas concepções artísticas: uma vida a serviço da<br />

arte (criação) e uma arte a serviço da vida (intervenção). 7 Foi em dezembro de 1967 que se fixou o nome Atelier de Recherche<br />

Cinématographique – ARC. O nome é sóbrio, neutro, para evitar problemas com a censura ou as forças militares, apenas explícito<br />

para pretender um status associativo que o grupo acabou não registrando. 8 O Comitê Vietnã, constituído em novembro de 1966<br />

contra a intensificação da intervenção americana, está na origem de várias manifestações em 1967 e 1968. Em maio de 1967, as<br />

organizações de apoio à China da União da Juventude Comunista Marxista-Leninista (UJCML) e do Partido Comunista Marxista-<br />

Leninista da França (PCMLF) criaram seus próprios comitês Vietnã como base de apoio ao povo vietnamita. No final de 1967 e<br />

durante todo o ano que se seguiu, comitês estudantis de ação prolongaram suas ações, mas não sobrevivem a Maio de 68. 9 A produção<br />

francesa conduzida por Chris Marker, Loin du Viêtnam (1967) é um manifesto coletivo reunindo mais de uma centena de cineastas,<br />

atores e técnicos profissionais, “em solidariedade ao povo vietnamita em sua luta contra a agressão”. O filme foi convidado a participar<br />

de muitos festivais internacionais (Montreal, Nova York, Leipzig) e de avant-premières (usina Rhodiaceta de Besançon, Théâtre<br />

National Populaire em Paris), antes de ser lançado para o público no dia 13 de dezembro de 1967 em quatro cinemas parisienses.<br />

97


O S MURMÚRIO<br />

MURMÚRIOS MURMÚRIO<br />

MURMÚRIO DO DO MUNDO MUNDO<br />

REVOLUÇÕES<br />

Daniel Cohn-Bendict, líder<br />

estudantil francês, convocando<br />

alunos da Universidade de<br />

Frankfurt à greve. Frankfurt,<br />

Alemanha, 24/5/1968. Acervo<br />

Correio da Manhã<br />

Policiais detendo manifestante<br />

contrária à intromissão<br />

americana na Guerra do Vietnã.<br />

s.l., 11/5/1972. Acervo<br />

Correio da Manhã<br />

AN PH/FOT/ 16882(8)<br />

AN PH/FOT/ 2729(2)<br />

testação, chegando a entregar sua “câmera aos<br />

operários”. O ARC investe então seu tempo em<br />

um movimento estudantil, disposto a se unir<br />

contra o imperialismo e contra essa “miséria”<br />

que toma conta do meio universitário. 10<br />

No dia 20 de dezembro, em Paris, a Mutualité<br />

é invadida por ordem dos comitês de base.<br />

Três mil pessoas fazem uma homenagem ao sétimo<br />

aniversário da Frente <strong>Nacional</strong> de Liberação.<br />

Na noite do 29 ao 30 de janeiro, a ofensiva<br />

do Têt liderada pelo Vietnã do Norte desestabiliza<br />

as posições americanas em Saigon e nas grandes<br />

cidades do Sul. Alguns dias mais tarde, a<br />

parte ocidental de Berlim acolhe o Congresso<br />

Internacional de Solidariedade à Revolução Vietnamita.<br />

Quinze países europeus são representados<br />

e, ao mesmo tempo, surge a Juventude Internacional.<br />

O Ateliê envia sua primeira equipe<br />

de filmagem. Foi feita uma associação na ocasião<br />

com Paul Bourron, que, no verão anterior,<br />

filmara em Havana um curta-metragem didático<br />

sobre a conferência da Organização Latino-Americana<br />

de Solidariedade. No dia 17 fevereiro,<br />

num anfiteatro da escola técnica, foi com duas<br />

câmeras que os operadores parisienses filmaram<br />

a intervenção de Rudy Dutschke. O líder da Alemanha<br />

Oriental da Federação de Estudantes Socialistas<br />

propõe a possibilidade de uma terceira<br />

via, entre o capitalismo conquistador do Ocidente<br />

e as ditaduras burocráticas da Europa Oriental.<br />

Antes e durante a manifestação do dia seguinte,<br />

o grupo realiza encontros com os principais<br />

fundadores da Universidade Crítica. 11 De<br />

volta à França, todos se sentiram entusiasmados<br />

por terem participado de um momento importante<br />

da história. Dois filmes são realizados: uma<br />

crônica (Berlin 68) e o retrato de um estudante<br />

engajado (Université critique: Sigrid).<br />

Na Alemanha Federal, a equipe conheceu<br />

simpatizantes da Juventude Comunista Revolucionária.<br />

Seus membros cruzaram também com<br />

Daniel Cohn-Bendit, que foi convidado às sessões<br />

de montagem. A seu pedido, Michel Andrieu,<br />

Jacques Kébadian e Renan Pollès projetam<br />

filmes antiimperialistas no campus da Faculdade<br />

de Letras de Nanterre. Só alguns dias<br />

depois eles resolvem filmar, quando o projeto<br />

de uma universidade crítica parisiense vem à<br />

tona. No dia 22 de março, o anúncio da prisão<br />

de quatro estudantes secundários acusados de<br />

terem pilhado uma loja da American Express,<br />

praça da Ópera, provoca a ocupação do prédio<br />

administrativo da faculdade. Na mesma noite,<br />

o Manifeste des 142 leva à criação de um movimento<br />

unitário, predominantemente espontaneísta<br />

e libertário, do qual se aproximam os membros<br />

do ARC.<br />

Ao final dos feriados de Páscoa, as manifestações<br />

e os combates com as forças de ordem<br />

se intensificam. No dia 2 de maio, durante<br />

a “Jornada de estudos sobre o imperialismo”,<br />

a ameaça de uma ofensiva do grupo de extrema-direita<br />

Occident cai sobre os enragés (furiosos).<br />

Oito dentre eles são intimados a comparecer<br />

na segunda-feira seguinte ao conselho de<br />

disciplina da Universidade de Paris. À tarde,<br />

Michel Andrieu e Jacques Kébadian exibem um<br />

filme sobre o Black Power no lugar e na hora da<br />

aula de René Rémond. O professor é violentamente<br />

vaiado quando tenta retomar sua aula.<br />

Mais tarde, o reitor Roche e o decano Pierre<br />

Grappin, sob ordens do ministro Alain Peyrefitte,<br />

decidem suspender as aulas até que a ordem<br />

seja restabelecida. Os estudantes reagem<br />

preparando para o dia seguinte um protesto no<br />

pátio da Sorbonne.<br />

10 Da miséria no meio estudantil, considerada sob todos os seus aspectos, econômico, político, psicológico, sexual e sobretudo<br />

intelectual, e de quaisquer meios para remediá-la, folheto situacionista da Associação Federativa Geral dos Estudantes de Strasbourg,<br />

novembro de 1966. 11 Criada em 1962 por Tom Hayden, a Universidade Livre berlinense provocou diversas reformas pedagógicas<br />

e administrativas, inclusive a criação de um Parlamento Estudantil. Pressionada pelas instâncias dirigentes favoráveis aos interesses<br />

americanos por intermédio da OTAN e após o assassinato do estudante no dia 2 de junho de 1967 por um policial à paisana, durante<br />

a visita do xá do Irã à Alemanha Federal, ela radicalisou suas posições. No dia 11 de julho de 1967, foi fundada a Universidade Crítica<br />

na presença de Herbert Marcuse, um dos filósofos da Escola de Frankfurt, com considerável influência sobre os estudantes.<br />

99


O S MURMÚRIO<br />

MURMÚRIOS MURMÚRIO<br />

MURMÚRIO DO DO MUNDO MUNDO<br />

REVOLUÇÕES<br />

Esses prelúdios deixaram marcas: Ce n’est<br />

qu’un début é um desses raros filmes que foram<br />

exibidos durante a primavera de 1968. Seu lançamento<br />

foi no dia 20 de maio.<br />

No coração dos acontecimentos<br />

O grupo filma, monta e exibe sem interrupção<br />

durante três meses. Dispondo de seu próprio<br />

equipamento e com alguns subsídios, fazem<br />

um investimento em películas. 12 No dia 11 de<br />

abril, após a tentativa de assassinato contra Rudy<br />

Dutschke, um canal de televisão compra alguns<br />

minutos de imagem de Berlin 68. Quando o<br />

Quartier Latin se inflama, o Ateliê é um dos primeiros<br />

grupos a chegar ao local. Em 14 de maio,<br />

Michel Andrieu e Pierre-William Glenn se encontram<br />

em Nantes, militando pela Organização<br />

Comunista Internacionalista. Em conflito declarado<br />

com a direção há mais de um mês, os operários<br />

de Sud-Aviation-Bouguenais são os primeiros<br />

a ocupar sua fábrica.<br />

No dia 3 de maio, Pierre David junta-se à<br />

ARC aconselhado por Chris Marker e Mario<br />

Marret. Seu testemunho ilustra muito bem o estado<br />

de espírito com o qual eles abordam o acontecimento.<br />

“Na época, me atraía o que propunham os<br />

situacionistas. Era uma verdadeira linguagem política:<br />

Onde está a verdade? Ela é visível? O cinema<br />

a pode transmitir e, aliás, para que serve?<br />

Trata-se somente de uma imagem a serviço do<br />

sonho e do comércio, ou pode-se fazer com ele o<br />

que se faz com a literatura, ou seja, novelas ou<br />

ensaios? Não éramos doutrinados. Queríamos<br />

saber como nos organizar, onde encontrar pelí-<br />

cula, um telefone, uma motocicleta, e quem filmaria<br />

o quê. Antes e durante Maio de 68, algo<br />

se parte de maneira fundamental: todo mundo<br />

pode falar. As propostas e as ações são simultâneas.<br />

Armazenam-se ao máximo imagens e sons.<br />

Mais tarde veremos o que fazer com eles, sabendo<br />

muito bem que temos nas mãos um tesouro<br />

que não nos pertence. Somos uma espécie de<br />

escritores públicos. Tudo é inacreditável. É a<br />

primeira vez que me digo: ‘Estou numa manifestação<br />

e não é por estar com uma câmera que não<br />

posso me manifestar como os outros!’ O comportamento<br />

militante é ao mesmo tempo filmar<br />

e ser um ‘manifestante filmando’. As duas coisas<br />

não se separam. Daí uma certa humildade. O<br />

fato de termos uma câmera não nos faz mais fortes<br />

que os outros. E sinto-me incapaz de analisar<br />

aquele movimento. Não disponho de um sistema<br />

de leitura. Sei apenas que estou contente.<br />

Politicamente, aqueles momentos representam<br />

exatamente algo que me seria difícil acreditar,<br />

ainda que me houvessem apresentado isso três<br />

ou quatro meses antes. Uma espécie de júbilo: a<br />

idéia de que a verdade vai se revelar por si só.”<br />

Graças à mobilização do mundo do audiovisual<br />

em Maio de 68, o ARC se beneficia de um<br />

auxílio técnico por parte da Films de la Guéville<br />

(Yves Robert e Danielle Delorme), do Serviço de<br />

Pesquisa da ORTF em greve e da Comissão de<br />

Produção. Ele se enriquece igualmente com os<br />

recém-chegados, 13 que permitiram a criação de<br />

cinco equipes que invadem as ruas da capital, as<br />

universidades e as fábricas. Segundo Jean-Denis<br />

Bonan, surge um “cinema bruto, balbuciante, fundido<br />

nos movimentos”. As reuniões cotidianas<br />

existem para coordenar cada filmagem e para orientar<br />

as sessões de pré-montagens, ao sabor dos<br />

eventos. O Ateliê leva seu apoio à realização de<br />

12 É preciso, ainda, lembrar aqui as condições técnicas de filmagem de documentário na época: câmeras Coutant 16 mm e gravador<br />

Nagra, os dois ligados por um fio, e utilização de película preto e branco – a cor era um luxo reservado à ficção. 13 Jean-Noël<br />

Delamarre, Nathalie Perret, Daniel Ollivier, André Glucksman são amigos próximos. Anna Rosenheim, François Lecoeur tiveram<br />

presença ativa na época. Jean-Pierre Thorn e Jean Lefaux, cansados de assistir a assembléias, passam a freqüentar as reuniões, antes<br />

de ir filmar cada um de seu lado (Oser lutter, oser vaincre e Écoute Joseph, nous sommes tous solidaires). Algumas mudanças pontuais<br />

ocorreram com Claude Miller, Gérard de Battista, Pierre-William Glenn, Paul Bourron, Romain Goupil, Walter Ball, Sophie<br />

Tatischeff... No momento da separação em 1969, o ARC contava com uns vinte membros.<br />

novos trabalhos: o explosivo Brigadier Mikono<br />

de Jean-Michel Humeau, e um projeto em duas<br />

partes de Boudjema Bouhada sobre os Travailleurs<br />

immigrés, infelizmente perdido. O grupo<br />

funciona então como uma verdadeira agência de<br />

notícias independente.<br />

Da mesma forma, as relações com os États<br />

généraux du cinéma são pelo menos conflituosas,<br />

e assim permanecerão. Em 1969, quando a Associação<br />

com o mesmo nome lança a idéia de<br />

uma “centralização da produção e difusão” que<br />

permita a partilha das conquistas de Maio de 68,<br />

o ARC opõe sua autonomia de funcionamento,<br />

gestão, difusão e seu modelo de “democracia<br />

organizacional”.<br />

O futuro dos filmes<br />

Após os sobressaltos da primavera, o Ateliê conta<br />

com milhares de metros de película. Uma parte<br />

do material desapareceu durante tratamento em laboratórios<br />

clandestinos, franceses ou estrangeiros.<br />

Algumas imagens seduziram certos cineastas (Jean-<br />

Luc Godard, por exemplo, Un film comme les autres),<br />

14 ou gerou a cobiça de pessoas mal-intencionadas.<br />

O essencial, contudo, foi preservado.<br />

Os membros do Ateliê pensam em realizar<br />

um “filme total” que, ao longo de mais de um<br />

ano, trace o panorama dos movimentos de luta<br />

na França. Diferente do filme de síntese desejado<br />

pelos États généraux du cinéma, este projeto<br />

nasceu apenas de uma premonição. “Em 1967,<br />

recorda-se Michel Andrieu, tínhamos decidido<br />

não finalizá-lo imediatamente. Achávamos que<br />

era preciso continuar a filmar os eventos sociopolíticos<br />

do momento antes de fazer um filme.<br />

Não sabíamos muito bem que filme, apenas que<br />

era preciso estarmos lá, e filmar.”<br />

Diante dos acontecimentos, um conjunto de<br />

roteiros foi improvisado sobre temas incertos: a<br />

violência, a solidariedade entre estudantes e trabalhadores,<br />

a experiência de um comitê de ação<br />

de um bairro, e a greve no setor terciário.<br />

Durante o verão de 1968, os capítulos intermediários<br />

destinados a se fundirem num conjunto<br />

mais denso começam a surgir. A equipe se<br />

reúne para definir o sentido da montagem final.<br />

E fracassa diante da amplitude da tarefa. Os quatro<br />

episódios se tornam entidades autônomas, oscilando<br />

entre o agit-prop (agitação e propaganda<br />

política) e a crônica. Se a personalidade e o estilo<br />

de seus autores são perceptíveis, todos respeitam<br />

o anonimato dos sujeitos originais e a natureza<br />

coletiva de sua concepção: Le joli mois de<br />

mai, Le droit à la parole, Comité d’action du Treizième<br />

Arrondissement e Galeries Lafayette. Esta<br />

última reportagem, realizada por Renan Pollès,<br />

Nathalie Perret e Jean-Noël Delamarre, nunca<br />

será mostrada.<br />

Ao final do mês de junho, Pierre David parte<br />

para os Estados Unidos. Com bobinas na mala,<br />

ele encontrará os principais coletivos norte-americanos:<br />

American Documentary Films e, sobretudo,<br />

Newsreel, 15 do qual o ARC se tornou<br />

interlocutor privilegiado depois da manifestação<br />

de Berlim. O intercâmbio de filmes e de<br />

catálogos prossegue: o sonho é a criação de uma<br />

rede internacional de difusão militante. No outono,<br />

Montreal realiza uma semana do cinema<br />

militante. Todo um programa dedicado ao Maio<br />

de 68 da França. Na Europa, o grupo está em<br />

contato com seus homólogos belgas (La ligne<br />

générale), alemães, italianos, suecos e tchecos.<br />

Algumas cópias são enviadas para a África (Nigéria)<br />

e América Latina (Argentina, Uruguai).<br />

Através de Anatole Dauman, Le droit à la parole<br />

consegue mesmo agradar a Columbia. Uma ver-<br />

14 No IDHEC, Jean-Luc Godard encontra Michel Andrieu, que finalizava Joli mois de mai: “As imagens de Maio são você. Não<br />

quero escolher. Vá até o laboratório e tire um minuto a cada dez minutos”. 15 Newsreel foi criada no outono de 1967 por Robert<br />

Kramer, Dan Brown e Robert Lacativa. Entre Nova York e San Francisco, o grupo realiza documentários políticos e filmes de agitação<br />

social, opondo-se ao tratamento das notícias mostradas pela TV americana.<br />

101


O S MURMÚRIO<br />

MURMÚRIOS MURMÚRIO<br />

MURMÚRIO DO DO MUNDO MUNDO<br />

REVOLUÇÕES<br />

são em inglês é feita em 35 mm com o título<br />

The right to speak.<br />

À exceção de filmagens em algumas áreas<br />

industriais em greve em 1969 (Thomson, Rhône-Poulenc,<br />

Solac Thionville…), os esforços do<br />

grupo se concentram na distribuição: produções<br />

internas, de cineastas amigos (Citroën-<br />

Nanterre de Guy Devart e Edouard Hayem,<br />

Oser lutter, oser vaincre de Jean-Pierre Thorn,<br />

Le Cheminot de Fernand Moskowitz…), e filmes<br />

de banc-titre (dispositivo para filmar imagens<br />

fixas ou genéricos) estrangeiros traduzidos.<br />

A atividade, porém continua arcaica e limitada.<br />

Trata-se de uma “difusão física” (levar<br />

o filme à estação de trem, participar da projeção),<br />

dependente de redes paralelas já constituídas.<br />

Neste aspecto, os antigos membros do<br />

ARC fazem sua autocrítica. Ao final de 1968,<br />

ainda que fossem profissionais do cinema, eles<br />

são também, e cada vez mais, militantes. Temendo<br />

uma recuperação “burguesa” e para<br />

conservar sua independência, eles limitaram o<br />

futuro de seus trabalhos proibindo sua promoção<br />

(imprensa e festivais).<br />

Em outros lugares<br />

Em agosto de 1968, as coisas mudam. A<br />

Tchecoeslováquia é invadida pelo Exército Vermelho.<br />

Em janeiro de 1969, uma parte da equipe<br />

(Jean-Denis Bonan, Pierre David e Daniel<br />

Ollivier) dirige-se para Praga.<br />

“Quando tudo aconteceu, observa Pierre<br />

David, ninguém conseguiu recuperar aquela inverossímil<br />

palavra de ordem: ‘só resta reinventar<br />

a vida’. Nos debates, viu-se o retorno de<br />

pessoas que tinham uma prática verdadeira do<br />

discurso político. Fiquei realmente incomodado<br />

quando começaram a me dizer ‘Venha, vou<br />

explicar para você o que é a luta de classes!’”<br />

16 MORIN, Edgar. Mais, éd. Néo, 1988, p. 111.<br />

Edgar Morin escreveu que “a difusão do<br />

marxismo corresponde à degeneração e à fossilização<br />

das idéias de Maio. Isso significa que o<br />

pós-Maio é um curso regressivo onde se degeneram<br />

as idéias regeneradoras e se fossilizam<br />

as idéias primaveris”. 16 No último trimestre de<br />

1969, o grupo se separa. Sem atrito. Para Renan<br />

Pollès, o frágil equilíbrio no qual haviam<br />

apostado os membros da equipe estava em mau<br />

estado: “Havia reuniões das quais todos participavam.<br />

Nessas ocasiões, havia discussões políticas<br />

e discussões práticas. As discussões políticas<br />

não se sobrepunham nunca porque tínhamos<br />

enormes problemas práticos a resolver.<br />

Assim que Maio de 68 passou, a tendência se<br />

inverteu”. Jacques Kébadian acrescenta que “foi<br />

através da ação que o espírito do grupo manteve-se<br />

bastante aberto antes e durante Maio de<br />

68. Após a queda do movimento, houve subitamente<br />

escolhas individuais. Nos demos conta<br />

de que a revolução era possível. Cada um deve<br />

ter dito a si mesmo ‘vou continuar, mas em outro<br />

lugar’. Quando isso foi percebido, houve uma<br />

reação partilhada: tudo que o grupo havia conquistado<br />

permaneceria, fazia parte do movimento<br />

e não pertencia a ninguém em particular. Isso<br />

foi respeitado até hoje. Esses filmes ficaram no<br />

espírito em que foram feitos. Não foram recuperados<br />

por nenhum de nós”.<br />

Esta ruptura consentida é um reflexo da associação.<br />

Alguns voltaram ao cinema ou à televisão.<br />

Outros mantiveram seu compromisso com<br />

o nome do grupo Eugène Varlin, tendo um único<br />

curta-metragem, Albertine ou les souvenirs<br />

parfumés de Marie-Rose (1974). Jacques Kébadian<br />

ingressou num comitê de base de Vive la<br />

révolution! depois se tornou ‘fixo’ na fábrica de<br />

Valentine de Gennevilliers. Michel Andrieu participou<br />

das primeiras experiências de vídeo militante<br />

com Cineastas Revolucionários Proletários.<br />

Em 1973, Jean-Denis Bonan e Mireille Abramovici<br />

fundaram o Cinélutte com seus camara-<br />

das do IDHEC e de Vincennes, 17 coletivo que<br />

deu origem a uma rede dinâmica de produção e<br />

difusão militante (das universidades e das fábricas<br />

ao reconhecimento dos festivais).<br />

Freqüentemente, se reencontraram para trabalhar<br />

juntos em projetos sem que, em momento<br />

algum, surgissem problemas de paternidade.<br />

Em 1978, a experiência anterior chega a uma<br />

conclusão com a apresentação da íntegra de seus<br />

filmes no programa Mai 68 par lui-même, exibido<br />

no cinema Saint-Séverin, em Paris, 18 pelas<br />

Productions de la Lanterne. Uma alternativa e<br />

uma vitória evidentes num momento em que as<br />

imagens de Maio são recuperadas como arquivos<br />

sem jamais terem existido como filmes.<br />

"Onde então está a verdade? De frente ou de<br />

perfil? E antes de mais nada, o que é um objeto?<br />

Talvez seja aquilo que permite unir... passar de um<br />

sujeito a outro, e assim viver em sociedade, estar junto.<br />

Mas então, posto que a relação social é sempre<br />

ambígua, posto que meu pensamento divide tanto<br />

quanto reúne, que minha palavra aproxima pelo que<br />

exprime e isola pelo que se cala, que uma fossa imensa<br />

separa a certeza subjetiva que tenho de mim mesmo<br />

e a verdade objetiva que sou para os outros, posto<br />

que não paro de me sentir culpado enquanto me sinto<br />

inocente... Posto que cada acontecimento transforma<br />

minha vida cotidiana, que fracasso incessantemente<br />

na comunicação, quero dizer em compreender,<br />

amar e me fazer amado, e que cada revés me traz<br />

a solidão... Posto que não posso me extirpar da objetividade<br />

que me esmaga nem da subjetividade que<br />

me exila, posto que não me é possível elevar-me até o<br />

ser, nem cair no nada, é preciso que eu ouça. É preciso<br />

que eu olhe ao meu redor mais do que nunca... O<br />

mundo... Meu semelhante. Meu irmão..."<br />

Jean-Luc Godard,<br />

Deux ou trois choses que je sais d'elle, 1967<br />

O cineasta Jean-Luc Godard e os poetas Alain Jouffroy e Eugène Guillevic, dentre outros, participando da<br />

passeata do Sindicato dos Atores Franceses. Paris, 29/5/1968. Acervo Agence France Presse<br />

17 Ver em CinémAction n. 110, 1 o trim. 2004, entrevista com Richard Copans por Monique Martineau e Valérie Loiseau. 18 Três sessões serão<br />

propostas: “L’imagination et les armes du pouvoir”, “Sous les pavés, la grève” e “L’histoire minutueuse”. Foi nessa ocasião que se apresentou pela<br />

primeira vez o filme de William Klein, Grands soirs et petits matins.<br />

103


A cantora Janis Joplin<br />

no carnaval carioca<br />

e ao fundo, à direita,<br />

o disc-jóquei Big Boy.<br />

Rio de Janeiro, 9/2/1970.<br />

Acervo Correio da Manhã<br />

AN PH/FOT/ 27055(5)


Ilana Feldman Formada em Cinema pela Universidade Federal Fluminense; colaboradora da revista eletrônica Cinestesia; diretora; e<br />

realizadora das mostras “Miragens do sertão” e “A tela aberta – ilusões da democracia”<br />

Depois das revoluções...<br />

“ O único que tem mais ilusões que o sonhador é o homem de ação ”<br />

Oscar Wilde, citado em Antes da Revolução, de Bernardo Bertolucci<br />

Desde a segunda metade do século XX, o cinema<br />

tem-se dedicado a tematizar revoluções<br />

políticas de diversos grupamentos humanos<br />

e nações, respondendo a uma legítima necessidade<br />

de construção de história, memória, povo e<br />

país. Como já escreveu Hobsbawm, se “toda história<br />

é um discurso de exclusão”, ou seja, se todo<br />

discurso histórico é a eleição de uma perspectiva<br />

em detrimento de outras, cabe a cada cineasta,<br />

seja motivado por interesses oficiais ou pessoais,<br />

privilegiar seu ponto de vista, criar imagens para<br />

determinados fatos históricos e, assim, instaurar<br />

suas interpretações. Em Ararat (2002), de Atom<br />

Egoyan, isso é radicalizado. O personagem de um<br />

cineasta armênio, empenhado em mostrar em um<br />

filme o massacre contra seu povo negado pelos<br />

agressores turcos, reinventa o episódio histórico,<br />

permitindo-se liberdades factuais para atender a<br />

sua meta. A arte deixa de representar a história<br />

oficial, nesse caso, e passa a construir uma história<br />

própria, sem compromisso com a objetividade,<br />

mas apenas com a necessidade de um povo.<br />

Nenhum olhar, portanto, é imparcial.<br />

Nietzsche bem nos mostrou, em sua crítica à<br />

“vontade de verdade” ocidental, que “não existem<br />

fatos, só interpretações”. Isso não significa que<br />

todas as interpretações se equivalem, ao contrário,<br />

é preciso avaliá-las constantemente, o que não<br />

quer dizer julgá-las em nome dos “valores superiores”,<br />

da origem moral da noção de verdade, e<br />

sim avaliá-las em nome da vida, à qual nenhum<br />

valor superior se superpõe. Segundo o filósofo, a<br />

vida é em si mesma inocente, tem a inocência do<br />

devir, mas já as interpretações, estas são sempre<br />

interessadas. E os interesses, às vezes, são acima<br />

de tudo manipulações conscientes de transformações<br />

operadas na história, como nos mostra Ararat,<br />

assim como quase todo o cinema de programa<br />

ideológico ou propaganda de Estado. Em um<br />

documentário como O triunfo da vontade (1936),<br />

de Leni Riefenstal, por exemplo, a imagem atende<br />

ao interesse de um partido, o <strong>Nacional</strong>-Socialista,<br />

e modela forma, fatos e contextos para, em<br />

última instância, criar a imagem que Hitler queria<br />

para a Alemanha. Era o que Walter Benjamin 1<br />

chamava de “estetização da política” em detrimento<br />

da “politização da arte” operada pelo cinema<br />

soviético dos anos de 1920, tendo à frente Sergei<br />

Eisenstein e Dziga Vertov. Para Benjamim, só o<br />

regime socialista estaria apto a produzir obras<br />

verdadeiramente revolucionárias, cuja forma e<br />

conteúdo estariam sintonizados com um projeto<br />

de transformação ampla da sociedade. Os soviéticos,<br />

é preciso ressaltar, não fizeram um cinema<br />

revolucionário porque apenas atenderam ao chamado<br />

do Estado, mas porque revolucionaram a<br />

arte mesmo estando a serviço de um programa<br />

político. Ainda hoje permanecem como referências<br />

fundamentais, sobretudo, por suas conquistas<br />

artísticas, tendo introduzido no cinema as primeiras<br />

teorias sobre montagem, herdadas pelo cinema<br />

mundial décadas afora.<br />

Vinculado à postura de Walter Benjamin, em<br />

O que é cinema? (1980), 2 Jean-Claude Bernardet<br />

nos advertia que “o grande capital não financiaria<br />

uma produção que não se enquadrasse nos<br />

seus interesses ideológicos ou financeiros”.<br />

Recolocamos a questão: é possível o grande capital<br />

financiar um filme revolucionário? Mas, o<br />

que é um filme revolucionário? Cidadão Kane<br />

(1941), de Orson Welles, em seu momento histórico,<br />

não foi? Ou a arte revolucionária só é<br />

assim considerada apenas porque está a serviço<br />

de organizações políticas? No plano conceitual,<br />

identificamos um paradoxo. Como se manter em<br />

um projeto de cinema revolucionário quando o<br />

grupo ao qual o cineasta adere assume o poder,<br />

substituindo o programa de transformações radicais<br />

por estratégias de manutenção desse mesmo<br />

poder, por meio de uma arte engajada propagandística?<br />

O cinema revolucionário também<br />

é assim considerado se tem como principal tarefa<br />

perpetuar uma classe ou um grupo no poder?<br />

Isso não seria um cinema conservador?<br />

Revolução: restauração ou transgressão?<br />

O conceito de revolução, como conhecemos<br />

e do qual fazemos uso, tributário da teoria marxista,<br />

tem origens mais remotas, aquém do século<br />

XIX, pelas quais seria interessante de início<br />

caminhar. 3 Cotidianamente, não discordamos<br />

quanto ao fato de que toda revolução é a tentativa,<br />

acompanhada do uso da violência, de uma<br />

subversão total da ordem constituída, por meio<br />

de mudanças profundas nos sistemas político,<br />

social e econômico.<br />

Orson Welles. s.l., 10/1/1965. Acervo Correio da Manhã<br />

1 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política:<br />

ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. 2 BERNADET, Jean-Claude. O que é cinema? São Paulo:<br />

Brasiliense, 1981. 3 Tomo como referência BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Brasília: Ed. UnB, 1997. v. 2.<br />

AN PH/FOT/ 48496(3)<br />

Se foi Karl Marx quem deu a forma completa<br />

e um fim ainda mais grandioso à revolução, laboriosamente<br />

lapidada como instrumento essencial<br />

para a conquista da liberdade – identificada com<br />

o fim da exploração do homem pelo homem e<br />

com a possibilidade de realização de justiça social<br />

–, tal definição, em seu início, era desprovida<br />

de um uso propriamente político. Criada na Renascença,<br />

numa referência ao lento, regular e<br />

cíclico movimento dos astros, no qual um corpo<br />

móvel volta à sua posição inicial, a palavra revolução<br />

indicava que as mudanças políticas não se poderiam<br />

apartar de “leis” universais implícitas.<br />

Foi somente no século XVII que o termo<br />

adquiriu significado político, designando o retorno<br />

a um estado antecedente de coisas, a uma<br />

ordem preestabelecida que foi perturbada. A idéia<br />

de revolução não era, assim, entendida como a<br />

instauração de algo original e inédito, mas, ao<br />

contrário, como uma re-volução a um estado<br />

REVOLUÇÕES<br />

107


... ...<br />

D EPOIS EPOIS DAS DAS REVOLUÇÕES<br />

REVOLUÇÕES...<br />

REVOLUÇÕES<br />

REVOLUÇÕES...<br />

REVOLUÇÕES<br />

justo e ordenado que havia sido perturbado, ou<br />

seja, como restauração. Contudo, foi durante a<br />

Revolução Francesa que se verificou uma mudança<br />

decisiva no significado do conceito de revolução:<br />

de mera restauração de uma ordem perturbada<br />

pelas autoridades, se passou à fé na possibilidade<br />

de criação de uma ordem nova. Sob as<br />

formulações teóricas dos iluministas, a razão se<br />

erguia contra a tradição ao legislar uma constituição<br />

que assegurasse não só a liberdade, mas<br />

trouxesse a idéia de felicidade ao povo.<br />

Podemos dizer que o conceito de revolução,<br />

entendido em sua etimologia e em seu uso original,<br />

é um conceito, enquanto restaurador, também<br />

conservador. E essa associação entre revolução/conservação<br />

é aqui fundamental para pensarmos<br />

uma múltipla gama de filmes sobre revolução,<br />

que fazem de diversas revoluções seus temas,<br />

seus assuntos, seus discursos, mas sempre<br />

na imagem e nunca da imagem. Em oposição a<br />

estes, certamente escassos, estão os filmes propriamente<br />

revolucionários, cujos discursos são<br />

a própria linguagem. Rogério Sganzerla, um dos<br />

nossos grandes inquietos e revoltosos, dizia, apropriando<br />

para o cinema uma famosa frase de<br />

Maiakovski, que “não existe cinema revolucionário<br />

sem forma revolucionária”. Mas o que seria<br />

revolucionário hoje, quando a quase totalidade<br />

de experimentações estéticas já foi incorporada,<br />

estilizada, quando não normatizada? E<br />

qual seria o sentido de revolução depois do fim<br />

da Guerra Fria, das guerras de descolonização,<br />

da revolução sexual e ascensão das democracias<br />

liberais no mundo ocidental? Como não fazer com<br />

que esta palavra soe anacrônica, démodé, quase<br />

arcaizante e esvaziada de seu potencial político?<br />

Como convocar uma revolução no/do presente,<br />

se a própria noção de povo, imprescindível à<br />

revolução, foi também esfacelada? Como pensar<br />

em povo se o alicerce desta categoria, o trabalho,<br />

transformou-se em promessa e deixou de ser<br />

condição? E, por ora, como transformar todas<br />

essas questões em cinema, num cinema cujo<br />

devir seja revolucionário, sem que tal adjetivo<br />

seja minado em sua força instauradora de mundos,<br />

sem que tal adjetivo seja, apenas, nicho de<br />

mercado? E como driblar um mercado internacional<br />

cuja quase totalidade dos filmes simpáticos<br />

às reações populares ou contra a tirania reproduzem<br />

a normatização narrativa do sistema<br />

contra o qual estão se colocando?<br />

Em 1964, Luchino Visconti, de família nobre<br />

e marxista, refletia sobre os impasses de sua<br />

época, ao adaptar para o cinema o romance do<br />

escritor Giuseppi Tomasi de Lampedusa, acerca<br />

do imobilismo nas mudanças políticas durante o<br />

período de unificação italiana. No belíssimo O<br />

Leopardo, dois personagens, Tancredi e seu tio,<br />

o príncipe Fabrizio de Salina, repetem a mesma<br />

frase: “Se queremos que tudo fique como está, é<br />

preciso que tudo mude”. Visconti sabia que o<br />

aburguesamento do país, em meados do século<br />

XIX, não pressupôs o rompimento com a nobreza,<br />

e sim a assimilação dela no novo sistema,<br />

com a absorção de seu status e seus valores. Também<br />

sabia que a frase de Lampedusa tinha duplo<br />

alcance: valia para os anos de 1860, época retratada<br />

no filme, e para os anos de 1964, quando<br />

nada, na configuração político-econômica da Itália,<br />

havia mudado significativamente, apenas os<br />

personagens nos bailes do poder. Também em<br />

Fahrenheit 9/11 (2004), Michael Moore, o polêmico<br />

representante do atual cinema político, também<br />

chamado por alguns de “documentário de<br />

guerrilha”, evoca George Orwell, em 1984: “A<br />

conseqüência de uma guerra é manter intacta sua<br />

estrutura social” ou, ainda, “uma guerra não é<br />

para ser ganha, mas para ser eternizada”. Esta última<br />

assertiva parece refletir sobre a conseqüência<br />

espetacular de um conflito belicoso e sobre o<br />

próprio método do diretor. Como fugir do assédio<br />

de um espetáculo bélico ou de uma representação<br />

espetacular de uma revolução? Michael<br />

Moore, a despeito de sua montagem de eventos<br />

espetaculares, resolve magistralmente a cena do<br />

11 de setembro. Não dá imagem a uma imagemevento<br />

já institucionalizada pelo governo Bush,<br />

em torno da qual se construiu e se legitimou toda<br />

a operação de contra-ataque. No lugar das imagens<br />

dos aviões explodindo nas torres e estas desmoronando<br />

no ar, prefere filmar as pessoas que<br />

ficaram no solo, suas reações às perdas, humani-<br />

zando o atentado que, de outro modo, era visto<br />

apenas sob a ótica do ataque. Esta simples seqüência<br />

é um exemplo de como um novo recorte,<br />

realizado pela transformação de um material<br />

já existente, instaura uma nova forma de percepção<br />

de um evento já tão sedimentado pelas imagens<br />

que nos bombardeiam. Possibilidade e potência<br />

criadora de qualquer cinema colado em seu<br />

momento histórico, cujas questões contemporâneas<br />

entram em conflito, quando não em choque,<br />

com o próprio presente. Porque a revolução, seja<br />

ela de que ordem for, pessoal ou social, só se faz<br />

hoje através do embate e da atualização da memória,<br />

individual ou coletiva, uma memória que se<br />

inscreve na imagem como duração, como tempo<br />

tomando forma e não como metáfora de um passado<br />

arquivado.<br />

Os filmes sobre revoluções, em sua maioria,<br />

trabalham com o tempo histórico e cronológico,<br />

com a reconstituição de época e com idéias de<br />

que as páginas da história já foram viradas e que<br />

o presente vem sempre para corrigir, e não para<br />

problematizar, as ações passadas, evitando que<br />

Revolução dos Cravos: militares e civis<br />

portugueses em frente ao quartel da<br />

Guarda Republicana onde se encontrava<br />

o presidente Marcelo Caetano.<br />

Lisboa, Portugal, 27/4/1974.<br />

Acervo Agence France Presse<br />

se repitam no futuro. São filmes que acreditam<br />

na temporalidade hegeliana e, portanto, na evolução<br />

e totalização da história. Fazendo uso da<br />

mitificação e heroificação de personagens de<br />

outrora, em muitos desses filmes sobre momentos<br />

históricos de transição, de ruptura ou de esfacelamento<br />

de uma ordem asfixiante, enfoca-se<br />

o evento como parte de um processo encerrado<br />

e já arquivado no museu da história, como se a<br />

representação dos fatos fizesse parte de uma realidade<br />

paralela sem conexão com nossos dias.<br />

O olhar é, em geral, de algo já ultrapassado, de<br />

diagnóstico do fracasso travestido de elogio da<br />

reação, com convicção ou populismo, como se<br />

filmar as reações no passado cumprisse um papel<br />

político no presente. Em Diários da motocicleta<br />

(2004), 4 de Walter Salles, temos um caso<br />

exemplar. Ao se filmar episódios de um momento<br />

da juventude de Ernesto Guevara, efetua-se o<br />

elogio da solidariedade e da congratulação entre<br />

os povos latino-americanos, tratando-se as situações<br />

vividas pelo personagem como sementes de<br />

um futuro revolucionário, mas a instância narradora<br />

nos é contemporânea, quando sabemos que<br />

4 EDUARDO, Cléber. Dois cinemas na América Latina – Diários de motocicleta, de Walter Salles e O pântano, de Lucrecia Martel.<br />

Disponível em: http://www.contracampo.he.com.br/60/cienaga-diarios.htm.<br />

109


... ...<br />

D EPOIS EPOIS DAS DAS REVOLUÇÕES<br />

REVOLUÇÕES...<br />

REVOLUÇÕES<br />

REVOLUÇÕES...<br />

REVOLUÇÕES<br />

Cuba se tornou um país isolado no mapa ideológico<br />

e político, portanto, quando já fracassou o<br />

projeto frutificado pelas sementes plantadas durante<br />

a viagem iniciática por parte das entranhas<br />

da América do Sul. Filma-se o primeiro impulso<br />

transformador com a consciência de que as transformações<br />

resultantes desse impulso foram interrompidas.<br />

Com a consciência do fracasso, portanto,<br />

com visão singela, reconfortante, adocicada,<br />

anedótica, mais apaziguadora que contundente.<br />

Ken Loach tem igual tratamento para a Guerra<br />

Civil Espanhola em Terra e liberdade (1995).<br />

Importam menos as condições políticas<br />

motivadoras do conflito e quase só a grandeza<br />

humana do voluntariado de guerra antifascista.<br />

Suspira-se de saudosismo pelos tempos nos quais<br />

o mundo tinha ideologia, mas não se tematizam<br />

as razões e a complexidade do conflito, tampouco<br />

se permite abrir a forma cinematográfica ao confronto.<br />

Também em Capitães de abril (2000) Maria<br />

de Medeiros adota uma visão adocicada e<br />

anedótica da Revolução dos Cravos. Se o filme<br />

promove uma visão lúdica e lírica da Revolução,<br />

menos comprometida com o ideal de verdade e<br />

reconstituição histórica, e mais vinculada a um<br />

olhar infantil, perde sua credibilidade dramática<br />

ao idealizar demais o que seria o povo, tratá-lo<br />

como homogêneo e simplório, como se este fosse<br />

simplesmente massa de manobra, passivo,<br />

desvinculado da instituição de poder e sem nenhuma<br />

adesão ao regime fascista. E hoje? O que o<br />

filme diz sobre o Portugal de hoje? Atende a quais<br />

necessidades contemporâneas? O que mudou, de<br />

fato, e o que permaneceu? Essas perguntas poderiam<br />

ter sido colocadas para todos os filmes que tratam<br />

de revoluções. Afinal, quais são as intenções<br />

de seus diretores ao escolherem determinados recortes?<br />

Vemos que, se as implicações dos movimentos<br />

revolucionários são, contemporaneamente,<br />

um tanto turvas e liquefeitas, as implicações estéticas<br />

e, portanto, políticas dos filmes estão nas evidências.<br />

Em geral, impera conciliação e<br />

reformismo, unidos numa forma, quando não totalmente<br />

burocrática, desprovida de vigor.<br />

5 DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.<br />

Fugindo de temas urgentes, contemporâneos,<br />

sem desfecho já dado, a maior parte dos filmes<br />

de reconstituição histórica cai na principal<br />

armadilha daqueles que acreditam estar<br />

reconstituindo a História: a busca de objetividade<br />

e compromisso com a Verdade. São raras as<br />

empreitadas como as de Elia Suleiman em Intervenção<br />

divina (2002), que, além de romper com<br />

a gramática convencional do cinema político dialogado,<br />

transmitindo o absurdo da panela de<br />

pressão palestina exclusivamente com imagens,<br />

lida com a impossibilidade de uma conclusão para<br />

seu conflito, pois este está em andamento, mas<br />

não abre mão de adotar sua postura pessoal para<br />

o caso Israel-Palestina, chegando a instalar uma<br />

posição nada conciliatória. Para Suleiman, existe<br />

só a sua verdade, baseada na experiência de<br />

vida dos palestinos e dele mesmo, não uma verdade-painel,<br />

de conjuntura, de revelação e<br />

conscientização. O filósofo grego Cornelius<br />

Castoriadis perguntaria: como destruir a pretensão<br />

à cientificidade, último reduto das velhas<br />

opressões que permanece? Também Gilles<br />

Deleuze, 5 herdeiro direto da crítica da verdade<br />

em Nietzsche, para quem “o mundo verdadeiro<br />

não existe e se existisse seria inacessível,<br />

inevocável, e se fosse evocável, seria inútil, supérfluo”,<br />

defendia que a alternativa real/fictício<br />

deveria ser ultrapassada em favor da afirmação<br />

do falso, ou das potências do falso, entendido<br />

não como um erro, uma falha ou uma confusão,<br />

mas como uma potência que torna o verdadeiro<br />

indecidível.<br />

Segundo Deleuze, a potência do falso é o tempo<br />

em pessoa, não porque os conteúdos do tempo<br />

sejam variáveis, mas porque a forma do tempo<br />

como devir põe em questão todo o modelo<br />

formal de verdade. Resulta disso um novo estatuto<br />

de imagem e narrativa. A imagem deixa de<br />

ser regida pelo modelo “imagem-movimento”<br />

(modelo dominante antes da Segunda Guerra,<br />

sustentado por cortes racionais, encadeamentos<br />

e montagem, no qual o tempo deriva do movi-<br />

mento), sujeita a um efeito de verdade, para fazer<br />

parte do regime “imagem-tempo”, sustentado<br />

por cortes irracionais e reencadeamentos, no<br />

qual o movimento deriva do tempo, logo, um<br />

movimento em falso, que substitui o efeito de<br />

verdade pela potência do falso como devir. Assim<br />

também a narração liberta-se da necessidade<br />

de ser verídica, de aspirar a uma verdade<br />

unívoca e universalizante, para se fazer essencialmente<br />

múltipla e falsificante. Elevando o falso<br />

à potência, a vida se liberta tanto das aparências<br />

quanto da verdade. Para Deleuze, esse era o caso<br />

de Orson Welles. Um artista revolucionário pois<br />

criador de verdades, porque “a verdade não tem<br />

que ser encontrada nem reproduzida, ela deve<br />

ser criada”. Desse modo, o que se opõe à ficção<br />

não é o real, não é a verdade que é sempre a dominante,<br />

mas é a função fabuladora. E para que<br />

tal função seja exercida, é preciso que o personagem<br />

seja primeiro real para afirmar a ficção como<br />

potência e não como modelo: é preciso que ele<br />

comece a fabular para se afirmar ainda mais como<br />

real, e não como fictício. O personagem está sempre<br />

se tornando outro, e não é mais separável desse<br />

devir que se confunde com o povo.<br />

Mas, por onde anda “o povo”? Essa entidade,<br />

hoje, tão abstrata e fictícia? Ainda segundo o<br />

filósofo, a primeira grande diferença entre o cinema<br />

clássico e o moderno é que no cinema clássico<br />

o povo estava presente, embora oprimido,<br />

enganado, submetido ou inconsciente. No cinema<br />

americano ou no cinema soviético da primeira<br />

metade do século XX, o povo era, simultaneamente,<br />

real e ideal. Daí a idéia de que o<br />

cinema como arte das massas pudesse ser a arte<br />

revolucionária por excelência, ou democrática,<br />

porque fazia das massas um verdadeiro sujeito.<br />

Mas vários fatores comprometeram essa crença:<br />

o surgimento de Hitler dava como objeto ao cinema<br />

não mais as massas que se tornaram sujeito,<br />

mas as massas assujeitadas; assim como o<br />

stalinismo substituía a unidade dos povos pela<br />

unidade tirânica de um partido. Em suma, para<br />

Deleuze, se houvesse um cinema político moderno,<br />

seria sobre a seguinte base: “o povo já<br />

não existe, ou ainda não existe... o povo está<br />

AN PH/FOT/ 1933(35)<br />

AN PH/FOT/ 1933(2)<br />

As ruas de Dantzig ostentam o aspecto de uma cidade<br />

alemã em 1939. Acervo Correio da Manhã<br />

Jovens alemães. s.l. e s.d. Acervo Correio da Manhã<br />

111


... ...<br />

D EPOIS EPOIS DAS DAS REVOLUÇÕES<br />

REVOLUÇÕES...<br />

REVOLUÇÕES<br />

REVOLUÇÕES...<br />

REVOLUÇÕES<br />

faltando”. Se o cinema já não reivindica a tarefa<br />

de conscientização do povo, vista como equivocada<br />

ou ultrapassada, e se parece não encontrar<br />

outras ferramentas de intervenção social, Deleuze<br />

nos adverte, diante desse impasse, que se ainda<br />

há alguma tomada de consciência possível, esta<br />

é “a tomada de consciência de que não há povo”.<br />

Esta constatação de um povo que falta não é uma<br />

renúncia ao cinema político, mas, ao contrário,<br />

a nova base sobre a qual ele tem de se fundar, no<br />

Terceiro Mundo e nas minorias, como sugere o<br />

filósofo. Porém, tratar-se-ia não de se dirigir a<br />

um povo suposto, já preexistente, e sim de contribuir<br />

para a invenção de um povo, porque o<br />

povo que falta é um devir, ele se inventa, nas<br />

favelas, nos campos ou nos guetos, com novas<br />

condições de luta, para as quais uma arte verdadeiramente<br />

política tem de contribuir. E para<br />

desenvolver tal tarefa, seria preciso que o cinema<br />

exercesse a função de fabulação, em que o<br />

personagem se põe a ficcionar, não cessando de<br />

ultrapassar as fronteiras entre o real e o fictício,<br />

o privado e o político, dando ao falso a potência<br />

de construir uma memória e produzindo, assim,<br />

enunciados coletivos. Também é imprescindível<br />

que o cinema contemporâneo, não conseguindo<br />

se constituir sobre uma possibilidade de evolução<br />

e revolução, como o cinema clássico, tematize suas<br />

impossibilidades, seus impasses, sem poupar-se<br />

da indecidibilidade, do absurdo e do intolerável.<br />

Deleuze chamaria este cinema do intolerável<br />

de “cinema de agitação”, mas uma agitação que<br />

não decorre mais de uma tomada de consciência,<br />

ao contrário, a consciência se dá agora num<br />

vazio, consistindo, antes, em fazer tudo entrar<br />

em transe, o povo e seus senhores, a própria câmera,<br />

em levar tudo à aberração, tanto para pôr<br />

em contato violências quanto para fazer a crítica<br />

do mito, referindo o arcaico ao estado das pulsões<br />

numa sociedade atual. Assim define Terra<br />

em transe (1967) de Glauber Rocha: “O transe,<br />

o fazer entrar em transe é uma transição, passagem<br />

ou devir: é ele quem torna possível o ato de<br />

fala através da ideologia do colonizador, dos<br />

mitos do colonizado, dos discursos do intelectual.<br />

Glauber faz entrar em transe as partes, para<br />

contribuir à invenção de seu povo, que é o único<br />

capacitado a constituir o conjunto”. Mas é<br />

importante ressaltar que esse conjunto é constituído<br />

com base na fragmentação, no estilhaçamento,<br />

o que não quer dizer que o estado de<br />

combustão permanente desse povo seja uma impossibilidade<br />

imobilizante, inversamente, se o<br />

povo falta, se ele se estilhaça em minorias, “sou<br />

eu que sou primeiro um povo”.<br />

Glauber era, ele mesmo, um povo e inventou<br />

muitos povos. Jean-Luc Godard também o<br />

fez e continua fazendo. Em Vento do Leste (1969),<br />

parceria com Jean-Pierre Gorin e outros colaboradores,<br />

sob o grupo Dziga Vertov, uma organização<br />

cinematográfica empenhada em fazer filmes<br />

militantes de esquerda, que se situava contra<br />

o cinema de Hollywood e contra a tradição<br />

eisensteiniana, questionavam-se as formas das<br />

imagens e dos sons, colocando-se num cinema<br />

de encruzilhada. Em dado momento, o próprio<br />

Glauber, convidado a uma participação especial,<br />

posto de braços abertos numa bifurcação do<br />

caminho, é questionado por uma moça grávida:<br />

“Qual o caminho do cinema político?” Ao que<br />

ele responde: “O caminho do cinema de aventura<br />

é pra lá e o caminho do cinema do Terceiro<br />

Mundo, o cinema divino, perigoso e maravilhoso,<br />

é pra cá”. A moça grávida titubeia e segue o<br />

sentido do cinema de aventura... Godard e<br />

Gorin, munidos de ironia, tratavam da impossibilidade<br />

de uma representação revolucionária mediada<br />

pelas convenções ilusionistas da representação<br />

burguesa, tendo como alternativa a autoreferencialidade,<br />

a revelação dos artifícios da encenação,<br />

de modo a cultivar a consciência do<br />

espectador, sem tentar iludi-lo. A questão não<br />

era, assim, a busca de um caminho verdadeiro<br />

para a arte e para o cinema, mas a construção de<br />

um diálogo que poderia ser amarrado a partir de<br />

todo esse questionamento, literalmente, disparado<br />

pela posição de câmera – posicionamento<br />

moral, segundo Godard –, pelas intervenções, en-<br />

6 Entrevista concedida a Jane de Almeida. Folha de S. Paulo, São Paulo, 2 jul. 2004. Caderno Mais!<br />

cenações, ruídos e discursos. Como disse Gorin<br />

em recente entrevista, 6 os cineastas se enquadram<br />

em dois grupos: os do idioma e os da gramática.<br />

Os do idioma tendem a funcionar melhor na estabilidade<br />

das convenções, já os da gramática são<br />

inclinados a interrogá-la. Como diria Deleuze, 7<br />

citando Proust, trata-se de ser estrangeiro em sua<br />

própria língua, estimular uma certa gagueira da<br />

linguagem, questionando as noções correntes e<br />

as imagens e idéias ajustadas.<br />

Questionar é romper. As rupturas dentro da<br />

linguagem artística não estão a serviço de transformações<br />

sociais, não têm tarefas ou funções<br />

fora dos limites da arte, propondo, sobretudo,<br />

uma alteração da percepção de quem a assimila,<br />

alteração essa sempre política e transformadora,<br />

por propor outros estatutos e outros universos<br />

possíveis. Uma arte com obrigações políticas, a<br />

serviço de uma ideologia ou de uma causa, torna-se<br />

programática, um meio de se alterar o mundo,<br />

como um partido político ou um panfleto,<br />

sem necessariamente propor uma forma que, por<br />

sua negação das convenções, altera o olhar do<br />

espectador, mesmo que momentaneamente. Um<br />

cinema revolucionário, de fato, pode ser traçado,<br />

se assim traçar novos percursos, novos circuitos,<br />

se promover curtos-circuitos, se tematizar<br />

e potencializar seus impasses, seus absurdos, seus<br />

intoleráveis. Toda revolução pressupõe uma nova<br />

sociedade, uma nova arte, um novo homem, que<br />

vai se relacionar com o mundo através de uma<br />

nova forma de percepção. Em Antes da Revolução<br />

(1964), de Bernardo Bertolucci, Fabrizio, o<br />

jovem protagonista, dotado de mais lucidez que<br />

fervor revolucionário, nos diz, já apontando para<br />

um antes e um além da revolução: “Não me bastam<br />

os acontecimentos de julho de 60, as revoluções<br />

de um dia, não me bastam as greves, as<br />

agitações sindicais com suas bandeiras vermelhas.<br />

Nem os protestos não me bastam mais.<br />

Quero um homem novo”. Fabrizio é aquele para<br />

quem a vida é o valor que deve estar acima da<br />

violência como método revolucionário, é aquele<br />

para quem o “homem novo” precisa constituir-<br />

7 DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.<br />

AN PH/FOT/ 23731(4)<br />

Godard e Jean Renoir, s.l. 15/3/1968<br />

se na alegria de viver, de certa forma já indicando<br />

a demanda por prazer e contra a repressão<br />

que estaria por vir. Quatro anos mais tarde, em<br />

maio de 68, os situacionistas pichariam num<br />

muro de Paris: “O tédio é anti-revolucionário”.<br />

E anti-revolucionária também é a<br />

institucionalização da rebeldia. Fazendo a ponte<br />

entre a geração dos anos de 1960 e a dos<br />

anos de 1990, O pornógrafo (2002), de Bertrand<br />

Bonello, coloca em foco com contundência a<br />

passagem da geração de seu protagonista, um<br />

cineasta francês de filmes pornô, para a geração<br />

de seu filho, ainda estudante. Em certo momento,<br />

Jean-Pierre Léaud, o cineasta, diz a seu<br />

filho: “Enquanto minha geração ia às ruas lutar<br />

em nome da liberdade e contra a repressão, a<br />

sua vai às ruas reivindicar um lugar social, reivindicar<br />

emprego”. O que era anteriormente um<br />

protesto de contestação torna-se uma manifestação<br />

de pedido de adesão ao sistema. O mesmo<br />

aconteceu com o cinema pornô, antes empregado<br />

como um gesto libertário pelo personagem<br />

de Léaud e por seus companheiros de<br />

geração, e agora incorporado pelo mercado,<br />

tornando-se uma mera atividade de sua sobrevivência.<br />

Apesar da resistência de seus ideais,<br />

agora não mais a serviço de uma transformação<br />

total da sociedade, mas de uma luta pela possibilidade<br />

de ainda resistir à conformidade, a<br />

grande revolução possível, para o personagem<br />

de Jean-Pierre Léaud e para todos nós, é o esforço<br />

em não deixar a rebeldia ser assimilada e<br />

assim se tornar apenas mais uma mercadoria.<br />

113


Revolta dos marinheiros a favor da suspensão das penas disciplinares impostas à Associação dos<br />

Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil. Fotógrafo Décio. Rio de Janeiro, 26/3/1964.<br />

Acervo Correio da Manhã<br />

Mao Tse-Tung com tropa comunista. Pequim, China, janeiro/1949. Acervo Agence France Presse<br />

a<br />

AN PH/FOT/ 5610(37)<br />

Revolução, esse fenômeno recorrente na história da humanidade, implica a<br />

quebra de uma determinada ordem constituída – vista como injusta e opressora<br />

– para, então, abrir caminho, pela violência, a uma nova ordem revolucionária...<br />

A idéia de movimento em direção a um novo início da aventura humana<br />

é o cerne do conceito de revolução e fundamenta o direito de resistência à<br />

opressão, ao despotismo e às estruturas injustas, para consagrar a emancipação<br />

e o triunfo do povo conflagrado. Em princípio, a revolução clama pela<br />

Liberdade, pela Igualdade e Fraternidade para todos, democratizando as estruturas<br />

sociais, políticas e econômicas anteriores. Mas ela mesma poderá (re)criar<br />

a uniformidade, a censura e novas proibições que exalam o ressurgimento de<br />

novas formas de terror e novas estruturas autoritárias… E aí poderá irromper<br />

o ímpeto do início de nova revolução… Os momentos e os processos revolucionários<br />

sempre despertam paixões das massas, criam violências próprias contra<br />

os que detinham o poder da velha ordem, polarizando posições ideológicas e<br />

políticas… Nesse furacão social, como nos exemplos ocorridos na segunda<br />

metade do século XX, as revoluções passaram pelo crivo, pelos flashes e registro<br />

da nova tecnologia, a da máquina fotográfica. A arte – ou o meio de popularizar<br />

a arte – ganha status de prodígio ao recriar pelo instantâneo, pelo enquadramento<br />

rigoroso, pela imagem-denúncia ou pelo instântaneo-de-rua o<br />

poder de testemunhar os episódios humanos e desumanos das revoluções –<br />

antes registrados pela escritura ou pela pintura. Pela comicidade ou pela dramaticidade,<br />

a fotografia é esse olhar mágico que a nova tecnologia, a serviço<br />

da arte, faz com que momentos, processos, panoramas ou ações espetaculares<br />

expressem as Revoluções e, assim, tenhamos a reconstrução de suas histórias e<br />

da sua própria memória social. É essa a principal contribuição que o <strong>Recine</strong>,<br />

tão oportunamente organizado pelo <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> – composta pelo acervo<br />

do combatente jornal Correio da Manhã e pela riqueza da Agência France<br />

Presse –, oferece ao público: é mirar, sorver e aprender como as Revoluções<br />

no século XX tornaram-se realidades imperecíveis pela arte fotográfica.<br />

Clóvis Brigagão<br />

Cientista político e escritor, é diretor-adjunto do Centro de Estudos das Américas,<br />

do Instituto de Humanidades da Universidade Candido Mendes.<br />

REVOLUÇÕES<br />

115


F ALSIFICAÇÕES<br />

ALSIFICAÇÕES<br />

Forças policiais peruanas<br />

vigiando a casa do<br />

embaixador japonês<br />

devido à invasão dos guerrilheiros<br />

do Tupac Amaru.<br />

Lima, Peru, 5/1/1997.<br />

Acervo Agence<br />

France Presse

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