Revista Recine 2004.pmd - Arquivo Nacional
Revista Recine 2004.pmd - Arquivo Nacional
Revista Recine 2004.pmd - Arquivo Nacional
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
<strong>Revista</strong> do Festival Internacional de Cinema de <strong>Arquivo</strong> Ano 1 Nº 1 <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> Setembro de 2004
© 2004 by <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong><br />
Praça da República, 173<br />
CEP 20211-350 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil<br />
Presidente da República<br />
Luiz Inácio Lula da Silva<br />
Ministro-Chefe da Casa Civil da Presidência da República<br />
José Dirceu de Oliveira e Silva<br />
Secretário-Executivo da Casa Civil<br />
da Presidência da República<br />
Swedenberger do Nascimento Barbosa<br />
Diretor-Geral do <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong><br />
Jaime Antunes da Silva<br />
Coordenação Geral de Processamento<br />
e Preservação do Acervo<br />
Mônica Medrado<br />
Coordenação Geral de Divulgação e Acesso<br />
à Informação Documental<br />
Alexandre Manuel Esteves Rodrigues<br />
Editores<br />
Clovis Molinari Jr. e Márcia Mello<br />
Supervisão Editorial<br />
Alba Gisele Gouget<br />
Alzira Reis<br />
Giselle Teixeira<br />
Edição de Texto e Revisão<br />
Alba Gisele Gouget<br />
Projeto Gráfico e Diagramação<br />
Alzira Reis<br />
Capa e Ilustração Primeira Página<br />
Marília Nogueira<br />
Pesquisa de Imagens<br />
Clovis Molinari Jr.<br />
Márcia Mello<br />
Sérgio Lima<br />
Tereza Eleutério de Souza<br />
Tratamento e Digitalização Fotográfica<br />
Mauro Domingues<br />
Fabiana Lopes<br />
Flávio Ferreira<br />
Lucas Molinare<br />
Assistente de Coordenação<br />
Inez Stampa<br />
Haroldo Mescolin Regal<br />
Apoio Administrativo<br />
Janaína Cristina Vilar Elias<br />
Mirian Kaufmann<br />
Sheila Moreira Ceccheitti<br />
Agradecimentos<br />
Agence France Presse<br />
João Luiz Vieira (UFF)<br />
Jurandyr Noronha<br />
Michel Marie<br />
Silvio Tendler<br />
Tempo Glauber Rocha<br />
Apresentação 7<br />
Clovis Molinari Jr.<br />
Nasce uma idéia 12<br />
Boleslaw Matuszewski<br />
Vanguarda revolucionária: Eisenstein, Vertov<br />
e o construtivismo cinematográfico 16<br />
João Luiz Vieira<br />
Cultura Cinematográfica 28<br />
Jean Epstein<br />
Falsificações 32<br />
Marc Ferro<br />
Cinema, história e Marc Ferro 44<br />
Sheila Schvarzman<br />
A história pode ser feita com arquivos fílmicos? 54<br />
Laurent Véray<br />
EZTETYCA DA FOME 66<br />
Glauber Rocha<br />
Jurandyr Noronha, um homem de cinema 70<br />
Mauro Domingues<br />
A reconstrução da memória 72<br />
Silvio Tendler<br />
Filmes de arquivos 82<br />
Yann Beauvais<br />
Os murmúrios do mundo<br />
O Ateliê de Pesquisa Cinematográfica em Maio 68 94<br />
Sébastien Layerle<br />
Depois das revoluções... 106<br />
Ilana Feldman<br />
Luz, câmera, revolução 115<br />
Clóvis Brigagão
Conflito entre<br />
estudantes e policiais<br />
na Avenida Rio Branco.<br />
Rio de Janeiro,<br />
21/6/1968. Acervo<br />
Correio da Manhã<br />
AN PH/FOT/ 229(5)
“ Um jornal ou uma<br />
revista precisa ser<br />
como os gatos,<br />
ter sete vidas;<br />
ou como a chuva<br />
que molha as ruas,<br />
não pode acabar;<br />
ou como a noite<br />
que sempre cai mas<br />
nunca se machuca. ”<br />
A comparação<br />
pode parecer insólita, mas<br />
quem a fez com certeza viveu na carne o<br />
esforço de experimentar a produção editorial pela<br />
sobrevivência do pensamento livre. O tempo da<br />
frase anônima, juntando uma sabedoria aqui<br />
outra ali, era de luta forte, às vezes sangrenta, e<br />
já se passaram mais de vinte anos desde que os<br />
dias de chumbo foram derretidos no Brasil.<br />
A cada periódico que surge, a frase repercute<br />
como uma advertência que enuncia um desejo<br />
e um receio. Neste ano de 2004, junto com o<br />
<strong>Recine</strong> – Festival Internacional de Cinema de<br />
<strong>Arquivo</strong>, realizado desde 2002 no <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>,<br />
esta publicação que acaba de nascer pretende<br />
acompanhar o tema de cada ano do evento cinematográfico,<br />
e reunir textos consistentes de<br />
pensadores cuja criação se mantém em permanente<br />
atividade, com os olhos voltados para a vida<br />
passada em imagens em movimento. Se no primeiro<br />
ano o <strong>Recine</strong> exibiu os filmes mais antigos<br />
do cinema brasileiro; e no segundo remexeu o baú<br />
da censura, agora se volta para as revoluções que<br />
aconteceram na segunda metade do século XX.<br />
Como o tema do <strong>Recine</strong> 2004 são os movimentos<br />
políticos e culturais do pós-guerra, reunimos<br />
nesta edição artigos que contribuem para<br />
o estudo do cinema como fonte de pesquisa e<br />
produção de audiovisual. O cinema nasceu e praticamente<br />
se desenvolveu por todo o século XX, e<br />
a partir dos seus cinqüenta anos já estaria suficientemente<br />
maduro para reconhecer a importância<br />
e seriedade do acervo acumulado. Os arquivos<br />
e cinematecas demoraram muito para se estabelecer.<br />
Mas, quando isso se deu, cresceram as<br />
chances de olhar com uma atenção especial, até<br />
mais de uma vez, para tudo o que se passava na<br />
tela. Então, os filmes já não foram mais vistos<br />
apenas como uma oportunidade de diversão ou<br />
meros exemplares probatórios de um determinado<br />
período ou acontecimento histórico. A visão<br />
imediata deu lugar à compreensão de que<br />
fazer um filme, mesmo uma simples reportagem,<br />
é afirmar um conceito. Sendo assim, os realizadores<br />
dos filmes não são retratistas neutros da<br />
história, mas produtores que manipulam o tempo<br />
e o espaço. E um olhar minucioso iria revelar<br />
mais claramente que os filmes mostram muito<br />
mais do que querem seus realizadores.<br />
Desde que o cameraman polonês Boleslaw<br />
Matuszewski chamou a atenção para o fato de<br />
que as películas cinematográficas necessitavam<br />
ser preservadas e vistas como importantes registros<br />
que favoreceriam o trabalho dos historiadores,<br />
confirmando a compreensão de Jurandyr<br />
Noronha – quando disse que mesmo um<br />
filme de ficção, com o tempo, acaba por se<br />
tornar em documentário –, muitos estudos tiveram<br />
início tendo como base as imagens em<br />
movimento, até então apreciadas apenas pelo<br />
público em sua prática corrente de entretenimento.<br />
Por isso publicamos o manifesto do livreto<br />
de 1898, Une nouvelle source de l’histoire.<br />
Esta edição traz também estudos que datam<br />
de pouco tempo, alguns ainda inéditos,<br />
sobre os filmes de arquivo e sua inesgotável<br />
utilidade como ferramenta. Do cineasta Yann<br />
Beauvais, “Filmes de arquivos”; do realizador<br />
e autor de textos Laurent Véray, “A história<br />
pode ser feita com arquivos fílmicos?”; do cineasta<br />
Silvio Tendler, “A reconstrução da me-<br />
REVOLUÇÕES<br />
7
mória”; e da historiadora Sheila Schvarzman,<br />
“Cinema, história e Marc Ferro”.<br />
Apesar do inquietante peso da dúvida, se efetivamente<br />
seria possível reviver uma experiência<br />
histórica – se alguém seria mesmo capaz de reconstruir<br />
o passado, dado o fato de que estamos<br />
todos submetidos ao presente que sempre se esvai<br />
e, sendo assim, o passado só poderia ser construído<br />
–, os filmes também existem para alimentar<br />
máquinas críticas que reinterpretam o passado<br />
e rompem com a tradição para produzir o<br />
novo. O filme não é uma imagem do mundo,<br />
mas uma imagem do criador de imagens que está<br />
em um determinado mundo. Com essa nova abordagem,<br />
não estamos a assistir à morte do filme,<br />
mas diante de outra maneira de ver. Nesse conceito,<br />
em um filme não há nada para entender,<br />
mas muito por utilizar. Não há nada por interpretar<br />
nem significar, mas muito por experimentar.<br />
Não é por acaso que juntamos nesta edição as<br />
reflexões do historiador francês Marc Ferro, em<br />
uma entrevista que revela as técnicas que podem<br />
falsificar a produção audiovisual, que podem enganar<br />
a compreensão de um espectador ainda entorpecido<br />
pelo espetáculo e acostumado à idéia de<br />
que na tela a vida passa como num espelho que<br />
reflete o mundo, como se as imagens, de tão eloqüentes,<br />
superassem seus próprios inventores.<br />
Ser revolucionário é ser percorrido pela própria<br />
vida, ter um poder idêntico à vida. Se a<br />
vida é um modo de vida, uma revolução é um<br />
movimento para outras maneiras de viver. Isso<br />
também acontece no plano da estética. Assim,<br />
publicamos um capítulo do livro Sprit de cinéma,<br />
de Jean Epstein, no qual ele trata da “Cultura<br />
cinematográfica”, e o estudo do professor João<br />
Luiz Vieira “Vanguarda revolucionária: Eisenstein,<br />
Vertov e o construtivismo cinematográfico”.<br />
As revoluções mais recentes, das quais ainda<br />
se pode sentir o cheiro de pólvora no ar, estão<br />
no manifesto Uma estética da fome, do cineasta<br />
Glauber Rocha e em “Murmúrios do mundo:<br />
o Ateliê de Pesquisa Cinematográfica em<br />
maio de 68”, de Sébastien Layerle, para deixar<br />
também marcada a presença forte da potência<br />
criadora de Jean-Luc Godard.<br />
Mas, nenhuma renovação ou revolução estética<br />
seria fértil para as gerações se não existisse<br />
quem se preocupasse com a preservação. Por isso<br />
a homenagem ao cineasta brasileiro Jurandyr<br />
Noronha é a forma que encontramos de fazer<br />
justiça à memória, e demonstrar como uma vida<br />
pode realizar o que há de melhor para não cair<br />
no abismo, levantar a cabeça e ver como funcionam<br />
o cinema e a história. O artigo de Ilana<br />
Feldman, “Depois das revoluções...”, é um levantamento<br />
dessas possibilidades. Com tanto<br />
esforço, gente e talento, o cinema perdeu seu<br />
antigo rosto de fotografias vivas e indiscutíveis,<br />
para dar por iniciada a construção de um novo<br />
corpo e uma nova aventura.<br />
Os trabalhos aqui reunidos podem concorrer<br />
para o acompanhamento das fotos expostas e dos<br />
filmes exibidos, em sessões de longas e curtasmetragens,<br />
dentro do <strong>Recine</strong> 2004. O mundo na<br />
segunda metade do século XX assistiu a muitos<br />
filmes, enquanto os acontecimentos sociais eclodiam<br />
por toda parte. Na França, o fluxo desordenado<br />
do maio de 68 colocou em xeque o status<br />
quo, apenas com pedras nas mãos. No Vietnã,<br />
um povo nu resistiu, como num grande épico, a<br />
um gigante com roupas e armas avançadas. Em<br />
Portugal, uma ditadura desmoronou, repercutindo<br />
nas colônias da África. No Chile, um governo<br />
popular e poético caiu pela força das armas. Nos<br />
Estados Unidos, jovens abandonaram a família<br />
nuclear e dançaram na eletricidade da fumaça e<br />
na chuva ácida do rock and roll. Na Irlanda e na<br />
Espanha, grupos separatistas explodiram teimosamente<br />
suas fúrias. Na China, uma revolução pela<br />
primeira vez foi chamada de cultural. O Muro de<br />
Berlim desabou sobre as duas Alemanhas, enquanto<br />
as repúblicas soviéticas se desgarravam de uma<br />
grande célula de ferro. No Oriente Médio, a Guerra<br />
dos Seis Dias veio para nunca mais acabar,<br />
mudando de tempos em tempos o território do<br />
terror. A Primavera de Praga passou como uma<br />
breve estação da liberdade, no enigmático ano de<br />
1968. Não foi assim tão passageira uma das cora-<br />
josas revoluções latino-americanas, que mexeu<br />
com vara curta a grande fera do maior dos impérios<br />
capitalistas. O mundo ficou ameaçado de<br />
acabar sob bombas atômicas e esse medo foi chamado<br />
de Guerra Fria. Os astronautas chegaram à<br />
lua, os estudantes e operários foram à luta, artistas<br />
livres romperam com tudo que era convencional:<br />
o segundo ato do século XX foi de arrepiar!<br />
A história vê o cinema, o cinema vê a história.<br />
Esse é o sentido do <strong>Recine</strong>, o evento e a<br />
revista. Pensar o cinema em suas imbricações<br />
com a história parece redundância, pois o cinema<br />
está sempre na história. O cinema faz e revisita<br />
a história, nutre-se de estórias, constrói a<br />
história, ainda que iludido muitas vezes pela inclinação<br />
de querer encontrar uma verdade. E<br />
dentro da história, dentro do cinema, ali estão<br />
as revoluções. As revoltas, as conflagrações, as<br />
sublevações, as transgressões, as transformações<br />
radicais, suas tentativas e oposição.<br />
Uma revolução pode ser armada ou desarmada,<br />
pode acontecer em minutos ou séculos, mas<br />
sempre compreenderá um salto: a efetiva instalação<br />
do novo e, por conseqüência, a deflagração de<br />
uma série de novas relações. Uma revolução pode<br />
acontecer na explosão de uma estrela nova; num só<br />
planeta ou em suas sociedades; em grupos menores<br />
ou maiores, e até na solidão da vida de um<br />
corpo em sua infinita multiplicidade.<br />
Poderemos ver nos filmes e nas fotos, que nas<br />
revoluções e contra-revoluções existiram sempre<br />
alguns personagens recorrentes que nunca estiveram<br />
ali por acaso: o militar, o sacerdote, o legislador,<br />
o político, o subversivo, o artista, o anônimo.<br />
A revolução é uma contenda, um intenso e<br />
violento debate físico e de idéias, embora em todos<br />
os planos venham a ocorrer golpes e contragolpes;<br />
isto é, uma ruptura de encadeamentos que<br />
traz a derrota, porque também faz parte do plano<br />
o fracasso. De insucesso em insucesso, mesmo<br />
assim, as revoluções não param de acontecer.<br />
Por isso as revoluções assustam aos que temem<br />
as marolas vibrantes da vida. Não foram raras<br />
e nem foi a última vez na história que alguém se<br />
antecipou para dizer: “Antes que os revolucionários<br />
façam a revolução, façamo-la nós!” Existem<br />
falsas mudanças que se realizam para impedir verdadeiras<br />
mudanças. Há um medo espreitando as<br />
revoluções. Um povo invadido, um filho rebelde,<br />
um vizinho tresloucado, um professor irreverente,<br />
um pensamento diferente. É dessas incríveis<br />
combinações que deriva o desejo de revolver.<br />
Por isso a idéia de revolução nunca envelhece,<br />
e nem os revolucionários que se mantêm vivos na<br />
ebulição de cada dia. Sempre existirá alguém que<br />
se levantará na noite sombria das assembléias, secretas<br />
ou não, para dizer: “Não estou de acordo!”<br />
Mas, quem tem medo do novo? O que é o novo?<br />
Teria sido revolucionário o que vimos nos últimos<br />
cinqüenta anos? O que temos visto? Somos verdadeiramente<br />
capazes de ver? O <strong>Recine</strong> 2004 é uma<br />
verificação, através das imagens, das chamadas revoluções<br />
contemporâneas. As agitadas e necessárias;<br />
heróicas e equivocadas; corajosas e arriscadas<br />
lutas que varreram da face da terra milhares de<br />
vidas, se pensarmos apenas nos acontecimentos da<br />
segunda metade do século XX. Uma sucessão de<br />
imagens e pensamentos sobre esse período – Meio<br />
Século de Revoluções – nos levará a tomar contato<br />
com experiências bastante recentes. Como, por<br />
exemplo, a construção e desconstrução do socialismo;<br />
a difícil e custosa batalha contra o imperialismo<br />
econômico e cultural; o agitado inconformismo<br />
contra a fome e as ditaduras, fossem elas capitalistas<br />
ou comunistas, na América, Ásia e Europa.<br />
Todas essas interrogações estão postas nesta<br />
publicação que se inicia e dialoga com a programação<br />
do <strong>Recine</strong> 2004. Ao tomar a revolução<br />
como tema, convidamos o Cinema e a História,<br />
os que fazem história e cinema, os que falam de<br />
cinema e de história; os que ainda encontram<br />
forças revolucionárias para ver filmes, mudar a<br />
história e conquistar a Vida.<br />
Clovis Molinari Jr.<br />
Coordenação de Documentos Audiovisuais<br />
e Cartográficos do <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> do Brasil<br />
REVOLUÇÕES<br />
9
Comício pelas reformas<br />
de base na Central do<br />
Brasil. Rio de Janeiro,<br />
13/3/1964. Acervo<br />
Agência <strong>Nacional</strong> AN EM / COC - P / 8001 (14)
Boleslaw Matuszewski Cameraman polonês, empregado da Lumière, propôs a criação do Depósito Cinematográfico Histórico,<br />
assim reconhecendo a significação de preservar o material filmado para a posteridade.<br />
Nasce uma idéia 1<br />
O filme<br />
cinematográfico, em que de mil fotos<br />
se compõe uma cena e que, passado entre<br />
um foco luminoso e uma tela branca, faz se<br />
erguerem e andarem os mortos e os ausentes,<br />
essa simples fita de celulóide impressionada constitui<br />
não só um documento histórico, mas uma<br />
parcela da história, e da história que não desapareceu,<br />
que não precisa de um gênio para ser<br />
ressuscitada. Está aí apenas adormecida, e como<br />
aqueles organismos elementares que, vivendo uma<br />
vida latente, reanimam-se após alguns anos, com<br />
um pouco de calor e umidade, só necessita, para<br />
acordar e viver novamente as horas do passado,<br />
de um pouco de luz que atravesse uma lente no<br />
seio da escuridão!...<br />
Trata-se de dar a essa fonte talvez privilegiada<br />
da história a mesma autoridade, a mesma<br />
existência oficial, o mesmo acesso que aos outros<br />
arquivos já conhecidos...<br />
Bastará dotar as fitas cinematográficas<br />
que tiverem um caráter histórico de uma<br />
seção de museu, de uma prateleira de biblioteca,<br />
de um armário de arquivo. O<br />
depósito oficial será feito na Biblioteca<br />
<strong>Nacional</strong>, ou na do Instituto, sob a<br />
guarda de uma das academias que se<br />
ocupam de história, ou no <strong>Arquivo</strong>, ou ainda no<br />
Museu de Versalhes. Vamos escolher e decidir.<br />
Uma vez realizada a fundação, as remessas gratuitas<br />
ou mesmo pagas não deixarão de chegar.<br />
O preço do aparelho de filmagem, assim como o<br />
dos filmes cinematográficos, muito alto nos primeiros<br />
dias, diminui rapidamente e tende a cair<br />
ao alcance dos simples amadores da fotografia.<br />
Muitos deles, sem contar os profissionais, começam<br />
a se interessar pela aplicação cinematográfica<br />
dessa arte e só desejam contribuir para a<br />
constituição da história. Os que não trouxerem<br />
sua coleção voluntariamente nos deixarão o legado.<br />
Um comitê competente receberá e separará<br />
os documentos propostos, depois de ter apreciado<br />
o seu valor histórico. Os rolos negativos<br />
aceitos serão lacrados em estojos, etiquetados,<br />
catalogados; serão os tipos em que não se tocará.<br />
O mesmo comitê decidirá das condições de<br />
acesso aos positivos e deixará em reserva aqueles<br />
que, por questões de conveniência particular,<br />
só poderão estar liberados para o público<br />
depois de decorridos alguns anos. Faz-se a mesma<br />
coisa em alguns arquivos. Um conservador do<br />
estabelecimento escolhido terá a seu cargo a guarda<br />
dessa coleção nova, pouco numerosa a princípio,<br />
e fundar-se-á uma instituição futura. Paris<br />
terá seu Depósito de Cinematografia Histórica.<br />
1 Este texto foi extraído de Une nouvelle source de l’historie (création d’un dépôt de cinématographie historique). Brochura<br />
publicada em Paris, em março de 1898, na qual Boleslaw Matuszewski lançou pioneiramente a idéia de criar arquivos de cinema.<br />
Publicado em Correio da Unesco, ano 12, n. 10, out. 1984. Tradução de Eliane Zagury<br />
Ilustração extraída do jornal<br />
La Cinémathèque Française, nº 6,<br />
fevereiro de 1986<br />
REVOLUÇÕES<br />
13
Comício pelas reformas<br />
de base na Central do<br />
Brasil. Rio de Janeiro,<br />
13/3/1964. Acervo<br />
Agência <strong>Nacional</strong> AN EM / COC - P / 8001 (42)
João Luiz Vieira Doutor em Estudos Cinematográficos pela New York University. Crítico, pesquisador e professor do Departamento<br />
de Cinema e Vídeo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Imagem e Informação da Universidade Federal Fluminense.<br />
Vanguarda revolucionária:<br />
Eisenstein, Vertov<br />
e o construtivismo cinematográfico<br />
In Mount, Christopher. Stenberg brothers: constructing a revolution in soviet design. New York: The Museum of Modern Art, 1997<br />
Cartaz do filme O homem da câmera<br />
(1929), criação dos irmãos Vladimir<br />
e Georgi Stenberg<br />
O<br />
termo vanguarda, no âmbito do cinema,<br />
refere-se diretamente à tradição de seu uso<br />
a partir da avant-garde francesa, conforme testemunhamos<br />
já no final da primeira década do século<br />
XX e, com toda a força, na década seguinte.<br />
De forma mais abrangente, a avant-garde referese<br />
ao conjunto de movimentos artísticos de radical<br />
renovação e profunda ruptura com o passado,<br />
movimentos esses iniciados ainda na primeira metade<br />
do século XIX, que, conforme expõe Linda<br />
Nochlin, vão equacionar arte revolucionária com<br />
uma política também revolucionária depois dos<br />
eventos de 1848 na França. 1 No caso do cinema,<br />
entretanto, esse impulso vanguardista ganhou contornos<br />
diferentes, visto que a mobilização não só<br />
era voltada para o então presente da forma cinematográfica<br />
como, surpreendentemente, para seu<br />
próprio futuro. Mal soavam as trombetas do futurismo<br />
italiano, já se configurava uma forma específica<br />
de representação de imagens em movimento.<br />
Tal forma, que vinha se esboçando desde o<br />
limiar do registro das imagens em movimento,<br />
talvez pela própria natureza mimética da imagem<br />
fotográfica e seu poder de copiar “fielmente” a<br />
realidade, foi ganhando um contorno que, aliado<br />
à herança de formas narrativas anteriores – em<br />
especial o teatro e o romance do século XIX –,<br />
acabou por definir um rumo mais ou menos único<br />
para o cinema. Identificado com o cinema narrativo,<br />
clássico, cuja matriz é Hollywood, essa forma<br />
dominante, esse modo institucional de representação<br />
era calcado na orientação psicológica dos<br />
personagens, centrados, por sua vez, na busca de<br />
uma continuidade narrativa encontrada na lógica<br />
1 NOCHLIN, Linda. The invention of the avant-garde: France, 1830-80. In: HESS, Thomas e ASHBERRY, John. Avant-garde<br />
art. New York: MacMillan, 1968. p. 3-24.<br />
Este ensaio é resultado de pesquisas e anotações de aula dos cursos Cinema soviético, O cinema de Eisenstein e Vertov e a avant-garde<br />
realizados durante o meu doutorado na New York University, oferecidos pela professora Annette Michelson, e também de muitas conversas<br />
informais com o professor Jay Leyda. A eles – Jay Leyda, in memoriam, pelo rigor dos debates, inspirada interlocução e pela amizade,<br />
dedico este texto.<br />
da causa e efeito. Buscava-se o efeito naturalista<br />
em consonância com as tradições da forma linear<br />
e do espaço ilusionista.<br />
Por outro lado, enquanto essa forma hegemônica<br />
se configurava como regime narrativo dominante,<br />
começavam a surgir reações ligadas a<br />
outras manifestações artísticas como as artes plásticas,<br />
a literatura, a poesia, a música e a arquitetura,<br />
que colocavam em xeque esse modo de representação.<br />
É Fernand Léger, em Funções da pintura,<br />
quem parece ter esboçado uma definição<br />
bastante particular daquilo que veio a se compreender<br />
como cinema de vanguarda. Diz ele que<br />
“[...] a história dos filmes de vanguarda é muito<br />
simples. É uma reação direta contra os filmes de roteiro<br />
e o estrelismo. É a fantasia e o jogo indo de encontro à<br />
ordem comercial dos outros. E isto não é tudo: é a<br />
revanche dos pintores e dos poetas. Numa arte como<br />
esta, onde a imagem deve ser tudo, há que se defender<br />
e provar que as artes da imaginação, relegadas a meros<br />
acessórios, poderiam, sozinhas, por seus próprios meios,<br />
construir filmes sem roteiro, considerando a imagem<br />
móvel como personagem principal”. 2<br />
Léger, por ser fundamentalmente um artista<br />
plástico, trouxe uma interpretação bastante pessoal<br />
para uma forma de expressão do cinema da avantgarde,<br />
ou seja, aquela mais ligada diretamente às<br />
funções pictóricas da imagem em movimento e suas<br />
qualidades gráfico-plásticas. A formulação de Léger,<br />
2 LÉGER, Fernand. Funções da pintura. São Paulo: Estúdio Nobel, 1990.<br />
pensada mais como uma maneira de romper com<br />
os limites da própria pintura, encontrará ressonância<br />
em artistas tão singulares e diferentes quanto,<br />
por exemplo, Francis Picabia, Marcel Duchamp,<br />
Man Ray, Moholy-Nagy e Salvador Dali.<br />
Ainda na década de 1910, período-chave para<br />
a configuração dos contornos gerais do cinema<br />
dominante clássico e logo após o período de formação<br />
na produtora American Biograph, levada a<br />
cabo por David Wark Griffith entre 1908 e 1913,<br />
surgem duas reações alternativas para o paradigma<br />
hegemônico. Em 1916, enquanto Hollywood<br />
estreava Intolerância, seu mais ambicioso projeto<br />
cinematográfico até então, na Europa era lançado<br />
o manifesto do cinema futurista, ligado à literatura<br />
e à poesia, enfatizando a vertigem da vida urbana<br />
moderna ao consagrar a máquina como quintessência<br />
do futuro. Muito mais retórico do que<br />
efetivamente prático – só um filme chegou a ser<br />
feito dentro desses parâmetros, Vita futurista, de<br />
Arnaldo Ginna, nesse mesmo ano de 1916 –, o<br />
manifesto promovia o ritmo e a rapidez dos novos<br />
tempos, antecipando, de uma certa maneira, o investimento<br />
efetuado na montagem pelos soviéticos<br />
durante os primeiros anos da década seguinte.<br />
Na Alemanha, agora vinculado mais às artes<br />
plásticas e à arquitetura, o expressionismo também<br />
reagia contra a ditadura da chamada “vocação<br />
natural” do cinema para o naturalismo, radicalizando<br />
a realidade pró-fílmica como forma<br />
de compensar o determinismo mimético fotográfico<br />
presente no aparato ótico de registro. Já<br />
REVOLUÇÕES<br />
17
: E<br />
, V<br />
V ANGUARDA<br />
ANGUARDA ANGUARDA REVOLUCIONÁRIA<br />
REVOLUCIONÁRIA: REVOLUCIONÁRIA : EEISENSTEIN<br />
E ISENSTEIN<br />
ISENSTEIN, ISENSTEIN , VVERTOV<br />
V ERTOV E O CONSTRUTIVISMO CONSTRUTIVISMO CINEMATOGRÁFICO CINEMATOGRÁFICO<br />
REVOLUÇÕES<br />
que não se poderia, àquela altura, alterar a configuração<br />
ótica que produzia um olhar naturalista,<br />
que se alterasse, então, tudo o que existia à<br />
frente das câmeras. Cenários, iluminação, vestuário,<br />
interpretação e movimentação de atores<br />
são investidos de uma radical estilização, criando-se<br />
um visual único, que, anos mais tarde, entre<br />
outros frutos, serviu de inspiração para os fotógrafos<br />
e diretores do film noir norte-americano.<br />
Com o início da década de 1920, outras possibilidades<br />
foram sucessivamente experimentadas,<br />
sobretudo na França. Analogias com a música, a<br />
poesia e o sonho foram articuladas dentro de princípios<br />
mais ou menos comuns. O surrealismo, por<br />
exemplo, ao procurar paralelos entre a visão fílmica<br />
e os mecanismos do inconsciente, capazes<br />
de produzir condensações e deslocamentos, contribuiu<br />
para subverter a noção tradicional do tempo<br />
e espaço e da linearidade entre causa e efeito<br />
defendida pelo cinema dominante. É essa vertente,<br />
por exemplo, que vai influenciar a primeira<br />
geração de realizadores norte-americanos que deslancharam<br />
o New American Cinema no início da<br />
década de 1940, nos trabalhos pioneiros de Maya<br />
Deren, Kenneth Anger e Jonas Mekas.<br />
In Gray, Camilla, The russian experiment<br />
in art: 1863-1922. New York: Harry Abrams, 1971<br />
Essa busca e necessidade de experimentação,<br />
de procurar alternativas para a já então inevitável<br />
consagração de um modo único de se fazer e<br />
consumir cinema, encontraram seu campo mais<br />
fértil na União Soviética nos primeiros anos da<br />
Revolução de Outubro. É Alexei Gan, teórico<br />
influente desses primeiros tempos, quem explica:<br />
“Não podemos nos esquecer de que nossa sociedade<br />
atual é de transição, do capitalismo para o comunismo,<br />
e que o construtivismo não pode ser dissociado da<br />
base, isto é, da realidade econômica de nossa atual sociedade;<br />
os construtivistas consideram sua única escola a<br />
realidade prática do sistema soviético, no qual são desenvolvidos<br />
experimentos sem fim, de forma incansável<br />
e persistente”. 3<br />
Esse cinema, em sua prática – e como qualquer<br />
outro –, só pode ser mais bem compreendido<br />
quando colocado dentro do contexto geral<br />
histórico, sociopolítico e econômico do qual se<br />
originou. Cineastas soviéticos, conforme sabemos,<br />
atuaram num momento histórico decisivo<br />
para o século XX. Portanto, enquanto membros<br />
Cenografia desenhada por Varvara Stepanova para a peça A morte de Tarelkin,<br />
produção de Meyerhold, Moscou, 1922<br />
3 GAN, Alexei. Constructivism. In: BANN, Stephen (ed.). The tradition of constructivism. New York: Viking, 1974, p. 40.<br />
de uma vanguarda artística, cineastas como Serguei<br />
Eisenstein, Dziga Vertov, Ester Schub, entre<br />
outros, desempenharam seus papéis de forma<br />
análoga à vanguarda política de seu país. Cada<br />
um, dentro de perspectivas particulares, desenvolveu<br />
uma prática cinematográfica de acordo com<br />
as novas necessidades revolucionárias exigidas de<br />
qualquer trabalhador seriamente engajado na construção<br />
do então novo estado socialista.<br />
Aqui, a idéia de construção deixa de ser apenas<br />
um mero recurso retórico para se transformar<br />
num projeto maior, incluindo o movimento<br />
estético que moldou a nova cultura soviética durante<br />
os anos 20. As diversas artes, tais como a<br />
pintura, escultura, arquitetura, teatro, desenho<br />
industrial e cinema, possuíam um idioma comum<br />
que refletia a necessidade de reconstrução do todo<br />
do organismo social, estabelecendo um forte<br />
equilíbrio entre arte e sociedade, que fez dos anos<br />
20 na União Soviética um momento privilegiado<br />
da história da cultura do século XX.<br />
Com o objetivo de entender melhor os aspectos<br />
mais salientes da prática cinematográfica soviética<br />
enquanto articulação do projeto geral construtivista,<br />
é necessário ter-se em mente que, em<br />
consonância com outros movimentos de vanguarda<br />
que o precederam, as noções prévias de arte<br />
foram rejeitadas ao se estabelecerem novos papéis<br />
para o artista e para o objeto de arte. A articulação<br />
daquele projeto cultural originava-se dentro dos novos<br />
parâmetros socioeconômicos mais amplos possibilitados<br />
pela Revolução de Outubro, que, sob<br />
condições muito especiais, permitiram a convergência<br />
de objetivos práticos e criativos. Em manifesto<br />
publicado em 1922, intitulado Construtivismo,<br />
Alexei Gan já declarava guerra à arte. Tal atitude<br />
não era de forma alguma inédita, especialmente<br />
durante a segunda metade da década anterior,<br />
como já vimos, rica numa profusão de manifestos<br />
propondo novos objetivos para a arte, de<br />
acordo com agendas variadas e muito específicas.<br />
Nas palavras de Gan, porém, o ataque ao conceito<br />
de arte ganhava uma perspectiva diferente, clara-<br />
mente animada pelas condições sociais ditadas pelo<br />
pensamento marxista revolucionário. Em franca<br />
oposição à noção de arte como mera expressão isolada,<br />
romântica, individual, natural e emocional –<br />
indissoluvelmente ligada à teologia, à metafísica e<br />
ao misticismo –, a polêmica diatribe de Gan, conforme<br />
sua definição, propunha a expressão comunista<br />
das construções materiais, do trabalho artístico<br />
organizado, pertinente à nova era industrial.<br />
“A arte está morta... Arte e religião são atividades<br />
escapistas, portanto perigosas... Vamos acabar com a nossa<br />
atividade especulativa (pintar quadros) e assumir as bases<br />
saudáveis da arte – cor, linha, formas e materiais –<br />
no campo da realidade, da construção prática.” 4<br />
Dois anos antes do manifesto de Gan, Alexander<br />
Rodchenko e sua mulher, a pintora e artista<br />
gráfica Varvara Stepanova, publicaram o programa<br />
do grupo produtivista, uma outra instância do<br />
impulso construtivista em que a influência do pensamento<br />
marxista – em especial da primeira parte<br />
de A ideologia alemã (1845) – é seminal. Com os<br />
produtivistas, formula-se um postulado que afirma<br />
o conhecimento e a percepção das tentativas<br />
experimentais dos soviéticos como resultado de<br />
um transplante das atividades experimentais do<br />
abstrato (transcendental) para o real. 5 A tarefa exigida<br />
por aquele novo posicionamento implicava,<br />
entre outras coisas, a participação real da produção<br />
intelectual como elemento importante na construção<br />
da nova cultura comunista. Isto significou,<br />
principalmente, um contato direto com todos os<br />
centros produtivos e órgãos principais do mecanismo<br />
soviético unificado, que tornou possível,<br />
na prática, novas formas de vivência e experiência.<br />
A ordem, então, era sair para as ruas, para as<br />
fábricas, únicos locais onde os artistas poderiam<br />
reformular os conceitos materialistas e realizá-los<br />
na vida prática, sintetizando as idéias de Marx<br />
referentes aos cientistas, ou seja, os artistas, nas<br />
mais variadas formas, têm interpretado o mundo,<br />
mas sua tarefa é transformá-lo.<br />
4 Idem. 5 RODCHENKO, Alexei e STEPANOVA, Varvara. Program of the productivist group. In: The tradition of constructivism, p. 19.<br />
19
: E<br />
, V<br />
V ANGUARDA<br />
ANGUARDA ANGUARDA REVOLUCIONÁRIA<br />
REVOLUCIONÁRIA: REVOLUCIONÁRIA : EEISENSTEIN<br />
E ISENSTEIN<br />
ISENSTEIN, ISENSTEIN , VVERTOV<br />
V ERTOV E O CONSTRUTIVISMO CONSTRUTIVISMO CINEMATOGRÁFICO CINEMATOGRÁFICO<br />
REVOLUÇÕES<br />
Bule de chá desenhado por Kasimir<br />
Malevich em 1920 para a Cerâmica do<br />
Estado, Leningrado<br />
In Gray, Camilla, op. cit.<br />
In Gray, Camilla, op. cit.<br />
Capa de Construtivista, revista internacional<br />
de artes, desenhada por El Lissitzky e<br />
editada, em Berlim, em 1922<br />
A ênfase na produção e na produtividade encontrava-se<br />
profundamente enraizada na determinação<br />
geral que caracteriza a primeira década da<br />
então nova sociedade soviética. A construção do<br />
socialismo passava pela reconstrução da economia<br />
e da indústria, profundamente abaladas desde<br />
a I Guerra Mundial. De uma maneira geral,<br />
essa tarefa implicava um competente planejamento<br />
e administração da modernização econômica,<br />
através de um processo de industrialização em que<br />
as máquinas desempenhariam um papel fundamental.<br />
O país precisava desesperadamente satisfazer<br />
três condições básicas que levariam à recuperação<br />
econômica, a saber: a necessidade de energia<br />
elétrica – cujo projeto principal seria a construção<br />
da hidrelétrica de Dnieprostroi; a construção<br />
de estradas de ferro – o projeto Turksib seria a<br />
meta principal, pois possibilitaria levar cereais do<br />
norte para as regiões algodoeiras da Ásia Central;<br />
e a mecanização da agricultura com a construção<br />
da fábrica de tratores de Stalingrado. Foi emoldurado<br />
dentro desse panorama geral que se desenvolveu<br />
o trabalho cultural, e artistas, escritores e<br />
cineastas, num esforço inédito e coletivo, dirigiram<br />
suas atenções e energias para a construção da<br />
então nova sociedade.<br />
Na medida em que qualquer processo de desenvolvimento<br />
econômico e social necessita de<br />
graus extremos de organização e planejamento,<br />
o mesmo acontece com as formas culturais, e o<br />
conceito de arte seria, rapidamente, amalgamado<br />
às idéias de produção e utilitarismo. O papel<br />
do artista ganha novos contornos com a idéia de<br />
um “artista-engenheiro”, sublinhando a nova síntese<br />
entre arte e tecnologia. A preocupação com<br />
formas e materiais – exemplos claros no trabalho<br />
de Vladimir Tatlin e de Rodchenko – ligava-se<br />
diretamente à indústria e os artistas tornavam-se<br />
técnicos, aprendendo a usar ferramentas e materiais<br />
da produção moderna com o objetivo de<br />
canalizar todas as energias em benefício do proletariado.<br />
Esta era a função da arte, almejada pela<br />
nova cultura revolucionária. Alexei Gan diria:<br />
“nada ao acaso, não calculado, partindo de um<br />
gosto cego, e de uma arbitrariedade estética. Tudo<br />
deve ser tecnicamente e funcionalmente dirigido”. 6<br />
In Gray, Camilla, op. cit.<br />
Os grandiosos cenários construtivistas<br />
concebidos por Alexandra Exter e Isaac<br />
Rabinovich para o filme Aelita (1924)<br />
Por meio da liderança iluminada de Anatoli<br />
Lunacharsky, Comissário do Povo para a Educação,<br />
no período compreendido entre 1918 e<br />
1929, o novo sistema político e social continuamente<br />
confrontava artistas com esse novo papel<br />
para a arte. As ruas são os nossos museus,<br />
arte dentro da vida e arte para as massas tornaram-se<br />
os slogans principais adotados por artistas<br />
que trabalharam materiais diferentes tirados<br />
de setores diversos da produção industrial, tais<br />
como ferro, vidro, metal ou madeira. Voltando-se<br />
para outros domínios da vida em que a<br />
síntese entre arte e tecnologia tornava-se mais<br />
palpável, artistas como Varvara Stepanova e Liubov<br />
Popova preocupavam-se com aspectos práticos<br />
e industriais como, na área têxtil, a estamparia<br />
de tecidos, enquanto outros, como<br />
Rodchenko ou os irmãos Vladimir e Georgii<br />
Stenberg, criavam cartazes de propaganda e trabalhavam<br />
com fotografia, fotomontagem e ti-<br />
pografia. Kasimir Malevich, além de ser o<br />
mestre do suprematismo, desenhava peças de<br />
porcelana enquanto os irmãos Stenberg logo<br />
se especializaram no design de cartazes para<br />
filmes. Foi o trabalho conjunto desse grupo<br />
de artistas que lançou os fundamentos do moderno<br />
desenho industrial e gráfico, provocando<br />
um impacto forte e decisivo no desenvolvimento<br />
de uma tipografia européia nos anos de<br />
1920, com ressonâncias até os nossos dias.<br />
Grandes áreas chapadas de cor sob formas geométricas<br />
básicas, a imagem agressiva e frontal<br />
das fotomontagens, a dinâmica das composições<br />
em diagonal e a utilização de letras vazadas<br />
em cartazes, capas de livros e revistas<br />
tornaram-se marcas visuais características de<br />
toda uma época. 7 Tanto o teatro quanto principalmente<br />
o cinema, em razão do seu caráter<br />
essencial de produto voltado para as massas,<br />
formaram os outros canais por meio dos quais<br />
a visão construtivista do artista ordenando o<br />
mundo tornou-se realidade. Foi através do teatro<br />
que Eisenstein, então trabalhando como<br />
cenógrafo para Meyerhold, teve um contato<br />
mais próximo com outros artistas, como Vesnin,<br />
Popova e Stepanova, todos mergulhados<br />
na busca dos meios mais radicais de expressão<br />
criativa. Uma instância que hoje restaura<br />
um bom exemplo ilustrativo do visual de um<br />
projeto construtivista de cenografia pode ser<br />
observada no filme Aelita (1924), de Yakov<br />
Protazanov, em que as seqüências imaginárias<br />
no planeta Marte foram acentuadas pelo uso<br />
de um palco gigantesco, cenários que privilegiavam<br />
diagonais e um vestuário futurista criados<br />
por Alexandra Exter e Isaac Rabinovich.<br />
Dziga Vertov também trabalhou com Rodchenko<br />
na série de cinejornais Kino-Pravda<br />
(1922-25). Ambos – Eiseinsten, mais diretamente,<br />
e Vertov – foram, por sua vez, influenciados<br />
6 Afirmação atribuída a Gan, segundo o crítico Standish Lawder em Eisenstein and constructivism. In: The essential cinema.<br />
New York: Anthology Film Archives/NYU, 1975, p. 60. 7 Além dos cartazes, um ótimo exemplo da forma como a tipografia<br />
afetou o cinema pode ser observado nos letreiros dos filmes. Vertov usou letreiros de forma sofisticada através de um cuidado<br />
extremo com a composição formal dos títulos, baseada geralmente em grandes blocos de letras que enchem toda a tela. Na série<br />
de cinejornais Avante Sovietes! (1926) a função dessas composições gráficas era reforçar os elementos que carregavam os<br />
significados mais fortes, de forma a combiná-los numa cadeia sintagmática que reduplicava o sentido das imagens. Como<br />
exemplo podemos citar as cartelas de números 39, 40, 41 e 42, compostas em letras maiúsculas e minúsculas da seguinte forma:<br />
LENINE LENINE LENINE LENINE LENINE no no no no no balcão balcão balcão balcão balcão dos dos dos dos dos SOVIETES SOVIETES SOVIETES SOVIETES SOVIETES clama/ clama/ clama/ clama/ clama/ por por por por por grandes grandes grandes grandes grandes SACRIFÍCIOS.<br />
SACRIFÍCIOS<br />
SACRIFÍCIOS<br />
SACRIFÍCIOS<br />
SACRIFÍCIOS<br />
21
: E<br />
, V<br />
V ANGUARDA<br />
ANGUARDA ANGUARDA REVOLUCIONÁRIA<br />
REVOLUCIONÁRIA: REVOLUCIONÁRIA : EEISENSTEIN<br />
E ISENSTEIN<br />
ISENSTEIN, ISENSTEIN , VVERTOV<br />
V ERTOV E O CONSTRUTIVISMO CONSTRUTIVISMO CINEMATOGRÁFICO CINEMATOGRÁFICO<br />
REVOLUÇÕES<br />
por uma outra cineasta, Esther Schub, companheira<br />
do principal teórico do construtivismo, Alexei<br />
Gan. O trabalho destes três cineastas só pode ser<br />
mais bem compreendido e analisado dentro dos<br />
parâmetros estabelecidos pela moldura construtivista,<br />
não apenas no que diz respeito às exigências<br />
sociais cobradas ao artista revolucionário, como<br />
também, e principalmente, em relação às formas<br />
específicas pelas quais ambos realizaram sua prática<br />
cinematográfica. Vertov corporifica um desejo<br />
de desenvolver os princípios do construtivismo<br />
em todos os níveis de expressão cinematográfica,<br />
do formal e técnico ao social e ideológico.<br />
Assim como Alexei Gan, ele rejeitava a noção de<br />
um cinema de “arte” que, para ele, sempre estivera<br />
associado à burguesia da Rússia pré-revolucionária<br />
através de um cinema definido exatamente<br />
pelos seus padrões hegemônicos, clássicos, excessivamente<br />
teatrais e narrativos, calcado na interpretação<br />
de atores. No primeiro manifesto do<br />
grupo liderado por Vertov, os kinoks, também havia,<br />
logo de início, a inevitável decretação da<br />
morte do “cinema de arte”: “Declaramos que os<br />
velhos filmes dramatizados são leprosos! Não se<br />
aproxime deles! Não os veja! Perigo de morte! Contagioso!<br />
Declaramos que o futuro da arte cinematográfica<br />
está na negação do seu presente!” 8<br />
Entre as anotações retiradas de seu diário,<br />
podemos, igualmente, encontrar uma melhor definição<br />
e proposição para o ataque à idéia de um<br />
cinema de “arte” e aos roteiros:<br />
“Opomo-nos ao cinema de ‘arte’. Com as migalhas<br />
que sobram dos recursos utilizados pelo cinema de arte e<br />
sem recursos de espécie alguma, às vezes construímos nossos<br />
filmes. Naturalmente, preferimos os cinejornais secos<br />
à interferência do roteiro na vida diária dos seres vivos.<br />
Não interferimos na vida de ninguém. Filmamos os fatos<br />
e os organizamos para apresentá-los, na tela, diretamente<br />
à consciência dos trabalhadores. Nossa tarefa principal,<br />
conforme a entendemos, é a interpretação da vida”. 9<br />
O cine-olho de Vertov em O homem da<br />
câmera (1929)<br />
Fotograma de O homem da câmera<br />
(1929), dirigido por Dziga Vertov<br />
O trabalho de Esther Schub também defendia<br />
a perspectiva de um cinema sem atores, na<br />
medida em que ela privilegiava apenas a realidade<br />
intrínseca do material documental, trabalhado<br />
na mesa de montagem a partir de sobras e<br />
fragmentos de filmes abandonados e resgatados<br />
de depósitos e arquivos. Sua própria contribuição,<br />
além de ter sido provavelmente a primeira<br />
pessoa a chamar atenção para o material fílmico<br />
como documento e, conseqüentemente, para a<br />
8 VERTOV, Dziga. Textes et manifestes, Cahiers du Cinéma, n. 220-221, edição especial de maio-junho de 1970. Paris: Éditions<br />
de l’Étoile, 1970. A tradução é de minha autoria. 9 MICHELSON, Annette (ed.). Kino-eye: the writings of Dziga Vertov. Berkeley:<br />
University of California Press, 1984, p. 49. A tradução é de minha autoria.<br />
In Michelson, Annette (org). Kino-eye, the writings of Dziga<br />
Vertov. Berkeley: The University of California Press, 1984<br />
In Michelson, Annette (org.), op. cit.<br />
necessidade de preservação da memória cinematográfica,<br />
localizava-se na fase de montagem. 10<br />
A “interpretação da vida”, segundo a leitura<br />
de Marx feita por Vertov, implicava uma crença<br />
de que a câmera era um meio poderoso de revelação<br />
da verdade e do conhecimento. Indo ao<br />
encontro de um forte preceito construtivista, Vertov<br />
era igualmente fascinado pelas máquinas. Para<br />
ele, a câmera seria o olho aperfeiçoado que os<br />
homens não possuíam. A câmera era um novo<br />
olho, uma nova máquina para se ver e entender<br />
melhor o mundo. Tal qual os mais influentes artistas<br />
construtivistas, Vertov buscava entender o<br />
mundo pelo prisma de sua própria técnica e,<br />
como Tatlin, exercer, através de seu material de<br />
trabalho, o controle sobre todas as formas encontradas<br />
no novo cotidiano.<br />
Assumindo o fato de que o cinema seria um<br />
instrumento filosófico que nos revelaria mais sobre<br />
a vida do que qualquer outra forma de arte,<br />
Vertov iria, então, elaborar todo um projeto de<br />
filmes calcado no desenvolvimento de estratégias<br />
específicas de filmagem, que materializariam<br />
os poderes epistemológicos daquele meio. Se existe<br />
um filme que literalmente ilustra a inscrição<br />
direta da câmera-máquina dentro do seu modo<br />
de produção é O homem da câmera (1929), que<br />
mostra imagens do operador de câmera e sua<br />
máquina sobrepostas a diferentes cenas de rua e<br />
da vida de uma cidade. A presença da câmera<br />
também aponta para o fato de que estamos diante<br />
de um filme que está sendo feito, em processo,<br />
incorporando em si um discurso sobre seu<br />
modo de produção específico e, com isso, definindo<br />
o cameraman como mais um produtor-trabalhador,<br />
simetricamente nivelado aos outros<br />
setores da produção econômica, como a indústria<br />
têxtil. Em determinada seqüência do filme,<br />
fica mais clara a posição mediadora do fotógra-<br />
fo, sobreposto em fusão a imagens da represa<br />
hidrelétrica e da fábrica têxtil. A câmera-máquina,<br />
através dos olhos de Vertov, olhava para outras<br />
máquinas como algo vivo, não apenas mecânico<br />
e sim animado, orgânico, em conjunto com<br />
certos princípios construtivistas.<br />
De forma brilhante, Eisenstein também nos<br />
dá um ótimo exemplo de como impregnar a máquina<br />
com vida, na famosa seqüência do separador<br />
de creme em A linha geral (1929). A câmera<br />
de Eisenstein, já no plano de abertura do seu primeiro<br />
longa-metragem, está montada numa grua<br />
Sergei Eisenstein, na plataforma superior,<br />
ensaiando a peça Máscaras de gás<br />
(1924), dentro da Usina de Gás<br />
de Moscou<br />
10 Esther Schub (1894-1959) foi uma pioneira do chamado filme de compilação, de acordo com o historiador Jay Leyda em Film<br />
beget films (New York: Hill and Wang, 1971). Segundo Leyda, ela era uma excelente e talentosa montadora, responsável por dar ao<br />
jovem Eisenstein o seu primeiro emprego em cinema. Schub defendia ardorosamente em sua prática as noções construtivistas de<br />
uma atitude analítica frente à verdade dos materiais e à destruição de objetivos puramente estéticos. De sua filmografia, vale a pena<br />
destacar A queda da dinastia dos Romanov (1927), O grande caminho (1928) e A Rússia de Nicolau II e Leon Tolstoy (1928). Junto<br />
com Vertov, ela é uma das mais influentes realizadoras no desenvolvimento do documentário no período pós-revolucionário.<br />
In Leyda, Jay & Voynov, Zina. Eisenstein at work. New York: Pantheon/The Museum of Modern Art, 1982<br />
23
: E<br />
, V<br />
V ANGUARDA<br />
ANGUARDA ANGUARDA REVOLUCIONÁRIA<br />
REVOLUCIONÁRIA: REVOLUCIONÁRIA : EEISENSTEIN<br />
E ISENSTEIN<br />
ISENSTEIN, ISENSTEIN , VVERTOV<br />
V ERTOV E O CONSTRUTIVISMO CONSTRUTIVISMO CINEMATOGRÁFICO CINEMATOGRÁFICO<br />
REVOLUÇÕES<br />
mecânica que avança por dentro do espaço de uma<br />
fábrica, afinal o lugar mais natural para a arte,<br />
como o próprio Eisenstein já havia experimentado<br />
antes, ao montar a produção da peça Máscaras<br />
de gás (1924), também no espaço interno de<br />
uma fábrica. É interessante observar aqui a formulação<br />
concreta dessa nova ordem construtivista<br />
de “sair para as fábricas” animando diversas<br />
propostas artísticas soviéticas que, embora em<br />
contextos e com significados diferentes, testemunham<br />
a apropriação da presença industrial da fábrica<br />
em, pelo menos, três momentos emblemáticos:<br />
a fábrica de atrações, de Eisenstein, a fábrica<br />
de fatos, de Vertov, e a fábrica do ator excêntrico-<br />
FEKS, de Grigori Kosintsev e Leonid Trauberg.<br />
O desenvolvimento de estratégias de realização<br />
do projeto vertoviano de dimensões epistemológicas<br />
insistiria, sobretudo, na materialidade<br />
concreta do cinema, por meio de uma organização<br />
extrema dos recursos cinematográficos<br />
e da posição-chave desempenhada nesse processo<br />
pela montagem. A ênfase na organização<br />
encontrava eco na noção construtivista de uma<br />
arte de produção introduzida na vida como um<br />
aspecto maior do esforço criativo do artista em<br />
estabelecer, sob novas formas, a aparência externa<br />
da vida e da complexidade dos objetos<br />
que circundam o nosso ambiente. Segundo interesses<br />
específicos, os artistas também conseguiram<br />
transformar em prática a análise em laboratório<br />
dos materiais que constroem as formas.<br />
Para Vertov, a questão principal localizava-se<br />
no significado real da montagem. A resposta<br />
vinha mediante uma radicalização do processo<br />
a partir da filmagem do material, em que<br />
já se pressupunha uma seleção de temas, lugares,<br />
tamanho dos planos, enquadramento, e daí<br />
para a sala de montagem, com a articulação de<br />
seus diferentes estágios, tais como a avaliação<br />
dos documentos, planejamento e duração dos<br />
planos (síntese da montagem), discussão das relações<br />
gráficas da justaposição de diferentes imagens,<br />
entre outros procedimentos. O homem da<br />
câmera, mais uma vez, é o filme-chave, no qual<br />
aparece uma exposição literal do processo. Enfatizando<br />
a noção construtivista do contato mais<br />
íntimo entre artista, trabalhador e máquina, são<br />
apresentadas, nesse filme, imagens da moviola<br />
e do montador organizando o material fílmico<br />
dentro da sala de montagem, onde o filme está<br />
sendo editado. Tal nível de reflexividade se constrói<br />
diante do espectador, apresentado na materialidade<br />
ótica das tiras de filme que Elizaveta<br />
Svilova, a montadora do filme (e companheira<br />
de Vertov), mantém penduradas lado a lado,<br />
e das quais seleciona, isola, fragmentos e planos<br />
específicos (como o da garotinha olhando<br />
para a câmera, ou o da velha senhora), trazendo-os<br />
à vida, outra vez, na fluidez da cadência<br />
dos fotogramas agora em movimento.<br />
Num processo idêntico ao da pintura construtivista,<br />
iniciado no momento em que os artistas<br />
deixaram de representar em suas telas a aparência<br />
externa do mundo, privilegiando as formas<br />
construtivas que repousam na base da realidade<br />
visual, Vertov, na tentativa de desmistificar<br />
o ilusionismo cinematográfico, também desenvolveu<br />
um conjunto de procedimentos materiais<br />
com o objetivo de revelar a verdade que existe<br />
por trás da ilusão. E chegou à conclusão de que,<br />
de todos os artifícios disponíveis ao cineasta, os<br />
mais poderosos eram aqueles ligados às características<br />
do cinema enquanto um meio temporal,<br />
ou seja, o congelamento da imagem e o movimento<br />
reverso, como se você estivesse vendo<br />
tudo de trás para frente. Tais conclusões devemse<br />
ao fato de que os dois procedimentos, ao representarem<br />
o conhecimento, enfatizam exatamente<br />
processos cognitivos encontrados diretamente<br />
no cinema. A primeira série dos cinejornais<br />
Kino-Glaz (1924) sintetiza muito bem tais<br />
procedimentos ao mostrar os modos de produção<br />
de carne e pão através da negação do tempo,<br />
onde os espectadores são capazes de recompor<br />
todo o desenvolvimento inverso do processo, do<br />
produto final até suas origens. Nesse movimento<br />
ao contrário, a ligação entre campo e cidade<br />
fica também estabelecida, reiterando na sociedade<br />
soviética a natureza da produção de um bem<br />
material. A lição é clara para quem ainda não desconfiava:<br />
o pão comido em Moscou é feito do<br />
trigo que vem de outras regiões mais distantes.<br />
De igual modo, Eisenstein desenvolveu estratégias<br />
específicas no sentido de provar o potencial<br />
fílmico ao expor o ilusionismo em termos<br />
da violação de uma cronologia pró-fílmica,<br />
através das distensões temporais, como na famosa<br />
seqüência do levantamento da ponte em<br />
Outubro (1927). Os resultados das formulações<br />
específicas, tanto de Vertov quanto de Eisenstein,<br />
com relação a um cinema que procurava<br />
decisões intelectuais por parte do espectador,<br />
estavam em perfeita consonância com o credo<br />
construtivista que definia o racionalismo e o axioma<br />
do controle consciente do processo criativo<br />
como elementos a serem refletidos na obra de<br />
arte. Assim, inseridos na paisagem histórica da<br />
primeira década da sociedade soviética, os filmes<br />
desse período, no plano formal, também fizeram<br />
a crônica de temas originados da reconstrução<br />
da economia soviética, em sintonia com<br />
a base construtivista para o trabalho teatral, ou<br />
seja, movimento e ação. A câmera, montada nas<br />
mais diversas ferramentas industriais, tais como<br />
gruas e guindastes, trens suspensos, vagões ou<br />
roldanas, seria um olho privilegiado que se move<br />
por cima de uma hidrelétrica, nas mãos do operador,<br />
ou avança através da extensão da fábrica,<br />
quase junto ao teto, movendo-se da frente para<br />
o fundo, tal como em A greve (1925), ou em O<br />
11° ano, de Vertov (1928). Outra peça montada<br />
por Eisenstein, intitulada O sábio (1923), também<br />
projetava um ator sobre as cabeças dos espectadores,<br />
numa espécie de “invasão” do espa-<br />
In Michelson, Annette (org.), op. cit.<br />
ço espectatorial semelhante às esculturas construtivistas<br />
de Tatlin, com seus contra-relevos ou<br />
relevos-de-canto, construídos a partir de uma superfície<br />
bidimensional, mas que se projetavam<br />
para a frente do espectador, numa galeria de arte<br />
ou num museu. No filme O 11° ano, Vertov também<br />
“seqüestra” o espectador sentado em sua<br />
poltrona em termos puramente visuais. Um plano,<br />
logo no início do filme, mostra a enorme pá<br />
mecânica de uma escavadeira que avança em sentido<br />
frontal para a platéia e invade o espaço do<br />
espectador. Numa perspectiva inteiramente construtivista,<br />
esse movimento cinético enfatizava<br />
dois fatos principais. Primeiro, que o cinema<br />
soviético, em sua fase considerada heróica, lançou<br />
mão e ampliou consideravelmente o repertório<br />
de movimentos de câmera existente até<br />
então no cinema. Segundo, que a qualidade desse<br />
movimento em Vertov é um correspondente<br />
formal do próprio movimento de construção da<br />
indústria e da sociedade. Desta maneira podemos<br />
afirmar que os cineastas soviéticos nos anos<br />
de 1920 literalmente escreveram, de maneira cinematográfica,<br />
e numa perspectiva construtivista,<br />
o processo de industrialização da União Soviética.<br />
Revendo o passado desses mais de cem<br />
anos de existência das imagens em movimento,<br />
e talvez com uma ultrapassada, porém quase que<br />
inevitável nostalgia, me dou conta, de repente,<br />
de como o cinema já esteve muito mais interligado<br />
com a sociedade, refletindo, construindo e,<br />
sobretudo, transformando a História do século XX.<br />
O trabalho da montagem explicitado em<br />
O homem da câmera (1929)<br />
25
Soldado cubano<br />
vigiando maquinário<br />
doado pelo governo<br />
soviético. Havana, Cuba,<br />
25/5/1964. Acervo<br />
Correio da Manhã<br />
AN PH/FOT/ 4636(51)
Jean Epstein<br />
Cultura Cinematográfica<br />
O cinema<br />
tem cinqüenta anos, 1<br />
e um quarto de século se passou<br />
desde o momento em que Canudo<br />
inventou chamá-lo de o caçula,<br />
a sétima das artes. Efetivamente,<br />
o cinema era então – e devia permanecer<br />
ainda durante alguns anos<br />
– uma arte menor, uma arte parasita.<br />
Ele vivia de empréstimos feitos<br />
a todas as outras artes, a todos os<br />
outros meios de expressão. O roteiro<br />
imitava a fabulação de um romance<br />
ou de uma peça de teatro.<br />
Os atores representavam como se<br />
estivessem em cena. O câmera mais<br />
ambicioso procurava quadros à<br />
Brueghel, iluminações à Rembrandt,<br />
imagens vaporosas à Carrière. Um<br />
maquiador e um figurinista mais<br />
ousados faziam cubismo sobre o rosto<br />
e sobre as roupas dos personagens.<br />
Um subtitulador depositava uma dissertação<br />
entre as imagens. E estas retiravam<br />
o que lhes faltava em poder<br />
emocionante de um acompanhamento<br />
musical contínuo. Assim, simultânea<br />
ou sucessivamente, todos os<br />
gêneros literários, todos os ramos da<br />
técnica teatral, todos os estilos da<br />
pintura, da arquitetura, da música,<br />
impregnavam a arte do filme.<br />
Em uma época – que ainda não<br />
passou completamente – foi moda<br />
monografar as influências de cada<br />
uma das outras artes sobre o cinema,<br />
que aparecia crivado de dívidas<br />
insolúveis. Hoje, a posição do<br />
cinema é muito diferente. Há doze<br />
anos já, Gilbert Mauge anotava em<br />
seus Moralistas da inteligência:<br />
1 Escrito em 1945.<br />
“1436: Gutemberg e Furst imaginam<br />
a imprensa. 1936: o livro é<br />
abandonado; as idéias entram diretamente<br />
pelas orelhas e as imagens<br />
diretamente pelos olhos.”<br />
Na verdade, não é preciso exagerar<br />
a importância e a novidade do<br />
ensino recebido pela orelha, primeiro<br />
porque o ouvido só exerce, sobre<br />
a formação intelectual, uma ação<br />
muito inferior à que é exercida pela<br />
vista; também porque o ouvido transmite<br />
principalmente o que já se acha<br />
congelado no velho molde clássico da<br />
linguagem falada, muito semelhante<br />
à linguagem escrita; enfim, porque<br />
o rádio, novo meio de detecção e<br />
transmissão nesse domínio, permaneceu<br />
até agora em um estágio primitivo<br />
de impessoalidade. A prodigiosa<br />
expansão da imagem, e sobretudo<br />
da imagem animada, é que<br />
constitui o fato novo, comandando<br />
a aparição de uma nova forma de<br />
cultura diretamente visual.<br />
Atualmente, o homem da rua,<br />
que talvez não tenha lido quinze livros,<br />
desde que saiu da escola até os<br />
seus quarenta anos, viu seguramente,<br />
ainda que à razão de um espetáculo<br />
por mês, uns trezentos filmes. Esse<br />
homem, quando sabe alguma coisa da<br />
existência do padre Foucauld, dos<br />
costumes dos esquimós, da inteligência<br />
das formigas, aprendeu não pelo<br />
livro, pela via analítica das palavras<br />
abstratas, reunidas logicamente no<br />
quadro da sintaxe raciocinada, mas<br />
pelo filme, pela via emocionante, in-<br />
tuitiva, de imagens justapostas de<br />
modo muito simples, representações<br />
muito mais sintéticas e próximas da<br />
realidade concreta. Que falem ou leiam<br />
a seu respeito, o padre Foucauld<br />
é um nome, uma data, um itinerário,<br />
uma citação moral, um esquema seco<br />
de palavras que tendem natural e rapidamente<br />
a se descolorir completamente<br />
no esquecimento; mas, na tela,<br />
é a solidão de um eremitério perdido<br />
na imensidão das areias, um rosto<br />
emagrecido e apaixonado, um olhar<br />
fervoroso e bom, um sorriso que perdoa<br />
de antemão os assassinos: família<br />
de imagens supersaturadas de emoção,<br />
de signos dramáticos que continuam<br />
a viver por muito tempo na lembrança,<br />
com vida própria e também<br />
a se multiplicar e a crescer, por sua<br />
própria força interior. Seria fácil acumular<br />
outros exemplos, todos mostrando<br />
que, na cultura geral do homem<br />
médio, a parte livresca e verbal<br />
é agora obrigada a ceder algo de sua<br />
preponderância a uma parte imagética,<br />
cujos elementos mais ativos são<br />
de origem cinematográfica. Evidentemente,<br />
por cultura entendemos<br />
aqui, não a erudição de minorias especializadas<br />
por longos estudos, mas<br />
esse fundo disparatado de conhecimentos<br />
que constitui o dominante do<br />
clima mental de uma época e do qual<br />
todo espírito se ocupa, sem o procurar,<br />
exercendo banalmente suas faculdades.<br />
Cultura sumária, mas difundi-<br />
Texto e foto extraídos do livro Esprit de cinéma, de Jean Epstein, Éditions Jeheber, Genève-Paris, 1955. Tradução de Luiz Izidoro.<br />
da infinitamente e utilizada continuamente,<br />
por toda parte, sob cuja luz<br />
todo mundo é cultivado sem o saber;<br />
cultura que hoje o filme forma mais<br />
do que o livro, alimentando de imagens<br />
muito poderosas nossa memória<br />
e nossa imaginação.<br />
Além dessa influência geral sobre<br />
os espíritos, sensível de modo<br />
particular nos meios pouco letrados,<br />
o cinema exerce também uma ação,<br />
cujos resultados são aparentes, sobre<br />
os escritores e os artistas. Os jornais,<br />
as revistas que apresentam “filmes”<br />
de tal ou tal acontecimento em uma<br />
seqüência de ilustrações subtituladas<br />
de modo conciso; as propagandas de<br />
publicidade, os cartazes que utilizam<br />
visões fragmentárias, o primeiro plano,<br />
os aspectos deformados pelo movimento;<br />
o estilo literário que se esforça<br />
freqüentemente para rivalizar<br />
em rapidez com o desenvolvimento<br />
cinematográfico da ação, renunciando,<br />
por causa disso, à correção gramatical<br />
plena, que, além do mais,<br />
substitui uma exposição didática muito<br />
longa pela sugestão de uma imagem<br />
visual; a decoração e a moda, que<br />
se inspiram em modelos criados para<br />
o filme; até mesmo a técnica teatral<br />
que se esforça, por sua parte, para se<br />
separar do que tem de factício e afetado,<br />
para se aproximar da variedade<br />
e da verdade documentária da miseen-scène<br />
e da interpretação na tela; todas<br />
essas artes, por sua vez, encontram-se<br />
doravante devedoras em relação<br />
ao cinema. E é preciso reconhecer<br />
que nenhuma outra técnica de<br />
expressão possui atualmente uma esfera<br />
de influência tão vasta. O cinema<br />
tornou-se realmente uma arte<br />
maior, que conduz mais do que se<br />
deixa guiar. A sétima? A julgar pelas<br />
multidões a que se dirige e por sua<br />
influência sobre suas mentalidades,<br />
parece mais justo tomá-la pela primeira<br />
ou em via de se tornar.<br />
Assim, a cultura cinematográfica<br />
manifesta-se como transformação<br />
dos elementos e dos modos de pensar<br />
mais simples e mais comuns e<br />
também como modificação das artes<br />
e das técnicas, dos sistemas de<br />
expressão mais elevados. Por que um<br />
poder revolucionário tão geral? Porque<br />
o cinema é não só uma arte do<br />
espetáculo, capaz de suplantar o teatro,<br />
e uma linguagem imagética, podendo<br />
rivalizar com a palavra e a escritura,<br />
mas também, e antes de<br />
tudo, um instrumento privilegiado<br />
que revela, como a luneta ou o microscópio,<br />
aspectos do universo desconhecidos<br />
até então. Se telescópios<br />
e microscópios, colocando ao alcance<br />
da vista seja o infinitamente grande<br />
e longínquo, seja o infinitamente<br />
pequeno e próximo, renovaram a<br />
cultura humana, o cinema, por sua<br />
vez, permite ao olhar penetrar o<br />
movimento e o ritmo das coisas,<br />
analisar o infinitamente rápido e o<br />
infinitamente lento. Certamente, as<br />
ciências, a filosofia, a religião, a<br />
consciência que o homem tem de si<br />
próprio, tudo isso mudou graças às<br />
imagens criadas pelas lentes de aumento,<br />
mas essa revolução teria sido<br />
ainda mais rápida, seria ainda mais<br />
profunda, se existisse uma arte espetacular<br />
da telescopia e da microscopia,<br />
que assegurasse às aparências dos<br />
astros e das moléculas uma publicidade<br />
verdadeiramente popular. Ora,<br />
o cinema realiza precisamente essa<br />
conjuntura de um divertimento pú-<br />
blico e de uma descoberta de realidades<br />
novas, em um mesmo aparelho.<br />
Compreendemos então que as<br />
inovações trazidas pelo filme se propagam<br />
largamente, ainda que o cinema<br />
tenha, até agora, sacrificado<br />
sua missão de descobridor a seu papel,<br />
mais lucrativo, de animador.<br />
É preciso procurar os caracteres<br />
essenciais da cultura cinematográfica,<br />
cujo nascimento assistimos, nos caracteres<br />
do instrumento que a constrói,<br />
que a propaga. Pois um fato evidente<br />
na história da civilização é que<br />
todo instrumento refaz, recria, mais<br />
ou menos, à sua maneira, o espírito<br />
que o concebeu, que o criou. O cinema<br />
é, por excelência, o aparelho de<br />
detecção e de representação do movimento,<br />
isto é, da variação de todas<br />
as relações no espaço e no tempo, da<br />
relatividade de toda medida, da instabilidade<br />
de todas as referências, da<br />
fluidez do universo. Profundamente,<br />
portanto, a cultura cinematográfica<br />
será a inimiga de todos os sistemas<br />
que supõem modelos absolutos, valores<br />
fixos; inimiga de todas as concepções,<br />
ainda em vigor atualmente, que<br />
se fundam sobre a experiência extracinematográfica,<br />
cem vezes milenar, de<br />
um mundo estável e sólido; logo, inimiga<br />
também das formas muito rígidas<br />
de expressão, da bela linguagem,<br />
das palavras escritas ou faladas, concreções<br />
de pensamentos envelhecidos,<br />
petrificados como mortos; inimiga ainda<br />
dos racionalismos clássicos, que pretendem<br />
apreender a perpétua mobilidade<br />
do sentimento em uma regra invariável.<br />
Cultura revolucionária, sem<br />
dúvida, e que, à primeira vista, pode<br />
parecer bárbara, mas na qual já adivinhamos<br />
extremas sutilezas.<br />
REVOLUÇÕES<br />
29
“Pelotão de soldados<br />
da Frente de Libertação<br />
<strong>Nacional</strong> – FLN”.<br />
Argélia, 20/8/1960.<br />
Acervo Correio da Manhã<br />
AN PH/FOT/ 5640(57)
E N T R E V I S T A concedida por Marc Ferro a Bernado Frey, Jacques D’Arthuys, Priscila Soares e Vitor Martins, em Portugal, no final<br />
da década de 1970, e divulgada no Brasil pela Coordenação Central de Atividades de Extensão da PUC-Rio, em apostila do Departamento de História.<br />
Falsificações<br />
Falsificações<br />
M: Qual é, para o senhor, a diferença<br />
entre o documento escrito e o<br />
documento filmado e como tratá-los?<br />
MF: Digamos que o documento<br />
filme tem uma dependência maior<br />
relativamente às instituições que<br />
organizam a sociedade do que o<br />
documento escrito, tradicional, e<br />
mesmo do que o discurso. Porque<br />
geralmente o historiador que escreve<br />
apóia-se em fontes institucionalizadas,<br />
isto é, fontes políticas que<br />
pertencem a partidos ou sindicatos,<br />
contas de empresa ou estatísticas<br />
de gestores, o que equivale a dizer<br />
que a maior parte desses documentos<br />
que servem de suporte ao trabalho<br />
histórico têm uma função de<br />
regulamentação da sociedade, de<br />
regulamentação da produção, portanto<br />
são fontes que têm maior<br />
importância pelo seu funcionamento<br />
do que na verdade pelo seu conteúdo.<br />
Por exemplo, se eu quiser<br />
escrever uma história da URSS e<br />
me ativer às fontes escritas, vou<br />
encontrar milhões de estatísticas<br />
sobre a produção agrícola, e sabemos<br />
bem que esses livros cheios de<br />
estatísticas são duplamente falsos,<br />
porque as estatísticas são falsas e<br />
pouco interessa a razão disso – aliás,<br />
dar-se-ia a mesma coisa se se tratasse<br />
do poder de compra dos franceses<br />
ou dos portugueses, ou dos<br />
investimentos americanos no Chile.<br />
O que eu quero dizer é que toda<br />
esta visão da história que se apóia<br />
sobre as fontes referidas como sendo<br />
justas, exatas, precisas, científicas,<br />
nos dá finalmente um discurso<br />
completamente falso sobre a sociedade,<br />
nos dá apenas reflexos de<br />
um discurso oficial – oficial que<br />
não é apenas o do governo mas também<br />
o da oposição, ou seja, de todos<br />
os grupos políticos, econômicos,<br />
sociais, que têm por finalidade<br />
tomar a sociedade sob sua alçada.<br />
Naturalmente os historiadores<br />
de qualidade tentam fazer a crítica<br />
desses documentos escritos, mas<br />
dois algarismos falsos não podem<br />
evidentemente dar uma adição exata,<br />
ou seja, não é pelo fato de fazer<br />
a crítica dos dados da produção de<br />
trigo na União Soviética e mostrar<br />
que ela é falsa, segundo os números,<br />
que passo a ter uma visão exata<br />
do problema da produção de trigo<br />
na União Soviética. Dá-se o mesmo<br />
no que se refere ao preço do<br />
petróleo, acerca do qual todos os tipos<br />
de dados oficiais nos advertiram<br />
que deveria baixar, dados esses<br />
estabelecidos pelos melhores estatísticos,<br />
analistas, economistas e<br />
historiadores, quando afinal o preço<br />
do petróleo subiu porque se tinha<br />
emitido um certo número de<br />
fatores que não figuravam na tradição<br />
escrita nem mesmo oral.<br />
É certo que um bom número de<br />
documentos fílmicos sofre do mesmo<br />
defeito, são também documentos<br />
parcialmente falsos, porque<br />
emanam de instituições também<br />
elas interessadas em dirigir a sociedade.<br />
Por exemplo, a televisão<br />
© Sophie Bassouls/Sygma<br />
AN PH/FOT/ 13761(78)<br />
francesa ou a empresa econômica<br />
Fox enviam repórteres para filmar<br />
qualquer coisa, dão suas ordens<br />
para que se filme Chipre no momento<br />
de uma crise, ou Portugal<br />
no momento das eleições. Percebemos<br />
que há mil documentos sobre<br />
a desordem em Chipre, os turcos<br />
matando os gregos, ou os gregos a<br />
matar os turcos, mas que nunca há<br />
documentos sobre a vida cotidiana<br />
em Chipre, fora dos momentos de<br />
crise, quando é justamente essa<br />
vida cotidiana que está na origem<br />
da crise. Assim, o documento fílmico<br />
é por vezes tão falso, ou antes,<br />
tão parcial como o documento<br />
escrito, respondendo às necessidades<br />
dos organismos que lhe dão<br />
lugar, ingleses ou americanos, porque<br />
no final das contas o que todos<br />
esses documentos mostram é que<br />
em Chipre as pessoas não podem<br />
se governar sozinhas, porque passam<br />
a vida a matar-se; esses docu-<br />
AN PH/FOT/ 113761(21)<br />
mentos nunca procuram examinar<br />
a origem do fenômeno.<br />
Portanto, o documento fílmico<br />
pode apresentar o mesmo tipo de<br />
inconveniente que o documento<br />
escrito, a diferença é que o primeiro<br />
traz, sem querer, uma informação<br />
que vai contra as intenções<br />
daquele que filma, ou da empresa<br />
que mandou filmar. Por exemplo,<br />
quando se filma a cerimônia de<br />
condecoração de um general, naturalmente<br />
as câmeras do exército<br />
estão presentes, as câmeras do governo<br />
francês (se isto se passar na<br />
França) estão lá e filmam o general<br />
no momento em que um outro general<br />
lhe coloca a medalha. Mas,<br />
se por detrás, ao mesmo tempo, há<br />
pessoas que se manifestam ou riem,<br />
ou que protestam, a câmera também<br />
os apanha, enquanto num texto<br />
nunca ficarão vestígios desse<br />
tipo de fenômeno. Se eu pegar, por<br />
exemplo, uma das manifestações do<br />
1º de Maio de 1976 a que tive ocasião<br />
de assistir no Porto, e se comparar<br />
um filme ou uma fotografia<br />
das manifestações de ontem com<br />
uma das manifestações do ano passado,<br />
percebo imediatamente um<br />
fenômeno formidável, é que já não<br />
há soldados de uniforme. E nos jornais<br />
que leio não se fala desse problema.<br />
Esse problema não está presente<br />
nas análises das organizações<br />
que fazem textos sobre a Revolução<br />
em Portugal e a evolução da situação,<br />
porque o seu sistema tático,<br />
estratégico, é talvez falar de outras<br />
coisas, e o seu discurso escrito vai<br />
esconder um fenômeno que o discurso<br />
cinematográfico ou fotográfico<br />
pode nos dizer. Eis um primeiro<br />
ponto. Portanto, o discurso com o<br />
filme é necessariamente diferente do<br />
discurso com os textos e pode fornecer<br />
uma história que não é mais<br />
exata nem melhor, mas que é dife-<br />
Protesto de ingleses<br />
contrários à visita do<br />
primeir-ministro<br />
português, Marcelo<br />
Caetano. Londres,<br />
16/7/1973. Acervo<br />
Correio da Manhã<br />
REVOLUÇÕES<br />
33
F ALSIFICAÇÕES ALSIFICAÇÕES<br />
REVOLUÇÕES<br />
Presidente Charles De Gaulle cumprimentando argelinos. Argélia, s.d.<br />
Acervo Correio da Manhã<br />
rente e se confronta com as outras<br />
histórias e com as outras análises.<br />
Utilizo essa possibilidade de confrontação,<br />
por exemplo, no filme sobre a<br />
guerra de 1914, em que os documentos<br />
são com freqüência usados no<br />
sentido contrário ao da significação<br />
que tinham quando foram filmados.<br />
M: As instâncias do poder nunca<br />
tentaram se apoderar dos arquivos<br />
fílmicos do mesmo modo que o fizeram<br />
com os arquivos de textos?<br />
MF: O poder naturalmente procura<br />
lançar mão dos arquivos, mas a<br />
multiplicação das câmeras e as necessidades<br />
da produção industrial<br />
criam uma contradição que leva ao<br />
seguinte resultado: num país em que<br />
são controladas de um modo particular<br />
as fontes de informação sobre<br />
a sociedade, como por exemplo<br />
na União Soviética, há também<br />
um grande número de filmes que<br />
escapam ao controle do poder, porque<br />
há milhares de jovens cineastas<br />
e indivíduos, simples cidadãos,<br />
que com uma câmera e meios mo-<br />
AN PH/FOT/ 18837(244)<br />
destos chegam a fazer filmes. Esses<br />
filmes não figuram nos arquivos<br />
oficiais de Moscou, mas nem por<br />
isso deixam de existir e ser vistos,<br />
um dia na França, outras vezes no<br />
interior, por pequenos grupos na<br />
Geórgia ou em Samarcand, e é de<br />
notar que há muitos desses filmes<br />
nas repúblicas mais afastadas do<br />
centro do poder político. Por conseguinte,<br />
há sempre uma vontade<br />
de controle. O governo de De Gaulle,<br />
por exemplo, não propriamente<br />
De Gaulle mas alguns dos seus<br />
servidores, suprimiu dos arquivos<br />
documentos que mostram Georges<br />
Bideau, no dia da libertação, ao<br />
lado de De Gaulle. Já não é possível<br />
encontrar esse documento. Portanto,<br />
há sempre uma vontade de<br />
controle e se dou este exemplo é<br />
porque na França é o mais conhecido,<br />
o mais simples. E apesar de<br />
tudo não há muitos exemplos, porque<br />
os poderes políticos ainda não<br />
compreenderam o papel que o filme<br />
pode desempenhar como elemento<br />
de crítica política e social.<br />
Além do mais, porque os dirigentes<br />
políticos não sabem ler o filme,<br />
não sabem utilizá-lo, olham para o<br />
argumento, para o comentário, mas<br />
as censuras que fazem são simplistas.<br />
Por exemplo, Pompidou foi vaiado<br />
em Reims em 1971; nas atualidades<br />
é possível vê-lo ao vivo, depois<br />
de ser cortada a seção em que<br />
foi vaiado e depois de uma montagem.<br />
Todos os regimes fazem isso,<br />
toda organização censura, não creio<br />
que se possa considerar que a censura<br />
seja privilégio de um tipo de<br />
regime e que apenas a democracia...<br />
Mas onde reina a democracia?<br />
M: O senhor não acha que o poder,<br />
além de manipular um certo<br />
número de documentos incômodos,<br />
é ele próprio quem produz a<br />
maior parte destes documentos; é<br />
ele próprio quem produz a maior<br />
parte dos documentos fílmicos sobre<br />
um acontecimento, um período<br />
etc., e finalmente, mesmo se<br />
existe um documento contestatório,<br />
a grande massa dos que se podem<br />
recolher sobre um período é influenciada<br />
pelo menos pelo pensamento<br />
dominante da época?<br />
MF: Sim, certamente, foi o que<br />
Godard disse e dou-lhe completamente<br />
razão. Mas isso não impede<br />
que o filme seja matéria na qual há<br />
o maior número de lapsos, isto é,<br />
em que uma certa realidade, para<br />
além daquela que se quer mostrar,<br />
aparece apesar de tudo. Algumas<br />
vezes há lapsos nos textos, mas no<br />
filme há lapsos a todo o momento,<br />
porque a realidade que se quer representar<br />
não chega a esconder uma<br />
realidade independente da vontade<br />
do operador de câmera. Quero dizer<br />
que, se agora se fizer um filme<br />
sobre Portugal, há toda uma quantidade<br />
de imagens que reproduzi-<br />
rão o discurso oficial das organizações,<br />
isto é, do governo, dos socialistas,<br />
dos comunistas, dos sindicatos,<br />
mas a câmera mostrará, apesar<br />
de tudo, que as pessoas que<br />
votam em partidos diferentes se<br />
vestem todas da mesma maneira,<br />
que têm por vezes o mesmo estilo<br />
de vida, toda espécie de verdade<br />
que o discurso oficial das organizações<br />
recusa ver. Por conseguinte,<br />
mesmo uma ideologia dominante<br />
que financia e ordena um armazenamento<br />
de informação orientada<br />
fornece matéria para uma contrahistória,<br />
contra a sua vontade.<br />
M: Para além dessas questões, o<br />
senhor pensa que algum dia o cinema<br />
deixará de ser utilizado apenas<br />
para desmascarar o discurso<br />
oficial para mostrar a realidade,<br />
para passar a dar conta da realidade,<br />
da verdadeira realidade social?<br />
MF: Creio que se assiste a uma<br />
grande vontade de agir nesse sentido,<br />
mas ao mesmo tempo creio que<br />
nunca há uma grande eficácia porque,<br />
no atual estado das sociedades,<br />
que vivem na opressão social,<br />
na alienação do trabalho, o filme é<br />
ainda compreendido, na atual condição<br />
e por grande parte das pessoas,<br />
como um elemento de distração.<br />
Portanto, todo filme que, para<br />
ser militante, reproduz as condições<br />
e as dificuldades da realidade social<br />
não tem sucesso, porque aponta<br />
para uma verdade que as pessoas<br />
que sofrem não querem conhecer.<br />
Porque, quando se aponta para<br />
as razões reais de seu sofrimento,<br />
as pessoas ficam de tal modo desesperadas<br />
que perdem completamente<br />
a esperança. Daí que seja necessário<br />
que mascarem em si próprias<br />
uma parte da realidade. Mostrar a<br />
origem da realidade não é possível<br />
senão em períodos de crise, durante<br />
um ou dois anos, como em Maio<br />
de 1968, na França, ou ainda, talvez,<br />
mais seis meses ou um ano aqui<br />
em Portugal. Pode-se imaginar um<br />
cinema militante ativo que as pessoas<br />
aceitarão porque estão em plena<br />
fase de abertura, mas se já têm<br />
essa capacidade de modo concreto,<br />
imediato, real, os filmes que<br />
analisam a realidade social finalmente<br />
só serão eficazes e só darão<br />
prazer aos que o fizeram. Seria preciso<br />
imaginar um outro estágio em<br />
que já não houvesse separação de<br />
poder entre o cineasta e a sociedade<br />
que filma; que chegasse um<br />
momento em que a própria sociedade<br />
se filmasse a si própria, aí<br />
então ter-se-ia libertado dos problemas<br />
porque se sentiria criadora, já<br />
não estaria dominada por voyeurs<br />
que analisam os seus dramas, o que<br />
nunca é agradável porque ninguém<br />
gosta que penetrem na sua vida<br />
social ou privada. Se você mostrar<br />
a um operário que ele é explorado,<br />
iludido, enganado pelo seu patrão,<br />
pelo seu sindicato, pelo seu partido<br />
político etc., e se não houver<br />
uma solução imediata, ele não vai<br />
querer saber disso, porque não há<br />
lugar para a esperança.<br />
M: Os nazis na Alemanha fizeram<br />
trucagem com as fotografias...<br />
MF: Evidentemente que o fizeram,<br />
mas foram mesmo a ponto de falsificar<br />
os documentos. Não penso que<br />
a trucagem material seja o instrumento<br />
favorito de um sistema institucional.<br />
Penso que se lhe dá uma<br />
maior atenção porque é uma manifestação<br />
da capacidade do cinema<br />
de representar uma falsa realidade.<br />
Somos mais marcados por uma falsa<br />
realidade na imagem do que pelo<br />
mesmo efeito no discurso. Quando<br />
se faz um discurso falso e “trucado”<br />
é normal... Mas, quando se mostra<br />
uma imagem “trucada”, é considerado<br />
diabólico. Evidentemente que<br />
há documentos “trucados”, mas a<br />
falsificação não participa assim tanto<br />
de processos mecânicos. Conheço<br />
alguns exemplos, mas não especialmente<br />
alemães... Alguns são<br />
americanos, outros russos, mas não<br />
creio que por isso se possa dizer que<br />
os americanos fizeram mais falsificados<br />
que os nazis. Os nazis “trucaram”<br />
mil vezes mais, mas de maneira<br />
diferente, não por processos técnicos,<br />
“trucaram” porque tinham<br />
um conhecimento mais preciso da<br />
capacidade do cinema de mostrar<br />
uma falsa realidade sem usar a trucagem.<br />
Ousaram e souberam utilizar<br />
o cinema como uma arma política,<br />
levando-a mais longe que os outros,<br />
não “trucaram” propriamente as<br />
imagens como quem conta uma<br />
mentira num discurso porque tinham<br />
outros meios, não valia a pena.<br />
M: O senhor disse uma vez a Serge<br />
Daney que apenas os nazis privilegiaram<br />
os filmes porque eram<br />
plebeus que não tinham tido acesso<br />
a outra cultura. O senhor é capaz<br />
de precisar essa importância<br />
dada pelos nazis à imagem, ao filme,<br />
ao filmado?<br />
MF: Sim. A maior parte dos nazis,<br />
exceto talvez Goebbles, não era<br />
o que se pode chamar homens de<br />
biblioteca, diferentemente do que<br />
acontece com os marxistas, como<br />
disse aos Cahiers du Cinéma. Pertenciam<br />
a uma outra camada social,<br />
35
AN PH/FOT/ 25934(35)<br />
AN PH/FOT/ 25934(45)<br />
F ALSIFICAÇÕES ALSIFICAÇÕES<br />
REVOLUÇÕES<br />
Adolf Hitler falando ao povo alemão em uma festa cívica<br />
em Bückeberg e discursando no Reichstag, em Berlim.<br />
Acervo Correio da Manhã<br />
mais plebéia, pequeno-burguesa; e<br />
não apenas no que se refere à sua<br />
clientela, mas também quanto à sua<br />
origem social, ao seu gosto. Era<br />
uma gente que ia muito ao cinema,<br />
enquanto os marxistas da mesma<br />
época, quer os comunistas alemães,<br />
quer os russos ou os franceses,<br />
não iam nunca ao cinema. A<br />
primeira vez que os comunistas<br />
franceses pensaram no cinema de<br />
uma maneira ativa foi em 1936,<br />
quando pediram a Jean Renoir para<br />
fazer um filme de propaganda para<br />
as eleições, portanto, de um modo<br />
muito objetivo, preciso, e foi uma<br />
coisa excepcional, um pouco como<br />
se organiza uma feira, uma exposição,<br />
não era hábito se ocuparem<br />
de cinema; enquanto os nazis per-<br />
tenciam a um meio diferente<br />
do ponto de vista<br />
social e iam sempre<br />
e acima de tudo ao cinema.<br />
Hitler, Goering<br />
etc., todo o período de<br />
1925 a 1942, estando<br />
ou não no poder, passavam<br />
a vida indo ao<br />
cinema. Viram os filmes<br />
de Fritz Lang dez<br />
ou vinte vezes, tinham<br />
uma grande cultura cinematográfica,<br />
mas isso<br />
não se chamava cultura<br />
na época. Para eles,<br />
era natural se dirigirem<br />
pela propaganda para<br />
organizar as multidões<br />
ou através do discurso<br />
teatral, que Hitler e<br />
Goebbles praticavam;<br />
foram eles os primeiros<br />
a organizar o discurso<br />
teatral. Sempre que Hitler<br />
e Goebbles falavam,<br />
davam o máximo de aatenção<br />
à iluminação, aos microfones,<br />
à sincronia entre a música e<br />
o discurso. As pessoas de outros<br />
partidos políticos, ou de outros países,<br />
os homens políticos na Franca,<br />
na Inglaterra etc., teriam considerado<br />
escandaloso, ridículo, absurdo<br />
e degradante utilizar processo<br />
de ator para falar em público. O<br />
resultado disso é que eram menos<br />
ouvidos, não sabiam falar, não produziam<br />
tanto efeito mágico entre os<br />
espectadores. Quando as pessoas<br />
ouviam Hitler, por um lado, ouviam<br />
mais ou menos o que ele dizia,<br />
mas, sobretudo, eram envolvidas em<br />
num espetáculo de som, luz, drama,<br />
muito mais espetacular; e assim iam<br />
a essas manifestações sem se preocuparem<br />
muito com o que no fun-<br />
do era dito sobre o capitalismo, um<br />
pouco como quem vai à missa, para<br />
a cerimônia, para encontrar os amigos,<br />
os cheiros, a música, sem ouvir<br />
muito bem o que diz o padre,<br />
exceto, é claro, em momentos excepcionais.<br />
Para os nazis, era perfeitamente<br />
normal utilizar os filmes como instrumento<br />
de massas para fazer passar<br />
as suas idéias, e é o que explica,<br />
primeiro, que tenham conferido<br />
às pessoas que faziam cinema<br />
uma dignidade de criadores, que<br />
não lhes teria sido reconhecida na<br />
sociedade burguesa, porque aí o<br />
criador era o escritor, o professor.<br />
É de notar que Goebbles tenha dito<br />
“quando ouço falar de cultura puxo<br />
o revólver”. Ora, para ele, a cultura<br />
eram os textos, os livros, a ponto<br />
de queimar os livros hostis. Desenvolveram<br />
a sua visão da sociedade<br />
alemã através dos filmes porque<br />
para eles era o meio de continuar<br />
a comunicação global com<br />
milhões de pessoas, que encontravam<br />
no filme as duas horas de repouso,<br />
de divertimento, de que todas<br />
as pessoas têm necessidade<br />
quando vivem numa sociedade em<br />
que trabalham, em que a vida é<br />
difícil. Houve, portanto, uma compreensão<br />
global do fenômeno cinematográfico<br />
muito maior, o que<br />
não quer dizer que os filmes da<br />
época nazi tenham tido um papel<br />
particularmente importante: foram<br />
numerosos, atraíram o público,<br />
mas sabe-se que, do ponto de vista<br />
artístico, não foram os melhores.<br />
O certo é que não se pode medir<br />
se essa política cinematográfica<br />
teve êxito, sabe-se apenas que ela<br />
foi um dos pontos principais da<br />
política nazi.<br />
M: E isso explica certamente o gesto<br />
de Goebbles enquanto discursava...<br />
MF: Sim, no filme que montei vêse<br />
que Goebbles estudava e ensaiava<br />
os seus discursos, um pouco<br />
como hoje na televisão, depois da<br />
vitória de Kennedy, todos os homens<br />
políticos franceses sabem que<br />
é necessário ter muita atenção à<br />
imagem que dão de si na televisão.<br />
Agora os homens políticos têm lições<br />
com atores, exigem ver a gravação<br />
para saber com que cara ficam,<br />
como falam, e isso foram os<br />
nazis os primeiros a compreender,<br />
porque utilizavam o cinema como<br />
se utiliza hoje a televisão.<br />
M: Essa importância dada pelos nazis<br />
ao cinema explica de algum modo<br />
a insistência com que convidam os<br />
cineastas alemães que estavam no<br />
estrangeiro a regressar à Alemanha.<br />
Foi o que se passou com Fritz Lang,<br />
a quem convidaram a ficar em Berlim<br />
para dirigir o departamento de<br />
cinema alemão. O mesmo, aliás,<br />
aconteceu com outros cineastas.<br />
MF: Sim, para os nazis do estadomaior,<br />
no fundo, foram os cineastas<br />
que desempenharam o papel que<br />
para os outros dirigentes de organizações<br />
políticas desempenhava a<br />
cultura escrita. Hitler, para só dar<br />
um exemplo, sabemo-lo hoje, utilizava<br />
os gestos que em M, o vampiro<br />
de Dusseldorf são gestos do<br />
chefe das organizações de gangsters<br />
da cidade. Quando se conhece bem<br />
o filme de Lang e se vê as imagens<br />
dos discursos de Hitler, percebemos<br />
como ele copia, como faz exatamente<br />
os mesmos gestos. O que<br />
quer dizer que para os nazis os cineastas<br />
foram uma espécie de pais-<br />
educadores do ponto de vista cultural.<br />
Talvez não seja tão claro<br />
como isto, de qualquer modo foi<br />
esse seu papel. Do mesmo modo<br />
que um regime político como o<br />
comunista quis conservar os seus<br />
intelectuais, para ter uma grande<br />
imagem da marca cultural, os nazis<br />
quiseram conservar os cineastas,<br />
e Goebbles e Hitler pediram a<br />
Fritz Lang para não partir. Ele respondeu<br />
“mas sou judeu, serei perseguido”,<br />
ao que eles replicaram<br />
“não, não, não, não. Você é cineasta,<br />
portanto o caso é diferente”.<br />
M: E, no entanto, Lang não ficou,<br />
apesar de muitos o considerarem<br />
um homem de direita.<br />
MF: Não creio que se possa considerar<br />
Lang como um homem de<br />
direita. Lembre-se que em Metropolis,<br />
por exemplo, que é seu filme<br />
político mais claro, ele se situa na<br />
perspectiva da exploração dos trabalhadores<br />
pelo capital. Hoje dizemos<br />
que o filme é de direita porque<br />
no final os operários, ou antes,<br />
o contramestre – e as pessoas<br />
nunca repararam que é o contramestre<br />
– aperta a mão do patrão.<br />
Nós hoje, e à distância que o tempo<br />
permite, damo-nos conta de que<br />
o filme transforma a luta de classes<br />
numa colaboração de classes. Aliás,<br />
já em 1930 algumas revistas<br />
notaram isso, não muitas, mas algumas.<br />
Mas é porque, segundo a<br />
nossa análise de hoje, a colaboração<br />
de classes corresponde a uma<br />
opção dos corporativistas e de um<br />
certo número de organizações de<br />
direita para esconder e para aniquilar<br />
a luta de classes, que podemos<br />
ser levados a dizer que Fritz<br />
Lang é um homem de direita.<br />
M: Brecht disse, sobre as posições<br />
de Lang na América: é um tipo que<br />
procura posições privilegiadas em<br />
Hollywood, que tenta fazer esquecer<br />
que é um exilado, mas nem por<br />
isso deixa de apresentar para explicar<br />
o seu exílio razões de ordem<br />
política, e que se aproveita desse<br />
estatuto para defender os seus interesses,<br />
que são, afinal, ganhar alguns<br />
milhões.<br />
MF: De acordo; mas apresentado<br />
da maneira como o faz Brecht e lido<br />
hoje, pode-se dizer que Fritz Lang<br />
visa alcançar uma glória pessoal, o<br />
lucro, o que não o define necessariamente<br />
como um homem de direita<br />
ou de esquerda, porque muita<br />
gente procura a glória e o lucro,<br />
e no entanto estes tomam formas<br />
diferentes: uns amam o dinheiro,<br />
outros o poder. Isto é um primeiro<br />
ponto. Agora um segundo ponto:<br />
quando se fala de Hollywood e,<br />
sobretudo, quando este é visto através<br />
de Brecht, tem-se imediatamente<br />
uma imagem de capitalismo...<br />
Mas é preciso dar conta de um certo<br />
aspecto de Hollywood e dos Estados<br />
Unidos: enquanto Fritz Lang<br />
está em Hollywood, a América é o<br />
país do mundo que combate mais<br />
fortemente o nazismo. É preciso<br />
não esquecer que Roosevelt foi o<br />
primeiro antinazi, com muito mais<br />
vigor do que o que tiveram na mesma<br />
altura os dirigentes políticos<br />
franceses, com muito mais lucidez<br />
que os franceses ou os ingleses; que<br />
Roosevelt é o democrata americano<br />
e que todos os refugiados de<br />
todos os países mantiveram na<br />
América um discurso antifascista<br />
muito mais conseqüente do que nos<br />
outros lugares. Foi a América a<br />
primeira a armar-se... Sem dúvida<br />
37
F ALSIFICAÇÕES ALSIFICAÇÕES<br />
REVOLUÇÕES<br />
que foi surpreendida em Pearl Habour<br />
por um erro do estado-maior,<br />
o que não passa de um detalhe, mas<br />
Roosevelt esteve dez vezes mais<br />
atento ao perigo de fascistização e<br />
nazificação da Europa e do mundo.<br />
No contexto americano foram<br />
feitos muitos filmes antinazis, mas<br />
não se fizeram filmes antinazis na<br />
França ou na Inglaterra. Se vocês<br />
virem filmes ingleses de 1935-<br />
1940, perceberão que os maus, os<br />
espiões, têm sotaque russo. O anticomunismo<br />
é mais forte do que<br />
o antinazismo no nível da classe<br />
dirigente, o que não se passa na<br />
América. Na América, antes de<br />
1942, o anticomunismo existe, é<br />
provável, mas não é virulento, não<br />
é de modo nenhum violento, enquanto<br />
o antinazismo é extremamente<br />
vigoroso. Antes de 1941-<br />
1942, antes da declaração de guerra,<br />
fizeram-se mais de cinqüenta<br />
filmes antinazis nos EUA e paralelamente<br />
mostravam-se filmes soviéticos,<br />
enquanto na França não se<br />
mostravam filmes soviéticos e não<br />
se faziam filmes antinazis, e do<br />
mesmo modo na Inglaterra.<br />
M: E na URSS?<br />
MF: Também os soviéticos fizeram<br />
um certo número de filmes antinazis,<br />
fizeram uma boa dúzia deles, e<br />
mesmo no momento do Pacto, o que<br />
prova que nem tudo estava bem organizado,<br />
se é que posso me exprimir<br />
assim. Não pretendo defender<br />
Fritz Lang, mas apenas refletir sobre<br />
o seu comportamento. Fritz Lang<br />
poderia considerar que estava num<br />
país onde podia julgar da natureza<br />
do nazismo, dizer aos americanos o<br />
que se passava. No interior desse<br />
quadro geral, em que tinha boa cons-<br />
ciência de cumprir o seu dever de<br />
democrata, talvez tenha procurado o<br />
seu lucro pessoal, mas daí a dizer que<br />
é um homem de direita corresponde<br />
a não enquadrar as coisas no seu verdadeiro<br />
lugar na época.<br />
M: Os revolucionários não podem<br />
usar o cinema como fizeram os<br />
nazis, com constante manipulação;<br />
o que era possível fazer então? Por<br />
exemplo, o que fizeram os russos<br />
depois da Revolução para despertar<br />
a consciência das pessoas para<br />
alguns de seus problemas?<br />
MF: A experiência soviética de utilização<br />
do cinema é muito particular,<br />
e isto se deve ao fato de os comunistas<br />
russos, os bolcheviques,<br />
não terem qualquer cultura cinematográfica,<br />
exceto talvez Lunatcharsky,<br />
não pensaram noutra coisa senão<br />
em dominar o cinema, mas fizeram-no<br />
de uma forma superficial.<br />
Durante alguns anos houve um cinema<br />
de revolução, Eisenstein,<br />
Pudovkin, mas digamos que este<br />
cinema escapava às instâncias bolcheviques,<br />
isto é, ao partido; é por<br />
isso que o acolhimento dado a esses<br />
filmes na Rússia e nomeadamente<br />
pelo partido bolchevique não era<br />
entusiástico. “De acordo, o Encouraçado<br />
Potemkin é muito bom”,<br />
mas já Outubro esteve sujeito a<br />
muitas críticas e A greve ainda<br />
mais. Por quê? Porque esses cineastas<br />
escapavam à organização do<br />
Partido Comunista e contavam a<br />
Revolução como a tinham visto, e<br />
na sua história da revolução nunca<br />
falavam do partido bolchevique. Se<br />
repararem bem, nos filmes de Eisenstein<br />
nunca se fala do partido<br />
bolchevique, exceto em alguns inserts,<br />
o que não entra na estrutura<br />
do argumento, no cerne da história<br />
da revolução. São as massas, são<br />
os sovietes, são os comitês, os soldados,<br />
os camponeses, os operários<br />
que fazem a revolução, mas não<br />
o partido. Assim, a cada passo falase<br />
do partido operário, mas para<br />
que não fique esquecido, embora<br />
não entre no argumento, se é que<br />
posso me exprimir assim. Em Outubro<br />
fala-se um pouco de Lenin,<br />
mas o partido como força organizacional<br />
não está presente. O resultado<br />
é que os dirigentes comunistas<br />
ficaram contentes com esse<br />
cinema, porque era um cinema<br />
grandioso, belo, que glorificava e<br />
justificava o sucesso da Revolução,<br />
mas não tinha a mesma preocupação<br />
que os dirigentes em mostrar<br />
o papel do próprio partido bolchevique.<br />
Nesses filmes compreendem-se<br />
um pouco todos os revolucionários,<br />
os socialistas revolucionários,<br />
os mencheviques, os bolcheviques...<br />
Não, os mencheviques<br />
são criticados... Não é claramente<br />
definida a identidade de cada grupo,<br />
todos são revolucionários, só<br />
que há os bons e os maus, mas no<br />
interior dos bons não são mostradas<br />
as categorias. Os comunistas<br />
levaram muito tempo para compreender<br />
esses problemas, e houve<br />
muitos filmes que podem ser qualificados,<br />
que eles, os bolcheviques,<br />
qualificaram de contra-revolucionários,<br />
durante a Revolução, em<br />
1917, 18, 19, 20, 25, 28... Vi alguns<br />
filmes que são a favor da revolução<br />
mas contra o partido bolchevique.<br />
O partido bolchevique<br />
acabou por compreendê-lo, e a partir<br />
de 1927, 1928, o que se chama<br />
de época stalinista, mas não ainda<br />
a era de Stalin, mas sim de Jdanov<br />
etc., quis fazer filmes que exprimis-<br />
sem a visão dos dirigentes. É a época<br />
de filmes como Tchapaiev, dos<br />
irmãos Vassiliev, que é um exemplo<br />
típico; é também a época dos<br />
filmes de Donskoi, a versão da Mãe<br />
feita por Donskoi é completamente<br />
diferente da primeira versão, de<br />
Pudovkin, é muito mais do lado dos<br />
bolcheviques do que A mãe de Pudovkin,<br />
que era mais revolucionária<br />
e nada bolchevique.<br />
Esse cinema terá tido mais eficácia?<br />
Não se pode dizer, porque<br />
quanto ao primeiro não se sabe se<br />
chegou a ser eficaz, porque o público<br />
russo que vivia nas cidades e<br />
que compreendia, muitas vezes<br />
militava no partido e era formado<br />
por revolucionários da França ou<br />
da Espanha, que diziam “que belos<br />
filmes revolucionários”. E as massas<br />
populares não compreendiam<br />
uma linguagem cinematográfica tão<br />
vanguardista, tão modernista como<br />
a de Eisenstein, por exemplo. As<br />
alegorias e os símbolos não eram<br />
compreendidos. Era um cinema<br />
para cineastas ou para pessoas esclarecidas.<br />
Não se pode dizer se<br />
esse cinema foi eficaz mesmo em<br />
relação à própria Rússia. Penso que<br />
só após mais de vinte anos é que os<br />
cineastas soviéticos têm um papel<br />
na sociedade; em filmes como Lágrimas<br />
ou como Soyez les bienvenus,<br />
nos filmes da época da desestalinização,<br />
sobretudo no período de Krutchev,<br />
é que os cineastas têm oportunidade<br />
de desempenhar o papel<br />
que desejam na sociedade, isto é,<br />
alertar as pessoas para os problemas.<br />
Para responder à sua pergunta, penso<br />
que numa outra sociedade, revolucionária,<br />
o problema é um pouco<br />
diferente. Penso que o fim do ca-<br />
minho será no dia em que toda gente<br />
tiver uma câmera ou uma máquina<br />
fotográfica para tomar consciência<br />
por si mesma das coisas importantes.<br />
No início, isto não é ainda<br />
pensável por razões econômicas e<br />
sobretudo por razões de mentalidade.<br />
Aqui, por exemplo, neste país,<br />
é evidente que a função revolucionária<br />
do filme não é compreensível<br />
de modo nenhum, as pessoas vão<br />
querer primeiro ver os filmes que<br />
lhes dêem prazer porque sofreram<br />
muito; sendo assim, penso que se<br />
quisermos evitar essa fase, será um<br />
fracasso. É necessário que as organizações<br />
revolucionárias, utilizando<br />
o cinema, façam uma seleção cuidadosa<br />
dos filmes, para que a sua<br />
mensagem não seja contra-revolucionária;<br />
é preciso que a mensagem<br />
seja compreendida, que não seja demasiado<br />
difícil, mas é necessário<br />
que as pessoas que vão vê-los tenham<br />
um pouco de prazer na vida, e que<br />
associem também as organizações e<br />
os filmes que vêem às pessoas que<br />
participam na sua emancipação. Se<br />
se começar a fazer filmes de vanguarda,<br />
filmes sobre lutas em fábricas,<br />
não me parece que as pessoas a<br />
quem os filmes dizem respeito possam<br />
ver nesse cinema de combate o<br />
que desejam os organizadores. Verão<br />
esse cinema como um jornal político<br />
que, como qualquer outro,<br />
dará origem a discussões criadoras<br />
certamente, mas que só terão efeito<br />
sobre pequenos grupos, muito reduzidos.<br />
Os filmes militantes na<br />
França têm sucesso em meio operário,<br />
camponês... O filme O Lazarc,<br />
por exemplo, não teve sucesso no<br />
Lazarc, só teve sucesso em Paris,<br />
entre aqueles que protestam por causa<br />
do Lazarc. Penso que é necessário<br />
refletir esses problemas e que um<br />
filme político não é necessariamente<br />
um filme para militantes, um filme<br />
pode exercer uma função política<br />
por outros meios. E pessoalmente<br />
creio que os filmes devem ser um<br />
pouco enquadrados, de uma maneira<br />
discreta: no programa de um cineclube<br />
se diz “vamos apresentar tal<br />
filme”, mas é preciso fazê-lo em<br />
quatro linhas e não em quatro páginas<br />
– este filme mostra de que modo<br />
um operário pode ser explorado sem<br />
dar por isso em determinada situação.<br />
E basta. Depois se mostra o<br />
filme, e se for agradável, a pessoa<br />
reflete. Isto numa primeira etapa.<br />
M: Aqui em Portugal foi apresentado<br />
o Encouraçado Potemkin em fábricas<br />
e quartéis e o resultado foi bom!<br />
MF: Sim, mas o Encouraçado é um<br />
filme que se pode mostrar por toda<br />
parte e em qualquer momento. Não<br />
está entre os filmes que foram contestados,<br />
é um filme que tem um<br />
sucesso universal. Mas não se pode<br />
passar eternamente o Encouraçado...<br />
Aliás, penso que o sucesso do<br />
Encouraçado faz refletir. Assim,<br />
enquanto as estruturas sociais de<br />
diferentes países são variáveis –<br />
Espanha, França, Itália, Rússia –,<br />
a estrutura interna de uma organização<br />
militar como o exército ou a<br />
marinha é semelhante. Isto quer<br />
dizer que um marinheiro português<br />
compreende todo o Encouraçado,<br />
um oficial português, grego, turco<br />
ou argentino também compreende<br />
tudo. Mas se for um filme sobre a<br />
classe operária, ou sobre a burguesia,<br />
ou o prazer e erotismo da vanguarda<br />
parisiense, não estou certo<br />
de que seja compreendido noutros<br />
países. É necessário refletir um<br />
pouco sobre a história paralela das<br />
39
In Mount, Christopher. Stenberg brothers: constructing<br />
a revolution in soviet design. New York: The Museum of Modern Art, 1997<br />
F ALSIFICAÇÕES ALSIFICAÇÕES<br />
REVOLUÇÕES<br />
Cartaz de Outubro<br />
sociedades para ver se um filme<br />
pode ou não funcionar, pois há filmes<br />
que só funcionam na sociedade<br />
em que foram produzidos.<br />
M: O senhor falou de Eisenstein,<br />
Pudovkin... mas, e Vertov?<br />
MF: Creio que há dois Dziga Vertov,<br />
um que sonha com uma câmera-olho<br />
presente em toda parte, que<br />
faz atualidade de que eu gosto muito<br />
e é o inventor que compreendeu<br />
a função do cinema, sua função<br />
política e social, desse eu gosto<br />
muito. E há um outro Dziga Vertov,<br />
que é o mesmo, que faz filmes<br />
em que revela mais a vontade de<br />
poder do cineasta de utilizar as imagens<br />
para comunicar a sua visão do<br />
mundo, é o caso de O homem da<br />
câmera, e onde utiliza essencialmente<br />
efeitos de cinema, uma prática<br />
muito refinada e muito refletida da<br />
capacidade do cinema de criar o<br />
sonho, uma certa visão da realidade,<br />
este Dziga Vertov interessame<br />
menos do ponto de vista das<br />
lutas políticas e sociais e desconfio<br />
disso como desconfio de todas<br />
as instâncias que utilizam um processo,<br />
seja ele qual for, para conseguir<br />
poder. Desse Dziga Vertov<br />
já não gosto. Mas é uma questão<br />
de gosto pessoal. Há demasiadas<br />
pesquisas técnicas com o fim de<br />
justificar o direito do criador, do<br />
artista, de mostrar a sua visão da<br />
sociedade e da realidade. No fundo,<br />
nos filmes desse Dziga Vertov,<br />
como em O homem da câmera, os<br />
problemas sociais foram esquecidos,<br />
há muitos efeitos de câmera.<br />
Mas, e numa perspectiva revolucionária,<br />
como é a Rússia de 1926?<br />
Utilizar a câmera de doze maneiras<br />
para representar uma realidade<br />
seria o trabalho fundamental?<br />
E o outro Vertov, o revolucionário,<br />
teria compreendido que, pela captação<br />
da realidade com a câmera,<br />
se pode educar, se pode ajudar a<br />
elevar o nível de consciência geral?<br />
O segundo Vertov não terá matado<br />
o primeiro? Ao dizer isto, vou contra<br />
os fanáticos de Dziga Vertov.<br />
M: E nota-se diferença na recepção,<br />
por parte do povo e dos dirigentes<br />
russos, do primeiro Dziga<br />
Vertov relativamente ao segundo?<br />
MF: Sim, e mesmo com Eisenstein.<br />
Sabe-se que no filme A greve, a<br />
cena do talho, onde Eisenstein alterna<br />
os planos de fuzilamento dos<br />
camponeses com o plano do talho<br />
em que se abatem reses, o sangue<br />
dos bois simbolizando o sangue dos<br />
operários, é uma alegoria para explicar<br />
que o Estado se comporta<br />
como um carniceiro relativamente<br />
à sociedade. O espectador russo<br />
culto, da intelligentsia, compreende,<br />
e hoje nós, na França, em Portugal,<br />
que temos estudos, que temos<br />
uma formação clássica, que<br />
sabemos o que é um discurso, uma<br />
alegoria, uma representação, um<br />
símbolo, um parêntese, compreendemos<br />
essa linguagem, mas o próprio<br />
Eisenstein contou que, quando<br />
apresentou o filme no campo,<br />
os camponeses riram e disseram:<br />
“Olha, olha, agora nos mostram<br />
bois, por quê?” Por outro lado,<br />
nem sequer ficaram emocionados<br />
ao ver correr todo aquele sangue,<br />
porque matar um boi para um<br />
camponês é uma coisa banal, cotidiana<br />
e de nenhum modo o símbolo<br />
de um crime, pelo que a intenção<br />
do filme, que consistia em<br />
dramatizar a maneira como o regime<br />
czarista assassinava os trabalhadores,<br />
falhou por completo.<br />
Portanto o cineasta deve refletir e<br />
saber para quem se dirigem os seus<br />
filmes, sob pena de que o discurso<br />
se perca completamente.<br />
M: Que trabalho é necessário para<br />
filmar a História?<br />
MF: Refere-se à história que se faz<br />
ou à história do passado?<br />
M: Talvez seja melhor o senhor dividir<br />
a sua resposta segundo as suas<br />
conveniências. De qualquer modo,<br />
eu estava falando em A tomada do<br />
poder por Luís XIV, de Rosselini, e<br />
nos filmes de Allio, mas também<br />
nos seus filmes sobre a história<br />
contemporânea. São duas maneiras<br />
diferentes de filmar a história. E<br />
de qualquer maneira, a I Guerra<br />
Mundial também já é passado.<br />
MF: Então eu vou responder a essas<br />
questões de maneira diferente.<br />
Primeiro, creio que não há fronteiras<br />
entre o passado e o presente...<br />
Pode-se filmar ao mesmo tempo o<br />
passado e o presente. O que quer<br />
dizer que se pode muito bem fazer<br />
um filme, como eu nunca fiz, mas<br />
que talvez venha ainda a fazer, que<br />
mostra como numa sociedade – vocês<br />
podem pensar em Portugal e eu<br />
na França ou na Itália, tanto faz – o<br />
que se julga ser o presente, participa<br />
em camadas, níveis, sedimentações<br />
de épocas diferentes. Quer dizer, há<br />
nos comportamentos sociais, individuais<br />
ou coletivos, seções que são<br />
completamente modernas, atuais, no<br />
discurso como na realidade social,<br />
que são criação imediata, há seções<br />
que derivam da experiência de toda<br />
uma vida, há seções que participam<br />
de duas ou três gerações, como há<br />
as que participam de uma história<br />
fortemente enraizada. Para dar apenas<br />
um exemplo, veja-se o caso em<br />
que há um comportamento social<br />
muito modernista e revolucionário<br />
e um comportamento familiar muito<br />
tradicional e reacionário. Ou o inverso,<br />
pode-se ter um comportamento<br />
familiar e sexual modernista e um<br />
comportamento profissional e técni-<br />
In Mount, Christopher, op. cit.<br />
co tradicionalista. Por conseguinte,<br />
creio que um dos trabalhos do filme<br />
é tentar referenciar os estratos numa<br />
realidade social e ver o peso relativo<br />
da modernidade, da tradição e das<br />
permanências, que não são sequer<br />
compreendidas como permanências,<br />
na família, no trabalho artesanal ou<br />
noutra coisa. Isto, para dizer que a<br />
oposição formal entre a história do<br />
presente e a história do passado não<br />
me parece ser uma oposição exata.<br />
E eu diria que os filmes correspondem<br />
a duas categorias (não filmes<br />
sobre o séc. XX ou filmes sobre o<br />
passado, como Allio etc.): os filmes<br />
que sobre o passado fazem compreender<br />
o presente e filmes que sobre<br />
o passado ficam fechados no passado<br />
e não têm utilidade ou significação<br />
para explicar o presente.<br />
É por isso que a escolha do período<br />
me parece um falso problema,<br />
ou melhor, um problema que depende<br />
de imperativos técnicos,<br />
porque não se pode fazer um filme<br />
sobre a época de Luís XIV da mesma<br />
maneira que um filme sobre a<br />
revolução portuguesa. No entanto<br />
não estou assim tão certo disso. Se<br />
eu fosse com um gravador de som<br />
ou uma câmera para uma região<br />
qualquer e interrogasse os campo-<br />
neses, doutores, e padres sobre o<br />
que se passou há cinqüenta anos,<br />
cem anos, sobre as recordações que<br />
têm, sobre o que lá se conta sobre<br />
o cerco de La Rochelle na época<br />
de Luís XV, ao mesmo tempo que<br />
obtendo uma narração do que<br />
numa aldeia se conservou como<br />
recordação do que se contava, mesmo<br />
que falso, estou mais próximo<br />
de uma história do passado, que é<br />
recente e atual porque dela ficou o<br />
rasto. Se, por outro lado, utilizar as<br />
gravuras do Museu do Louvre sobre<br />
o cerco de La Rochelle no Poitou<br />
e frases de Luís XIII e de Mazarino<br />
ou de Richelieu, já não sei<br />
bem, sobre o que diziam os protestantes,<br />
e o que diziam os católicos,<br />
faço um filme que pode ser mais<br />
histórico, mas que não tem de modo<br />
algum a mesma função. Para mim,<br />
a fronteira não é entre o passado e<br />
o presente, mas entre os filmes ou<br />
as obras escritas (e aí não faço distinção)<br />
que têm uma prolongação no<br />
presente, que fornecem uma explicação<br />
do nosso tempo, e as obras,<br />
filmes, escritos ou livros que permanecem<br />
no passado, como um<br />
sonho, como uma evasão, sem que<br />
o leitor ou o espectador faça uma<br />
ligação particular com sua situação<br />
ou o seu estatuto atual.<br />
Cartaz de O Encouraçado<br />
Potemkin<br />
41
Estudantes franceses<br />
montam barricada<br />
no Quartier Latin.<br />
Paris, França,<br />
23/5/1968. Acervo<br />
Correio da Manhã<br />
AN PH/FOT/ 4320(43)
Sheila Schvarzman<br />
Multimeios da Unicamp.<br />
Cinema, história<br />
e Marc Ferro<br />
Doutora em História pela Unicamp, professora visitante do Programa de Pós-Graduação do Departamento de<br />
In Cadernos do Terceiro Mundo<br />
Passados mais de trinta anos do surgimento<br />
dos estudos sobre cinema e história, já é<br />
possível historiar como e por que filmes começam<br />
a interessar os historiadores. Se visões<br />
de história são datadas, as formas de abordálas<br />
também. Cabe então revê-las. Se escrever<br />
a história é um exercício incessante, se visões<br />
se sobrepõem umas as outras, este texto tratará<br />
não apenas de como se pode trabalhar historicamente<br />
com filmes, mas sobretudo de<br />
como esse trabalho foi também historicamente<br />
determinado. 1<br />
É da natureza do cinema registrar a realidade.<br />
Pode-se especular sobre o fato de esta arte<br />
aparecer no século do realismo, em que a literatura<br />
se empenhou em copiar a natureza, em<br />
recriar os fatos tal como são susceptíveis de<br />
acontecer.<br />
Se durante anos foi possível discutir se o cinema<br />
era ou não uma arte, tal disputa ocorria<br />
exatamente a partir da capacidade do cinema de<br />
reproduzir as coisas tais como são. Em A arte do<br />
cinema, Rudolph Arnheim compara as possibilidades<br />
do cinema com as da pintura:<br />
“Na pintura, o caminho da realidade ao quadro<br />
passa pelo olhar do artista, seu sistema nervoso, sua<br />
mão, e por último pelo pincel que aplica toques sucessivos<br />
sobre a tela. O processo nada tem de mecâni-<br />
co, ao contrário do que se produz na fotografia, em<br />
que a reflexão de raios luminosos sobre um objeto,<br />
ligada por um sistema de lentes e dirigida sobre uma<br />
placa luminosa, provoca precipitações químicas”. 2<br />
Essa natureza “objetiva” destina ao cinema<br />
o papel de produtor constante de documentos<br />
sobre a realidade e a maneira como se constitui.<br />
Puras ficções ou o que efetivamente acontece,<br />
a presença da câmera é a garantia de permanência.<br />
3 Assim, a história está inscrita no<br />
cinema: a trama das imagens absorve, conscientemente<br />
ou não, o momento histórico de sua<br />
produção: móveis, roupas, penteados e gestos<br />
documentam modos de se relacionar com as<br />
coisas, testemunham maneiras de observá-las.<br />
Quer se trate de um filme histórico (como O<br />
Encouraçado Potemkin, de Eisenstein, de<br />
1925), quer de um drama (Sangue mineiro, de<br />
Humberto Mauro, de 1929), as imagens que<br />
deslizam sobre a tela oferecem um ângulo privilegiado<br />
de observação – ao mesmo tempo<br />
constroem e são essa realidade. Diante do mais<br />
simples dos filmes (digamos, A chegada do trem<br />
na gare Ciotat, dos irmãos Lumière, de 1895),<br />
o observador não pode se furtar à constatação<br />
tão óbvia quanto revolucionária: esses seres que<br />
desfilam na tela existiram; a locomotiva, os funcionários,<br />
as pessoas que aguardam na plataforma<br />
nos informam sobre uma maneira de estar<br />
nas coisas, de presenciá-las, de experimentá-las.<br />
1 “A historicidade obriga a inserir a história numa perspectiva histórica. Há uma historicidade da história que implica o<br />
movimento que liga uma prática interpretativa a uma prática social”. LE GOFF, Jacques. Enciclopédia Eunaudi. Lisboa:<br />
Einaudi, 1984, p. 159. 2 ARNHEIM, Rudolf. A arte do cinema. Lisboa: Aster, 1960 (original de 1933), p. 21. 3 BAZIN,<br />
André. Qu’est-ce que le cinéma? Paris: Cerf, 1975, p. 9.<br />
REVOLUÇÕES<br />
45
,<br />
M<br />
F<br />
C INEMA INEMA,<br />
INEMA , HISTÓRIA HISTÓRIA E MMARC<br />
M ARC FFERRO<br />
F ERRO REVOLUÇÕES<br />
No entanto, o cinema foi desdenhado pelos<br />
historiadores porque se baseia em imagens, é invenção<br />
que ilude o espectador com montagens, truques<br />
e técnicas que fogem ao seu campo de conhecimentos.<br />
Mas a história é tão diferente assim?<br />
Marc Ferro, história,<br />
historiografia e cinema<br />
Quando Marc Ferro se decide pelo estudo<br />
do cinema como fonte historiográfica (1969), as<br />
bases de seu pensamento histórico já estavam<br />
lançadas. Historiador da Revolução Russa, enfrenta<br />
constantemente o controle dos documentos<br />
necessários à sua pesquisa nos arquivos de<br />
Moscou. O cinema será uma fonte da qual lança<br />
mão para, evitando a censura às fontes escritas,<br />
poder realizar o seu trabalho de forma autônoma.<br />
Observando suas obras, quer tratem da relação<br />
com o cinema, ou da Revolução Russa, notaremos<br />
como é pela exposição da pluralidade<br />
de visões sobre um mesmo objeto que monta a<br />
sua argumentação. Da La Révolution Russe de<br />
1917 – Octobre, naissance d’une societé, de 1976, 4<br />
até o programa de televisão “Histoire Parallèle”,<br />
que apresentou numa emissora francesa (1989-<br />
2002), onde são analisados filmes de atualidades<br />
que enfocam um mesmo assunto de diferentes<br />
pontos de vista – alemão e francês, por exemplo<br />
–, o que torna a história possível, no seu<br />
exercício, é a pluralidade e a contraposição de<br />
visões. Trabalhando o cinema, Ferro contesta<br />
o poder do historiador que determina o que é<br />
ou não digno de história.<br />
Em entrevista em 1975, Ferro falava do ofício<br />
do historiador como o de “devolver à sociedade<br />
a história tomada pelos aparelhos (Estado,<br />
partidos políticos, sindicatos etc.)”. Assim fazendo,<br />
enuncia a pertinência política de seu ofício:<br />
um resgate que se propõe autônomo em relação<br />
aos documentos pesquisados e às visões históri-<br />
cas já existentes, produzidas sob a influência de<br />
partidarismos que o historiador deve criticar e<br />
dos quais deve ser capaz de se desprender, e contra<br />
uma visão una que, necessariamente, implica<br />
a sobreposição de outras.<br />
Isso significa dizer que, a partir do cinema,<br />
é possível mostrar as virtualidades de uma história<br />
crítica em seus pressupostos, que se faz não<br />
pela reunião de documentos, mas pelo seu contraponto,<br />
pela tensão que se estabelece entre eles.<br />
Múltipla e multifacetada.<br />
No segundo tomo do livro sobre a Revolução<br />
Russa, Outubro, nascimento de uma sociedade,<br />
por exemplo, Ferro opõe a “revolução imaginada<br />
e a revolução imaginária”. Compõe um<br />
quadro de como os diferentes segmentos sociais<br />
construíram suas idéias e ideais sobre a revolução,<br />
e de como esta foi vivenciada na prática. A<br />
partir daí é capaz de mostrar qual das visões prevaleceu<br />
e de que forma o seu grupo porta-voz<br />
pôde dominar pela força, pela censura e pelo<br />
controle da sociedade, os outros sentidos que<br />
informavam a revolução na sua origem. Esse grupo<br />
detém a “verdade”, a visão que preponderou<br />
sobre as outras e que justificou toda a opressão<br />
e o controle em seu nome. “A revolução, tal como<br />
os revolucionários a haviam imaginado antes de<br />
1917, era uma revolução imaginária. No entanto,<br />
como, de acordo com suas previsões, ela havia<br />
efetivamente estourado, eles não colocaram<br />
em causa nem suas análises, nem suas certezas.” 5<br />
A história não se organiza por uma verdade<br />
que o historiador descobre e elege nos documentos.<br />
Ao contrário, o historiador assinala a fatuidade<br />
desses documentos, e a sua constante ressignificação<br />
a serviço de cada momento histórico,<br />
em busca de autonomia, contra a imposição<br />
de verdades “universais” que instrumentalizam o<br />
domínio de uma cultura pela outra. É a emergência<br />
do discurso do “outro”, não apenas daquele<br />
por quem a história sempre foi escrita.<br />
4 FERRO, Marc. La Révolution de 1917, 2. Octobre, naissance d’une société. Paris: Aubier-Montaigne, 1976. 5 Ibidem, p. 13.<br />
Dessa forma, de uma maneira singular, própria,<br />
Ferro se juntava a seus pares que nos anos<br />
de 1970 já procuravam abrir a história para aqueles<br />
a quem o discurso histórico tinha antes calado:<br />
operários, mulheres, pobres, camponeses,<br />
povos colonizados. Se Michelle Perot, Le Goff,<br />
Pierre Nora, Le Roy Ladurie procuravam demarcar<br />
seus campos e seus objetos, Ferro o fazia<br />
tendo por tema a construção de uma nova sociedade<br />
e, por fonte, expressões próprias ao tempo<br />
que interrogava, dentre elas, o cinema. Assim,<br />
Cinema e história foi gestado como uma tática<br />
de guerrilha do conhecimento histórico.<br />
Esta idéia – apenas aparentemente cabotina<br />
– expressa, com termos vizinhos ao universo<br />
que a gestou, a natureza dos processos e<br />
das questões de que procura dar conta.<br />
Quando Ferro começou a usar o filme para<br />
estudar a União Soviética, em 1969, o cinema<br />
fazia o papel de partisan 6 que, clandestinamente,<br />
furava o cerco do inimigo poderoso no seu próprio<br />
campo. Através dele, obtinha um conhecimento<br />
parcial, aos pedaços, e que tirava sua riqueza<br />
não de um corpo documental coerente,<br />
mas elementos de contraponto que, ao fornecerem<br />
uma outra visão sobre o mesmo tema, eram<br />
capazes de colocá-lo em questão.<br />
Se essas imagens de “combatente clandestino”<br />
aparecem, elas não vêm por acaso. Em<br />
primeiro lugar, evocam o universo que Ferro<br />
estudou inicialmente, a União Soviética, a eclosão<br />
de uma revolução. Em segundo lugar, o<br />
momento em que Ferro trabalhou essas idéias:<br />
depois de 1968. Evocam também menções discretas<br />
de Ferro a sua participação na Resistência<br />
durante a guerra, o quanto esse período é<br />
embaraçoso para os franceses. Evocam a Europa,<br />
e o universo de onde tudo isso se origina.<br />
E evocam também os Annales e seus primeiros<br />
historiadores.<br />
Uma relação datada?<br />
A relação entre história e cinema, como foi<br />
desenvolvida por Marc Ferro no início dos anos<br />
de 1970, é determinada pela natureza dos fenômenos<br />
que analisava. Os filmes lhe dão a possibilidade<br />
de penetrar em dados que seria impossível<br />
acessar por outras fontes.<br />
As imagens, o caráter artístico e ficcional do<br />
cinema, dificultam o controle das instituições (Estado,<br />
partidos políticos, sindicatos etc.) sobre o seu<br />
conteúdo. Dificultam, sobretudo, o controle por<br />
burocratas acostumados a ver no som, e não na<br />
imagem, o verdadeiro perigo. O controle político<br />
incide sobre o som, sobre o que os personagens<br />
dizem, enquanto a censura moral é que corta o que<br />
o filme mostra. 7 A natureza do cinema permitia<br />
que lapsos de toda ordem se evidenciassem. Se havia<br />
censura, havia um conteúdo latente. E o cinema,<br />
baseado em imagens, permitia que esses fragmentos<br />
do não-dito aflorassem, apesar dos controles.<br />
Analisá-los possibilitava ao historiador o acesso a<br />
uma documentação inédita e diferente daquela encontrável<br />
nos arquivos controlados pelo Estado, ou<br />
pelo Partido Comunista.<br />
Antes disso, em 1964, Ferro participa como<br />
consultor histórico da produção de um documentário<br />
sobre a Primeira Guerra Mundial. O contato<br />
com os chamados “filmes de atualidade”, documentários<br />
e cinejornais produzidos oficialmente, leva o<br />
historiador a constatar, de imediato, a necessidade<br />
de conhecer a linguagem do meio para usá-lo como<br />
fonte. O Estado, produtor desses filmes, usa o efeito<br />
de credibilidade da imagem para “vender” os acontecimentos<br />
mostrados como absolutamente verídicos.<br />
Ferro encontrou entre esses filmes trechos<br />
em que a câmera filmava o exército inimigo de<br />
frente, atirando. Ora, isso supunha que o cinegrafista<br />
encarregado de fixar essas imagens fosse menos<br />
um cinegrafista do que um alvo privilegiado.<br />
6 Combatente clandestino da Resistência francesa durante a ocupação nazista na Segunda Guerra Mundial. 7 FERRO, Marc.<br />
Cinéma et histoire. Paris: Denoel, 1977, p. 85. Neste sentido, é interessante a consulta ao capítulo “Critique du document filmique,<br />
critique du film de montage” em FERRO, M. Analyse de film, analyse de sociétés. Paris: Hachette, 1976, p. 18 a 38.<br />
47
,<br />
M<br />
F<br />
C INEMA INEMA,<br />
INEMA , HISTÓRIA HISTÓRIA E MMARC<br />
M ARC FFERRO<br />
F ERRO REVOLUÇÕES<br />
Daí poder-se concluir que o documentário, em vez<br />
de documentar cenas “reais”, compunha-se com<br />
freqüência da montagem de cenas registradas no<br />
campo de batalha com outras, encenadas.<br />
Essa conclusão – hoje evidente – não invalida<br />
o “filme de atualidade”, nem o cinema em<br />
geral como fonte, embora reafirme a necessidade<br />
de o historiador colocar em xeque, permanentemente,<br />
suas fontes. De outro ponto de vista,<br />
ela chega a alargar, mesmo, a importância<br />
dessas imagens, na medida em que elas passam a<br />
informar, desde que vistas convenientemente,<br />
sobre uma série de outros fenômenos, que vão<br />
desde a batalha travada pelo controle e difusão<br />
da informação visual, seu impacto sobre o moral<br />
das populações, tal como visado pelos estadosmaiores,<br />
até o tipo de imagem que cada estado<br />
envolvido nos conflitos procura difundir deles: a<br />
sua “verdade”, tal como se traduz em imagens. 8<br />
A partir do estudo de uma série de filmes soviéticos,<br />
Ferro começa então a utilizar o cinema como<br />
fonte de uma outra história, que permite ao historiador<br />
criticar, reformular ou, ao contrário, reafir-<br />
AN PH/FOT/ 5622(1)<br />
Desfile militar na Praça Vermelha em comemoração aos 40 anos da Revolução Russa.<br />
Moscou, 9/11/1957<br />
mar o conhecimento existente a partir de documentos<br />
escritos. O segundo tomo de sua La Revolution<br />
Russe de 1917 (Octobre, naissance d’une societé)<br />
contém amostras da abrangência desse procedimento.<br />
É o caso de uma das cenas do filme A<br />
vida em um subsolo, de 1925: um casal consulta<br />
uma folhinha para calcular quando vai nascer o filho<br />
que esperam. O calendário, de tipo comum,<br />
tem a data de 1924: mas já está ornado por um<br />
grande retrato de Stalin. Ora, uma folhinha de 1924<br />
não poderia ter uma foto de Stalin: teria sido impressa<br />
em 1923. Em 1925, ao contrário, Stalin já<br />
se apossava pessoalmente, por assim dizer, do aparelho<br />
de Estado, inclusive o de propaganda. Assim,<br />
a folhinha do filme “erra”, do ponto de vista<br />
realista. Mas, é justamente quando pratica esse erro<br />
grosseiro que o filme torna-se um indicador precioso<br />
da cronologia da tomada do poder por Stalin,<br />
e dos métodos que usou para tomá-lo. Esses<br />
erros são reveladores da tensão entre o que se diz e<br />
o que se quer dizer, o que se pode e deve dizer. 9<br />
Isso lhe permite “legitimar a imagem como<br />
fonte histórica em relação às fontes sagradas, os<br />
textos oficiais, as estatísticas econômicas, os ar-<br />
8 Nesse sentido, ver capítulo “Critique du document filmique, critique du film de montage”, op. cit., p. 18 a 38. 9 FERRO, Marc.<br />
Cinéma et histoire, p. 104.<br />
quivos notariais”. 10 Desta forma, Ferro ataca dois<br />
problemas do historiador ao mesmo tempo: por<br />
um lado, romper com o controle sobre os documentos,<br />
e por outro, ter, diante de seus pares, uma justificativa<br />
suficientemente científica para a inclusão<br />
do cinema entre os seus objetos de interesse.<br />
A esse respeito é interessante notar que, se o<br />
uso do cinema pelo historiador já é incluído no<br />
terceiro volume da obra Faire de l’histoire, de Le<br />
Goff e Pierre Nora 11 – que trata dos novos objetos,<br />
com um artigo de Ferro a respeito – um<br />
historiador dos Annales como Peter Burke, em<br />
1990, 12 trata de Ferro como um dos únicos “historiadores<br />
novos” a trabalhar com a época contemporânea,<br />
citando suas obras sobre a Primeira<br />
Guerra Mundial e a União Soviética, sem qualquer<br />
menção ao trabalho com o cinema. Certamente<br />
essa omissão de Burke não é desinformação.<br />
Revela como o assunto é evitado ou tratado<br />
com desconfiança pelo historiador. É como se essa<br />
questão fosse exterior ao livro que escreve, quando<br />
na realidade não o é. Muito pelo contrário.<br />
São os pressupostos teóricos dos Annales e da<br />
nova história, com suas propostas de uma história<br />
das mentalidades, seu interesse pelo material,<br />
o cotidiano, a psicologia, uma história crítica em<br />
relação aos documentos, interdisciplinar nas abordagens<br />
e com novos objetos, que permitem a Ferro<br />
introduzir o cinema como assunto de interesse<br />
e como um documento estratégico para evitar o<br />
controle da informação e, conseqüentemente, o<br />
controle sobre a história que se produz.<br />
O trabalho com o cinema e o controle sobre as<br />
informações conduzem Ferro a incluir no seu universo<br />
de interesses outros meios que vêm invadindo e<br />
controlando a memória dos homens desde os fins do<br />
século XIX: o ensino primário, a imprensa e a televi-<br />
são. Michel Foucault analisou como esses meios e<br />
mais a literatura popular contribuíram para a perda<br />
da memória das experiências pessoais passadas, substituída<br />
por outra, encenada e retocada. Ferro vai justamente<br />
mostrar, em suas obras sobre esses assuntos,<br />
como o livro didático, as emissões de TV e a imprensa<br />
se apropriam da história, tomando-a para si. 13<br />
Sua abordagem e preocupações fazem eco também<br />
com o que escreviam e pensavam colegas seus,<br />
como Michel de Certeau, que na “Operação histórica”<br />
14 fala da influência e do controle das instituições<br />
sobre o que o historiador produz. Les lieux<br />
de mémoire, de Pierre Nora, 15 ao tratar da institucionalização<br />
da memória, dialoga com Ferro, que<br />
procura no filme a memória permitida.<br />
Mas essa relação, como outras tantas no próprio<br />
conhecimento, tem história. Por um lado, a<br />
apropriação do cinema como fonte de estudos para<br />
o historiador é tardia. Embora o cinema tenha<br />
mais de cem anos, foi só há cerca de trinta que<br />
passou a ser estudado pelos historiadores de forma<br />
sistemática. Por outro lado, o que se buscava<br />
então no cinema e as formas de obtê-lo foram<br />
determinantes dos métodos que se estabeleceram,<br />
e de como o cinema era visto, de modo a permitir<br />
sua introdução no exercício historiográfico.<br />
Um percurso individual?<br />
Há ainda um último ponto a introduzir nesta<br />
“gênese” de cinema e história. O trajeto pessoal de<br />
Marc Ferro, que, ao menos na França, parece ter<br />
sido efetivamente o primeiro a propor esses estudos.<br />
Marc Ferro viveu na Argélia, onde foi professor<br />
do curso secundário. A vivência e o contato<br />
com outra cultura diametralmente oposta à sua, a<br />
situação de colonizador que partilha também as<br />
10 GARÇON, François e SORLIN, Pierre. De Braudel à ‘Histoire parallèle’, entretien avec Marc Ferro. Cinemáction, n. 65, Paris,<br />
Corlet-Télérama, 1992, p. 53. 11 LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre (org.). Faire de l’histoire. Paris: Gallimard, 1974. 12 BURKE,<br />
Peter. A escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da historiografia. São Paulo: Unesp, 1991. 13 Nas obras A<br />
manipulação da história no ensino e nos meios de comunicação (São Paulo: Ibrasa, 1983), sobre as visões de história construídas<br />
pelos livros didáticos; O Ocidente diante da Revolução Russa, trad. Carlos Nelson Coutinho (São Paulo: Brasiliense, 1984), sobre<br />
como os jornais ocidentais reportaram os eventos da revolução de 1917; e em artigos como Médias et intelligence du Monde,<br />
publicado no Le Monde Diplomatique de janeiro de 1993, sobre a televisão. 14 CERTEAU, Michel de. Operação histórica. In: LE<br />
GOFF, J. e NORA, P. (org.), op. cit., p. 3-41. 15 NORA, Pierre. Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1984. v. I e II.<br />
49
,<br />
M<br />
F<br />
C INEMA INEMA,<br />
INEMA , HISTÓRIA HISTÓRIA E MMARC<br />
M ARC FFERRO<br />
F ERRO REVOLUÇÕES<br />
experiências do colonizado, deram-lhe uma visão<br />
multifacetada da realidade. Como colonizador,<br />
transmitia seus conceitos, sua cultura; em resposta<br />
ouvia o contraponto de alunos que exprimiam<br />
seus próprios valores. O que para ele podia ser<br />
positivo, para o outro era a perda da identidade.<br />
Assim, percebe na prática que não há um discurso,<br />
uma verdade, uma interpretação da história.<br />
Elas são muitas, se excluem, encobrem, mas por<br />
questões políticas, uma se sobrepõe a outra e procura<br />
inclusive abarcá-la (como o caso que cita<br />
sobre os livros didáticos africanos: povos negros<br />
sob dominação francesa aprendiam que seus ancestrais<br />
foram gauleses!). O que é certo para os<br />
argelinos, é deplorável para os franceses.<br />
Em 1962, de volta à França, ainda como professor<br />
do ensino médio, observa que a televisão já<br />
se constituía, entre os estudantes, numa cultura fora<br />
da escola, baseada em imagens. Chocou-se. Foi a<br />
partir desse momento que começou a fazer filmes<br />
didáticos, o primeiro deles em 1964 sobre a Primeira<br />
Guerra Mundial. Estudou cinema. “Foi realizando<br />
este filme que comecei a fazer a minha terceira<br />
reflexão histórica: as imagens que eu via eram<br />
diferentes dos livros que eu tinha lido, ainda que<br />
fossem a mesma história. Logo, havia duas versões<br />
da história. Não somente para os árabes e franceses,<br />
mas também para textos e imagens.” 16<br />
Dessa forma, seu pensamento e sua crítica<br />
se constroem sobre dualidades: há versões dos<br />
colonizadores e dos colonizados, do texto e da<br />
imagem, do visível e do não-visível. Toda a sua<br />
crítica se baseia nessas constatações. A sua tarefa<br />
como historiador é desvendar um discurso que<br />
se sobrepõe a outro. Não apenas como ideologia,<br />
mas também a partir de diferentes “focos” 17<br />
que produzem a história, conceito que desenvolve<br />
em seu livro A história vigiada, de 1985, no<br />
qual trata do discurso feito pelas instituições<br />
como o Estado, o Partido Comunista russo, e<br />
das contra-histórias que aparecem na literatura,<br />
no cinema, nas festas populares. Aí localiza as<br />
fissuras, os lapsos, os silêncios que lhe permitem<br />
operar o seu trabalho. 18<br />
Assim, a segunda tarefa do historiador, de<br />
acordo com ele, consiste em confrontar os diferentes<br />
discursos para descobrir por detrás deles<br />
o que se esconde: “O historiador deve ajudar a<br />
sociedade a tomar consciência dessa mistificação.<br />
Desta forma pode devolver à sociedade a<br />
História tomada pelos aparelhos”. 19<br />
Em 1975, as questões do desvendamento conformam<br />
o âmbito das pesquisas de Ferro até aquele<br />
momento, pela natureza dos fenômenos que estudava<br />
e dos filmes que “lia”: stalinismo, nazismo,<br />
filmes franceses da época de Vichy, que inegavelmente<br />
são produtos de uma tensão entre a realidade<br />
da época, entre o que se podia e o que se devia<br />
mostrar dela. Diante desse universo fílmico, onde<br />
consciente ou inconscientemente os filmes procuram<br />
transmitir mensagens políticas e uma certa<br />
apropriação da história, é possível entender o papel<br />
que tem o conceito de ideologia nesse universo<br />
conceitual, para a compreensão do cinema.<br />
Já em 1985, em A história vigiada, obra de<br />
historiografia, sua preocupação não está centrada<br />
na dualidade dos significados. A ênfase central é<br />
quanto à apropriação e controle sobre a obra de<br />
história. Aborda os vários “focos” que produzem<br />
visões de história, e as possibilidades desses focos<br />
na construção de visões pluralistas, tornando<br />
possível de novo fugir do controle das instituições.<br />
Os focos vão dos silêncios da história, das<br />
festas à memória popular, ao cinema. 20 Aqui Ferro<br />
agrega as idéias de Michel de Certeau (“Operação<br />
histórica”), de Pierre Nora (Les lieux de<br />
mémoire), de Hobsbawm (A invenção das tradições).<br />
21 A multiplicidade de focos emissores de<br />
visão da história sucede à dualidade. A noção de<br />
controle sobre a história, de seus usos e abusos,<br />
toma o lugar da ideologia e do desvendamento.<br />
16 Marc Ferro e a imagem da História. Folha de S. Paulo, São Paulo, 12 ago. 1986. p. A.36. 17 No original, “foyers”.<br />
18 FERRO, Marc. A história vigiada. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1989. 19 FERRO, Marc. Histoire et cinéma, p. 91.<br />
20 Idem. 21 HOBSBAWN, Eric. A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1984.<br />
Nesse livro, ao tratar do cinema como “foco”<br />
produtor de visões de história, e não apenas como<br />
fonte, preocupa-se não com as informações inéditas,<br />
mas com o tipo de construção que o cineasta é capaz<br />
de produzir. Nessa e em obras posteriores, deixa de<br />
sugerir classificações pelo tipo de tratamento que a<br />
história tem nos filmes, e se interessa por aqueles que<br />
são capazes de produzir filmes – visões de história –<br />
autônomos. “Quando o cineasta é capaz de uma análise<br />
autônoma, exprime sua própria visão do mundo,<br />
independente das ideologias e das instituições no poder.”<br />
22 E a contribuição desses filmes reside justamente<br />
em serem capazes de colocar a história em<br />
questão e não apenas valorizá-la pela encenação.<br />
Em Révoltes, révolution, cinéma, de 1989, 23 passa<br />
em revista as revoltas e revoluções que foram encenadas<br />
pelo cinema no mundo todo. Na introdução,<br />
Ferro historia como os homens haviam construído<br />
as noções de revolta e de revolução e como o<br />
cinema as aplica. No caso da Revolução Francesa,<br />
diz: “Observa-se que os filmes franceses sobre a<br />
Revolução Francesa nunca lhe são completamente<br />
favoráveis”; ou sobre a utilização de uma revolução<br />
no enredo dos filmes: “A revolução no cinema exerce<br />
a função da catástrofe que se abate na vida dos<br />
personagens, que interfere em sua vida pessoal...” 24<br />
Por outro lado, na China, a revolução que se encena<br />
é sempre tributária do regime. 25 Na Hungria, “o cinema<br />
dos anos 80 ficou estreitamente ligado à história<br />
nacional, através da qual se perfila a dolorosa lembrança<br />
de 1956. Assim, numerosos filmes fizeram da<br />
sua evocação o tema principal desse período”. 26<br />
Dessa forma, o interesse se desloca do significado<br />
dos filmes para como os filmes constroem<br />
a história: “Percebe-se que o tema de um filme<br />
tem menos importância do que o seu tratamento.<br />
Os cineastas que tratam explicitamente de um fenômeno<br />
revolucionário procuram valorizá-lo, ao<br />
invés de colocá-lo em questão. Mas a ação revolucionária<br />
dos cineastas se exerce de outra forma”. 27<br />
A forma privilegiada de tratar a história para<br />
a maioria dos cineastas é a reconstituição, mas<br />
não é essa forma que efetivamente contribui para<br />
a compreensão histórica. Nada que um livro de<br />
ilustrações ou um romance de época não traga.<br />
“Nota-se que a maior parte dos cineastas que aborda<br />
o filme histórico identifica a história a um e um só<br />
dos seus procedimentos, a narrativa de reconstituição,<br />
e não à análise ou questionamento dos problemas que<br />
coloca o passado e sua relação com o presente. [...] A<br />
narrativa de reconstituição na ordem histórica representa<br />
o grau zero de análise, ao menos suas premissas.<br />
Já Encouraçado Potemkin é uma grande reconstrução.” 28<br />
Assim, a questão que se coloca é efetivamente<br />
de filmes que contribuam para a compreensão<br />
da história sem reconstituição, ou seja, sem ilustrar<br />
a história, apenas reiterando o que já se conhece,<br />
em visões de história já consagradas, mas<br />
“descobrindo pelo imaginário uma via real para<br />
compreender a história e torná-la inteligível”. 29<br />
22 FERRO, Marc. 1975-19.. Le cinéma au service de l’histoire. Cinémaction 60, Paris, Corlet-Telérama, juillet 1991, p. 172. 23<br />
FERRO, Marc; DELAGE, C.; FLEURY-VILATTE, B. (org). Révoltes, révolutions, cinéma. Paris: Éditions Centre Pompidou, 1989. 24<br />
Ibidem, p. 32-33. 25 Ibidem, p. 133. 26 Ibidem, p. 125. 27 Ibidem, p. 34. 28 Ibidem, p. 35. 29 Idem. Nessa categoria, além de<br />
Eisenstein, ele cita filmes como Os deuses malditos, de Visconti, Napoléon, de Abel Gance e Ceddo, filme do africano Osmane Sembene.<br />
51
“Abrindo os braços<br />
para o Novo Mundo”:<br />
visita do presidente<br />
Charles De Gaulle ao<br />
Brasil. Rio de Janeiro,<br />
outubro/1964. Acervo<br />
Correio da Manhã<br />
AN PH/FOT/ 18837(315)
Laurent Véray Conferencista da Universidade de Paris X – Nanterre e secretário-geral da Association Française de Recherche sur<br />
l’Histoire du Cinéma (AFRHC). Realizador de filmes e de instalações de vídeo com imagens de arquivo para museus e autor de textos sobre<br />
história do cinema e a relação entre cinema e história.<br />
A história 1 pode ser feita<br />
com arquivos fílmicos?<br />
“ A prova cinematográfica, onde milhares de clichês compõem uma cena, e<br />
que, desenrolada entre uma fonte luminosa e um pano branco, faz levantar<br />
os mortos e os ausentes, essa simples tira de celulóide impressa constitui<br />
não só um documento histórico, mas também uma parcela da história. ”<br />
Boleslaw Matuszewski, Une nouvelle source de l’histoire: le cinématographe (1898)<br />
“ Os historiadores fazem o mesmo que os artistas: falam da vida e da<br />
morte dos homens. ” René Allio, Carnets (1991)<br />
“Cameraman no front em 1916: poderia ser um dos dois personagens do filme...“ (Coleção do autor)<br />
1 A história aqui é considerada como disciplina científica, prática interpretativa do passado. Neste artigo, não se trata de falar de arquivos<br />
fílmicos como fontes históricas, mas de refletir, então, sobre sua utilização como objeto, material para uma escrita documentária da história.<br />
Este artigo foi publicado em 1895 – Archives, Revue de l’Association Française de Recherche sur l’Histoire du Cinéma, n. 41,<br />
octobre 2003. p. 71-83. Tradução de Ivana Medeiros.<br />
As cinematecas são lugares de memória, no<br />
sentido definido por Pierre Nora, que conservam<br />
milhares de quilômetros de arquivos<br />
fílmicos salvos do desaparecimento. Inumeráveis<br />
visões documentárias, de atualidades do passado.<br />
Registros de acontecimentos quaisquer ou<br />
excepcionais, públicos ou privados. Traços, fragmentos<br />
da vida cotidiana de nossos predecessores.<br />
Tantos instantes únicos e sombras projetadas<br />
da realidade subtraídas do tempo que passa. Mergulhar<br />
nessas imagens variadas, com sua quantidade<br />
de detalhes infinitamente realistas (os famosos<br />
“efeitos de realidade” de que falamos após<br />
as visões Lumière), mas também suas numerosas<br />
lacunas (nem tudo é “visível”, longe disso),<br />
suas representações convencionais de autenticidade<br />
duvidosa (a parte da encenação pode ser<br />
importante e manipuladora), sempre me provoca<br />
o mesmo júbilo. Sobretudo porque elas constituem<br />
formidáveis terrenos de exploração e de<br />
experimentação para possíveis abordagens<br />
fílmicas da história contemporânea. 2<br />
Meu objetivo, no âmbito muito limitado<br />
deste artigo, não é entrar no detalhe de uma<br />
reflexão teórica (que permanece por ser feita)<br />
sobre a escrita fílmica da história com base em<br />
imagens de arquivo, mas evocar, mediante um<br />
caso concreto, uma experiência pessoal de realização<br />
documentária, uma tentativa voltada modestamente<br />
para esse sentido. 3 Entretanto, algu-<br />
mas observações prévias se impõem. Quando<br />
se fala em filmes de história, pensa-se imediatamente,<br />
com ou sem razão, em filmes de arquivos<br />
– os filmes de montagem, como se dizia<br />
em uma época –, que integram planos de natureza<br />
e de proveniências diversas, utilizando ao<br />
máximo seu estatuto de verossimilhança. Eles<br />
representam apenas uma categoria documental<br />
entre outras, mas cuja especificidade faz-nos<br />
considerá-los quase espontaneamente como os<br />
melhores exemplos na matéria.<br />
A prática não data de ontem, visto que as<br />
primeiras montagens inteiramente compostas de<br />
imagens de arquivos parecem ter sido realizadas<br />
no fim da Primeira Guerra Mundial. À época, já<br />
se insistia sobre o valor documental das imagens<br />
registradas durante o conflito e sua excepcional<br />
capacidade em “fazer a história”. 4 Uma afirmação,<br />
entre muitas outras, de Ricciotto Canudo,<br />
datando de 1923, é suficiente para confirmar isso:<br />
“Os únicos filmes históricos, no sentido puro e<br />
emocionante da palavra, são evidentemente aqueles<br />
que em cinema se denominam ‘atualidades’,<br />
dos quais os mais trágicos permanecem os<br />
documentários da guerra”. 5<br />
Em seguida, a produção de tais filmes, sobre<br />
diferentes assuntos, foi relativamente constante,<br />
mas sem atingir proporções significativas. Entretanto,<br />
é preciso mencionar um dentre eles,<br />
2 A representação em imagem de um passado mais antigo coloca, em contrapartida, inúmeros problemas. 3 Trata-se de um<br />
documentário, L’heroïque cinématographe (50 min; Quark Productions/France 2), co-realizado com Agnés de Sacy em<br />
2002-2003. 4 Ver VÉRAY, Laurent. Fiction et non-fiction dans les films sur la Grande Guerre de 1914 à 1928: la bataille<br />
des images. 1895 – Revue de l’Association Française de Recherche sur l’Histoire du Cinéma, n. 18, out. 1995. p. 235-257.<br />
5 CANUDO, Ricciotto. Films historiques. Paris-Midi, 27 janeiro 1923.<br />
REVOLUÇÕES<br />
55
A<br />
A<br />
A HISTÓRIA HISTÓRIA PODE PODE SER SER FEITA FEITA COM COM ARQUIVOS ARQUIVOS FÍLMICOS<br />
FÍLMICOS? FÍLMICOS<br />
REVOLUÇÕES<br />
porque sem dúvida alguma constitui uma data<br />
marcante na utilização dos arquivos: Paris 1900<br />
(1947), de Nicole Vedrès. 6 André Bazin, jovem<br />
crítico no L’Écran Français, fortemente impressionado<br />
por esse filme, fala a seu respeito de<br />
“cinema puro”, de “pureza dilacerante até as lágrimas”.<br />
7 Sua reação, muito emocionada e impregnada<br />
de nostalgia, testemunha o imenso interesse<br />
que atribui a essas imagens apresentadas<br />
não só como traços reais e incomparáveis do tempo<br />
passado, mas também, e sobretudo, como alguma<br />
coisa fundamental do ponto de vista estético,<br />
eis a quintessência do cinema:<br />
“Nicole Vedrès, e a pequena equipe da qual sei<br />
que seria profundamente injusto separar dela, realizaram,<br />
com esse filme de montagem composto apenas de<br />
documentos autênticos, algo monstruosamente belo,<br />
cuja aparição embaralhou as normas estéticas do cinema,<br />
tão profundamente quanto a obra de Marcel Proust<br />
pôde embaralhar o romance. [...] Proust encontrava<br />
sua recompensa do Tempo reencontrado na alegria inesgotável<br />
de mergulhar em sua lembrança. Aqui, ao contrário,<br />
a alegria estética nasce de uma dor, pois essas<br />
‘lembranças’ não nos pertencem. Elas realizam o paradoxo<br />
de um passado objetivo, de uma memória exterior<br />
à nossa consciência. O cinema é uma máquina para<br />
reencontrar o tempo para melhor perdê-lo. Paris 1900<br />
marca o nascimento da Tragédia especificamente cinematográfica,<br />
a do Tempo. Que não se acredite, entretanto,<br />
que o mérito dos autores seja diminuído pela<br />
existência de todos os documentos cinematográficos<br />
de época que utilizaram exclusivamente. Seu triunfo é<br />
devido, ao contrário, a um sutil trabalho de médium, à<br />
inteligência de sua escolha num material imenso. Ao<br />
tato e à inteligência da montagem, a todas as astúcias<br />
refinadas do gosto e da cultura que seria preciso colocar<br />
na obra para aprisionar esses fantasmas”. 8<br />
O que são eles hoje? Após uma quinzena de<br />
anos, os documentários de arquivos conhecem<br />
uma espantosa retomada de interesse, 9 e é sintomático<br />
que seu número ainda recentemente tenha<br />
aumentado, tanto nas televisões hertzianas<br />
quanto nas emissoras temáticas a cabo. 10 Quaisquer<br />
que sejam, evidentemente, várias precauções<br />
são tomadas, e todas as compilações de atualidades<br />
antigas não poderiam ser consideradas como<br />
documentários históricos dignos desse nome. Primeiro,<br />
o essencial é não só o interesse do projeto,<br />
isto é, simultaneamente a escolha do assunto, o<br />
sentido e o alcance da demonstração, mas igualmente<br />
a forma escolhida, pois se trata, não o esqueçamos,<br />
de cinema. É importante, portanto,<br />
considerar a especificidade desse modo de expressão,<br />
sua própria história, as questões apaixonantes<br />
mas complexas que ele provoca. Enfim, acredito<br />
que somente a partir de uma verdadeira reflexão,<br />
longa e minuciosa, sobre os arquivos cinematográficos,<br />
é possível sair dos lugares-comuns<br />
e, por meio dos cruzamentos da imagem e do tempo,<br />
imaginar outros usos mais pertinentes orientados<br />
para um caminho propriamente histórico.<br />
A utilização dos arquivos sem esforço de conhecimento<br />
e de pensamento não apresenta interesse<br />
para a historiografia. O risco maior é a perda de<br />
sentido de todas essas imagens polissêmicas, pois<br />
nem sempre temos os bons referentes socioculturais<br />
para compreender e interpretar corretamente<br />
o que elas representam. O analista deve, portanto,<br />
na medida do possível, desembaraçar-se dos<br />
prejulgamentos retrospectivos que podem influenciar<br />
sua percepção e, conservando sua subjetividade,<br />
esforçar-se para recontextualizar os arquivos<br />
e deles extrair plenamente o conteúdo.<br />
Apesar de tudo, é forçoso reconhecer que<br />
“fazer história” dessa maneira suscita ainda in-<br />
6 É necessário assinalar de passagem que ela foi precedida por duas realizações pioneiras do filme de arquivos: Esther Choub (La<br />
chute de la dynastie des Romanov, 1927) e Germaine Dulac (Le cinéma au service de l’histoire, 1935). 7 BAZIN, André. Paris<br />
1900. À la recherche du temps perdu. L’Écran Français, 30 set. 1947, retomado em Qu’est-ce que le cinéma? Paris: Cerf, 1958,<br />
tomo 1, e em Le cinéma français de la liberátion à la Nouvelle Vague (1945-1958). Paris: Cahiers du Cinéma, coll. Essais,<br />
1983, p. 167. 8 Ibidem, p. 167-168. 9 Depois da queda do muro de Berlim e da abertura dos fundos cinematográficos dos<br />
países do Leste, assistiu-se a uma multiplicação dos filmes de arquivo (ver, a esse respeito, Les images venues de l’Est<br />
renouvellent le documentaire historique, Le Monde, suplemento televisão de 9-10 fevereiro 1997). 10 Arte contribuiu<br />
amplamente para o renascimento do documentário em geral, e do filme de arquivos em particular, por meio de casos emblemáticos<br />
como “Les mercredis de l’histoire”, “Grand format” e “La Lucarne”.<br />
terrogações, dúvidas, talvez reticências da parte<br />
dos historiadores profissionais cuja fonte principal<br />
não é a imagem. É evidente que um filme e<br />
uma obra histórica não podem representar de<br />
maneira equivalente o passado. No entanto,<br />
como admitia com lucidez o historiador Henry<br />
Rousso, há documentários que, considerando a<br />
diversidade dos arquivos, e pelos efeitos que lhes<br />
são próprios, chegam a recriar os movimentos<br />
do tempo e permitem assim melhor apreender<br />
as mudanças ocorridas no curso do século XX. 11<br />
É verdade que os métodos empregados por certos<br />
realizadores não estão tão distantes daqueles<br />
que se poderia creditar aos historiadores. Chegam,<br />
inclusive, a se assemelhar singularmente.<br />
Filmando ou escrevendo, ambos investem na<br />
busca de arquivos, empregando um cuidado extremo<br />
nessa investigação. Escolhem, então, entre<br />
os materiais heterogêneos do passado dos<br />
documentos, examinam-nos, separam-nos, colocam-nos<br />
em perspectiva, articulam-nos uns em<br />
relação aos outros, interpretam-nos segundo uma<br />
problemática dada (sendo evidentemente o interesse<br />
das imagens diretamente proporcional ao<br />
fundamento das questões que lhes são colocadas).<br />
De fato, a exemplo das duas concepções possíveis<br />
da história, pode-se dizer que existem dois<br />
tipos de documentários históricos com base em<br />
arquivos. Por um lado, há o documentário clássico,<br />
pelo qual por muito tempo se privilegiou a<br />
acumulação de planos sem muita preocupação<br />
com sua origem exata, nem com seu verdadeiro<br />
sentido. Como o discurso positivista, esse gênero<br />
de filme pretende dar conta da história, consoante<br />
uma trama cronológica dos acontecimentos<br />
a partir de um conjunto de imagens “representando<br />
o real” ou, pelo menos, que se quer<br />
fazer passar por ele. Ora, o objetivismo da imagem<br />
dita autêntica é muito aleatório: há muito<br />
se sabe que visões idênticas, segundo as circunstâncias,<br />
podem servir a interpretações absolutamente<br />
contrárias (parece-me que, precisamente<br />
durante a Grande Guerra, se assiste a um primeiro<br />
questionamento das pretensões da imagem<br />
mecânica a exprimir a realidade de um acontecimento).<br />
Por outro lado, há uma forma de escrita<br />
documentária que, oposta à precedente, renuncia<br />
à busca ilusória da objetividade total. Próxima<br />
da pesquisa histórica moderna (a que se desenvolveu<br />
depois da escola dos Annales), ela se<br />
elabora numa perspectiva crítica, em particular<br />
em relação às imagens montadas e ao que supostamente<br />
significam de maneira evidente ou subjacente.<br />
Desde então, o documentarista, como o<br />
historiador, porém, com meios de significação<br />
diferentes, se distancia para se interrogar sobre<br />
a ordenação de seu assunto e os princípios de<br />
inteligibilidade do real que emprega. Essa escrita<br />
fílmica da história assume também uma parte<br />
da imaginação e uma forma de sensibilidade em<br />
relação à maneira de considerar o passado. É uma<br />
conduta com um ponto de vista de autor que,<br />
finalmente, está muito próxima da que reivindicava<br />
o eminente medievalista Georges Duby,<br />
grande apaixonado das imagens, 12 quando afirmava<br />
no fim de sua brilhante carreira: “Meu trabalho<br />
concerne mais à arte que à ciência, pois<br />
nele entra uma parte decisiva de subjetividade”. 13<br />
Isso implica, no mínimo, duas coisas: primeiro,<br />
qualquer que seja o acontecimento relatado, o<br />
que conta é o ponto de vista expresso; depois, o<br />
sentido e a verdade podem emergir completamente<br />
por meio de uma relação entre o real e o<br />
imaginário.<br />
A esse título, vários nomes de cineastas se<br />
impõem. Na primeira fila deles figuram Chris<br />
Marker, Harun Farocki, Edgardo Cozarinsky,<br />
Peter Forgacs ou Pierre Beuchot, cujos filmes,<br />
abundantemente compostos de arquivos (poderse-ia<br />
dizer inclusive que constituem a matériaprima<br />
de seu trabalho), são simultaneamente<br />
criações e obras audaciosas de caráter histórico,<br />
com seus meios próprios de expressão, a<br />
11 Ver Filmer le passe dans le cinema documentaire: les traces et la mémoire. Paris: L’Harmattan, coll. Cinéma Documentaire<br />
n. 3, mai. 2003, p. 62. 12 Aliás, seu gosto pelas imagens levou-o não só a considerar sua decifração, enquanto historiador, mas<br />
também a criar para a televisão obras audiovisuais de caráter histórico, sobretudo em 1985 para o canal cultural Sept, que<br />
presidiu durante aqueles anos. 13 DUBY, Georges. L’histoire continue. Paris: Odile Jacob, 1991.<br />
57
A<br />
A<br />
A HISTÓRIA HISTÓRIA PODE PODE SER SER FEITA FEITA COM COM ARQUIVOS ARQUIVOS FÍLMICOS<br />
FÍLMICOS? FÍLMICOS<br />
REVOLUÇÕES<br />
originalidade de seu estilo; em oposição aos<br />
lugares-comuns, eles se inclinam para as diferentes<br />
maneiras de se apropriar das imagens.<br />
Seu objetivo consiste menos em tentar reconstituir<br />
uma hipotética verdade histórica de que<br />
seriam a ilustração mais ou menos fiel, do que<br />
em refletir suas significações profundas. Os arquivos<br />
fílmicos trazem, com efeito, o traço de<br />
uma época, ou mais exatamente de um olhar<br />
voltado para uma época. Por conseqüência, não<br />
se coloca mais prioritariamente a questão de<br />
sua exatidão. A reconstituição do passado já não<br />
é a única motivação, nem o único foco de interesse.<br />
Assim como os historiadores, esses cineastas<br />
não procuram reconstituir a realidade de<br />
ontem em estado bruto. Ao contrário, eles interrogam<br />
o engano evidente das imagens que<br />
utilizam, questionam sua pretensa objetividade,<br />
propõem outras leituras. Sabendo que não<br />
podem ensinar com exatidão sobre todos os aspectos<br />
do passado, reorganizam-nas, associamnas<br />
a sons e a vozes, confrontam-nas com outros<br />
documentos, sublinham as contradições,<br />
tudo para tentar dar-lhes uma consistência de<br />
história. Elaborando seu assunto a partir de elementos<br />
encontrados nos arquivos (stock-shots<br />
ou outros), eles também mantêm uma distância,<br />
adotam um ponto de vista, constroem seu<br />
objeto com atenção. Às vezes encenam-no jogando<br />
com a polivalência das imagens e dos signos<br />
que as compõem. Esse recurso ao artifício<br />
pode surpreender à primeira vista. Ora, como<br />
sublinha com justiça Jean-Louis Comolli, o engano<br />
e o artifício no cinema documental não são<br />
forçosamente inimigos da verdade, às vezes eles<br />
são inclusive os meios de emergência; 14 por fim,<br />
o interessante não é a clivagem entre realidade e<br />
ficção, mas sim a maneira de combiná-las.<br />
Desse ponto de vista, o documentário não<br />
é o contrário da ficção, que, aliás, não é forçosamente<br />
estranha ao real (já se sabe há muito<br />
que a oposição simplista entre documentário e<br />
ficção não é verdadeiramente operante). Conforme<br />
o raciocínio de Jacques Rancière, que<br />
parte do exemplo emblemático do filme dedicado<br />
a Alexandre Medvedkine, Le tombeau<br />
d’Alexandre, de Chris Marker (aquele que,<br />
provavelmente, entre os cineastas que fizeram<br />
dos arquivos um de seus assuntos prediletos,<br />
melhor soube forjar um estilo pessoal, reconhecível<br />
entre milhares: um dos pensadores<br />
mais exigentes na matéria), poder-se-ia dizer<br />
que o filme de arquivo, no melhor dos casos,<br />
pelo tratamento que se impõe a esse material<br />
de origem – podendo às vezes modificar completamente<br />
sua significação –, 15 visa instaurar<br />
um discurso analítico coerente. Esse discurso,<br />
como explica o filósofo, fundado a partir de<br />
diversas representações do real – que jamais lhe<br />
são idênticas –, procura propor possibilidades<br />
de pensar de outra maneira a história.<br />
“O cinema documentário [...] por sua própria<br />
vocação retira do real as normas clássicas da conveniência<br />
e da verossimilhança; pode, melhor que o<br />
cinema dito de ficção, jogar concordâncias e discordâncias<br />
entre vozes narrativas e séries de imagens de<br />
idade, de proveniência e de significação variáveis.<br />
Ele pode unir o poder de impressão, o poder de<br />
palavra que nasce do encontro do mutismo da máquina<br />
e do silêncio das coisas, com o poder da montagem<br />
– no sentido amplo, não técnico, do termo –<br />
que constrói uma história e um sentido pelo direito<br />
que se arroga de combinar livremente as significações,<br />
de re-ver as imagens, de encaixá-las de outro<br />
modo, de restringir ou ampliar sua capacidade de<br />
sentido e de expressão.” 16<br />
Rancière acrescenta mais adiante, sempre em<br />
referência ao filme de Marker, que se trata de<br />
uma “ficção histórica documentária vindo a identificar-se<br />
a um filme do cinema sobre seu próprio<br />
poder de história”. 17<br />
14 COMOLLI, Jean-Louis em BIZERN, Catherine (dir.). Cinéma documentaire: manières de faire, formes de pensée. Paris:<br />
Yellow Now, 2002, p. 77. 15 Aliás, o sentido das imagens é freqüentemente modificado sob o efeito de seus usos sucessivos.<br />
16 RANCIÈRE, Jacques. La fable cinématographique. Paris: Le Seuil, 2001, p. 206. 17 Ibidem, p. 214.<br />
Em definitivo, esse entrelaçamento entre as<br />
noções de história, de documentário e de ficção,<br />
e as relações que mantêm entre si para criar<br />
sentidos, atingir uma parte de verdade, não está<br />
tão afastado que se poderia creditá-lo à historiografia.<br />
Sabe-se, com efeito, sobretudo depois dos<br />
escritos de Michel de Certeau, que as narrativas<br />
históricas são determinadas não só pelos caracteres<br />
específicos dos objetos de pesquisa, mas<br />
também por estratégias e dificuldades discursivas.<br />
Desde então, fazer história é proceder a uma<br />
construção metódica, um agenciamento ordenado<br />
de fatos e idéias correspondente a um argumento.<br />
A narração histórica não é a verdade definitiva<br />
do que se passou e a pretensa objetividade<br />
do historiador e de seu aparelho explicativo é<br />
apenas uma ilusão: “Considera-se rapidamente<br />
uma realidade da história o que é somente a coerência<br />
de seu discurso historiográfico, e uma<br />
ordem na sucessão dos fatos o que é somente a<br />
ordem postulada ou formulada por seu pensamento”.<br />
18<br />
Entendamos bem, isso não chega a contestar<br />
a legitimidade científica da narrativa histórica,<br />
mas a reconhecer que ela repousa sobre condições<br />
de ordenações particulares, sobre diferentes<br />
categorias de análise, de argumentação, visando<br />
todas (em graus variáveis) certa veridicidade<br />
e plausibilidade que, como todos sabem,<br />
evoluem consideravelmente ao longo do tempo.<br />
Enfim, os laços estreitos entre essa história e o<br />
presente de sua escrita são igualmente conhecidos.<br />
Lucien Febvre já os sublinhava em 1948:<br />
“O passado, dizia ele, é uma reconstituição das<br />
sociedades e dos seres humanos de outrora por<br />
homens e para homens engajados no tecido das<br />
realidades humanas de hoje”. 19<br />
Assim como a história em sua escrita não<br />
pode se subtrair aos procedimentos literários, o<br />
registro em filme da história não pode ser feito<br />
sem levar em conta as características do cinema.<br />
Desse fato, a questão da dupla competência (em<br />
história e em cinema) apresenta-se invariavelmente.<br />
Pode-se utilizar conscientemente as imagens<br />
fílmicas provenientes dos arquivos numa perspectiva<br />
histórica independentemente do conhecimento<br />
científico e prático de sua realização? É<br />
interessante notar que, em 1971, pouco depois<br />
do lançamento de seu célebre filme Le chagrin<br />
et la pitié, Marcel Ophuls apresentava suas expectativas<br />
em relação a uma evolução das formações<br />
audiovisuais nessa direção:<br />
“Espero que em vinte ou trinta anos o gênero<br />
de trabalho que faço atualmente já não exista. Porque<br />
acredito que a cultura audiovisual exige uma<br />
nova forma de especialização, e, portanto, que certos<br />
trabalhos até o presente separados serão reunidos<br />
num só trabalho, numa só e mesma pessoa; isto<br />
é, não vejo razão para que no futuro haja uma formação<br />
universitária científica para os realizadores<br />
[...], não deveria haver qualquer justificativa para<br />
que pessoas como André Harris e eu – por formação<br />
jornalística inteiramente clássica, ou por formação<br />
de realizador e técnico do cinema – ainda possam<br />
fazer isso. Se por enquanto o fazemos, é porque ainda<br />
não há substitutos, pessoas com diplomas, uma<br />
formação universitária que deveria corresponder ao<br />
nível do professorado. O que quero dizer bem precisamente<br />
é que, no futuro, o trabalho de professor<br />
de história, ou de ciências políticas e o trabalho de<br />
realizador de documentários políticos ou históricos<br />
serão dois trabalhos que deverão se reencontrar e<br />
unificar-se na mesma pessoa”. 20<br />
Essa aspiração expressa por Ophuls, há trinta<br />
anos, não se concretizou.<br />
Ainda hoje, o papel do historiador se limita<br />
ao de “conselheiro histórico”, conforme a fórmula<br />
consagrada, às vezes de autor, raramente de<br />
realizador. Deve-se isso a essa ausência de apren-<br />
18 CERTEAU, Michel de. L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, reedição 2002, p. 349. 19 FEBVRE, Lucien. Avant-propos<br />
à Charles Morazé, Trois essais sur histoire et culture, Armand Colin, Cahiers des Annales, 1948, p. VIII. 20 OPHULS,<br />
Marcel. L’honnêteté et la méthode, Jeune Cinéma, n. 55, mai. 1971, p. 9.<br />
59
A<br />
A<br />
A HISTÓRIA HISTÓRIA PODE PODE SER SER FEITA FEITA COM COM ARQUIVOS ARQUIVOS FÍLMICOS<br />
FÍLMICOS? FÍLMICOS<br />
REVOLUÇÕES<br />
dizagem (na universidade ou alhures) dos modos<br />
de utilização dos arquivos fílmicos numa perspectiva<br />
de escrita documentária da história? É possível.<br />
Em todo caso, é lamentável que nenhuma formação<br />
propriamente dita associe a teoria e a prática,<br />
o passado e a maneira de interpretá-lo em<br />
imagens (sem contar que seria necessário estabelecer<br />
uma estreita parceria entre as universidades,<br />
os lugares de criação e de difusão, as cinematecas,<br />
assim como todos os centros de arquivamento).<br />
Decerto, “a ficção histórica documentária”,<br />
para retomar a expressão de Rancière, não<br />
pode reorientar os assuntos e os suportes da pesquisa<br />
da história. Deve-se para isso renunciar,<br />
quando se é historiador, a servir-se das imagens<br />
fílmicas para fazer seu trabalho de outra maneira?<br />
Talvez seja tempo de reconsiderar a questão, de<br />
ir mais longe. De considerar com atenção, como<br />
há muito tempo já fazem certos pesquisadores<br />
americanos como Robert A. Rosenstone, 21 uma<br />
outra escrita histórica, pensada e inteiramente<br />
constituída de imagens animadas (considerando<br />
inteiramente sua especificidade), com trama (o<br />
que notadamente apresenta a vantagem de ampliar<br />
a difusão do conhecimento histórico a um outro<br />
público que o dos especialistas). Uma forma<br />
documentária teatralizada que renove as narrativas<br />
tradicionais tomando emprestado as regras da<br />
ficção, quiçá da dramaturgia. Se é incontestável<br />
que o arquivo fílmico não pode substituir o escrito,<br />
ele pode, em contrapartida, participar da reconstrução<br />
do passado à sua maneira, com os<br />
meios que lhe são próprios, isto é, considerando<br />
suas possibilidades e suas lacunas. Uma escrita<br />
fílmica original, singular em sua concepção, rigorosa<br />
em sua demonstração, mas não despida de<br />
inovações criadoras. Reagenciadas como fontes<br />
históricas, as imagens, sob o olhar atento do historiador<br />
cineasta, dão a pensar tanto ou mais que<br />
dão a ver. Escrever a história e filmar a história<br />
pode depender de um mesmo regime de sentido e<br />
de verdade. A tarefa é cada vez mais necessária,<br />
pois as imagens de arquivos agora fazem parte da<br />
atualidade midiática. 22 Com efeito, todo mundo<br />
pode constatar que, no quadro do frenesi das comemorações,<br />
as emissoras de televisão utilizamnas<br />
cada vez mais como caução histórica, como<br />
aposta de memória.<br />
L’héroïque cinématographe é um filme que já<br />
tem muito tempo. Como todos os filmes, ele tem<br />
sua própria história. Difícil, com momentos de<br />
dúvida, acasos que seria cansativo detalhar aqui. 23<br />
Mas também, felizmente, uma história feita de<br />
entusiasmos, de encontros ricos e estimulantes, é<br />
que lhe permitiu nascer. A esse título, o encontro<br />
com Agnès de Sacy, que é cenarista de ficção, 24<br />
foi determinante. Nossos caminhos se cruzaram<br />
em 1996, em torno de uma filmagem em Belgrado,<br />
justo após os acordos de Dayton que, acreditem,<br />
colocavam fim ao conflito na ex-Iugoslávia.<br />
Discutimos sobre essa experiência comum insólita,<br />
depois lhe falei de um projeto de documentário<br />
que escrevera sobre o percurso de dois cameramen<br />
durante outra guerra, a de 1914-1918.<br />
Decidimos então desenvolvê-lo juntos. 25<br />
21 Ver ROSENSTONE, Robert A. Visions of the past: the challenge of film to our idea of history. Harvard University Press,<br />
1955; e Film historique/vérité historique, em XXe Siècle, Revue d’Histoire, n. 46, abr.-jun. 1995, Christian Delage (dir.).<br />
22 Assiste-se inclusive atualmente a uma espécie de fascinação pelos arquivos fílmicos: ver a esse respeito a admiração do público<br />
pelas montagens de imagens em cores da Segunda Guerra Mundial (Ils ont filme la guerre em couleurs, recentemente difundido<br />
por France 2, reuniu 20% do mercado na primeira parte da exibição, o que é um recorde de audiência para um filme desse tipo).<br />
23 Não é inútil precisar que os parâmetros econômicos têm um papel decisivo na realização de um filme de arquivos como esse.<br />
Assim, um dos maiores obstáculos reside no custo da operação. Os detentores dos direitos das imagens exigem, de fato, tarifas<br />
freqüentemente proibitivas (em torno de 1.500 euros por minuto utilizado para uma difusão televisiva em escala européia). Isso<br />
explica em grande parte as dúvidas das emissoras e o fato de elas só se dirigirem a realizadores considerados “experientes” que, com<br />
muita freqüência, se ligam a uma concepção tradicional do gênero, o que constitui evidentemente um entrave à sua renovação. Outra<br />
conseqüência é que os produtores, na maior parte do tempo, só se lançam na aventura do filme de arquivos quando fazem um<br />
acordo no mínimo com uma cinemateca. Por fim, o filme se constrói unicamente, ou quase, com as imagens disponíveis (isto é,<br />
livres de direito), o que, é óbvio, limita consideravelmente a margem de manobra do documentarista. 24 Ela colaborou, entre<br />
outros, com os cenários do filme de Hélène Angel, Peau d’homme, coeur de bête (1999) e de Orso Miret, De l’histoire ancienne<br />
(2000). 25 Outras colaborações foram igualmente preciosas. As de Patrick Winocour e Juliette Guigon, os produtores, que<br />
constantemente sustentaram o projeto; e certamente a de Françoise Bernard, a montadora, que, por sua experiência com arquivos (ela<br />
particularmente montou La foi du siècle de Patrick Rotman e o filme Roman Karmen, um cinéaste au service de la révolution, de<br />
Patrick Barberis e Dominique Chapuis), teve um papel considerável.<br />
Tudo começou no início dos anos de 1990<br />
por uma pesquisa ligada a minha história pessoal,<br />
a lembranças de infância sempre presentes<br />
num canto de minha memória. Isso se traduziu<br />
por um estudo aprofundado sobre os noticiários<br />
realizados durante a Grande Guerra,<br />
conduzidos num enquadramento universitário.<br />
Centenas de horas passadas para projetar filmes<br />
montados ou rushes. Um longo trabalho<br />
de gestação ao longo do qual aprendi a me familiarizar<br />
com as imagens dessa época, tentei<br />
compreender sua especificidade para embaralhar<br />
as antigas certezas provenientes de uma<br />
visão superficial desses arquivos. Uma pesquisa<br />
a partir da qual a idéia de realizar um documentário<br />
amadureceu, até tornar-se uma verdadeira<br />
necessidade. Decidi então construir<br />
uma narrativa em torno de duas personagens,<br />
dois operadores de câmera, um francês e um<br />
alemão, a fim de oferecer maior diversidade de<br />
percepção. Supus que cada um fez um diário<br />
em que teria inscrito suas impressões e comentários<br />
sobre as imagens rodadas que vemos. Inventado<br />
a partir da observação atenta das próprias<br />
imagens, de fontes variadas e de experiências<br />
vividas, o percurso desses dois homens<br />
(eles não aparecem na tela, somente em voz off)<br />
é organizado num todo coerente para colocar<br />
em evidência e em perspectiva as apostas da<br />
representação filmada desse acontecimento.<br />
Essa aproximação comparativa, sob forma de<br />
montagem paralela, é finalmente um atalho que<br />
atravessa a história, um atalho de cinema.<br />
De fato, poderia dizer que meu desejo do<br />
filme partiu de uma paixão e de um sentimento<br />
de raiva. A paixão é, como diz com justiça a<br />
historiadora Arlette Farge, “o gosto do arquivo”<br />
e sua parte de nostalgia. É verdade que meu trabalho<br />
de reflexão provocou uma atração particular<br />
por essas imagens cinematográficas. Primeiro<br />
pelo que têm suscitado em mim de intensas<br />
sensações, de reações afetivas. Em seguida, porque<br />
fiquei surpreso pela extraordinária qualidade<br />
estética de algumas dentre elas. A descoberta<br />
dessas visões animadas silenciosas, raiadas de<br />
chuva e tachadas de negro sob a ação do tempo,<br />
26 lembranças visuais de uma época longínqua<br />
saída de sua caixa, é sempre emocionalmente<br />
forte. É um pouco como se esse mundo dos<br />
desaparecidos que é o passado surgisse de súbito<br />
das silhuetas felizes ou patéticas. Uma espécie<br />
de vida que não é dita pelas palavras, que não<br />
podemos extrair dos textos contemporâneos.<br />
Ainda hoje, tenho a impressão de que os filmes,<br />
abolindo o tempo, permitem, para retomar uma<br />
expressão de Michelet a propósito da história,<br />
“ressuscitar os mortos” (“a morte deixará de ser<br />
absoluta”, anunciava o jornal La Poste a propósito<br />
dos primeiros filmes Lumière em 1895), lhes<br />
dar nova vida. 27 Sua capacidade para restituir<br />
figuras do real, ilustres ou desconhecidas, é de<br />
fato surpreendente.<br />
Esse peso de existências referenciais de que<br />
são dotados os arquivos (o valor ontológico da<br />
imagem de outrora evocada por Bazin que, con-<br />
26 Os defeitos devidos ao desgaste ou à deterioração química da película de nitrato produzem uma dimensão estética nova,<br />
que, acentuando o charme melancólico das imagens, materializam igualmente, de maneira simbólica, a passagem do tempo.<br />
Yervant Gianikian e Ângela Ricci Lucchi, verdadeiros artistas do arquivo, servem-se deles (colorindo-os e às vezes enquadrando-os<br />
com o que denominam sua “câmera analítica”) há muitos anos para evocar poeticamente o passado, revelar por trás<br />
da inquietante tranqüilidade das imagens o terrível caos do século XX. É também o caso do americano Bill Morrison, que<br />
desenterra da Biblioteca do Congresso partes de atualidades dos anos de 1910 aos anos de 1940, apresentando uma<br />
decomposição parcial da emulsão para explorar seu potencial pictórico, o lado quase abstrato. É preciso mencionar também<br />
o trabalho dos videastas e dos autores de instalações multimídia, sobretudo o de Bárbara Lattanzi. Esta última, na linhagem<br />
das reflexões levadas durante os anos 70 pelo cineasta experimental americano Hollis Frampton, reutiliza imagens de<br />
arquivos que reúne a elementos díspares, a fim de criar novas obras (sempre interativas) destinadas principalmente a Net.<br />
É possível assim descobrir atualmente alguns de seus movies clips realizados a partir de planos do filme de F.W. Murnau,<br />
Nosferatu (1922) em seu website: www.wildernesspuppets.net (para mais informações sobre a originalidade dos dispositivos<br />
utilizados por essa artista, ver HILL, Chris. (Re)performing the Archive: Bárbara Lattanzi & Hollis Frampton in<br />
dialogue, Millennium Film Journal, n. 39-40, Winter 2003, p. 66-81). 27 Jules Michelet pensava que ao historiador cabe<br />
a tarefa de defender a memória e fazer justiça aos homens deliberadamente ignorados. Dizia ele: “Jamais em minha carreira<br />
perdi de vista esse dever do historiador. Dei a vários mortos esquecidos a assistência da qual eu mesmo teria necessidade.<br />
Exumei-os para uma segunda vida”; prefácio de L’histoire du XIXe siècle, 1873.<br />
61
A<br />
A<br />
A HISTÓRIA HISTÓRIA PODE PODE SER SER FEITA FEITA COM COM ARQUIVOS ARQUIVOS FÍLMICOS<br />
FÍLMICOS? FÍLMICOS<br />
REVOLUÇÕES<br />
soante ele, “serve para salvar os desaparecidos<br />
de uma segunda morte espiritual”) 28 reveste-se<br />
a meus olhos de uma importância capital. Entre<br />
essas aparências carnais gravadas na emulsão<br />
sensível da película, são os traços deixados,<br />
as marcas de vidas comuns de homens e mulheres<br />
pertencentes à massa dos esquecidos da história<br />
que mais me tocam. Essa potência da ilusão<br />
(o famoso “isso foi” de que falava Barthes),<br />
tornando visíveis rostos anônimos, corpos em<br />
movimento, gestos sem importância ou excepcionais<br />
em via de se efetuar, é simultaneamente<br />
apaixonante e perturbadora. Toca-se, sem<br />
dúvida, nessa possibilidade essencial que essas<br />
imagens têm de estabelecer laços. Com efeito,<br />
esses olhares, esses sorrisos, esses gestos, esses<br />
signos efetuados na direção do câmera, somos<br />
nós, espectadores atuais, doravante seus destinatários.<br />
O espaço de um instante, o espaço de<br />
uma projeção, os vivos de então, esses que habitualmente<br />
não se vê, e que a morte aniquilou,<br />
renascem, revivem sob nossos olhos. Eles se<br />
agitam e parecem se comunicar conosco, antes<br />
de reencontrar a imobilidade, a obscuridade das<br />
cinematecas. Esses reinos de sombras que os<br />
abrigam. Sempre fui igualmente impressionado<br />
pela potência de evocação desses planos. Em<br />
muitos deles, há uma infinidade de acontecimentos<br />
minúsculos, de subentendidos, de elementos<br />
que permanecem da ordem do enigma,<br />
sem significação aparente ou, ao contrário, plenos<br />
de sentido que só pedem para ser explicitados:<br />
dito de outra maneira, simplesmente, uma<br />
formidável potencialidade para relatar alguma<br />
coisa. Entre as imagens da Grande Guerra, há<br />
inúmeras que têm essa impressionante capacidade<br />
de deixar entrever os horrores do conflito,<br />
aí compreendidos quando a priori nada se<br />
passa, e mesmo na artificialidade das encenações,<br />
e malgrado o papel da censura ou da propaganda.<br />
Não é raro, com efeito, que a câmera<br />
registre o imprevisto, o acaso. Aparece então,<br />
enfiada sob sua pretensa realidade, essa incomparável<br />
alteridade (uma parte de inesperado e<br />
de inocência) reenviando para o que é escondido,<br />
proibido: hors champ. Por essa razão a noção<br />
de traços me interessa enormemente. Sou muito<br />
sensível a eles, pois com freqüência são mais<br />
evocativos que a própria ação que quase sempre<br />
permanece invisível. Desde então, como não<br />
evocar esses inúmeros planos seqüências (figuras<br />
favoritas dos operadores da época), essas<br />
longas panorâmicas do no man’s land, lancinantes<br />
e melancólicos, que são tantos alongamentos<br />
do espaço e do tempo, carregados de marcas<br />
e cicatrizes indeléveis. Há aí, para mim,<br />
uma verdadeira especificidade cinematográfica<br />
que deve ser estudada e utilizada como uma<br />
espécie de conceito histórico.<br />
A raiva foi sentida ao observar a maioria<br />
dos documentários sobre o assunto. Freqüentemente<br />
realizados num quadro comemorativo e<br />
no esquecimento da história, eles integram imagens<br />
de arquivos destacadas de seu contexto de<br />
origem para ilustrar um discurso redigido a<br />
posteriori. Eles me incitaram a considerar um<br />
outro filme. Como uma recusa da interpretação<br />
global do acontecimento (que é impossível)<br />
e de sua presumida verdade (que é sem cessar<br />
inacessível). A Primeira Guerra Mundial é uma<br />
das maiores tragédias do século XX, sempre<br />
presente na consciência coletiva, sobretudo pelo<br />
viés das inúmeras imagens chegadas até nós.<br />
Ora, a maioria delas é utilizada pelo que presumivelmente<br />
mostra e não pelo que é realmente.<br />
Acontece também dessa utilização ser totalmente<br />
falaciosa. Em particular, quando se decide mostrar<br />
os combates: simplesmente porque não há<br />
imagem de batalha, as que aparecem em todos<br />
os filmes de montagem não são autênticas. Foram<br />
reconstituídas no decorrer e sobretudo após<br />
a guerra, durante os anos 60. Algumas delas,<br />
aliás, acabaram por mudar de estatuto, tornando-se<br />
“falsas verdadeiras imagens de arquivos”.<br />
Os realizadores, na falta de efeitos espetaculares,<br />
ainda se servem delas regularmente. Os filmes<br />
de atualidade rodados durante a Grande<br />
28 BAZIN, André. Ontologie de l’image photographique, em Qu’est-ce que le cinéma? op. cit., p. 10.<br />
Guerra, como todos os documentos de época,<br />
são portadores de realidade e de mentiras (a<br />
cena sob controle das representações da guerra<br />
pelo poder civil e militar implica evidentemente<br />
diversas manipulações).<br />
Sabemos, com efeito, que as imagens, quaisquer<br />
que sejam, podem ser enganosas. Elas escondem<br />
da mesma maneira que mostram. É fácil<br />
fazê-las dizer tudo e o contrário. Por conseqüência,<br />
importa desconfiar da semelhança e<br />
da verossimilhança que parecem impor. São<br />
arquivos nem mais nem menos reais que outras<br />
fontes. Não têm de modo algum valor de prova.<br />
Daí a necessidade de identificá-las bem, de<br />
lhes colocar questões (algumas das quais fazem<br />
eco com as interrogações atuais), de torná-las<br />
inteligíveis. Dito de outra maneira, de tornálas<br />
um objeto de história, reapropriando-se delas.<br />
Um objeto para reinventar em função de<br />
hipóteses pertinentes, sem excesso nem falta de<br />
imaginação. Decerto, não se tratava de ilustrar<br />
minha tese, mas de encontrar uma forma original,<br />
a fim de oferecer um esclarecimento inédito<br />
sobre essa imensa matéria bruta e sensível.<br />
Sublinhei isso anteriormente: as imagens fílmicas<br />
são documentos que, considerada sua própria<br />
natureza, impõem exigências para sua utilização<br />
numa perspectiva histórica. Desde então,<br />
entre trabalho de pesquisa e criação, refleti<br />
sobre uma construção discursiva adaptada ao<br />
objeto estudado, uma espécie de análise cinematográfica<br />
da história que, operando uma narração<br />
(com sua parte de artifício), possa tornar<br />
melhor perceptível sua especificidade. Isto é,<br />
restituir às imagens de arquivos seu sentido<br />
verdadeiro ancorando-as no presente com o qual<br />
elas entram inevitavelmente em ressonância.<br />
Daí a idéia de inventar duas personagens<br />
cuja palavra foi construída a partir de diversos<br />
materiais de época (testemunhos de cameramen,<br />
correspondências, diários, extratos de romances...)<br />
associados entre si. O texto que, para<br />
parafrasear Marker, não comenta as imagens<br />
sem que as imagens ilustrem o texto. Criar esses<br />
dois itinerários, era uma maneira de dar<br />
sentido às imagens sem ser obrigado a utilizar<br />
um comentário didático dizendo: “Essa é a verdade!”<br />
Ainda mais que esses personagens são<br />
não só contemporâneos dos acontecimentos,<br />
mas também partes integrantes de suas representações,<br />
visto que se supõe que rodaram as<br />
imagens constituintes do filme. Isso permite<br />
esclarecer, tanto quanto possível, as circunstâncias<br />
de sua elaboração e “analisá-las” sem fazer<br />
didatismo, oferecendo ao contrário vários níveis<br />
de leitura. O tratamento sonoro é similar.<br />
A banda sonora foi concebida para ser constitutiva<br />
da narrativa fílmica, mais do que adicional<br />
e ilustrativa. Seria preciso evitar a todo custo<br />
a sonorização forçada, os abusos de sonoplastia:<br />
portanto, recriamos sons que, evocando<br />
essas imagens, foram inteiramente elaborados<br />
a partir de elementos contemporâneos sem<br />
qualquer relação com a época representada,<br />
como um distanciamento indispensável para<br />
melhor compreender. Em seguida, esses sons<br />
foram misturados a alguns registros de época<br />
reencontrados nos arquivos e a uma criação<br />
musical original. 29<br />
Marc Bloch afirmava que toda obra de história<br />
é forçosamente um compromisso entre o<br />
presente e o passado, o próximo e o longínquo.<br />
L’héroïque, à sua maneira, é uma narrativa<br />
metonímica no sentido em que, por meio do<br />
percurso dos dois operadores de câmera, falase<br />
da guerra de 1914-1918, mas trata-se sobretudo<br />
de propor, entrecruzando a história desse<br />
conflito e a do cinema, uma reflexão histórica<br />
sobre a representação da guerra no cinema. Não<br />
só da Primeira Guerra Mundial, mas finalmente<br />
de todas as guerras mediatizadas da época<br />
até nossos dias. É um pouco, para retomar uma<br />
fórmula godardiana, uma outra maneira de<br />
abordar “a história do cinema, o cinema de atualidade,<br />
e a atualidade da história”.<br />
29 A concepção sonora é de Martin Wheeler (um verdadeiro expert em samples...), a música original é de Stephane Bortoli e Martin Wheeler.<br />
63
GLAUBER<br />
“ O século está entrando numa barra pesada...<br />
Não aceito a sociedade em que vivo e o sistema moral que<br />
a rege. Pode-se contribuir de uma forma efetiva para<br />
que essas coisas sejam modificadas. Nesse sentido eu me<br />
considero um revolucionário. Digo isso sem orgulho, sem<br />
empáfia, sem me colocar numa posição moral avantajada.<br />
Eu, inclusive, me dou a liberdade de duvidar do que<br />
acredito. Mas dentro dessa medida, sou um revolucionário<br />
”<br />
com a maior humildade possível.<br />
Tempo Glauber Rocha<br />
Tempo Glauber Rocha<br />
AN PH/FOT/ 40260(3)
Glauber Rocha<br />
EZTETYCA DA FOME<br />
Tese apresentada durante as discussões em torno do<br />
Cinema Novo, por ocasião da retrospectiva realizada<br />
na Resenha do Cinema Latino-Americano, em<br />
Gênova, janeiro de 1965, sob o patrocínio do<br />
Columbianum. O tema proposto pelo secretário Aldo<br />
Viganó foi Cinema Novo e cinema mundial.<br />
Contingências forçaram a modificação: o paternalismo<br />
do europeu em relação ao Terceiro Mundo – foi o<br />
principal motivo da mudança de tom.<br />
Dispensando a introdução informativa que se<br />
transformou na característica geral das discussões<br />
sobre a América Latina, prefiro situar<br />
as relações entre nossa cultura e a cultura civilizada<br />
em termos menos reduzidos do que aqueles<br />
que, também, caracterizam a análise do observador<br />
europeu. Assim, enquanto a América Latina<br />
lamenta suas misérias gerais, o interlocutor estrangeiro<br />
cultiva o sabor dessa miséria, não como<br />
um sintoma trágico, mas apenas como um dado<br />
formal em seu campo de interesse. Nem o latino<br />
comunica sua verdadeira miséria ao homem civilizado<br />
nem o homem civilizado compreende<br />
verdadeiramente a miséria do latino.<br />
Eis – fundamentalmente – a situação das<br />
Artes no Brasil diante do mundo: até hoje, somente<br />
mentiras elaboradas da verdade (os exotismos<br />
formais que vulgarizaram problemas sociais)<br />
conseguiram se comunicar em termos quantitativos,<br />
provocando uma série de equívocos que<br />
não terminam nos limites da Arte mas contaminam<br />
sobretudo o terreno geral do político.<br />
Para o observador europeu, os processos de<br />
criação artística do mundo subdesenvolvido só<br />
interessam na medida que satisfazem sua nostalgia<br />
do primitivismo; e este primitivismo se apre-<br />
senta híbrido, disfarçado sob as tardias heranças<br />
do mundo civilizado, mal compreendidas porque<br />
impostas pelos condicionamentos colonialistas.<br />
A América Latina permanece colônia e o que<br />
diferencia o colonialismo de ontem do atual é<br />
apenas a forma aprimorada do colonizador: e além<br />
dos colonizadores de fato, as formas sutis daqueles<br />
que também sobre nós armam futuros botes.<br />
O problema internacional da América Latina<br />
é ainda um caso de mudança de colonizadores,<br />
sendo que uma libertação possível estará ainda<br />
por muito tempo em função de uma nova dependência.<br />
Este condicionamento econômico e político nos<br />
levou ao raquitismo filosófico e à impotência, que,<br />
às vezes inconsciente, às vezes não, geram no primeiro<br />
caso a esterilidade e no segundo a histeria.<br />
A esterilidade: aquelas obras encontradas fartamente<br />
em nossas artes, onde o autor se castra<br />
em exercícios formais que, todavia, não atingem<br />
a plena possessão de suas formas. O sonho<br />
frustrado da universalização: artistas que não<br />
despertaram do ideal estético adolescente. Assim,<br />
vemos centenas de quadros nas galerias,<br />
Tempo Glauber Rocha<br />
Este texto foi extraído de Revolução do Cinema Novo, Rio de Janeiro, Alhambra-Embrafilme, 1981.<br />
empoeirados e esquecidos; livros de contos e<br />
poemas; peças teatrais, filmes (que, sobretudo<br />
em São Paulo, provocaram inclusive falências)...<br />
O mundo oficial encarregado das artes gerou<br />
exposições carnavalescas em vários festivais e<br />
bienais, conferências fabricadas, fórmulas fáceis<br />
de sucesso, coquetéis em várias partes do mundo,<br />
além de alguns monstros oficiais da cultura,<br />
acadêmicos de Letras e Artes, júris de pintura<br />
e marchas culturais pelo país afora. Monstruosidades<br />
universitárias: as famosas revistas<br />
literárias, os concursos, os títulos.<br />
A histeria: um capítulo mais complexo. A<br />
indignação social provoca discursos flamejantes.<br />
O primeiro sintoma é o anarquismo que marca<br />
a poesia jovem até hoje (e a pintura). O segundo<br />
é uma redução política da arte que faz má política<br />
por excesso de sectarismo. O terceiro, e mais<br />
eficaz, é a procura de uma sistematização para a<br />
arte popular. Mas o engano de tudo isso é que<br />
nosso possível equilíbrio não resulta de um corpo<br />
orgânico, mas de um titânico e autodevastador<br />
esforço no sentido de superar a impotência;<br />
e, no resultado desta operação a fórceps, nós nos<br />
vemos frustrados, apenas nos limites inferiores<br />
do colonizador; e se ele nos compreende, então,<br />
não é pela lucidez de nosso diálogo, mas pelo<br />
humanitarismo que nossa informação lhe inspira.<br />
Mais uma vez o paternalismo é o método de<br />
compreensão para uma linguagem de lágrimas<br />
ou de mudo sofrimento.<br />
A fome latina, por isto, não é somente um sistema<br />
alarmante: é o nervo de sua própria sociedade.<br />
Aí reside a trágica originalidade do Cinema<br />
Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade<br />
é nossa fome e nossa maior miséria é que<br />
esta fome, sendo sentida, não é compreendida.<br />
De Aruanda a Vidas secas, o Cinema Novo<br />
narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou,<br />
excitou os temas da fome: personagens comendo<br />
terra, personagens comendo raízes, personagens<br />
roubando para comer, personagens matando<br />
para comer, personagens fugindo para comer,<br />
personagens sujas, feias, descarnadas, morando<br />
em casas sujas, feias, escuras: foi esta galeria de<br />
famintos que identificou o Cinema Novo com o<br />
miserabilismo tão condenado pelo Governo, pela<br />
crítica a serviço dos interesses antinacionais,<br />
pelos produtores e pelo público – este último não<br />
suportando as imagens da própria miséria. Este<br />
miserabilismo do Cinema Novo opõe-se à tendência<br />
do digestivo, preconizada pelo crítico-mor<br />
da Guanabara, Carlos Lacerda: filmes de gente<br />
REVOLUÇÕES<br />
67
E ZTET ZTET ZTETY ZTET ZTET CA CA CA DA DA DA FOME FOME<br />
REVOLUÇÕES<br />
rica, em casas bonitas, andando em automóveis<br />
de luxo; filmes alegres, cômicos, rápidos, sem<br />
mensagens, de objetivos puramente industriais.<br />
Estes são os filmes que se opõem à fome, como<br />
se, na estufa e nos apartamentos de luxo, os cineastas<br />
pudessem esconder a miséria moral de<br />
uma burguesia indefinida e frágil ou se mesmo<br />
os próprios materiais técnicos e cenográficos<br />
pudessem esconder a fome que está enraizada na<br />
própria incivilização. Como se, sobretudo, neste<br />
aparato de paisagens tropicais, pudesse ser<br />
disfarçada a indigência mental dos cineastas que<br />
fazem este tipo de filme. O que fez do Cinema<br />
Novo um fenômeno de importância internacional<br />
foi justamente seu alto nível de compromisso<br />
com a verdade; foi seu próprio miserabilismo,<br />
que, antes escrito pela literatura de 30, foi<br />
fotografado pelo cinema de 60; e, se antes era<br />
escrito como denúncia social, hoje passou a ser<br />
discutido como problema político. Os próprios<br />
estágios do miserabilismo em nosso cinema são<br />
internamente evolutivos. Assim, como observa<br />
Gustavo Dahl, vai desde o fenomenológico (Porto<br />
das Caixas), ao social (Vidas secas), ao político<br />
(Deus e o Diabo), ao poético (Ganga Zumba), ao<br />
demagógico (Cinco vezes favela), ao experimental<br />
(Sol sobre a lama), ao documental (Garrincha,<br />
a alegria do povo), à comédia (Os mendigos), experiências<br />
em vários sentidos, frustradas umas,<br />
realizadas outras, mas todas compondo, no final<br />
de três anos, um quadro histórico que, não por<br />
acaso, vai caracterizar o período Jânio-Jango: o<br />
período das grandes crises de consciência e de<br />
rebeldia, de agitação e revolução, que culminou<br />
no Golpe de Abril. E foi a partir de abril que a<br />
tese do cinema digestivo ganhou peso no Brasil,<br />
ameaçando, sistematicamente, o Cinema Novo.<br />
Nós compreendemos esta fome que o europeu<br />
e o brasileiro na maioria não entende. Para<br />
o europeu, é um estranho surrealismo tropical.<br />
Para o brasileiro, é uma vergonha nacional. Ele<br />
não come, mas tem vergonha de dizer isto; e,<br />
sobretudo, não sabe de onde vem esta fome. Sabemos<br />
nós – que fizemos estes filmes feios e tristes,<br />
estes filmes gritados e desesperados onde nem<br />
sempre a razão falou mais alto – que a fome não<br />
será curada pelos planejamentos de gabinete e que<br />
os remendos do tecnicolor não escondem, mas<br />
agravam seus tumores. Assim, somente uma cultura<br />
da fome, minando suas próprias estruturas,<br />
pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre<br />
manifestação cultural da fome é a violência.<br />
A mendicância, tradição que se implantou<br />
com a redentora piedade colonialista, tem sido<br />
uma das causadoras de mistificação política e da<br />
ufanistas mentira cultural; os relatórios oficiais<br />
da fome pedem dinheiro aos países colonialistas<br />
com o fito de construir escolas sem criar professores,<br />
de construir casas sem dar trabalho, de ensinar<br />
o ofício sem ensinar o alfabeto. A diplomacia<br />
pede, os economistas pedem, a política pede:<br />
o Cinema Novo, no campo internacional, nada<br />
pediu: impôs-se a violência de suas imagens e sons<br />
em vinte e dois festivais internacionais.<br />
Pelo Cinema Novo: o comportamento exato<br />
de um faminto é a violência, e a violência de um<br />
faminto não é primitivismo. Fabiano é primitivo?<br />
Antão é primitivo? Corisco é primitivo? A<br />
mulher de Porto das Caixas é primitiva?<br />
Do Cinema Novo: uma estética da violência<br />
antes de ser primitiva é revolucionária, eis aí o<br />
ponto inicial para que o colonizador compreenda<br />
a existência do colonizado: somente conscientizando<br />
sua possibilidade única, a violência, o<br />
colonizador pode compreender, pelo horror, a<br />
força da cultura que ele explora. Enquanto não<br />
ergue as armas, o colonizado é um escravo: foi<br />
preciso um primeiro policial morto para que o<br />
francês percebesse um argelino.<br />
De uma moral: essa violência, contudo, não<br />
está incorporada ao ódio, como também não diríamos<br />
que está ligada ao velho humanismo colonizador.<br />
O amor que esta violência encerra é<br />
tão brutal quanto a própria violência, porque não<br />
é um amor de complacência ou de contemplação,<br />
mas um amor de ação e transformação.<br />
O Cinema Novo, por isto, não fez melodramas:<br />
as mulheres do Cinema Novo sempre fo-<br />
Tempo Glauber Rocha<br />
Glauber em ação<br />
ram seres em busca de uma saída possível para o<br />
amor, dada a impossibilidade de amar com fome:<br />
a mulher protótipo, a de Porto das Caixas, mata<br />
o marido; a Dandara de Ganga Zumba foge da<br />
guerra para um amor romântico; Sinhá Vitória<br />
sonha com novos tempos para os filhos; Rosa<br />
vai ao crime para salvar Manuel e amá-lo em<br />
outras circunstâncias; a moça do padre precisa<br />
romper a batina para ganhar um novo homem; a<br />
mulher de O desafio rompe com o amante porque<br />
prefere ficar fiel ao seu mundo burguês; a<br />
mulher em São Paulo S.A. quer a segurança do<br />
amor pequeno-burguês, e para isto tentará reduzir<br />
a vida do marido a um sistema medíocre.<br />
Já passou o tempo em que o Cinema Novo<br />
precisava explicar-se para existir: o Cinema<br />
Novo necessita processar-se para que se explique,<br />
à medida que nossa realidade seja mais<br />
discernível à luz de pensamentos que não estejam<br />
debilitados ou delirantes pela fome. O Cinema<br />
Novo não pode desenvolver-se efetivamente<br />
enquanto permanecer marginal ao processo<br />
econômico e cultural do continente latino-americano;<br />
além do mais, porque o Cinema<br />
Novo é um fenômeno dos povos colonizados<br />
e não uma entidade privilegiada do Brasil:<br />
onde houver um cineasta disposto a filmar a<br />
verdade, e a enfrentar os padrões hipócritas e<br />
policialescos da censura, aí haverá um germe<br />
vivo do Cinema Novo. Onde houver um cine-<br />
Tempo Glauber Rocha<br />
asta disposto a enfrentar o comercialismo, a<br />
exploração, a pornografia, o tecnicismo, aí<br />
haverá um germe do Cinema Novo. Onde houver<br />
um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer<br />
procedência, pronto a pôr seu cinema e<br />
sua profissão a serviço das causas importantes<br />
de seu tempo, aí haverá um germe do Cinema<br />
Novo. A definição é esta e por esta definição<br />
o Cinema Novo se marginaliza da indústria<br />
porque o compromisso do Cinema Industrial<br />
é com a mentira e com a exploração. A integração<br />
econômica e industrial do Cinema Novo<br />
depende da liberdade da América Latina. Para<br />
esta liberdade, o Cinema Novo empenha-se,<br />
em nome de si próprio, de seus mais próximos<br />
e dispersos integrantes, dos mais burros<br />
aos mais talentosos, dos mais fracos aos mais<br />
fortes. É uma questão moral que se refletirá<br />
nos filmes, no tempo de filmar um homem ou<br />
uma casa, no detalhe que observar, na Filosofia:<br />
não é um filme mas um conjunto de filmes<br />
em evolução que dará, por fim, ao público, a<br />
consciência de sua própria existência.<br />
Não temos por isto maiores pontos de contato<br />
com o cinema mundial.<br />
O Cinema Novo é um projeto que se realiza<br />
na política da fome, e sofre, por isto mesmo,<br />
todas as fraquezas conseqüentes de sua<br />
existência.<br />
Cena do filme<br />
Deus e o diabo<br />
na terra do sol<br />
69
JURANDYR<br />
NORONHA<br />
um homem de cinema!<br />
“ A geração nova precisa conhe cer essas histórias que não<br />
podem ser esquecidas. Nossos pioneiros são verdadeiros<br />
heróis nacionais, sem nenhum exagero. É através<br />
do cinema que podemos motivar o nosso povo...<br />
”<br />
Sempre pensei no cinema com esse sentido.<br />
Redator, escritor, cinegrafista,<br />
diretor, pesquisador, entre<br />
tantas outras atribuições, Jurandyr<br />
Noronha nasceu em 1916 na cidade<br />
de Juiz de Fora, em Minas<br />
Gerais, e até hoje está ligado à preservação<br />
do cinema, sua história<br />
e suas personagens.<br />
Na revista Cinearte, Cinédia,<br />
Instituto <strong>Nacional</strong> do Cinema Educativo<br />
(INCE), Departamento de<br />
Imprensa e Propaganda (DIP), TV<br />
Tupi, Instituto <strong>Nacional</strong> de Cinema,<br />
Jurandyr, desde 1936, desenvolveu<br />
diversas atividades profissionais.<br />
Conviveu com Adhemar<br />
Gonzaga, 1 que sempre esteve preocupado<br />
com a melhoria do padrão<br />
técnico do filme brasileiro, e Humberto<br />
Mauro, 2 um dos maiores talentos<br />
do nosso cinema. Além das<br />
grandes personagens do cinema,<br />
Jurandyr conviveu com técnicos<br />
que, normalmente, ficam esquecidos<br />
pelos escritores e documentaristas.<br />
A obra de Jurandyr Noronha<br />
resgata laboratoristas, montadores,<br />
técnicos de som, entre outros.<br />
Na sua experiência como pesquisador,<br />
foi possível perceber a<br />
fragilidade do filme e a necessidade<br />
de arquivos climatizados e de<br />
uma política de restauração de<br />
acervos. Durante o período em que<br />
dirigiu o Departamento do Filme<br />
Educativo do Ministério da Educação,<br />
organizou o primeiro depósito<br />
de matrizes de filmes da América<br />
Latina. Outra iniciativa, na<br />
tentativa de preservar o cinema<br />
brasileiro, foi a criação do Museu<br />
de Cinema. Em 1966, em artigo<br />
publicado na revista Filme Cultura,<br />
da Embrafilme, Jurandyr Noronha<br />
fala da necessidade da criação<br />
de um Museu de Cinema para<br />
dar solidez à memória. Os equipamentos,<br />
fotografias, cartazes vão se<br />
acumulando até que, em 1976, o<br />
1 Rio de Janeiro/RJ, 1901–1978. Produtor, diretor, crítico, pesquisador, ator, fundou no Rio de Janeiro a Cinédia, o primeiro<br />
grande estúdio do país. Dirigiu Barro humano, em 1929, e produziu diversos filmes, tais como Lábios sem beijos (1930) e Ganga<br />
bruta (1933), ambos dirigidos por Humberto Mauro, Bonequinha de seda (1936), dirigido por Oduvaldo Viana e O ébrio (1946),<br />
dirigido por Gilda de Abreu, que se tornou um dos filmes com mais espectadores no Brasil. 2 Volta Grande/MG, 1897–1983.<br />
Diretor, produtor, ator, fotógrafo, dirigiu seu primeiro filme em 1925, Valadião, o cratera, na bitola 9,5mm, em Cataguases/MG.<br />
Junto com o fotógrafo Pedro Comello e os comerciantes Homero Cortes e Agenor de Barros, cria a Phebo Sul América Film. Dirige Na<br />
primavera da vida (1926), Tesouro perdido (1927), Brasa dormida (1928) e Sangue mineiro (1929). . Esse período ficou conhecido<br />
museu é criado pelo Instituto <strong>Nacional</strong><br />
de Cinema.<br />
O longa-metragem Panorama<br />
do cinema brasileiro (1968), os<br />
curtas Inconfidência mineira – sua<br />
produção (1971), Cinegrafista de<br />
Rondon (1979), 3 entre os 35 filmes<br />
de curta e longa-metragem realizados<br />
por Jurandyr Noronha, se utilizam<br />
de fragmentos de filmes perdidos<br />
para sempre, reescrevendo a<br />
história do cinema brasileiro. Seus<br />
livros, No tempo da manivela<br />
(Embrafilme, 1987) e A longa luta<br />
do cinema brasileiro – os pioneiros<br />
(Funarte, 2002), e o CD-ROM<br />
Pioneiros do cinema brasileiro, detalham<br />
como esse cinema foi construído.<br />
Imagens raras de técnicos,<br />
atrizes e equipamentos contam<br />
uma história que durante muitos<br />
anos se julgava perdida.<br />
Os filmes produzidos e dirigidos<br />
por Jurandyr Noronha se encontram<br />
na Cinemateca Brasileira,<br />
em São Paulo, e no Centro<br />
Técnico Audiovisual da Secretaria<br />
do Audiovisual do Ministério da<br />
Cultura, no Rio de Janeiro. Seu<br />
acervo de fragmentos de filmes, fotografias<br />
de diretores, produtores,<br />
atores, técnicos, equipamentos,<br />
salas de cinema, além de textos e<br />
pesquisas relativas ao cinema brasileiro,<br />
foram encaminhados para<br />
o Museu da Imagem e do Som do<br />
Rio de Janeiro.<br />
Seus filmes, livros, e até mesmo<br />
uma simples conversa com<br />
Jurandyr Noronha, nos permitem<br />
compreender um dos mais significativos<br />
períodos do cinema brasileiro.<br />
Mauro Domingues<br />
Fotógrafo /Restaurador<br />
Rio de Janeiro, 2004<br />
como o ciclo de Cataguases. Em 1930, convidado pelo produtor Adhemar Gonzaga, vem para o Rio de Janeiro e dirige Lábios sem<br />
beijos e Ganga bruta, produzidos pela Cinédia. Em 1935 dirige Favela dos meus amores, produzido pela Brasil Vita Filmes, da<br />
produtora Carmen Santos. Ainda no Rio de Janeiro, em 1936, recebe convite de Edgard Roquette-Pinto para trabalhar no Instituto<br />
<strong>Nacional</strong> do Cinema Educativo (INCE), onde realiza centenas de filmes didáticos. Em 1937 dirige para o Instituto do Cacau da Bahia<br />
o longa-metragem O Descobrimento do Brasil. Em 1952 produz e dirige seu último longa-metragem, O canto da saudade. Seu último<br />
filme é o curta-metragem O carro de bois (1974). 3 Disponíveis em vídeo e DVD no Centro Técnico Audiovisual (CTAv) da<br />
Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura – (21)2580-3631.
E N T R E V I S T A concedida a Claudio Bojunga e publicada em Filme Cultura, n. 44, abril-agosto, 1984.<br />
A reconstrução da memória<br />
Silvio Tendler e o resgate da história<br />
política recente através da emoção<br />
FC: Quais as diferenças entre documentário<br />
e ficção? O documentário<br />
é um gênero menos nobre?<br />
Silvio: No filme A chinesa, Jean-<br />
Luc Godard faz um paralelo genial<br />
entre o que ele chama de “cinema<br />
de atualidades” – que é o documentário<br />
– e a ficção. Ele diz que o cinema<br />
nasceu “atualidades”, “documentário”<br />
com Lumière. Lumière filmava<br />
operários saindo da fábrica, um<br />
trem entrando na estação etc... O<br />
cinema se revela ficção com Meliès.<br />
Com Viagem à Lua e outros filmes.<br />
Porém, nos diz Godard, a estética<br />
da época, dos grandes impressionistas,<br />
pintava bancos de praças e trens<br />
entrando nas estações. E Godard<br />
concluiu genialmente que o que<br />
Meliès previa aconteceu realmente,<br />
o homem foi à Lua etc... portanto o<br />
documentarista foi Meliès. Enquanto<br />
que o artista pode muito bem ter<br />
sido Lumière, com seus assuntos<br />
aparentemente prosaicos, que foram<br />
os assuntos de toda a pintura moderna.<br />
Na verdade, as pessoas acham<br />
que a arte se desenvolve a partir do<br />
imaginário e não do real. É um preconceito<br />
contra o real. É como se<br />
elas dissessem que o que você vê na<br />
vida e capta com a câmera é uma<br />
facilidade, que o difícil é a reinvenção<br />
da realidade. Por isso o documentário<br />
acabou como um gênero<br />
menor, a não ser no caso dos grandes<br />
“documentaristas” que peitaram<br />
o preconceito, como Joris Ivens,<br />
Chris Marker e, no Brasil, um cara<br />
como Vladimir Carvalho. É preciso<br />
dizer que no Brasil há excelentes<br />
documentaristas...<br />
FC: Muita gente sustenta que o<br />
Cinema Novo começa com Aruanda,<br />
curta de Linduarte Noronha, e<br />
Arraial do Cabo, curta de Paulo<br />
Cesar Saraceni e Mario Carneiro,<br />
em princípio dois documentários,<br />
um do Norte, o outro do Sul...<br />
Silvio: Justamente. O problema é<br />
que as pessoas vêem o documentário<br />
como um degrau, um negócio<br />
que você faz para aprender a fazer<br />
cinema e então se expressar de verdade.<br />
Aliás, você próprio sempre<br />
cobrou do Chris Marker o fato de<br />
ele não ter desejado chegar à ficção...<br />
FC: Não, só o fato de ele não ter<br />
explorado de forma mais solta sua<br />
poesia, não a ficção. Certa vez me<br />
disse que considerava La jetée seu<br />
filme mais importante. Talvez esti-<br />
vesse deprimido naquele dia, não<br />
sei. Não se trata portanto do prosaico<br />
da ficção tradicional, falava<br />
do delírio possível com imagens<br />
verídicas que La jetée parecia abrir,<br />
como acho que abriu para Alain<br />
Resnais, por exemplo. Mas, você<br />
leva a sério esse negócio de “dar a<br />
palavra ao documento”?<br />
Silvio: Você sabe que o Millôr<br />
nunca morreu de amores pelo Jango.<br />
Mas ele gosta do meu filme e de<br />
mim. Quando ele me encontrou ele<br />
disse: “você fez uma grande fábula”.<br />
FC: Você concorda com ele?<br />
Silvio: Eu quero superar essa coisa<br />
de documentário como degrau.<br />
Acho que cada tema determina sua<br />
forma. Eu posso amanhã fazer um<br />
filme de ficção e, em seguida, voltar<br />
ao documentário. O importante<br />
no caso é que se eu tivesse todo<br />
o dinheiro do mundo e tivesse contado<br />
a história do Jango em ficção<br />
ela não teria a força desse filme<br />
feito com imagens sujas e arranhadas<br />
pelo tempo. A importância<br />
é o resgate dessas imagens. E<br />
as pessoas que se emocionaram<br />
com essas imagens, daquilo que<br />
elas viveram ou desconheciam,<br />
imagens de um país real.<br />
FC: Você não estaria “faturando” a<br />
emoção à custa do verídico?<br />
Silvio: A história joga com o<br />
sentimento. Não há história isenta.<br />
Você pode fazer as pessoas chorarem<br />
hoje contando a história da<br />
Comuna de Paris. Na hora de<br />
contar a história você deve trabalhar<br />
com emoções. Trata-se de cinema,<br />
de arte.<br />
FC: Dessa vez seu trabalho com<br />
as emoções parece mais consciente,<br />
não?<br />
Silvio Tendler: e se o artista fosse Lumière<br />
em vez de Meliès?<br />
Silvio: O discurso cinematográfico<br />
é mais elaborado. Eu tinha<br />
mais maturidade, já tinha feito o<br />
JK, já tinha mesmo levado uns puxões<br />
de orelha do Joris Ivens. A<br />
propósito do JK, ele me disse: o filme<br />
é excelente, mas falta emoção, é<br />
um filme frio. Simples: percebi que<br />
você não precisa ser frio para ser<br />
verdadeiro. Ele me deu um exemplo<br />
dessa frieza: a seqüência dos<br />
marinheiros – um ótimo material –<br />
utilizado de forma fria no JK. No<br />
Jango fiz aquela montagem paralela.<br />
FC: Você acha que o Joris estava<br />
sugerindo um cinema mais engajado?<br />
Menos de historiador?<br />
Silvio: Acho que ele me propôs<br />
mais engajamento, mais envolvimento<br />
emocional com o assunto. Isso<br />
não significa não ser historiador...<br />
FC: O filme é dedicado a ele, Joris<br />
Ivens, e a Chris Marker. Por quê?<br />
Silvio: São os meus mestres...<br />
FC: Queria que você falasse da sua<br />
formação cinematográfica...<br />
Silvio: Bom, eu tenho que voltar<br />
a 1968 e ao fato mais antigo de que<br />
eu sempre tive uma paixão por documentários.<br />
Via sempre os documentários<br />
sobre a guerra, no cine-<br />
REVOLUÇÕES<br />
73<br />
Jango menino: do<br />
álbum de família de<br />
um futuro presidente
A<br />
A<br />
A RECONSTRUÇÃO RECONSTRUÇÃO DA DA MEMÓRIA<br />
MEMÓRIA<br />
MEMÓRIA<br />
ma e na televisão. Em 1968, eu tentei<br />
fazer um primeiro filme (que<br />
não deu certo) sobre o marinheiro<br />
João Cândido, líder da revolta da<br />
Chibata em 1910. Fui mesmo o<br />
último a entrevistá-lo.<br />
FC: Há uma menção à presença<br />
dele no episódio dos marinheiros<br />
em Jango...<br />
Silvio: Verdade. Mas, por essa<br />
época, eu li uma pequena publicação<br />
editada pela Cinemateca do<br />
MAM sobre o Joris Ivens. Mas não<br />
me passou pela cabeça conhecê-lo<br />
pessoalmente. Há um outro fato interessante:<br />
em 1968, um amigo meu<br />
levou uma série de curtas-metragens<br />
para a Europa, 90% dos quais eram<br />
documentários. Filmes que haviam<br />
participado do Festival JB. Em Paris<br />
ele organizou uma sessão e convidou<br />
uma série de pessoas. Surpresa:<br />
a primeira pessoa a chegar foi<br />
Joris Ivens. Em 1972, eu viajo do<br />
Chile para a França e entro em contato<br />
com alguns amigos. Em função<br />
do tipo de cinema que desejo fazer,<br />
me sugerem procurar o pessoal do<br />
grupo Slon, mais tarde grupo Iskra,<br />
ligados a Chris Marker. Eu já tinha<br />
ouvido falar nele, mas eu não o conhecia<br />
muito bem. Mas eu sabia<br />
que ele era ligado à América Latina,<br />
etc... O pessoal do Slon me recebeu<br />
friamente, mas eu deixei, de<br />
qualquer forma, um bilhete do gênero<br />
“compañero estoy aqui” numa<br />
mistura de espanhol e francês arranhado.<br />
Uns 15 dias depois recebo um<br />
telefonema no meu hotel: “compañero,<br />
ici Chris Marker”. Eu pensei que<br />
fosse brincadeira, mas não era não.<br />
Vem então o golpe no Chile e a possibilidade<br />
de trabalhar com a equipe<br />
dele num filme sobre o assunto.<br />
FC: Joris Ivens e Chris Marker<br />
podem trabalhar em equipe, mas<br />
são muito individualistas, muito<br />
particulares, e sempre levam muita<br />
emoção a seus filmes...<br />
Silvio: Cinema é emoção. Os dois<br />
deram certo no documentário porque<br />
sacaram isso. Se não fosse um grande<br />
cineasta, Chris seria um grande escritor.<br />
Mas aí eu vou trabalhar com<br />
eles e – coincidência das coincidências<br />
– quem estava montando na sala<br />
ao lado era o Joris Ivens. Era um grande<br />
estúdio de montagem chamado<br />
Auditel, na avenida du Maine, nº12.<br />
Minha cabeça pirou nesse momento:<br />
no andar de baixo ficava a sala de<br />
montagem de Jean-Luc Godard. Na<br />
época ele estava piradão e achava que<br />
a direita podia atacá-lo a qualquer<br />
hora. A sala dele parecia uma verdadeira<br />
jaula. Na sala ao lado da nossa<br />
ficava o Joris Ivens. E, como se isso<br />
não bastasse, no andar de cima Orson<br />
Welles montava Verdades e mentiras.<br />
Você me imagina aos 23 anos<br />
trabalhando num lugar que era o meu<br />
universo cinematográfico.<br />
FC: A topografia do estúdio de<br />
montagem é reveladora. Você começou<br />
a entrevista falando em Godard,<br />
dedicou Jango a Joris e a<br />
Chris. E Verdades e mentiras de<br />
Orson Welles? Não estará levantada<br />
aí a questão das revelações do<br />
documentário com a ficção?<br />
Silvio: Vamos por partes. A grande<br />
lição que aprendi com Chris<br />
Marker foi deixar o texto desbundar<br />
a imagem verídica – que nem<br />
por isso fica menos verdadeira. O<br />
Chris na verdade me ensinou a<br />
olhar. O olhar dele é fulminante.<br />
Já Joris é importante pelo conjunto<br />
da obra dele, por sua coerência,<br />
seu trajeto. Ele é o documentarista<br />
do nosso século: Espanha, China,<br />
Vietnã, Chile... tem uma frase dele<br />
a respeito: “onde há alguma coisa<br />
pegando fogo, eu estou lá”. Em<br />
1935 ele realiza o primeiro filme<br />
militante do Ocidente: Borinage.<br />
Em seguida, vem a guerra sino-japonesa,<br />
a Guerra Civil espanhola,<br />
a Segunda Guerra Mundial, quando<br />
ele vai aos Estados Unidos aju-<br />
Jango deposto:<br />
imagem arranhada<br />
pelo tempo<br />
dar o Frank Capra naquela série<br />
Por que combatemos. No final da<br />
guerra ele vai à Indonésia como alto<br />
comissário do governo holandês<br />
para fazer cinema. Chega lá, vê que<br />
não é nada daquilo e adere aos rebeldes<br />
indonésios. Por causa desse<br />
apoio ele perde o passaporte holandês<br />
e fica sete anos sem poder<br />
voltar à Holanda. Repara: ele foi<br />
ao Chile já na posse do Allende. É<br />
um sujeito ligado nos problemas do<br />
Terceiro Mundo, Vietnã, Cuba,<br />
Mali, Laos. E nada do que ele faz é<br />
chato. Nunca dispensa a ajuda de<br />
grandes escritores, o próprio Chris<br />
já fez textos para ele. E voltamos<br />
ao texto. Chris Marker me indicou<br />
o caminho do texto para cinema<br />
como algo reflexivo, interpretativo,<br />
não redundante em relação à imagem.<br />
Uma tentativa já presente no<br />
JK. Esse período com o Joris Ivens<br />
e com o Chris Marker foi fundamental.<br />
O Joris é um cara que é<br />
didático, tem o saco de ficar discutindo<br />
com você, montando com<br />
você. Ele dá dicas fundamentais.<br />
FC: Esquecemos o andar de cima:<br />
Orson Welles...<br />
Silvio: Esse é um mito do cinema,<br />
e não só para mim. O que eu<br />
acho fantástico nele é o lado mágico<br />
do cinema. É esse jeito que ele<br />
tem de mexer com o tempo e que<br />
rompe com a linearidade da narrativa.<br />
Dois filmes me marcaram<br />
muito: Cidadão Kane e Verdades e<br />
mentiras. Em Verdades e mentiras ele<br />
brinca com a imagem, com o verdadeiro<br />
e o falso. Em Cidadão Kane<br />
ele brinca com o tempo. Há nesse<br />
filme um corte de 20 anos entre<br />
dois planos: Kane menino diz “Boas<br />
Festas”, tac, 20 anos mais tarde,<br />
“Feliz Ano Novo”. Resumindo: há<br />
na minha formação e nas minhas<br />
influências o lado europeu forte e<br />
discursivo, do outro o negócio da<br />
mágica cinematográfica. E é o que<br />
Godard mais respeita nos americanos,<br />
isso só para fechar essa coisa<br />
dos três andares. A frase é do Godard:<br />
“nós europeus temos o cinema<br />
na cabeça, os americanos têm<br />
Tocar na memória, mas<br />
onde a memória nos toca,<br />
tocar no cinema<br />
o cinema no sangue”. E em Verdades<br />
e mentiras, a relação documentário-ficção<br />
é bastante relativa. Verdades<br />
e mentiras não é um documentário,<br />
mas um documento.<br />
FC: Quais as diferenças entre Os<br />
anos JK e Jango?<br />
Silvio: Em Os anos JK eu tinha<br />
medo de fugir da verdade, caso eu<br />
trabalhasse com a emoção. Foi um<br />
filme contido, reprimido. Na época<br />
eu não sabia disso, mas agora<br />
eu sei que achava que se eu mexesse<br />
com a emoção do espectador<br />
estaria sendo menos honesto, menos<br />
verdadeiro. Havia aquela coisa<br />
de “passar a informação”.<br />
FC: Resquícios de CPC?<br />
Silvio: A estética CPC não é um<br />
problema da minha geração. O JK<br />
é forte onde passa a emoção, onde<br />
eu não introduzo o distanciamento,<br />
basicamente quando fala de um<br />
período que eu já peguei, dos anos<br />
REVOLUÇÕES<br />
75
A<br />
A<br />
A RECONSTRUÇÃO RECONSTRUÇÃO DA DA MEMÓRIA<br />
MEMÓRIA<br />
MEMÓRIA<br />
60 para cá. Quando eu ponho um<br />
coração pulsando no momento da<br />
decretação do AI-5, aquele coração<br />
é o meu, o da gente. Antes disso o<br />
filme é seco: o texto legenda e segura<br />
a imagem. No Jango eu trabalhei<br />
muito a trilha sonora para criar<br />
um clima em que a emoção passasse<br />
junto com a informação.<br />
FC: Entre um filme e o outro você<br />
me disse que ficou apaixonado pelo<br />
Meu tio da América, do Alain Resnais...<br />
Silvio: Um filme que eu gostaria<br />
de ter feito. Um filme que junta<br />
tudo: ficção, documentário, paixão<br />
pelo cinema. Por exemplo: aquela<br />
sacação dele de as pessoas imitarem<br />
inconscientemente os atores. O cara<br />
desce a escada e é o Jean Gabin descendo<br />
a escada. É uma memória que<br />
também é uma homenagem ao cinema,<br />
uma memória que passa por<br />
uma formulação cinematográfica.<br />
Ele toca na memória, mas lá onde a<br />
memória o toca, que é o cinema.<br />
Ele podia tocar na memória como<br />
teatro, como pintura, mas ele vê as<br />
pessoas imitando o cinema.<br />
FC: A memória é então algo de reinventado,<br />
o presente rememorado e<br />
não o passado reconstituído. Você<br />
não diz: “olha, foi assim”. Mas, fala<br />
de um menino que não viveu aquilo<br />
tudo, mas cuja emoção resistiu.<br />
Isto está no poema final, não?<br />
Silvio: Veja, é importante que<br />
um historiador legitime uma versão.<br />
E tire a história dessa coisa<br />
careta e asséptica. Não se pode<br />
deixar a história nas mãos de Pedro<br />
Calmon. Não há história isenta<br />
de um lado, e uma interpretativa<br />
e ideológica do outro. Todas são<br />
ideológicas. Acho que a história<br />
dele é reacionária e a minha não.<br />
FC: Só a direita erra?<br />
Silvio: Claro que não. Há uma<br />
história militante totalmente equivocada,<br />
não porque toma partido,<br />
mas porque subordina a verdade<br />
a uma tese. Na medida em que<br />
você corta, escolhe o plano, redige<br />
um texto, você está selecionando.<br />
E eu acho que a história tem<br />
de ser mesmo interpretativa e opinativa.<br />
Isso não a fará menos verdadeira<br />
de uma outra que se quer<br />
asséptica, mas que não é...<br />
FC: Você fala da história como se<br />
fosse um sonho. A memória funcionando<br />
não como reconstituição,<br />
mas como reconstrução.<br />
Freud observou que no sonho a<br />
gente está sempre presente...<br />
Silvio: Não é gratuito que o filme<br />
atinja seu ápice no momento em que<br />
o Brasil inteiro esteja brigando pelas<br />
eleições diretas como uma etapa<br />
intermediária pela democracia. Nesse<br />
sentido é um sonho brasileiro, a<br />
maneira pela qual a gente se reencontra.<br />
É o tema do reencontro do<br />
cinema com a política. Há momentos<br />
em que a gente fica cético em<br />
relação à política, mas a campanha<br />
pelas diretas, independentemente de<br />
seus resultados práticos, deixa claro<br />
o quanto a política é fundamental<br />
para a nossa vida cotidiana. O<br />
país mudou de cara – isso é da ordem<br />
do sonho. O cidadão emerge<br />
acima dos partidos políticos e das<br />
lideranças carismáticas.<br />
FC: Há quem diga que você fez<br />
um “editorial” e tenta invalidar<br />
Jango em nome do conhecimento<br />
científico...<br />
Silvio: No início fiquei grilado<br />
com o raro consenso formado em<br />
torno do filme. Numa sessão, estavam<br />
sociólogos de postura tão diferentes<br />
como Otavio Ianni, Francisco<br />
Weffort, Bolívar Lamounier.<br />
Claro, houve restrições aqui e ali,<br />
mas todos acharam importante que<br />
essas cartas tenham sido colocadas<br />
na mesa. Veja, aqueles fatos foram<br />
analisados nos livros deles, tanto o<br />
Ianni como o Weffort estudaram<br />
exaustivamente o populismo, etc...<br />
Mas, ver aquelas caras, aquelas<br />
imagens, e alguém interpretando<br />
aquilo tudo lhes pareceu importante.<br />
Tive também receio de certas<br />
objeções vindas do PT. Mas – e<br />
isso pode ser muita pretensão minha<br />
– acredito que o filme não é<br />
estranho ao processo que levou Lula<br />
a chamar Denise Goulart ao palanque<br />
no comício da Candelária. Os<br />
ataques vieram mesmo da direita...<br />
FC: O que você temia nas críticas<br />
da esquerda?<br />
Silvio: Os Anos JK foi o filme criticado<br />
por ter “resgatado o populismo”.<br />
Ora, eu nunca quis resgatar a<br />
imagem do JK. O que eu sempre quis<br />
foi resgatar a democracia no Brasil.<br />
O importante é a questão da democracia.<br />
Compare o comício da Central<br />
com o da Candelária. No primeiro,<br />
havia as lideranças e a massa<br />
que aplaudia. No segundo, o comício<br />
está nas ruas. Achei importante<br />
resgatar o comício anterior para essas<br />
pessoas que hoje estão no asfalto.<br />
FC: Você não teria omitido a crítica<br />
das falsas alianças do populis-<br />
mo? E isso em nome das necessidades<br />
do momento atual?<br />
Silvio: Desde o início eu sabia<br />
que ia fazer um filme simpático ao<br />
Goulart, tanto que não tive o menor<br />
problema em procurar documentos<br />
com sua família. Olha,<br />
houve um momento durante a feitura<br />
do filme que a idéia do Maurício<br />
Dias, o autor do texto, era<br />
cobrar a incompetência da esquerda.<br />
Eu disse francamente para ele<br />
que ele era livre para abandonar o<br />
filme “porque eu não estava a fim<br />
de dar um pau na esquerda”. A<br />
esquerda leva pau há 20 anos. Claro<br />
que eu tenho críticas a fazer à<br />
atuação da esquerda naqueles<br />
anos, atuação de Jango e de Brizola,<br />
mas isso não é o essencial, hoje.<br />
É evidente que se a história brasileira<br />
começar a ser discutida de<br />
forma séria essas críticas terão de<br />
ser aprofundadas. E isso nos livros<br />
ou em outros filmes. Mas, numa<br />
primeira obra que é, sobretudo,<br />
uma provocação, temos que pegar<br />
as coisas pelo outro lado. Quer<br />
dizer: colocar nas páginas da história<br />
uma figura cujo problema era<br />
não de ser pixada, mas de estar<br />
sendo ocultada. Porque o problema<br />
de Jango não é que se tenha<br />
criado durante esses anos todos<br />
uma versão desfavorável a ele. O<br />
problema é a sonegação: simplesmente<br />
ele foi retirado dos livros<br />
de história. Os manuais escolares<br />
têm duas linhas sobre ele. Mas acho<br />
que nesse momento as pessoas compreenderam<br />
a esterilidade dessa<br />
discussão. Se o filme tem alguma<br />
importância não é daqui para trás,<br />
é daqui para a frente. Não se trata<br />
de uma memória nostálgica, é um<br />
troço voltado para o futuro. O que<br />
a gente quer do país daqui para a<br />
frente? A gente quer poder discutir<br />
e ver as pessoas na rua.<br />
FC: A emoção, o patético que o<br />
filme passa, não estão ligados profundamente<br />
à nossa identificação<br />
com a incompetência do Jango-personagem<br />
histórico?<br />
Silvio: Se o Jango estivesse vivo<br />
eu não teria feito o filme. Ele inclusive<br />
não deixou uma herança política.<br />
Muita gente pode reivindicá-la,<br />
mas você não tem uma carta-testamento<br />
janguista. Olha: eu<br />
jamais faria um filme sobre JK se<br />
ele hoje representasse um programa<br />
político. O mesmo vale para<br />
Jango. Não estou endossando correntes<br />
partidárias. Se estivesse, eu<br />
teria que aprofundar certos aspectos<br />
do filme. Mas, na medida em<br />
que o Jango é uma personagem<br />
maldita da história, “o presidente<br />
rico de um país pobre” – como diz<br />
o filme –, um fazendeiro que é o<br />
primeiro presidente do Brasil que<br />
topa falar em reforma agrária etc...<br />
fica difícil questionar as intenções<br />
dele, sobretudo porque ele foi apeado<br />
do poder à força. Dizer que<br />
ele não faria a reforma agrária porque<br />
era dono de terras é pura especulação.<br />
O fato é que ele assinou<br />
um decreto expropriando terras, ao<br />
longo das rodovias. Portanto, ele<br />
iniciou o processo de uma reforma<br />
agrária. Foi também maldito<br />
por ser o único presidente brasileiro<br />
a morrer no exílio. Como<br />
então falar da incompetência de um<br />
presidente deposto à força? Sua<br />
competência poderia ser, sim,<br />
questionada em relação ao fato de<br />
ele não ter organizado a resistência.<br />
Mas isso foi uma opção. Deixo<br />
apenas a imagem de um homem,<br />
de sua classe social, de seu nacionalismo,<br />
de seu reformismo.<br />
Joris Ivens<br />
fotografado por<br />
Silvio Tendler:<br />
“Onde há<br />
alguma coisa<br />
pegando fogo,<br />
eu estou lá”<br />
REVOLUÇÕES<br />
77
A<br />
A<br />
A RECONSTRUÇÃO RECONSTRUÇÃO DA DA MEMÓRIA<br />
MEMÓRIA<br />
MEMÓRIA<br />
FC: Mas, à medida que o filme<br />
avança, vamos ficando deprimidos.<br />
Alguém que não viveu aquela fase<br />
fará perguntas que ficam sem respostas.<br />
Por exemplo, como um presidente<br />
da República que detém o<br />
poder político se reduz a uma peça<br />
dentro de uma engrenagem? Por que<br />
ele não conseguiu dirigir seu próprio<br />
destino?<br />
Silvio: O filme formula interpretações<br />
e faz perguntas. Mas não responde<br />
tudo. Levanta, entretanto,<br />
alguns pontos. Acho, por exemplo,<br />
que o depoimento de Celso Furtado<br />
no filme deixa bem claro como<br />
o Jango ficou de mãos atadas pelo<br />
esquema que deveria controlar. E<br />
isso de forma dramática. Era o vice<br />
de um outro partido e não daquele<br />
que havia eleito o Jânio com maioria<br />
quase absoluta de votos. Mãos<br />
atadas ainda ao PSD que lhe permitia<br />
administrar o Congresso. E,<br />
do outro lado, ao Brizola que lhe<br />
havia dado posse na marra e que<br />
tinha compromissos mais radicais<br />
do que os dele. O governo de Jango<br />
durou muito pouco: de setembro<br />
de 1961 a março de 1964, sendo<br />
que de setembro de 1961 a janeiro<br />
de 1963 ele permaneceu de<br />
mãos atadas por um sistema parlamentar<br />
implantado de forma casuística.<br />
Não teve tempo de exercer<br />
sua personalidade. E quando tentou,<br />
foi deposto. Evidente que poderia<br />
ter havido um outro Jango<br />
que tomasse o poder na marra em<br />
1961 através de um banho de sangue<br />
e com o Congresso fechado.<br />
Em suma, um Jango que traísse<br />
seus compromissos reformistas.<br />
Cada um pode escolher o seu Jango.<br />
O meu foi o que governou através<br />
de soluções de compromisso.<br />
O cara que cai porque empunha a<br />
bandeira das reformas de janeiro a<br />
março de 1964. Mesmo não analisando<br />
tudo, tentei compreender a<br />
coerência dele, por exemplo, não<br />
resistindo militarmente à sua deposição.<br />
Em vez de criticá-lo, do ponto<br />
de vista do seu fracasso, escolhi<br />
compreender a argumentação dele.<br />
FC: É um ponto importante. A propósito<br />
de Os anos JK, Paulo Sergio<br />
Pinheiro levanta a questão. No Filme<br />
Cultura 38/39 ele escreve: “a<br />
personagem de JK é tratada sob a<br />
ótica triunfalista do próprio período<br />
do final dos anos 50. A interpretação<br />
se deixa contaminar pelo<br />
espírito daquela época, o ufanismo<br />
relido através do Plano de Metas,<br />
50 anos em cinco” [...] Mais adiante,<br />
ele hesita em sua crítica e escreve:<br />
[...] “seria pueril cobrar de<br />
Silvio Tendler não ter feito isso no<br />
filme (é sempre fácil cobrar o que<br />
foi feito)” e, mais adiante, a pergunta<br />
fundamental: “quem sabe esse<br />
seria o debate a prolongar entre cineastas<br />
e analistas políticos e historiadores:<br />
se filmes da reconstrução<br />
histórica devem se satisfazer em<br />
recuperar a atmosfera do período<br />
ou se devem levar em conta as revisões<br />
que foram feitas sobre o próprio<br />
período”. Não seria um absurdo<br />
julgar os anos 50 cinematograficamente<br />
do ponto de vista de quem<br />
já sabe que vai haver uma crise do<br />
petróleo no início dos anos 70?<br />
Silvio: Acho que o próprio Paulo<br />
Sergio Pinheiro deve ter revisto<br />
essa postura pois ele escreveu que<br />
Jango é um filme “The day after”<br />
ao qual nós todos sobrevivemos.<br />
Ele já não cobra uma interpretação<br />
crítica a posteriori, ele se deixa en-<br />
volver pela emoção. O período de<br />
Jango, por ser mais controvertido<br />
e contraditório, é mais rico do que<br />
o de Juscelino. O período de JK<br />
pode comportar teses opostas, mas<br />
você conhece o período. O de Jango<br />
é mais obscuro, cada um tem<br />
sua versão, inclusive dentro das<br />
mesmas correntes ideológicas. Dentro<br />
do Partido Comunista, por<br />
exemplo, existem três formas de se<br />
julgar João Goulart.<br />
FC: Sua postura seria então compreensiva<br />
e não partidária...<br />
Silvio: Cinema não é tese. Trabalho<br />
a emoção do documento, não<br />
quis usar a imagem como suporte<br />
para uma tese. Quando escrevi uma<br />
tese, aliás, foi sobre a imagem, o<br />
cinema de Joris Ivens. O que me<br />
incomoda não é tanto o que me dizem<br />
à esquerda, mas de uma cobrança<br />
de direita, e também das<br />
madalenas arrependidas, como, por<br />
exemplo, Paulo Francis, de Nova<br />
Iorque, que deita falação sobre o<br />
João Goulart histórico que ele não<br />
conheceu direito (esteve uma vez<br />
com ele, com um grupo de intelectuais)<br />
do tipo “Jango não tinha programa,<br />
era incompetente, etc...”.<br />
Bobagens. Isto é, na verdade, um<br />
acerto de contas dele com seu passado<br />
que incomoda a ele, não a<br />
mim. Muito pelo contrário: acho<br />
que o Francis está ótimo lá em<br />
Nova Iorque, como um Roberto<br />
Campos que não deu certo. O outro<br />
é o Dines que apoiou 1964, foi<br />
conivente com mil arbitrariedades<br />
praticadas e não vai agora confessar<br />
que errou em ter dado seu apoio<br />
à deposição de um presidente legalmente<br />
empossado. O Dines sempre<br />
apoiou o regime, pelo menos<br />
até o dia em que o regime o defenestrou.<br />
O Dines não o abandonou:<br />
o regime foi quem abandonou o<br />
Dines. Como pode ter ele algum<br />
carinho pelo Jango sem passar por<br />
uma autocrítica?<br />
FC: O sucesso de público de Jango<br />
abre caminho para o documentário?<br />
Silvio: No Cinema Leblon tivemos<br />
uma bilheteria competitiva<br />
com Laços de ternura. Como falar<br />
da inviabilidade comercial do documentário?<br />
Quando um filme fala<br />
das pessoas e elas se reconhecem<br />
nele, elas estão pouco se lixando se<br />
é ficção ou documentário. O importante<br />
é que o filme seja bom. O<br />
filme foi lançado com seis cópias e<br />
agora já tem 19 – uma solicitação<br />
do mercado exibidor. Eu não tenho<br />
marcações a fazer no Norte.<br />
O filme desmistifica ainda praças<br />
até então julgadas impensáveis. O<br />
preconceito não vem do público.<br />
Ele vem de certos cineastas que<br />
parecem hoje estar perdidos.<br />
FC: Você foi criticado por ter recebido<br />
ajuda da família de Goulart...<br />
Silvio: Eu pergunto: se tivesse<br />
sido financiado pelo Estado meu<br />
filme teria sido mais isento? Já recusei<br />
trabalhos mais remunerados.<br />
Eu não estava em busca de isenção,<br />
foi uma adesão consciente da<br />
minha parte. Não se consegue<br />
mentir com emoção. Todos os técnicos<br />
e artistas envolvidos no filme<br />
não receberam um tostão. Foi<br />
tudo na base de percentagem. E<br />
agora que Jango está dando dinheiro<br />
a postura das pessoas continua<br />
a mesma. Não é aquela coisa mesquinha<br />
“quero o meu”. Todos foram<br />
excelentes: Lucio Kodato,<br />
“O período de Jango, por ser mais controvertido e contraditório, é mais rico do que o de Juscelino”<br />
Francisco Sérgio Monteiro, Milton<br />
Nascimento, Wagner Tiso,<br />
Geraldo Ribeiro, José Wilker,<br />
Maurício Dias, etc. etc.<br />
FC: Como foi o encontro do Cinema<br />
Independente, em Gramado?<br />
Silvio: Como diz um amigo meu,<br />
ironicamente, o problema do cinema<br />
independente é que suas reuniões<br />
nem sempre reúnem as mesmas<br />
pessoas. Há uma rotatividade<br />
muito grande, o fracasso é<br />
mortal. Nós somos mais sensíveis<br />
ao mercado porque se esses filmes<br />
não se pagarem, nós vamos para o<br />
brejo. Eu só posso fazer o próximo<br />
filme se o último tiver dado<br />
certo. O bonito em Gramado foi<br />
que os filmes tão diferentes como<br />
Verdes anos, Extremos do prazer<br />
e Jango tivessem encontrado um<br />
terreno comum.<br />
REVOLUÇÕES<br />
79
GODARD<br />
“ Não é em termos de destino e de liberdade que se avalia<br />
Divulgação<br />
AN PH/FOT/ 23731(6)<br />
a direção cinematográfica e, sim, pela<br />
força que tem o engenho<br />
de se lançar sobre os objetos,<br />
com uma invenção perpétua...<br />
Só se olha para o que se sente<br />
e para o que não se deseja<br />
”<br />
ter como segredo.<br />
AN PH/FOT/ 23731(1)
Yann Beauvais Cineasta, curador e pesquisador francês, realizou cerca de trinta filmes, entre eles Work and progress (1999), com<br />
Vivian Ostrovsky e Adrift (2002).<br />
Filmes de arquivos<br />
O cinema<br />
experimental há muitos anos usa<br />
freqüentemente found footage. Esse termo<br />
designa tanto o objeto – uma seqüência escolhida<br />
– como uma prática de montar um filme, apropriando-se<br />
dos elementos encontrados, dissimulados,<br />
retidos, desviados, não filmados pelo cineasta,<br />
mas que ele recicla.<br />
Essa prática engloba tanto os filmes de compilação,<br />
como os filmes mais pessoais que incorporam<br />
um extrato ou uma seqüência de uma ou várias<br />
películas. Diferentemente dos filmes de compilação,<br />
os filmes pessoais não formam catálogos nem<br />
coleções, lançam mão, ocasionalmente, de fragmentos<br />
de noticiários ou de filmes feitos em casa.<br />
Proteiforme, a utilização do found footage não<br />
pode em caso algum definir um gênero: abrange<br />
uma enorme variedade de intervenções por parte<br />
1 Outer space de Peter Tscherkassky<br />
(1999). © Light Cone<br />
dos cineastas. Intervenções estas que se multiplicaram,<br />
depois que o acesso do grande público ao<br />
videocassete e aos computadores se expandiu, tornando<br />
cada usuário um programador em potencial.<br />
O recurso à rede de computação permite manipular<br />
à vontade as informações armazenadas no<br />
sistema binário. Dessa forma, opera-se um deslocamento<br />
que consagra o império da variação: os<br />
dados é que são manipuláveis, não mais a película.<br />
À sombra desse abandono do celulóide em prol<br />
da computação é que se compreendem os últimos<br />
filmes de Peter Tscherkassky (fig. 1) e sua radical<br />
insistência em trabalhar o suporte em prata.<br />
A utilização de found footage não se restringe<br />
aos documentaristas e cineastas experimentais.<br />
As redes de televisão, grandes consumidoras de<br />
imagens, apelam cada vez com mais freqüência<br />
para os arquivos, ao elaborar uma transmissão<br />
Este artigo foi publicado em 1895 – Archives, Revue de l’Association Française de Recherche sur l’Histoire du Cinéma, n. 41.<br />
Paris: AFRHC-FCAFF, p. 57-70, octobre 2003. Tradução de Helen Alexandrevha Pseluiko.<br />
ou seus programas. Por outro lado, os telejornais<br />
ou os programas de atualidades das emissoras<br />
temáticas reprisam as mesmas seqüências, extraídas<br />
dos arquivos dos quais se servem avidamente.<br />
Alguns arquivos chegam a dominar o<br />
mercado; eles tentam então fazer com que o domínio<br />
do cinema evolua segundo o modelo da<br />
fotografia, a saber, constituindo monopólios.<br />
Se os arquivos cinematográficos, durante<br />
muito tempo, privilegiaram a aquisição de filmes<br />
narrativos, desde os anos de 1990 consideraram<br />
outros aspectos do cinema que, até então,<br />
eram do domínio reservado de arquivos<br />
especializados. Paradoxalmente, o recente interesse<br />
dos arquivos pelos filmes até então ignorados<br />
torna o acesso a eles cada vez mais difícil.<br />
Os filmes restaurados, adquiridos prioritária e<br />
quase que exclusivamente pelos estabelecimentos<br />
reconhecidos oficialmente, vêem sua circulação<br />
bastante limitada. A noção de preservação leva<br />
paradoxalmente a uma difusão restrita: o objeto<br />
filme torna-se precioso, visto que restaurado.<br />
Para os cineastas de hoje que queiram trabalhar<br />
o filme com found footage, resta apenas a<br />
possibilidade de se apropriar, mais ou menos legalmente,<br />
dos elementos cobiçados.<br />
Nos anos de 1950, era fácil procurar filmes<br />
educativos, a partir dos quais se podia produzir<br />
uma obra. A movie, primeiro filme de Bruce<br />
Conner, é um bom exemplo do uso que pode ser<br />
feito de filmes educativos e de noticiários. Ele<br />
critica a sociedade de consumo e seu fascínio<br />
pelo espetáculo da destruição, por meio de um<br />
conjunto de seqüências até então reservadas a<br />
um uso doméstico. Essa apropriação contraria<br />
as intenções originais dos filmes; reflexos da sociedade<br />
que os produz, representam seus ritos,<br />
as tragédias humanas ou naturais, cotidianas ou<br />
excepcionais, as catástrofes. No meio da colisão,<br />
da justaposição e do encadeamento, Bruce<br />
Conner suscita outras interpretações. As certezas<br />
que eram pressentidas nesses filmes vacilam;<br />
outras perspectivas surgem graças ao humor das<br />
montagens, os contra-sensos vêm atentar contra<br />
as idéias recebidas.<br />
Bruce Connor trabalha os clichês cinematográficos<br />
de um passado recente e já desvalorizado,<br />
que são, antes de tudo, uma memória comum<br />
a um grupo, uma classe, uma sociedade.<br />
Seus meios ligam-se à apropriação de objetos<br />
domésticos glorificados pela pop art na Inglaterra<br />
e nos Estados Unidos no final dos anos de<br />
1950. Mesmo sendo singular, A movie, como os<br />
filmes de Raphael Montanez Ortiz, Maurice<br />
Lemaître e de alguns outros, desenvolve as seqüências<br />
dos filmes, apropriando-se delas e<br />
reciclando-as, de modo a criar novas relações que<br />
pervertem o sentido original.<br />
Os utilizadores de found footage, retirando as<br />
imagens de seu contexto, revelam seu sentido<br />
oculto, freqüentemente contrário ao sentido original,<br />
assim como os Novos Realistas<br />
recolocavam em evidência a significação primordial<br />
das imagens que era resgatada pela destruição<br />
dos cartazes. Esse deslocamento é essencial,<br />
à medida que marca a apropriação, e também a<br />
irrupção do intempestivo, constituindo uma significativa<br />
inovação. Para designar esse desacordo,<br />
os lettristes falam em burilamento das ima-<br />
REVOLUÇÕES<br />
83
F ILMES ILMES ILMES DE DE ARQUIVOS ARQUIVOS<br />
2 e 3 Instabile Malerei<br />
de Jürgen Reble (1995)<br />
© Light Cone<br />
REVOLUÇÕES<br />
gens e de “discrepância” a propósito do som. 1 À<br />
diferença de outros cineastas, os lettristes não<br />
utilizam apenas o found footage, por vezes rodam<br />
seqüências que alteram de diversas maneiras:<br />
listras, pinturas, aplicação de letras...<br />
Observemos que, naqueles anos, as questões<br />
relativas à propriedade e aos direitos autorais não<br />
eram tratadas da mesma forma que hoje em dia,<br />
o jurídico ainda não era o parâmetro a partir do<br />
qual se definia o estatuto econômico do autor,<br />
tal como se vê freqüentemente nas sociedades<br />
(corporações) que os representam.<br />
A apropriação de seqüências modifica a maneira<br />
pela qual os objetos cinematográficos são<br />
apreendidos: o objeto de desvio não é a totalidade<br />
do filme, 2 mas sim uma ou várias partes.<br />
Sua integridade é colocada em questão, quando<br />
o filme é considerado como um catálogo de planos<br />
e não como um todo indivisível. Estuda-se,<br />
trabalha-se, cita-se, preestabelece-se para formar<br />
um novo objeto. Trabalha-se não mais para<br />
apresentar uma visão original por meio de planos<br />
filmados por nós, mas sim montando as<br />
cenas rodadas por outros. O trabalho do cineasta<br />
consiste, sobretudo, na pesquisa de documentos,<br />
daí a necessidade de se ter acesso às<br />
bibliotecas, aos arquivos públicos ou privados<br />
e aos diversos estabelecimentos comerciais que<br />
vendam cópias de filmes e fitas em geral.<br />
Fazer filmes de found footage, nos anos de 1950<br />
e 1960, é, antes de tudo, trabalhar a partir de<br />
noticiários; cada vez mais raramente ver-se-ão<br />
imagens retiradas de filmes comerciais. O formato<br />
é sempre um grande obstáculo para os cineas-<br />
tas experimentais que não dispõem de meios para<br />
fazer reduções a partir do formato padrão, 35 mm.<br />
Mais tarde, sobretudo a partir dos anos de 1980,<br />
o recurso do found footage receberá outras significações,<br />
que ultrapassarão a crítica das representações.<br />
A importância da imagem animada, seu<br />
impacto sobre o cotidiano, dará origem ao trabalho<br />
de alguns cineastas: eles utilizam imagens que<br />
veneram ou odeiam, invertendo, de uma só vez, a<br />
maneira de encarar a relação com o cinema e a<br />
sua espetacularização do mundo no século XX.<br />
O material facilmente acessível nesses anos é o<br />
16mm: os noticiários cuja atualidade limita-se à<br />
vida útil do suporte e dos filmes educativos. O recurso<br />
a essas imagens manifesta, em primeiro lugar,<br />
a continuidade de uma tradição crítica da arte<br />
moderna, que sempre considerou a dimensão lúdica<br />
da filmagem, junto com sua dimensão política: o<br />
dadaísmo, o surrealismo, o situacionismo e também<br />
a pop art, numa medida menor...<br />
O trabalho de filmagem no cinema, a partir de<br />
found footage, implica a apropriação de um documento<br />
utilizado como é ou transformado; ele é<br />
reciclado. 3 Distancia-se da citação em prol da crítica<br />
e da análise, conforme o projeto artístico do<br />
cineasta. Se, para os lettristes, a incorporação de<br />
seqüências de filmes célebres permite render homenagens<br />
a determinado momento da história do<br />
cinema, na maior parte do tempo, para outros cineastas,<br />
trata-se de atacar a natureza da representação,<br />
como é proposta pelo cinema comercial. Essa<br />
atitude é adotada por Raphaël Montanez Ortiz em<br />
seus primeiros dois filmes, Cow-boy and Indian films<br />
(1958) e News Reel (1958), em que ele trunca, remonta,<br />
transforma e modifica um western, a fim<br />
1 Ver ISOU, Isidore, Esthétique du cinéma e LEMAÎTRE, Maurice, Le film est déjà commencé. ION, número especial sobre o<br />
cinema, 1o abril 1952. Paris: André Bonne, 1952. 2 Por vezes o desvio se efetua sobre a integridade do filme. Joseph Cornell reduz<br />
um longa-metragem a vinte minutos em Rose Hobart (1936), utilizando subtítulos. René Vienet retoma os filmes inteiros em La<br />
dialectique peut-elle casser des briques? (1974) e Les filles de Kamaré (1974). Ou então Ken Jacobs coloca sua assinatura num<br />
filme anônimo (Perfect film). Pierre Huyghe e também inúmeros artistas contemporâneos apropriam-se integralmente de filmes<br />
que mostram lado a lado em suas diferentes versões (Titanic) ou que estendem até 24 horas: 24 hour psycho (Douglas Gordon,<br />
1993). 3 Para uma análise histórica mais detalhada das técnicas empregadas pelos cineastas de found footage, ver LEYDA, Jay. Films<br />
beget film, a study of compilation film. Londres: Georges Allen & Unwin Ltd, 1964; Found Footage Filme aus gefundenem<br />
Material, Blimp, n. 16, Viena, 1991; WEEDS, William. Recycle images, New York, Anthology Film Archives, 1993; BONNET,<br />
Eugeni (dir.). Desmontage: film, video / appropiation, reciclaje, Valence, Ivam 1993; Yann Beauvais, Plus dure sera la chute<br />
(1995), retomado em Yann Beauvais, Poussière d’images, Paris experimental, 1998.<br />
de denunciar a posição adotada, ideológica e racial,<br />
pelas produções hollywoodianas, assim como pelos<br />
noticiários dos anos de 1940 e 1950. News Reel<br />
denuncia a guerra de uma maneira aberta, bem como<br />
alguns de seus promotores, como o papa Pio XII. A<br />
mesma tendência encontra-se nos cineastas e<br />
videoastas contemporâneos, quando questionam a<br />
identidade, o fato de se pertencer a uma raça, uma<br />
cultura, um gênero. Richard Fung, Nguyen-tan<br />
Hoang, Charles Lofton, Wayne Yung e Shawn Durr<br />
incluem em seus vídeos os elementos de found<br />
footage para enfatizar o pertencimento a uma dupla<br />
minoria, gay, asiática ou black na América do Norte.<br />
Seus trabalhos evidenciam um humor corrosivo,<br />
diferente daquele dos anos 50 e 60. 4 A apropriação<br />
de seqüências de filmes de gênero em Nguyen-tan<br />
Hoang ou Charles Lofton favorece uma leitura camp<br />
desses mesmos filmes, que os dinamiza assim como<br />
os dinamita. Atitude reencontrada em 1000<br />
Cumshots (2003) de Wayne Young, que denuncia o<br />
império do macho branco na pornografia gay.<br />
Esse modo de apropriação artística não é<br />
novo: através dos tempos, os músicos, os escritores,<br />
os pintores inspiraram-se em obras mais<br />
antigas, pegando emprestado um motivo, uma<br />
melodia, um tema, uma idéia, até recopiando de<br />
boa vontade toda ou parte de uma obra. Não há<br />
obra sui generis que não apele ou não tome emprestado<br />
obras anteriores. Hoje em dia a diferença<br />
marcante é a transferência do direito do<br />
autor para seus representantes legais, que, em<br />
nome do poder econômico, confiscam o direito<br />
do autor em favor dos interesses que defendem.<br />
Isso explica que o uso de found footage no<br />
cinema e no vídeo contemporâneos seja muitas<br />
vezes adverso à questão da difusão fora de seus<br />
próprios circuitos, à medida que esses últimos<br />
escapam ao controle dos representantes legais.<br />
A reciclagem das imagens pode ser feita em<br />
todos os tipos de filmes, a partir do momento em<br />
4 Em relação a isso, os filmes The situationist life (1958-1967)<br />
de Jens Jorgen Thorsen são exceções, que se inscrevem numa<br />
tradição provocadora herdeira do lettrisme e do surrealismo.<br />
85
F ILMES ILMES ILMES DE DE ARQUIVOS ARQUIVOS<br />
REVOLUÇÕES<br />
que os meios de reprodução e de captura estão disponíveis.<br />
Observemos, sob o ângulo da reciclagem,<br />
dois filmes que são importantes por razões distintas,<br />
os dois se interessam pelos aspectos do cinema<br />
utilizados com menos freqüência nos anos 60 e que<br />
vão nutrir a maior parte de trabalhos do final dos<br />
anos 80 até o presente. La verifica incerta (1964),<br />
de Gianfranco Baruchello e Alberto Gitti, e Au début<br />
(1967), de Artavazd Pelechian.<br />
O filme de Pelechian coloca uma alternativa à<br />
montagem “das atrações” como a definiu Eisenstein,<br />
recorrendo a uma montagem que privilegia as formas<br />
circulares e a constituição de blocos onde as<br />
variações são efetuadas. Trata-se de uma montagem<br />
que, pela repetição de seqüências num mesmo<br />
bloco ou de um bloco a outro, faz explodir o<br />
sentido único em favor da ressonância. Ao lado<br />
dos noticiários de todas as procedências que celebram<br />
as revoltas, figuram extratos de filmes de<br />
Eisenstein e de Vertov. Essa irrupção de clássicos<br />
marca um reconhecimento de dívida com essas<br />
obras, além de revelar a nova maneira de examinar<br />
um filme. Para lhes devolver o impacto que haviam<br />
perdido, Pelechian duplica as seqüências conhecidas<br />
sobre emulsões de alto contraste.<br />
Para fazer seu filme, Grifi e Baruchello resgataram<br />
quarenta e sete cópias de filmes de 35mm<br />
dos anos 50 e 60 antes de sua destruição. 5 Esses<br />
filmes comerciais, na maior parte americanos, são<br />
desfeitos e depois refeitos para produzir um filme<br />
que, embora respeitando a trama dos filmes clássicos,<br />
dessacraliza os clichês hollywoodianos. La<br />
verifica reconhece a importância de Hollywood<br />
como provedor de estereótipos e de clichês fascinantes<br />
ao mesmo tempo que revoltantes, todos<br />
revelando os limites deste empreendimento de<br />
diversão que recorre aos mesmos códigos independentemente<br />
do argumento do filme. Ele propõe<br />
uma crítica lúdica dos clichês, dos códigos<br />
hollywoodianos, que opera por excesso,<br />
superoferta e acumulação. A eficácia da demonstração<br />
decorre da utilização de um grande núme-<br />
ro de seqüências de vários filmes; ela abre uma<br />
via possível de investigação para os cineastas do<br />
futuro, quer tenham visto ou não La verifica. Isso<br />
evidencia, mais uma vez, a necessidade de tornar<br />
os filmes acessíveis. O acesso e a democratização<br />
favorecem a apropriação. Essa “amostragem aleatória”<br />
prefigura os gestos iconoclastas dos cineastas<br />
dos anos de 1990, que, a partir de seus<br />
videocassetes, privilegiam a arte do espectador,<br />
ou mais exatamente do programador, e constituem<br />
coleções de fragmentos escolhidos em detrimento<br />
da integridade de uma obra. O olhar se<br />
desloca graças a ferramentas que permitem o consumo<br />
particular de um entretenimento que, até<br />
então, era um espetáculo de massas. 6<br />
Por seu modo de apropriação e de reciclagem<br />
das imagens, La verifica e Au début anunciam a<br />
prática de amostragem tal qual se desenvolveu<br />
no domínio musical, depois no das imagens em<br />
movimento, no final dos anos 80. Essa arte de<br />
olhar que privilegia a escolha daquele que olha<br />
permite transformar a maneira de abordar as<br />
noções de autor e de obra.<br />
Os filmes e os vídeos contemporâneos examinam<br />
o cinema, fornecedor e difusor das imagens<br />
do real, mas também artífice, manipulador<br />
desta mesma realidade e ao mesmo tempo do<br />
nosso imaginário. A invasão progressiva do cinema<br />
no decorrer do século XX fez com que<br />
muitas das seqüências dos filmes virassem ícones<br />
contemporâneos, imagens públicas que assombram<br />
a memória de cada um. Outras imagens de<br />
caráter privado, vindas dos filmes de família, permitem<br />
que nos revejamos como éramos antigamente<br />
e nos mostram também a maneira como<br />
percebíamos o mundo, retransmitido pelo olhar<br />
das testemunhas próximas ou distantes. Pode-se<br />
então revisitar a história familiar mediante algumas<br />
de suas representações (como o ritual da refeição<br />
em família em Stories, de Cecile Fontaine),<br />
ou por meio de uma verdadeira celebração do tempo<br />
definitivamente determinado em Nikita Kino<br />
5 Para uma apresentação desse filme, CELANT, Germano (dir.). Identité italienne. Paris: Centre Pompidou, 1981. 6 Peter Szendy<br />
descreveu magnificamente essa arte do espectador, no domínio musical, em SZENDY, P. Un art de l’écoute. Paris: Éditions de Minuit, 2000.<br />
4 Lyrisch Nitrat de Peter Delpeut (1990). © Light Cone<br />
(2001), de Vivian Ostrovsky. Esse filme revive a<br />
viagem à URSS, tal qual a havíamos filmado em<br />
conjunto, Vivian e eu, no Work & Progress (1999).<br />
Aqui não é mais a viagem, a descoberta, que desencadeia<br />
a reciclagem de atualidades, mas sim a<br />
visita ao passado através das seqüências colhidas<br />
pela cineasta ao longo dos anos.<br />
Nesse espírito de reconsideração do passado,<br />
os cineastas trabalham os filmes encontrados<br />
aqui e ali, que permitem mostrar outros costumes<br />
do mundo sob a coberta do anonimato.<br />
Peter Tscherkassky apresenta, em Happy end<br />
(1996), uma coleção de filmes de Ano Novo rodados<br />
por um casal dos anos 60 aos anos 80.<br />
Essa investigação faz parte de uma análise que<br />
nos permite captar a evolução do olhar lançado<br />
pelo casal sobre a sua própria imagem. Ela questiona<br />
igualmente a posição de um terceiro, invisível,<br />
de quem nos ocupamos ao assistir ao filme; a<br />
quem se dirige esta família burguesa, quando finge<br />
a felicidade de um ano vindouro? Happy end<br />
pertence à mesma veia que os filmes que se servem<br />
da alteração do suporte para investir no passado.<br />
Não se trata de rever os eventos filmados<br />
no passado, mas sim de tirar proveito da<br />
materialização da passagem do tempo, da transformação<br />
do grão da emulsão. Não está em questão a<br />
sentimentalidade nostálgica, mas sim a estética.<br />
Se La verifica incerta prefigura os trabalhos<br />
de compilação que geraram o cinema experimental<br />
e a arte do vídeo após os anos 80, é porque<br />
trabalha a partir do cinema comercial, que permanece<br />
como a prática dominante do cinema.<br />
A partir dos anos de 1980, as salas de cinema<br />
já não detêm o monopólio do cinema de ficção:<br />
pode-se vê-lo em shoppings ou em casa, graças ao<br />
videocassete. Essa ferramenta permite, bem aceleradamente,<br />
o retorno da duplicação e da compilação.<br />
O consumidor pode então fabricar fitas personalizadas,<br />
a seu gosto; o que significa o aumento<br />
da pilhagem de seqüências, favorecendo simulta-<br />
87
F ILMES ILMES ILMES DE DE ARQUIVOS ARQUIVOS<br />
REVOLUÇÕES<br />
5 Scratch de Christoph Girardet (2002). © Light Cone<br />
neamente a produção de novas obras a partir do<br />
seqüenciamento, da amostragem de filmes de todos<br />
os gêneros. O resultado é um certo número de<br />
trabalhos que propõem somas particulares de situações<br />
(Home stories, 1991, de Matthias Müller;<br />
Scratch, 2002, de Christoph Girardet, fig. 5) ou<br />
gestos (Téléphones, 1995, de Christian Marclay).<br />
Os cineastas obtêm novos significados de filmes<br />
clássicos ou conhecidos. É o caso de Marc<br />
Arnold, que faz uso de imperfeição da imagem<br />
enquanto instância de descobrimento e<br />
eclipsamento em Pièce touchée (1989), assim como<br />
em seus filmes posteriores; é também o caso de<br />
Chun-hui Wu que, em Psycho shower (2001), trabalha<br />
os diferentes planos da célebre cena do chuveiro<br />
do filme de Hitchcock. A partir de uma cena<br />
superconhecida, o cineasta cria uma coreografia<br />
que coloca em cena o corpo estático de uma mulher<br />
antes de sua morte. Nesse filme, como nos<br />
filmes de Arnold ou de Ortiz, o jogo do adiado e<br />
do avanço entrecortado, com seus desvios, suas<br />
reprises, suas demoras, é que constitui o motor da<br />
ação cinematográfica. Trabalho lúdico que coloca<br />
em crise o desfile regrado de uma projeção em favor<br />
do entrecorte, paradigma do cinema, abolido<br />
após o aparecimento da imagem eletrônica.<br />
No entanto, o cinema hollywoodiano também<br />
pode ser objeto de manipulações e de transforma-<br />
ções que permitem escrever histórias que<br />
Hollywood não soube ou não quis contar. No<br />
Meeting of two queens (1991), Cecilia Barriga propõe<br />
uma história de amor entre Greta Garbo e<br />
Marlene Dietrich, a partir de uma montagem de<br />
seqüências que, além das histórias, funcionam como<br />
hábeis campos contracampos fictícios. Por sua vez,<br />
Bárbara Hammer incorpora em Nitrate kisses<br />
(1992) um filme célebre de Watson e Webber, Lot<br />
in Sodom (1933), assim como as seqüências de raios<br />
X de filmes científicos rodados nos anos de 1940<br />
pelo mesmo Watson. Em Matinee idol (1999), Ho<br />
Tam levanta o catálogo do rei do cinema da China<br />
Meridional, dos anos 30 aos anos 60, retirando<br />
curtos extratos em sua filmografia. À diferença de<br />
Home stories ou Phantom (2001) de Matthias<br />
Müller, Matinee idol não mostra uma nova ficção,<br />
é antes de tudo a transformação de um rosto.<br />
Alguns filmes reutilizam filmes de entretenimento.<br />
Eles evocam uma época, um momento<br />
na história do cinema, uma fascinação por um<br />
gênero de cinema, o das estrelas... não criam<br />
mundos, mas comentam simultaneamente o mundo<br />
e o cinema. Propõem novas leituras, novos<br />
conjuntos, arranjos diferentes, trabalhando em<br />
um catálogo de seqüências mais ou menos conhecidas,<br />
que são arquétipos. Matthias Müller<br />
tem muitas obras recentes, constituídas de representações<br />
hollywoodianas, que mergulham<br />
num clima de pura nostalgia. 7<br />
Matthias Müller, como inúmeros cineastas<br />
surgidos nos anos 80, mistura às imagens que rodou<br />
uma grande quantidade de seqüências encontradas<br />
e tomadas de empréstimo da história do<br />
cinema – principalmente melodramas e comédias<br />
musicais hollywoodianas. Seu filme Aus der Ferne<br />
é sintomático dessa fagocitose progressiva de<br />
Hollywood pelos cineastas experimentais nos anos<br />
80. Por sua vez, Mike Hoolboom e Caspar Strake<br />
anexam todo o cinema e não somente os filmes<br />
hollywoodianos. Tom (2001), de Mike Hoolboom,<br />
convoca a história das representações nova-<br />
7 Como sublinhou justamente Isabelle Ribadeau-Dumas, isso se aplica também a muitos episódios do ciclo Phoenix tapes (1999)<br />
co-realizado com Christoph Girardet em torno dos filmes de Hitchcock.<br />
iorquinas no cinema, para fazer a biografia do<br />
cineasta Tom Chomont. Camadas de imagens tecem<br />
uma história composta da cidade. Essas espessuras<br />
de imagens remetem à constante transformação<br />
arquitetônica de Manhattan. Elas evocam<br />
paisagens imaginárias de uma cidade que associa<br />
à nossa visão resíduos de um outro tempo,<br />
bem como numerosos clichês. A cidade já não é<br />
vista diretamente, mas experimentada sob uma<br />
mistura visual que, no entanto, a torna mais tangível,<br />
mais palpável. A sensação torna-se muito<br />
mais física, material: dá vontade de pegá-la. 8 É<br />
como se o vídeo permitisse sentir a pele da cidade<br />
graças às sobreimpressões, superposições de<br />
imagens que são como vitrais.<br />
A textura particular dessas imagens aproxima<br />
o estilo desse filme daquele dos trabalhos que<br />
utilizam o found footage, acentuando a decomposição,<br />
a alteração, portanto, a fragilidade do suporte<br />
cinematográfico. A fascinação pela decomposição<br />
do suporte pode ser considerada como<br />
uma nostalgia da emulsão, de suas qualidades particulares,<br />
de seu grão e de sua textura. Isso leva<br />
os cineastas a trabalharem as seqüências recortadas<br />
de fitas de vídeo, desenvolvendo-as de maneira<br />
artesanal, para lhes dar novamente a qualidade<br />
tão característica do suporte em prata. O<br />
trabalho de Jürgen Reble situa-se exatamente nessa<br />
linha, que visa transformar o suporte, fazendo<br />
explodir literalmente sua materialidade no<br />
Instabile Malerei (1995, fig. 2 e 3), ou em suas<br />
performances filmadas de Alchemy (2000). A<br />
manipulação radical do suporte no processamento<br />
ou durante a produção da cópia, por viragem, e<br />
os ataques químicos efetuam-se sobre elementos<br />
esquecidos pela maior parte dos filmes científicos<br />
ou dos documentários de animais.<br />
Presenciamos um procedimento que revela o<br />
suporte das imagens em detrimento das figuras<br />
que aí se manifestam, a fim de nos conduzir para<br />
outros horizontes pela abolição progressiva dos<br />
elementos figurativos, sem os quais o deslocamento<br />
para esse “além” não poderia ocorrer. Nesse<br />
procedimento inscreve-se uma dimensão mística<br />
que se aproxima do espírito em que trabalha Mike<br />
Hoolboom, mesmo que os objetos cinematográficos<br />
e as intenções difiram e mesmo que o cineasta<br />
há alguns anos prefira o vídeo ao filme. Mike<br />
Hoolboom radicaliza ainda sua proximidade em<br />
certas partes de Imitations of life (2002), estendendo<br />
o campo de suas tomadas aos videoclipes,<br />
às publicidades e aos filmes esportivos que, em<br />
alguns de seus trabalhos, mistura aos filmes<br />
hollywoodianos. Abigail Child e Craig Baldwin trabalharam,<br />
no final dos anos 80, na mesma direção,<br />
misturando diversos gêneros de filmes. Mas,<br />
às vezes, a narração clássica se refaz: quando a<br />
cineasta refilma os home movies anônimos para<br />
fazer Covert action (1984, fig. 6), percebe que<br />
esse material é fonte de ficção. Ignorando a proveniência<br />
desses filmes de família, tendo apenas<br />
fragmentos, ela completa as lacunas para<br />
reconstituir uma história a partir do found footage. 9<br />
Em Mercy (1989), multiplica as fontes de empréstimo,<br />
incorporando filmes educativos e filmes científicos,<br />
sem se referir a qualquer narrativa.<br />
Se uma importante parte dos filmes de found<br />
footage realizados nos anos 90 são vídeos, No<br />
damage (2002), de Caspar Strake, anexa seqüências<br />
inteiras a fim de devolver à cidade sua<br />
pluralidade, mediante a multiplicidade de suas<br />
representações. É o que foi feito com estrondoso<br />
sucesso por Craig Baldwin em Tribulations 99,<br />
Alien anomalies under América, criando, a partir<br />
de um mosaico de documentos cinematográficos,<br />
uma fábula paranóica cujo fio condutor é<br />
constituído pelas vozes da banda sonora. Esses<br />
discursos ligam as representações oriundas de<br />
fontes diversas, numa narrativa que se desenrola<br />
como uma seqüência de complôs, dos quais o<br />
filme será uma das manifestações virtuais. 10<br />
8 Sobre essa qualidade haptique do vídeo contemporâneo, ver MARKS, Laura U. Touch. Minneapolis: University of Minnesota<br />
Press, 2002. 9 Ver Abigail Child em WEES, William. Recycled images, op. cit. 10 A introdução de uma versão livresca do filme<br />
mantém essa interpretação, mediante a assinatura “Jane Austen”, que mais tarde se manifestará de novo num vídeo de Keith Sanborn,<br />
a propósito das noções de apropriação e de copyright, com as quais o filme de Baldwin não se preocupara. Tribulation 99 Craig<br />
Baldwin, New York, ediciones La Calavera, 1991.<br />
89
F ILMES ILMES ILMES DE DE ARQUIVOS ARQUIVOS<br />
REVOLUÇÕES<br />
6 Covert action de Abigail Child<br />
(1996). © Light Cone<br />
7 De profundis de Laurence Brose<br />
(1996). © Light Cone<br />
Em seus últimos trabalhos, Yervant<br />
Gianikian e Angela Ricci Lucchi continuam o<br />
trabalho começado no início dos anos 80, do<br />
qual Dal Polo all Equatore (1986) é um dos maiores<br />
sucessos: o recurso a filmes de arquivos<br />
ou a coleções privadas. Nesse filme e nos seguintes,<br />
eles selecionam, tingem, reenquadram<br />
as seqüências escolhidas, eclipsando-as no material<br />
que colocam em circulação. Nenhum ou<br />
poucos intertítulos são acrescentados, situando<br />
o material. Esse mergulho nostálgico num<br />
passado para sempre terminado oscila entre<br />
fascinação por um tempo da representação no<br />
cinema e plasticidade de um material surrado<br />
pelos anos e estocado em más condições. Em<br />
Dal Polo all Equatore, os dois cineastas reuniram<br />
filmes da coleção de Luca Comerio que,<br />
no fim dos anos de 1920, juntou sob o mesmo<br />
título diferentes seqüências rodadas por<br />
ele – notadamente a do pólo Norte e as da<br />
Primeira Guerra Mundial – e também filmes<br />
científicos rodados por outros cameramen. A<br />
pilhagem do filme inicial limita-se à sua reorganização<br />
em quatro capítulos. 11<br />
Dal Polo all Equatore ilustra o interesse<br />
crescente dos cineastas, a partir dos anos 80<br />
e 90, pela “efemeridade” do suporte, sua<br />
vulnerabilidade, sua degenerescência. Esse objeto<br />
fascinante – o filme – deseja que o suporte<br />
sucumba, se dissolva, se pulverize, se<br />
dobre, numa palavra, se decomponha.<br />
11 Para uma descrição detalhada da prática dos dois cineastas, ver<br />
GIANIKIAN, Yervant e LUCCHI, Angela Ricci. Catálogo do Museu<br />
Nazionale del Cinema. Florence: Hopefulmonster editore, 1992.<br />
Em No damage como no Dal Polo, os cineastas<br />
apropriam-se dos filmes para criar um<br />
outro: respeitam totalmente o suporte, não se<br />
permitindo qualquer deslize para um outro<br />
material ou a partir de um outro material. O<br />
filme só pode ser gerado por um filme. A essa<br />
lógica pertencem o trabalho de Peter Delpeut<br />
em Lyrisch Nitrat (1900, fig. 4) ou os dois<br />
filmes de Gustav Deutsch, Film ist 1-6 (1998)<br />
e sua seqüência Film ist 7-12 (2002), que recorrem<br />
a empréstimos autorizados de filmes<br />
de arquivos.<br />
Em contrapartida, Mike Hoolboom, Marc<br />
Plas e outros não se embaraçam com tais constrangimentos<br />
quando pilham alegremente o cinema:<br />
fazem obra de cinema a partir de imagens<br />
tiradas de cassetes ou de DVD, fontes<br />
mais acessíveis hoje para quem quer trabalhar<br />
a partir de representações existentes. Na China,<br />
por exemplo, artistas desviam e pervertem<br />
filmes publicitários, à semelhança do que<br />
faz Negativland 12 em suas emissões de rádio e<br />
em alguns CDs. Inúmeros videastas agem assim<br />
atualmente, por exemplo, quando têm necessidade<br />
de contrariar a informação oficial<br />
em caso de conflito armado. Durante a segunda<br />
guerra do Golfo, cineastas e videastas produziram<br />
filmes veiculados pela internet, que<br />
se apresentavam como uma alternativa à propaganda<br />
oficial.<br />
Outro domínio de apropriação, considerado<br />
como um gênero menor e reservado na<br />
maior parte do tempo a um uso privado: o<br />
cinema pornográfico. Eis o terreno de apropriação<br />
de Lary Brose (De profundis, 1996,<br />
fig. 7), Steve Reinke (algumas fitas da série<br />
The hundred vídeos), Michael Bryntrupp (All<br />
you can eat, 1993), Yves Mahé (Fuck, 1999 e<br />
Va te faire enculer, 1999). Por vezes os cineastas<br />
retomam as mesmas imagens: All you can<br />
eat utiliza seqüências que também encontramos<br />
em Barely human. 13 Nos dois casos, trata-se<br />
de uma acumulação de planos de rostos<br />
de homens ao longo de um dia, extraídos de<br />
vídeos hard gay. Para Steve Reinke, essa acumulação<br />
de rostos estáticos torna os protagonistas<br />
quase inumanos: não completamente<br />
fantasmas, de preferência anjos. Por sua vez,<br />
De profundis privilegia imagens pornográficas<br />
menos familiares (na maior parte datam<br />
do final dos anos 20), que são refilmadas e<br />
tratadas de modo que sua antiguidade e sua<br />
alteração, pelas agressões que o cineasta lhes<br />
faz sofrer, sejam palpáveis. A manipulação das<br />
imagens, que cria uma textura, torna-as mais<br />
táteis. Elas são por assim dizer (visualmente)<br />
acariciadas. A insistência em devolver o caráter<br />
palpável da película de prata encontra-se<br />
nos videastas, quando, por meio de super e<br />
subexposições, devolvem uma espessura à imagem,<br />
que não passa de uma fina película, mas<br />
que se torna pele.<br />
Utilizando o vídeo ou o DVD, os cineastas<br />
sempre voltam a privilegiar o aspecto material<br />
do filme; procuram torná-lo tangível para<br />
os espectadores. Mesmo quando escolhem<br />
imagens virtuais, buscam fazer passar uma<br />
sensação de textura, não se satisfazem com o<br />
aspecto liso das novas imagens. Apreciam antes<br />
de tudo a materialidade da película, os efeitos<br />
estéticos que só o envelhecimento do suporte<br />
produz. Portanto, parece bem necessário<br />
hoje preservar as imagens animadas, assim<br />
como é necessário favorecer o acesso a<br />
elas. Os arquivos, os bancos de dados, pertencem<br />
freqüentemente a instituições cuja gestão<br />
se revela muito difícil, mas são um mal<br />
necessário: permitem a salvaguarda e a conservação<br />
em condições ótimas e agem como<br />
uma memória que se torna viva com a condição<br />
de partilharem seus tesouros.<br />
12 Negativland é um coletivo de músicos que questionou a noção de uso respeitoso da reciclagem. Seu combate foi ilustrado quando<br />
tomaram emprestado uma canção do U2. Ver o site www.negativland.com. 13 Essa fita é a décima da série The hundred vídeos, de<br />
Steve Reinke. Ver o catálogo com o mesmo nome editado por Philip Monk Power Plant, Toronto, 1997.<br />
91
AN Acervo Correio da Manhã
Sébastien Layerle Doutorando em estudos cinematográficos e audiovisuais da Sorbonne Nouvelle (Paris III) e professor na Université<br />
Michel de Montaigne (Bordeaux III), prepara uma tese dedicada ao cinema militante como testemunho dos acontecimentos de Maio de 68 na França.<br />
Os murmúrios do mundo<br />
O Ateliê de Pesquisa<br />
Cinematográfica em Maio 68<br />
a Pierre David<br />
AN Acervo Correio da Manhã<br />
Este artigo foi publicado foi publicado em CinémAction, n. 110, Le cinéma militant reprend le travail. CinémAction-Corlet, 1 o trim.<br />
2004. p. 66-73. Tradução de Mauro Pinheiro.<br />
Na França, o mês de maio de 1968 suscitou<br />
no cinema militante três orientações sobre<br />
a prática coletiva: as atividades perenes de grupos<br />
afiliados a formações políticas ou sindicais,<br />
os procedimentos espontâneos de comitês de<br />
ação de estudantes, as experiências autônomas<br />
executadas alguns meses antes acerca de Loin<br />
du Viêtnam, da Universidade Crítica e das primeiras<br />
greves com ocupação. Se, por um lado,<br />
o Ateliê de Pesquisa Cinematográfica (Atelier<br />
de Recherche Cinématographique – ARC) decorre<br />
desta última tendência, ele se baseou mais<br />
numa idéia de cinema do que numa ideologia<br />
política exclusiva. 1 Para seus defensores, esta<br />
história de afinidades não foi nada menos do<br />
que uma “evidência”.<br />
A FGERI<br />
Durante o ano de 1967, a Federação de Grupos<br />
de Estudos e de Pesquisas Institucionais (Fédération<br />
de Groupes d’Études et de Recherches<br />
Institutiuonnelles – FGERI) sediou rodas de discussão<br />
nas suas instalações parisienses de Villa<br />
des Ternes. As sessões reuniam médicos, psicólogos,<br />
professores, interessados nos métodos da<br />
psicoterapia institucional. 2 Aplicadas à clínica do<br />
Château de La Borde, perto de Blois, elas orientavam<br />
as relações entres os que curam e os que<br />
são curados no sentido de uma maior abertura<br />
para com o mundo. Os exercícios colocavam o<br />
paciente em um contexto mais denso e sua “liberação”<br />
não pertencia mais ao quadro familiar do<br />
Édipo de Freud ou Lacan. Entre outros meios,<br />
as artes plásticas, o teatro e o cinema tentavam<br />
incentivar a expressão pessoal, deixando a cada<br />
um a iniciativa de se exprimir.<br />
“Em La Borde, fazíamos filmes que não<br />
eram diretamente políticos. O mais importante<br />
era abolir fronteiras, fronteiras entre pessoas<br />
doentes e sadias, entre cineastas e atores”<br />
lembra Jean-Denis Bonan. “Os roteiros<br />
eram elaborados pelos internos e nós filmávamos<br />
com eles. Isso resultava em filmes cujo<br />
produto final não se encontrava sempre à altura<br />
de nossas ambições, mas o essencial era<br />
o próprio procedimento. O projeto, em si,<br />
era muito cativante”. Mireille Abramovici<br />
realizou uma oficina audiovisual. Para ela, “as<br />
relações encontravam-se subitamente invertidas.<br />
Um novo tipo de cinema se abria para<br />
nós. Respeitávamos as pessoas que filmáva-<br />
1 Este artigo se seguiu a uma mesa-redonda organizada em Paris, em 13 de maio de 2001, na presença de seis dos antigos membros<br />
do ARC, por isso constam apenas os depoimentos deles: Mireille Abramovici, Michel Andrieu, Jean-Denis Bonan, Pierre David,<br />
Jacques Kébadian et Renan Pollès. Agradecimentos a Jean-Noël Delamarre. Os filmes do grupo são citados em CinémAction, n.<br />
110, Le cinéma militant reprend le travail, CinémAction-Corlet, 1 o . trim. 2004. 2 Em 1952, o psicanalista francês Georges<br />
Daumezon definiu e teorizou a “psicoterapia institucional para designar uma terapêutica nova e dinâmica da loucura que exige uma<br />
reforma da instituição dos asilos. As experiências pioneiras datam do início do século XX. Na França, a liberalização das estruturas<br />
psiquiátricas se impõe durante a Segunda Guerra Mundial através do engajamento político e da resistência antinazista. A partir de<br />
1943, em Saint-Alban em Lozère, os terapêutas e militantes Lucien Bonnafé (comunista) e François Tosquelles (libertário) realizam<br />
seminários num hospital sobre psiquiatria comunitária. Em 1969, no domínio da FGERI, da crítica institucional e da antipsiquiatria<br />
(cujo resultado é o L’Anti-Œdipe, escrito em 1972 com Gilles Deleuze), Félix Guattari cria o Centro de Estudos, Pesquisa e<br />
Formação Institucional (CERFI), que publicará a revista Recherches.<br />
REVOLUÇÕES<br />
95
O S MURMÚRIO<br />
MURMÚRIOS MURMÚRIO<br />
MURMÚRIO DO DO MUNDO MUNDO<br />
REVOLUÇÕES<br />
mos. Aprendíamos muito sobre elas. Eu sei,<br />
por exemplo, que Jean-Denis maquiou os doentes.<br />
Cada maquiagem era feita de acordo<br />
com a vontade daquele que era filmado. É verdade<br />
que não era algo muito comum na obra<br />
dos cineastas que admirávamos. Era um terreno<br />
que estávamos explorando, mesmo se<br />
havia Jean Rouch e Joris Ivens”.<br />
Libertária, esta prática terapêutica diz respeito<br />
à sociedade inteira. Seus defensores nunca<br />
censuraram suas fortes convicções e seu engajamento<br />
político. Jean Oury e Félix Guattari<br />
cuidaram do estabelecimento de Cour Cheverny.<br />
Fernand Deligny e Jean-Claude Polac trabalharam<br />
nesse local. Em plena contestação à<br />
intervenção americana no Vietnã, essa quarta<br />
geração de psicanalistas, esquerdista, procurou<br />
meios de estender a “liberação” dentro e<br />
fora das fronteiras, apoiando movimentos antiimperialistas.<br />
Para alimentar as discussões,<br />
eles têm a idéia de filmar os movimentos sociais<br />
e as lutas que estão ocorrendo naquele<br />
momento. Jean-Claude Polac apresenta a equipe<br />
de cinema de La Borde a um jovem assistente<br />
de Robert Bresson, em um momento considerado<br />
oportuno para mostrar os textos de Anton<br />
Tchekhov e Edgar Poe com os internos.<br />
Jacques Kébadian criou um pequeno grupo de<br />
realização com antigos colegas do Institut des<br />
Hautes Études Cinématographiques – IDHEC<br />
(Françoise Renberg, Michel Andrieu, Renan<br />
Pollès). Após algumas filmagens selvagens, esta<br />
associação informal de amigos cria um projeto<br />
de atualidades revolucionárias, sem diretriz<br />
nem motivo de adesão. Algo original em uma<br />
década que tem como exemplo a militância<br />
coletiva, a partir da qual surgem os movimentos<br />
de extrema-esquerda, o Comitê Vietnã e o<br />
Comitê de Ação Estudantil.<br />
O IDHEC<br />
Se, por um lado, todos condenaram desde a<br />
adolescência o modelo stalinista e apoiaram as mobilizações<br />
anticolonialistas, Jacques Kébadian é o<br />
único nessa época a aderir a um engajamento coerente<br />
com as militâncias dos anos de 1960. Durante<br />
a guerra da Argélia, ele apóia a FLN (Frente<br />
de Libertação <strong>Nacional</strong>). Quando da revolução cultural<br />
chinesa, ele estabelece novos laços com as<br />
organizações trotskistas e maoístas. Seduzido pela<br />
presença de uma jovem moça que vendia o jornal<br />
Garde Rouge na rua, “um pouco como Jean Seberg<br />
em A bout de souffle” (no Brasil, Acossado),<br />
ele adere à Juventude Comunistas Revolucionária,<br />
mas defende o Pequeno livro vermelho. Nesse<br />
mesmo momento, Michel Andrieu e Renan Pollès<br />
evoluem em uma “espécie de margem ideológica”.<br />
3 Eles recordam ter preferido as inflexões de<br />
“Socialismo ou barbárie” e da Internacional Situacionista<br />
às orientações marxistas-leninistas.<br />
“Sempre tivemos vontade de ter um grupo paralelo<br />
a todos os projetos pessoais de filmes de cada<br />
um”, diz Michel Andrieu. “Nós tínhamos em mente<br />
um trabalho coletivo político e social”. Durante<br />
o inverno de 1963, eles convenceram seus colegas<br />
a filmar a grande greve que paralisava as minas de<br />
carvão no norte da França, e que a ORTF não estava<br />
cobrindo. Os operários do setor nacionalizado<br />
pediam um aumento de salário. O governo Pompidou<br />
estabeleceu contra eles um decreto impopular<br />
de requisição que estendeu o conflito até o mês de<br />
abril. Após as filmagens em Valenciennes, a equipe<br />
improvisada deixou seus rushes (positivos de filme)<br />
nas mãos de uma seção local da CGT. O filme desapareceu.<br />
Uma lição foi tirada desse acidente,<br />
quatro anos mais tarde, nas primeiras manifestações<br />
sindicais contra as reformas que queriam efetuar<br />
no estatuto da Previdência Social. 4 Entre essas<br />
3 Seu perfil se assemelha ao dos “ativos inorganizados” evocado por Élisabeth Salvaresi (“Chamo de inorganizados os numerosos<br />
militantes que, não se reconhecendo no seio de nenhuma organização, e com freqüência hostis à própria idéia de organização, ainda<br />
assim executavam ações políticas e contínuas”, Mai en héritage, coll. Alternatives, éd. Syros, 1988, p. 11). 4 Na primavera de<br />
1967, em vez de se esgotar em confrontos parlamentares, o quarto governo Pompidou tomou a via contestada das ordenações. Cinco<br />
setores estão envolvidos: o emprego (criação da Agência <strong>Nacional</strong> para a Proteção do Emprego), a reforma da Previdência Social (fim<br />
do regime de gestão das caixas por administradores eleitos pelos assegurados), a participação dos trabalhadores nos lucros das<br />
empresas, sua adaptação à concorrência, e a modernização ou reconversão de determinados setores de atividade.<br />
duas datas, e durante o período que separa o final<br />
da guerra na Argélia e as manifestações de solidariedade<br />
ao povo vietnamita, todos tiveram oportunidade<br />
de realizar seu primeiro curta ou de trabalhar<br />
na assistência ou na montagem. 5<br />
Cinéfilos, eles constituem uma geração que<br />
freqüentava assiduamente a cinemateca. Suas primeiras<br />
paixões são o cinema clássico e o film de<br />
genre, aos quais dedicaram seus trabalhos quando<br />
estudantes. O que não significa que suas temáticas<br />
permanecessem insensíveis às emoções<br />
que afetavam direta ou indiretamente a sociedade<br />
francesa. Lembra Jacques Kébadian que, “no<br />
IDHEC e mesmo durante o ano de preparação<br />
ao concurso para o liceu Voltaire, existiam realmente<br />
duas tendências, Alain Resnais e Jean-Luc<br />
Godard: um cinema marxista, Hiroshima mon<br />
amour e, do outro lado, A bout de souffle. Pelo<br />
seu estilo, Godard era freqüentemente tratado<br />
de fascista pelos marxistas, enquanto Robert<br />
Bresson e Jean Grémillon eram rotulados como<br />
cristãos. Eu não concordava com isso, mas havia<br />
uma ideologia muito severa e brutal que dizia<br />
respeito ao conteúdo e ao estilo”. Renan Pollès<br />
vai ainda mais longe. Segundo ele, não se<br />
podia tomar uma posição de maneira pertinente<br />
sem fazer escolhas de ordem estética. “Eu tinha<br />
a impressão de que o que era verdadeiro no cinema<br />
era revolucionário, que o que era falso e<br />
relativamente trabalhado era de direita, e que os<br />
problemas eram mais artísticos do que políticos”.<br />
Com relação a isso, o grupo revela-se pragmático:<br />
vê o ato cinematográfico como um posicio-<br />
namento histórico. A ascensão simultânea das<br />
técnicas leves e sincrônicas serve de resposta formal<br />
a este “desejo de contemporaneidade”. 6 Autoriza<br />
um projeto que era considerado subversivo<br />
na época: o direito de se exprimir.<br />
A circunscrição da FGERI se adapta às aspirações<br />
de cada um: o instante comanda, as divergências<br />
políticas são consideradas ultrapassadas<br />
e a palavra é mais dada do que tomada. No<br />
último trimestre do ano de 1967, um local de<br />
reunião lhes é oferecido. Eles ainda são apenas<br />
um círculo de reflexão a respeito do lugar e do<br />
status do cineasta. 7<br />
A Universidade Livre<br />
Em 1967, a mobilização contra a guerra do<br />
Vietnã se radicaliza. Como reflexo à falta de reação<br />
dos líderes ocidentais, os grupos de protesto<br />
ficam cada vez mais numerosos. 8 Para muitos,<br />
desde o estudante até o operário, o conflito<br />
é uma forma de contestar a ordem mundial do<br />
pós-guerra e as diferentes formas de opressão.<br />
Cabe somente ao estudante materializar os comportamentos<br />
de revoltas antiautoritárias. Na França,<br />
greves selvagens estouram em várias zonas<br />
industriais do interior (Besançon, Mulhouse,<br />
Caen, Redon). Os jovens trabalhadores criticam<br />
a ação sindical dos mais velhos e denunciam suas<br />
condições de trabalho. Responsável pelo texto<br />
coletivo Loin du Viêtnam (março-dezembro), 9 o<br />
grupo SLON se dedica a esses centros de con-<br />
5 Durante o verão de 1967, Jacques Kébadian assina um primeiro curta-metragem engajado, Trotsky (50min, 16mm, Cor).<br />
6 A expressão é de Pascal Ory (“Introduction à l’histoire culturelle de l’après-Mai”, La décentralisation théâtrale: Mai 68, le<br />
tournant, tome III, Cahiers n. 8, éd. Actes Sud Papier, 1994, p 169 e s.). As experimentações espontâneas com a obra nos<br />
happenings dos anos de 1960 traíam uma obsessão da historicidade. Confundem duas concepções artísticas: uma vida a serviço da<br />
arte (criação) e uma arte a serviço da vida (intervenção). 7 Foi em dezembro de 1967 que se fixou o nome Atelier de Recherche<br />
Cinématographique – ARC. O nome é sóbrio, neutro, para evitar problemas com a censura ou as forças militares, apenas explícito<br />
para pretender um status associativo que o grupo acabou não registrando. 8 O Comitê Vietnã, constituído em novembro de 1966<br />
contra a intensificação da intervenção americana, está na origem de várias manifestações em 1967 e 1968. Em maio de 1967, as<br />
organizações de apoio à China da União da Juventude Comunista Marxista-Leninista (UJCML) e do Partido Comunista Marxista-<br />
Leninista da França (PCMLF) criaram seus próprios comitês Vietnã como base de apoio ao povo vietnamita. No final de 1967 e<br />
durante todo o ano que se seguiu, comitês estudantis de ação prolongaram suas ações, mas não sobrevivem a Maio de 68. 9 A produção<br />
francesa conduzida por Chris Marker, Loin du Viêtnam (1967) é um manifesto coletivo reunindo mais de uma centena de cineastas,<br />
atores e técnicos profissionais, “em solidariedade ao povo vietnamita em sua luta contra a agressão”. O filme foi convidado a participar<br />
de muitos festivais internacionais (Montreal, Nova York, Leipzig) e de avant-premières (usina Rhodiaceta de Besançon, Théâtre<br />
National Populaire em Paris), antes de ser lançado para o público no dia 13 de dezembro de 1967 em quatro cinemas parisienses.<br />
97
O S MURMÚRIO<br />
MURMÚRIOS MURMÚRIO<br />
MURMÚRIO DO DO MUNDO MUNDO<br />
REVOLUÇÕES<br />
Daniel Cohn-Bendict, líder<br />
estudantil francês, convocando<br />
alunos da Universidade de<br />
Frankfurt à greve. Frankfurt,<br />
Alemanha, 24/5/1968. Acervo<br />
Correio da Manhã<br />
Policiais detendo manifestante<br />
contrária à intromissão<br />
americana na Guerra do Vietnã.<br />
s.l., 11/5/1972. Acervo<br />
Correio da Manhã<br />
AN PH/FOT/ 16882(8)<br />
AN PH/FOT/ 2729(2)<br />
testação, chegando a entregar sua “câmera aos<br />
operários”. O ARC investe então seu tempo em<br />
um movimento estudantil, disposto a se unir<br />
contra o imperialismo e contra essa “miséria”<br />
que toma conta do meio universitário. 10<br />
No dia 20 de dezembro, em Paris, a Mutualité<br />
é invadida por ordem dos comitês de base.<br />
Três mil pessoas fazem uma homenagem ao sétimo<br />
aniversário da Frente <strong>Nacional</strong> de Liberação.<br />
Na noite do 29 ao 30 de janeiro, a ofensiva<br />
do Têt liderada pelo Vietnã do Norte desestabiliza<br />
as posições americanas em Saigon e nas grandes<br />
cidades do Sul. Alguns dias mais tarde, a<br />
parte ocidental de Berlim acolhe o Congresso<br />
Internacional de Solidariedade à Revolução Vietnamita.<br />
Quinze países europeus são representados<br />
e, ao mesmo tempo, surge a Juventude Internacional.<br />
O Ateliê envia sua primeira equipe<br />
de filmagem. Foi feita uma associação na ocasião<br />
com Paul Bourron, que, no verão anterior,<br />
filmara em Havana um curta-metragem didático<br />
sobre a conferência da Organização Latino-Americana<br />
de Solidariedade. No dia 17 fevereiro,<br />
num anfiteatro da escola técnica, foi com duas<br />
câmeras que os operadores parisienses filmaram<br />
a intervenção de Rudy Dutschke. O líder da Alemanha<br />
Oriental da Federação de Estudantes Socialistas<br />
propõe a possibilidade de uma terceira<br />
via, entre o capitalismo conquistador do Ocidente<br />
e as ditaduras burocráticas da Europa Oriental.<br />
Antes e durante a manifestação do dia seguinte,<br />
o grupo realiza encontros com os principais<br />
fundadores da Universidade Crítica. 11 De<br />
volta à França, todos se sentiram entusiasmados<br />
por terem participado de um momento importante<br />
da história. Dois filmes são realizados: uma<br />
crônica (Berlin 68) e o retrato de um estudante<br />
engajado (Université critique: Sigrid).<br />
Na Alemanha Federal, a equipe conheceu<br />
simpatizantes da Juventude Comunista Revolucionária.<br />
Seus membros cruzaram também com<br />
Daniel Cohn-Bendit, que foi convidado às sessões<br />
de montagem. A seu pedido, Michel Andrieu,<br />
Jacques Kébadian e Renan Pollès projetam<br />
filmes antiimperialistas no campus da Faculdade<br />
de Letras de Nanterre. Só alguns dias<br />
depois eles resolvem filmar, quando o projeto<br />
de uma universidade crítica parisiense vem à<br />
tona. No dia 22 de março, o anúncio da prisão<br />
de quatro estudantes secundários acusados de<br />
terem pilhado uma loja da American Express,<br />
praça da Ópera, provoca a ocupação do prédio<br />
administrativo da faculdade. Na mesma noite,<br />
o Manifeste des 142 leva à criação de um movimento<br />
unitário, predominantemente espontaneísta<br />
e libertário, do qual se aproximam os membros<br />
do ARC.<br />
Ao final dos feriados de Páscoa, as manifestações<br />
e os combates com as forças de ordem<br />
se intensificam. No dia 2 de maio, durante<br />
a “Jornada de estudos sobre o imperialismo”,<br />
a ameaça de uma ofensiva do grupo de extrema-direita<br />
Occident cai sobre os enragés (furiosos).<br />
Oito dentre eles são intimados a comparecer<br />
na segunda-feira seguinte ao conselho de<br />
disciplina da Universidade de Paris. À tarde,<br />
Michel Andrieu e Jacques Kébadian exibem um<br />
filme sobre o Black Power no lugar e na hora da<br />
aula de René Rémond. O professor é violentamente<br />
vaiado quando tenta retomar sua aula.<br />
Mais tarde, o reitor Roche e o decano Pierre<br />
Grappin, sob ordens do ministro Alain Peyrefitte,<br />
decidem suspender as aulas até que a ordem<br />
seja restabelecida. Os estudantes reagem<br />
preparando para o dia seguinte um protesto no<br />
pátio da Sorbonne.<br />
10 Da miséria no meio estudantil, considerada sob todos os seus aspectos, econômico, político, psicológico, sexual e sobretudo<br />
intelectual, e de quaisquer meios para remediá-la, folheto situacionista da Associação Federativa Geral dos Estudantes de Strasbourg,<br />
novembro de 1966. 11 Criada em 1962 por Tom Hayden, a Universidade Livre berlinense provocou diversas reformas pedagógicas<br />
e administrativas, inclusive a criação de um Parlamento Estudantil. Pressionada pelas instâncias dirigentes favoráveis aos interesses<br />
americanos por intermédio da OTAN e após o assassinato do estudante no dia 2 de junho de 1967 por um policial à paisana, durante<br />
a visita do xá do Irã à Alemanha Federal, ela radicalisou suas posições. No dia 11 de julho de 1967, foi fundada a Universidade Crítica<br />
na presença de Herbert Marcuse, um dos filósofos da Escola de Frankfurt, com considerável influência sobre os estudantes.<br />
99
O S MURMÚRIO<br />
MURMÚRIOS MURMÚRIO<br />
MURMÚRIO DO DO MUNDO MUNDO<br />
REVOLUÇÕES<br />
Esses prelúdios deixaram marcas: Ce n’est<br />
qu’un début é um desses raros filmes que foram<br />
exibidos durante a primavera de 1968. Seu lançamento<br />
foi no dia 20 de maio.<br />
No coração dos acontecimentos<br />
O grupo filma, monta e exibe sem interrupção<br />
durante três meses. Dispondo de seu próprio<br />
equipamento e com alguns subsídios, fazem<br />
um investimento em películas. 12 No dia 11 de<br />
abril, após a tentativa de assassinato contra Rudy<br />
Dutschke, um canal de televisão compra alguns<br />
minutos de imagem de Berlin 68. Quando o<br />
Quartier Latin se inflama, o Ateliê é um dos primeiros<br />
grupos a chegar ao local. Em 14 de maio,<br />
Michel Andrieu e Pierre-William Glenn se encontram<br />
em Nantes, militando pela Organização<br />
Comunista Internacionalista. Em conflito declarado<br />
com a direção há mais de um mês, os operários<br />
de Sud-Aviation-Bouguenais são os primeiros<br />
a ocupar sua fábrica.<br />
No dia 3 de maio, Pierre David junta-se à<br />
ARC aconselhado por Chris Marker e Mario<br />
Marret. Seu testemunho ilustra muito bem o estado<br />
de espírito com o qual eles abordam o acontecimento.<br />
“Na época, me atraía o que propunham os<br />
situacionistas. Era uma verdadeira linguagem política:<br />
Onde está a verdade? Ela é visível? O cinema<br />
a pode transmitir e, aliás, para que serve?<br />
Trata-se somente de uma imagem a serviço do<br />
sonho e do comércio, ou pode-se fazer com ele o<br />
que se faz com a literatura, ou seja, novelas ou<br />
ensaios? Não éramos doutrinados. Queríamos<br />
saber como nos organizar, onde encontrar pelí-<br />
cula, um telefone, uma motocicleta, e quem filmaria<br />
o quê. Antes e durante Maio de 68, algo<br />
se parte de maneira fundamental: todo mundo<br />
pode falar. As propostas e as ações são simultâneas.<br />
Armazenam-se ao máximo imagens e sons.<br />
Mais tarde veremos o que fazer com eles, sabendo<br />
muito bem que temos nas mãos um tesouro<br />
que não nos pertence. Somos uma espécie de<br />
escritores públicos. Tudo é inacreditável. É a<br />
primeira vez que me digo: ‘Estou numa manifestação<br />
e não é por estar com uma câmera que não<br />
posso me manifestar como os outros!’ O comportamento<br />
militante é ao mesmo tempo filmar<br />
e ser um ‘manifestante filmando’. As duas coisas<br />
não se separam. Daí uma certa humildade. O<br />
fato de termos uma câmera não nos faz mais fortes<br />
que os outros. E sinto-me incapaz de analisar<br />
aquele movimento. Não disponho de um sistema<br />
de leitura. Sei apenas que estou contente.<br />
Politicamente, aqueles momentos representam<br />
exatamente algo que me seria difícil acreditar,<br />
ainda que me houvessem apresentado isso três<br />
ou quatro meses antes. Uma espécie de júbilo: a<br />
idéia de que a verdade vai se revelar por si só.”<br />
Graças à mobilização do mundo do audiovisual<br />
em Maio de 68, o ARC se beneficia de um<br />
auxílio técnico por parte da Films de la Guéville<br />
(Yves Robert e Danielle Delorme), do Serviço de<br />
Pesquisa da ORTF em greve e da Comissão de<br />
Produção. Ele se enriquece igualmente com os<br />
recém-chegados, 13 que permitiram a criação de<br />
cinco equipes que invadem as ruas da capital, as<br />
universidades e as fábricas. Segundo Jean-Denis<br />
Bonan, surge um “cinema bruto, balbuciante, fundido<br />
nos movimentos”. As reuniões cotidianas<br />
existem para coordenar cada filmagem e para orientar<br />
as sessões de pré-montagens, ao sabor dos<br />
eventos. O Ateliê leva seu apoio à realização de<br />
12 É preciso, ainda, lembrar aqui as condições técnicas de filmagem de documentário na época: câmeras Coutant 16 mm e gravador<br />
Nagra, os dois ligados por um fio, e utilização de película preto e branco – a cor era um luxo reservado à ficção. 13 Jean-Noël<br />
Delamarre, Nathalie Perret, Daniel Ollivier, André Glucksman são amigos próximos. Anna Rosenheim, François Lecoeur tiveram<br />
presença ativa na época. Jean-Pierre Thorn e Jean Lefaux, cansados de assistir a assembléias, passam a freqüentar as reuniões, antes<br />
de ir filmar cada um de seu lado (Oser lutter, oser vaincre e Écoute Joseph, nous sommes tous solidaires). Algumas mudanças pontuais<br />
ocorreram com Claude Miller, Gérard de Battista, Pierre-William Glenn, Paul Bourron, Romain Goupil, Walter Ball, Sophie<br />
Tatischeff... No momento da separação em 1969, o ARC contava com uns vinte membros.<br />
novos trabalhos: o explosivo Brigadier Mikono<br />
de Jean-Michel Humeau, e um projeto em duas<br />
partes de Boudjema Bouhada sobre os Travailleurs<br />
immigrés, infelizmente perdido. O grupo<br />
funciona então como uma verdadeira agência de<br />
notícias independente.<br />
Da mesma forma, as relações com os États<br />
généraux du cinéma são pelo menos conflituosas,<br />
e assim permanecerão. Em 1969, quando a Associação<br />
com o mesmo nome lança a idéia de<br />
uma “centralização da produção e difusão” que<br />
permita a partilha das conquistas de Maio de 68,<br />
o ARC opõe sua autonomia de funcionamento,<br />
gestão, difusão e seu modelo de “democracia<br />
organizacional”.<br />
O futuro dos filmes<br />
Após os sobressaltos da primavera, o Ateliê conta<br />
com milhares de metros de película. Uma parte<br />
do material desapareceu durante tratamento em laboratórios<br />
clandestinos, franceses ou estrangeiros.<br />
Algumas imagens seduziram certos cineastas (Jean-<br />
Luc Godard, por exemplo, Un film comme les autres),<br />
14 ou gerou a cobiça de pessoas mal-intencionadas.<br />
O essencial, contudo, foi preservado.<br />
Os membros do Ateliê pensam em realizar<br />
um “filme total” que, ao longo de mais de um<br />
ano, trace o panorama dos movimentos de luta<br />
na França. Diferente do filme de síntese desejado<br />
pelos États généraux du cinéma, este projeto<br />
nasceu apenas de uma premonição. “Em 1967,<br />
recorda-se Michel Andrieu, tínhamos decidido<br />
não finalizá-lo imediatamente. Achávamos que<br />
era preciso continuar a filmar os eventos sociopolíticos<br />
do momento antes de fazer um filme.<br />
Não sabíamos muito bem que filme, apenas que<br />
era preciso estarmos lá, e filmar.”<br />
Diante dos acontecimentos, um conjunto de<br />
roteiros foi improvisado sobre temas incertos: a<br />
violência, a solidariedade entre estudantes e trabalhadores,<br />
a experiência de um comitê de ação<br />
de um bairro, e a greve no setor terciário.<br />
Durante o verão de 1968, os capítulos intermediários<br />
destinados a se fundirem num conjunto<br />
mais denso começam a surgir. A equipe se<br />
reúne para definir o sentido da montagem final.<br />
E fracassa diante da amplitude da tarefa. Os quatro<br />
episódios se tornam entidades autônomas, oscilando<br />
entre o agit-prop (agitação e propaganda<br />
política) e a crônica. Se a personalidade e o estilo<br />
de seus autores são perceptíveis, todos respeitam<br />
o anonimato dos sujeitos originais e a natureza<br />
coletiva de sua concepção: Le joli mois de<br />
mai, Le droit à la parole, Comité d’action du Treizième<br />
Arrondissement e Galeries Lafayette. Esta<br />
última reportagem, realizada por Renan Pollès,<br />
Nathalie Perret e Jean-Noël Delamarre, nunca<br />
será mostrada.<br />
Ao final do mês de junho, Pierre David parte<br />
para os Estados Unidos. Com bobinas na mala,<br />
ele encontrará os principais coletivos norte-americanos:<br />
American Documentary Films e, sobretudo,<br />
Newsreel, 15 do qual o ARC se tornou<br />
interlocutor privilegiado depois da manifestação<br />
de Berlim. O intercâmbio de filmes e de<br />
catálogos prossegue: o sonho é a criação de uma<br />
rede internacional de difusão militante. No outono,<br />
Montreal realiza uma semana do cinema<br />
militante. Todo um programa dedicado ao Maio<br />
de 68 da França. Na Europa, o grupo está em<br />
contato com seus homólogos belgas (La ligne<br />
générale), alemães, italianos, suecos e tchecos.<br />
Algumas cópias são enviadas para a África (Nigéria)<br />
e América Latina (Argentina, Uruguai).<br />
Através de Anatole Dauman, Le droit à la parole<br />
consegue mesmo agradar a Columbia. Uma ver-<br />
14 No IDHEC, Jean-Luc Godard encontra Michel Andrieu, que finalizava Joli mois de mai: “As imagens de Maio são você. Não<br />
quero escolher. Vá até o laboratório e tire um minuto a cada dez minutos”. 15 Newsreel foi criada no outono de 1967 por Robert<br />
Kramer, Dan Brown e Robert Lacativa. Entre Nova York e San Francisco, o grupo realiza documentários políticos e filmes de agitação<br />
social, opondo-se ao tratamento das notícias mostradas pela TV americana.<br />
101
O S MURMÚRIO<br />
MURMÚRIOS MURMÚRIO<br />
MURMÚRIO DO DO MUNDO MUNDO<br />
REVOLUÇÕES<br />
são em inglês é feita em 35 mm com o título<br />
The right to speak.<br />
À exceção de filmagens em algumas áreas<br />
industriais em greve em 1969 (Thomson, Rhône-Poulenc,<br />
Solac Thionville…), os esforços do<br />
grupo se concentram na distribuição: produções<br />
internas, de cineastas amigos (Citroën-<br />
Nanterre de Guy Devart e Edouard Hayem,<br />
Oser lutter, oser vaincre de Jean-Pierre Thorn,<br />
Le Cheminot de Fernand Moskowitz…), e filmes<br />
de banc-titre (dispositivo para filmar imagens<br />
fixas ou genéricos) estrangeiros traduzidos.<br />
A atividade, porém continua arcaica e limitada.<br />
Trata-se de uma “difusão física” (levar<br />
o filme à estação de trem, participar da projeção),<br />
dependente de redes paralelas já constituídas.<br />
Neste aspecto, os antigos membros do<br />
ARC fazem sua autocrítica. Ao final de 1968,<br />
ainda que fossem profissionais do cinema, eles<br />
são também, e cada vez mais, militantes. Temendo<br />
uma recuperação “burguesa” e para<br />
conservar sua independência, eles limitaram o<br />
futuro de seus trabalhos proibindo sua promoção<br />
(imprensa e festivais).<br />
Em outros lugares<br />
Em agosto de 1968, as coisas mudam. A<br />
Tchecoeslováquia é invadida pelo Exército Vermelho.<br />
Em janeiro de 1969, uma parte da equipe<br />
(Jean-Denis Bonan, Pierre David e Daniel<br />
Ollivier) dirige-se para Praga.<br />
“Quando tudo aconteceu, observa Pierre<br />
David, ninguém conseguiu recuperar aquela inverossímil<br />
palavra de ordem: ‘só resta reinventar<br />
a vida’. Nos debates, viu-se o retorno de<br />
pessoas que tinham uma prática verdadeira do<br />
discurso político. Fiquei realmente incomodado<br />
quando começaram a me dizer ‘Venha, vou<br />
explicar para você o que é a luta de classes!’”<br />
16 MORIN, Edgar. Mais, éd. Néo, 1988, p. 111.<br />
Edgar Morin escreveu que “a difusão do<br />
marxismo corresponde à degeneração e à fossilização<br />
das idéias de Maio. Isso significa que o<br />
pós-Maio é um curso regressivo onde se degeneram<br />
as idéias regeneradoras e se fossilizam<br />
as idéias primaveris”. 16 No último trimestre de<br />
1969, o grupo se separa. Sem atrito. Para Renan<br />
Pollès, o frágil equilíbrio no qual haviam<br />
apostado os membros da equipe estava em mau<br />
estado: “Havia reuniões das quais todos participavam.<br />
Nessas ocasiões, havia discussões políticas<br />
e discussões práticas. As discussões políticas<br />
não se sobrepunham nunca porque tínhamos<br />
enormes problemas práticos a resolver.<br />
Assim que Maio de 68 passou, a tendência se<br />
inverteu”. Jacques Kébadian acrescenta que “foi<br />
através da ação que o espírito do grupo manteve-se<br />
bastante aberto antes e durante Maio de<br />
68. Após a queda do movimento, houve subitamente<br />
escolhas individuais. Nos demos conta<br />
de que a revolução era possível. Cada um deve<br />
ter dito a si mesmo ‘vou continuar, mas em outro<br />
lugar’. Quando isso foi percebido, houve uma<br />
reação partilhada: tudo que o grupo havia conquistado<br />
permaneceria, fazia parte do movimento<br />
e não pertencia a ninguém em particular. Isso<br />
foi respeitado até hoje. Esses filmes ficaram no<br />
espírito em que foram feitos. Não foram recuperados<br />
por nenhum de nós”.<br />
Esta ruptura consentida é um reflexo da associação.<br />
Alguns voltaram ao cinema ou à televisão.<br />
Outros mantiveram seu compromisso com<br />
o nome do grupo Eugène Varlin, tendo um único<br />
curta-metragem, Albertine ou les souvenirs<br />
parfumés de Marie-Rose (1974). Jacques Kébadian<br />
ingressou num comitê de base de Vive la<br />
révolution! depois se tornou ‘fixo’ na fábrica de<br />
Valentine de Gennevilliers. Michel Andrieu participou<br />
das primeiras experiências de vídeo militante<br />
com Cineastas Revolucionários Proletários.<br />
Em 1973, Jean-Denis Bonan e Mireille Abramovici<br />
fundaram o Cinélutte com seus camara-<br />
das do IDHEC e de Vincennes, 17 coletivo que<br />
deu origem a uma rede dinâmica de produção e<br />
difusão militante (das universidades e das fábricas<br />
ao reconhecimento dos festivais).<br />
Freqüentemente, se reencontraram para trabalhar<br />
juntos em projetos sem que, em momento<br />
algum, surgissem problemas de paternidade.<br />
Em 1978, a experiência anterior chega a uma<br />
conclusão com a apresentação da íntegra de seus<br />
filmes no programa Mai 68 par lui-même, exibido<br />
no cinema Saint-Séverin, em Paris, 18 pelas<br />
Productions de la Lanterne. Uma alternativa e<br />
uma vitória evidentes num momento em que as<br />
imagens de Maio são recuperadas como arquivos<br />
sem jamais terem existido como filmes.<br />
"Onde então está a verdade? De frente ou de<br />
perfil? E antes de mais nada, o que é um objeto?<br />
Talvez seja aquilo que permite unir... passar de um<br />
sujeito a outro, e assim viver em sociedade, estar junto.<br />
Mas então, posto que a relação social é sempre<br />
ambígua, posto que meu pensamento divide tanto<br />
quanto reúne, que minha palavra aproxima pelo que<br />
exprime e isola pelo que se cala, que uma fossa imensa<br />
separa a certeza subjetiva que tenho de mim mesmo<br />
e a verdade objetiva que sou para os outros, posto<br />
que não paro de me sentir culpado enquanto me sinto<br />
inocente... Posto que cada acontecimento transforma<br />
minha vida cotidiana, que fracasso incessantemente<br />
na comunicação, quero dizer em compreender,<br />
amar e me fazer amado, e que cada revés me traz<br />
a solidão... Posto que não posso me extirpar da objetividade<br />
que me esmaga nem da subjetividade que<br />
me exila, posto que não me é possível elevar-me até o<br />
ser, nem cair no nada, é preciso que eu ouça. É preciso<br />
que eu olhe ao meu redor mais do que nunca... O<br />
mundo... Meu semelhante. Meu irmão..."<br />
Jean-Luc Godard,<br />
Deux ou trois choses que je sais d'elle, 1967<br />
O cineasta Jean-Luc Godard e os poetas Alain Jouffroy e Eugène Guillevic, dentre outros, participando da<br />
passeata do Sindicato dos Atores Franceses. Paris, 29/5/1968. Acervo Agence France Presse<br />
17 Ver em CinémAction n. 110, 1 o trim. 2004, entrevista com Richard Copans por Monique Martineau e Valérie Loiseau. 18 Três sessões serão<br />
propostas: “L’imagination et les armes du pouvoir”, “Sous les pavés, la grève” e “L’histoire minutueuse”. Foi nessa ocasião que se apresentou pela<br />
primeira vez o filme de William Klein, Grands soirs et petits matins.<br />
103
A cantora Janis Joplin<br />
no carnaval carioca<br />
e ao fundo, à direita,<br />
o disc-jóquei Big Boy.<br />
Rio de Janeiro, 9/2/1970.<br />
Acervo Correio da Manhã<br />
AN PH/FOT/ 27055(5)
Ilana Feldman Formada em Cinema pela Universidade Federal Fluminense; colaboradora da revista eletrônica Cinestesia; diretora; e<br />
realizadora das mostras “Miragens do sertão” e “A tela aberta – ilusões da democracia”<br />
Depois das revoluções...<br />
“ O único que tem mais ilusões que o sonhador é o homem de ação ”<br />
Oscar Wilde, citado em Antes da Revolução, de Bernardo Bertolucci<br />
Desde a segunda metade do século XX, o cinema<br />
tem-se dedicado a tematizar revoluções<br />
políticas de diversos grupamentos humanos<br />
e nações, respondendo a uma legítima necessidade<br />
de construção de história, memória, povo e<br />
país. Como já escreveu Hobsbawm, se “toda história<br />
é um discurso de exclusão”, ou seja, se todo<br />
discurso histórico é a eleição de uma perspectiva<br />
em detrimento de outras, cabe a cada cineasta,<br />
seja motivado por interesses oficiais ou pessoais,<br />
privilegiar seu ponto de vista, criar imagens para<br />
determinados fatos históricos e, assim, instaurar<br />
suas interpretações. Em Ararat (2002), de Atom<br />
Egoyan, isso é radicalizado. O personagem de um<br />
cineasta armênio, empenhado em mostrar em um<br />
filme o massacre contra seu povo negado pelos<br />
agressores turcos, reinventa o episódio histórico,<br />
permitindo-se liberdades factuais para atender a<br />
sua meta. A arte deixa de representar a história<br />
oficial, nesse caso, e passa a construir uma história<br />
própria, sem compromisso com a objetividade,<br />
mas apenas com a necessidade de um povo.<br />
Nenhum olhar, portanto, é imparcial.<br />
Nietzsche bem nos mostrou, em sua crítica à<br />
“vontade de verdade” ocidental, que “não existem<br />
fatos, só interpretações”. Isso não significa que<br />
todas as interpretações se equivalem, ao contrário,<br />
é preciso avaliá-las constantemente, o que não<br />
quer dizer julgá-las em nome dos “valores superiores”,<br />
da origem moral da noção de verdade, e<br />
sim avaliá-las em nome da vida, à qual nenhum<br />
valor superior se superpõe. Segundo o filósofo, a<br />
vida é em si mesma inocente, tem a inocência do<br />
devir, mas já as interpretações, estas são sempre<br />
interessadas. E os interesses, às vezes, são acima<br />
de tudo manipulações conscientes de transformações<br />
operadas na história, como nos mostra Ararat,<br />
assim como quase todo o cinema de programa<br />
ideológico ou propaganda de Estado. Em um<br />
documentário como O triunfo da vontade (1936),<br />
de Leni Riefenstal, por exemplo, a imagem atende<br />
ao interesse de um partido, o <strong>Nacional</strong>-Socialista,<br />
e modela forma, fatos e contextos para, em<br />
última instância, criar a imagem que Hitler queria<br />
para a Alemanha. Era o que Walter Benjamin 1<br />
chamava de “estetização da política” em detrimento<br />
da “politização da arte” operada pelo cinema<br />
soviético dos anos de 1920, tendo à frente Sergei<br />
Eisenstein e Dziga Vertov. Para Benjamim, só o<br />
regime socialista estaria apto a produzir obras<br />
verdadeiramente revolucionárias, cuja forma e<br />
conteúdo estariam sintonizados com um projeto<br />
de transformação ampla da sociedade. Os soviéticos,<br />
é preciso ressaltar, não fizeram um cinema<br />
revolucionário porque apenas atenderam ao chamado<br />
do Estado, mas porque revolucionaram a<br />
arte mesmo estando a serviço de um programa<br />
político. Ainda hoje permanecem como referências<br />
fundamentais, sobretudo, por suas conquistas<br />
artísticas, tendo introduzido no cinema as primeiras<br />
teorias sobre montagem, herdadas pelo cinema<br />
mundial décadas afora.<br />
Vinculado à postura de Walter Benjamin, em<br />
O que é cinema? (1980), 2 Jean-Claude Bernardet<br />
nos advertia que “o grande capital não financiaria<br />
uma produção que não se enquadrasse nos<br />
seus interesses ideológicos ou financeiros”.<br />
Recolocamos a questão: é possível o grande capital<br />
financiar um filme revolucionário? Mas, o<br />
que é um filme revolucionário? Cidadão Kane<br />
(1941), de Orson Welles, em seu momento histórico,<br />
não foi? Ou a arte revolucionária só é<br />
assim considerada apenas porque está a serviço<br />
de organizações políticas? No plano conceitual,<br />
identificamos um paradoxo. Como se manter em<br />
um projeto de cinema revolucionário quando o<br />
grupo ao qual o cineasta adere assume o poder,<br />
substituindo o programa de transformações radicais<br />
por estratégias de manutenção desse mesmo<br />
poder, por meio de uma arte engajada propagandística?<br />
O cinema revolucionário também<br />
é assim considerado se tem como principal tarefa<br />
perpetuar uma classe ou um grupo no poder?<br />
Isso não seria um cinema conservador?<br />
Revolução: restauração ou transgressão?<br />
O conceito de revolução, como conhecemos<br />
e do qual fazemos uso, tributário da teoria marxista,<br />
tem origens mais remotas, aquém do século<br />
XIX, pelas quais seria interessante de início<br />
caminhar. 3 Cotidianamente, não discordamos<br />
quanto ao fato de que toda revolução é a tentativa,<br />
acompanhada do uso da violência, de uma<br />
subversão total da ordem constituída, por meio<br />
de mudanças profundas nos sistemas político,<br />
social e econômico.<br />
Orson Welles. s.l., 10/1/1965. Acervo Correio da Manhã<br />
1 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política:<br />
ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. 2 BERNADET, Jean-Claude. O que é cinema? São Paulo:<br />
Brasiliense, 1981. 3 Tomo como referência BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Brasília: Ed. UnB, 1997. v. 2.<br />
AN PH/FOT/ 48496(3)<br />
Se foi Karl Marx quem deu a forma completa<br />
e um fim ainda mais grandioso à revolução, laboriosamente<br />
lapidada como instrumento essencial<br />
para a conquista da liberdade – identificada com<br />
o fim da exploração do homem pelo homem e<br />
com a possibilidade de realização de justiça social<br />
–, tal definição, em seu início, era desprovida<br />
de um uso propriamente político. Criada na Renascença,<br />
numa referência ao lento, regular e<br />
cíclico movimento dos astros, no qual um corpo<br />
móvel volta à sua posição inicial, a palavra revolução<br />
indicava que as mudanças políticas não se poderiam<br />
apartar de “leis” universais implícitas.<br />
Foi somente no século XVII que o termo<br />
adquiriu significado político, designando o retorno<br />
a um estado antecedente de coisas, a uma<br />
ordem preestabelecida que foi perturbada. A idéia<br />
de revolução não era, assim, entendida como a<br />
instauração de algo original e inédito, mas, ao<br />
contrário, como uma re-volução a um estado<br />
REVOLUÇÕES<br />
107
... ...<br />
D EPOIS EPOIS DAS DAS REVOLUÇÕES<br />
REVOLUÇÕES...<br />
REVOLUÇÕES<br />
REVOLUÇÕES...<br />
REVOLUÇÕES<br />
justo e ordenado que havia sido perturbado, ou<br />
seja, como restauração. Contudo, foi durante a<br />
Revolução Francesa que se verificou uma mudança<br />
decisiva no significado do conceito de revolução:<br />
de mera restauração de uma ordem perturbada<br />
pelas autoridades, se passou à fé na possibilidade<br />
de criação de uma ordem nova. Sob as<br />
formulações teóricas dos iluministas, a razão se<br />
erguia contra a tradição ao legislar uma constituição<br />
que assegurasse não só a liberdade, mas<br />
trouxesse a idéia de felicidade ao povo.<br />
Podemos dizer que o conceito de revolução,<br />
entendido em sua etimologia e em seu uso original,<br />
é um conceito, enquanto restaurador, também<br />
conservador. E essa associação entre revolução/conservação<br />
é aqui fundamental para pensarmos<br />
uma múltipla gama de filmes sobre revolução,<br />
que fazem de diversas revoluções seus temas,<br />
seus assuntos, seus discursos, mas sempre<br />
na imagem e nunca da imagem. Em oposição a<br />
estes, certamente escassos, estão os filmes propriamente<br />
revolucionários, cujos discursos são<br />
a própria linguagem. Rogério Sganzerla, um dos<br />
nossos grandes inquietos e revoltosos, dizia, apropriando<br />
para o cinema uma famosa frase de<br />
Maiakovski, que “não existe cinema revolucionário<br />
sem forma revolucionária”. Mas o que seria<br />
revolucionário hoje, quando a quase totalidade<br />
de experimentações estéticas já foi incorporada,<br />
estilizada, quando não normatizada? E<br />
qual seria o sentido de revolução depois do fim<br />
da Guerra Fria, das guerras de descolonização,<br />
da revolução sexual e ascensão das democracias<br />
liberais no mundo ocidental? Como não fazer com<br />
que esta palavra soe anacrônica, démodé, quase<br />
arcaizante e esvaziada de seu potencial político?<br />
Como convocar uma revolução no/do presente,<br />
se a própria noção de povo, imprescindível à<br />
revolução, foi também esfacelada? Como pensar<br />
em povo se o alicerce desta categoria, o trabalho,<br />
transformou-se em promessa e deixou de ser<br />
condição? E, por ora, como transformar todas<br />
essas questões em cinema, num cinema cujo<br />
devir seja revolucionário, sem que tal adjetivo<br />
seja minado em sua força instauradora de mundos,<br />
sem que tal adjetivo seja, apenas, nicho de<br />
mercado? E como driblar um mercado internacional<br />
cuja quase totalidade dos filmes simpáticos<br />
às reações populares ou contra a tirania reproduzem<br />
a normatização narrativa do sistema<br />
contra o qual estão se colocando?<br />
Em 1964, Luchino Visconti, de família nobre<br />
e marxista, refletia sobre os impasses de sua<br />
época, ao adaptar para o cinema o romance do<br />
escritor Giuseppi Tomasi de Lampedusa, acerca<br />
do imobilismo nas mudanças políticas durante o<br />
período de unificação italiana. No belíssimo O<br />
Leopardo, dois personagens, Tancredi e seu tio,<br />
o príncipe Fabrizio de Salina, repetem a mesma<br />
frase: “Se queremos que tudo fique como está, é<br />
preciso que tudo mude”. Visconti sabia que o<br />
aburguesamento do país, em meados do século<br />
XIX, não pressupôs o rompimento com a nobreza,<br />
e sim a assimilação dela no novo sistema,<br />
com a absorção de seu status e seus valores. Também<br />
sabia que a frase de Lampedusa tinha duplo<br />
alcance: valia para os anos de 1860, época retratada<br />
no filme, e para os anos de 1964, quando<br />
nada, na configuração político-econômica da Itália,<br />
havia mudado significativamente, apenas os<br />
personagens nos bailes do poder. Também em<br />
Fahrenheit 9/11 (2004), Michael Moore, o polêmico<br />
representante do atual cinema político, também<br />
chamado por alguns de “documentário de<br />
guerrilha”, evoca George Orwell, em 1984: “A<br />
conseqüência de uma guerra é manter intacta sua<br />
estrutura social” ou, ainda, “uma guerra não é<br />
para ser ganha, mas para ser eternizada”. Esta última<br />
assertiva parece refletir sobre a conseqüência<br />
espetacular de um conflito belicoso e sobre o<br />
próprio método do diretor. Como fugir do assédio<br />
de um espetáculo bélico ou de uma representação<br />
espetacular de uma revolução? Michael<br />
Moore, a despeito de sua montagem de eventos<br />
espetaculares, resolve magistralmente a cena do<br />
11 de setembro. Não dá imagem a uma imagemevento<br />
já institucionalizada pelo governo Bush,<br />
em torno da qual se construiu e se legitimou toda<br />
a operação de contra-ataque. No lugar das imagens<br />
dos aviões explodindo nas torres e estas desmoronando<br />
no ar, prefere filmar as pessoas que<br />
ficaram no solo, suas reações às perdas, humani-<br />
zando o atentado que, de outro modo, era visto<br />
apenas sob a ótica do ataque. Esta simples seqüência<br />
é um exemplo de como um novo recorte,<br />
realizado pela transformação de um material<br />
já existente, instaura uma nova forma de percepção<br />
de um evento já tão sedimentado pelas imagens<br />
que nos bombardeiam. Possibilidade e potência<br />
criadora de qualquer cinema colado em seu<br />
momento histórico, cujas questões contemporâneas<br />
entram em conflito, quando não em choque,<br />
com o próprio presente. Porque a revolução, seja<br />
ela de que ordem for, pessoal ou social, só se faz<br />
hoje através do embate e da atualização da memória,<br />
individual ou coletiva, uma memória que se<br />
inscreve na imagem como duração, como tempo<br />
tomando forma e não como metáfora de um passado<br />
arquivado.<br />
Os filmes sobre revoluções, em sua maioria,<br />
trabalham com o tempo histórico e cronológico,<br />
com a reconstituição de época e com idéias de<br />
que as páginas da história já foram viradas e que<br />
o presente vem sempre para corrigir, e não para<br />
problematizar, as ações passadas, evitando que<br />
Revolução dos Cravos: militares e civis<br />
portugueses em frente ao quartel da<br />
Guarda Republicana onde se encontrava<br />
o presidente Marcelo Caetano.<br />
Lisboa, Portugal, 27/4/1974.<br />
Acervo Agence France Presse<br />
se repitam no futuro. São filmes que acreditam<br />
na temporalidade hegeliana e, portanto, na evolução<br />
e totalização da história. Fazendo uso da<br />
mitificação e heroificação de personagens de<br />
outrora, em muitos desses filmes sobre momentos<br />
históricos de transição, de ruptura ou de esfacelamento<br />
de uma ordem asfixiante, enfoca-se<br />
o evento como parte de um processo encerrado<br />
e já arquivado no museu da história, como se a<br />
representação dos fatos fizesse parte de uma realidade<br />
paralela sem conexão com nossos dias.<br />
O olhar é, em geral, de algo já ultrapassado, de<br />
diagnóstico do fracasso travestido de elogio da<br />
reação, com convicção ou populismo, como se<br />
filmar as reações no passado cumprisse um papel<br />
político no presente. Em Diários da motocicleta<br />
(2004), 4 de Walter Salles, temos um caso<br />
exemplar. Ao se filmar episódios de um momento<br />
da juventude de Ernesto Guevara, efetua-se o<br />
elogio da solidariedade e da congratulação entre<br />
os povos latino-americanos, tratando-se as situações<br />
vividas pelo personagem como sementes de<br />
um futuro revolucionário, mas a instância narradora<br />
nos é contemporânea, quando sabemos que<br />
4 EDUARDO, Cléber. Dois cinemas na América Latina – Diários de motocicleta, de Walter Salles e O pântano, de Lucrecia Martel.<br />
Disponível em: http://www.contracampo.he.com.br/60/cienaga-diarios.htm.<br />
109
... ...<br />
D EPOIS EPOIS DAS DAS REVOLUÇÕES<br />
REVOLUÇÕES...<br />
REVOLUÇÕES<br />
REVOLUÇÕES...<br />
REVOLUÇÕES<br />
Cuba se tornou um país isolado no mapa ideológico<br />
e político, portanto, quando já fracassou o<br />
projeto frutificado pelas sementes plantadas durante<br />
a viagem iniciática por parte das entranhas<br />
da América do Sul. Filma-se o primeiro impulso<br />
transformador com a consciência de que as transformações<br />
resultantes desse impulso foram interrompidas.<br />
Com a consciência do fracasso, portanto,<br />
com visão singela, reconfortante, adocicada,<br />
anedótica, mais apaziguadora que contundente.<br />
Ken Loach tem igual tratamento para a Guerra<br />
Civil Espanhola em Terra e liberdade (1995).<br />
Importam menos as condições políticas<br />
motivadoras do conflito e quase só a grandeza<br />
humana do voluntariado de guerra antifascista.<br />
Suspira-se de saudosismo pelos tempos nos quais<br />
o mundo tinha ideologia, mas não se tematizam<br />
as razões e a complexidade do conflito, tampouco<br />
se permite abrir a forma cinematográfica ao confronto.<br />
Também em Capitães de abril (2000) Maria<br />
de Medeiros adota uma visão adocicada e<br />
anedótica da Revolução dos Cravos. Se o filme<br />
promove uma visão lúdica e lírica da Revolução,<br />
menos comprometida com o ideal de verdade e<br />
reconstituição histórica, e mais vinculada a um<br />
olhar infantil, perde sua credibilidade dramática<br />
ao idealizar demais o que seria o povo, tratá-lo<br />
como homogêneo e simplório, como se este fosse<br />
simplesmente massa de manobra, passivo,<br />
desvinculado da instituição de poder e sem nenhuma<br />
adesão ao regime fascista. E hoje? O que o<br />
filme diz sobre o Portugal de hoje? Atende a quais<br />
necessidades contemporâneas? O que mudou, de<br />
fato, e o que permaneceu? Essas perguntas poderiam<br />
ter sido colocadas para todos os filmes que tratam<br />
de revoluções. Afinal, quais são as intenções<br />
de seus diretores ao escolherem determinados recortes?<br />
Vemos que, se as implicações dos movimentos<br />
revolucionários são, contemporaneamente,<br />
um tanto turvas e liquefeitas, as implicações estéticas<br />
e, portanto, políticas dos filmes estão nas evidências.<br />
Em geral, impera conciliação e<br />
reformismo, unidos numa forma, quando não totalmente<br />
burocrática, desprovida de vigor.<br />
5 DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.<br />
Fugindo de temas urgentes, contemporâneos,<br />
sem desfecho já dado, a maior parte dos filmes<br />
de reconstituição histórica cai na principal<br />
armadilha daqueles que acreditam estar<br />
reconstituindo a História: a busca de objetividade<br />
e compromisso com a Verdade. São raras as<br />
empreitadas como as de Elia Suleiman em Intervenção<br />
divina (2002), que, além de romper com<br />
a gramática convencional do cinema político dialogado,<br />
transmitindo o absurdo da panela de<br />
pressão palestina exclusivamente com imagens,<br />
lida com a impossibilidade de uma conclusão para<br />
seu conflito, pois este está em andamento, mas<br />
não abre mão de adotar sua postura pessoal para<br />
o caso Israel-Palestina, chegando a instalar uma<br />
posição nada conciliatória. Para Suleiman, existe<br />
só a sua verdade, baseada na experiência de<br />
vida dos palestinos e dele mesmo, não uma verdade-painel,<br />
de conjuntura, de revelação e<br />
conscientização. O filósofo grego Cornelius<br />
Castoriadis perguntaria: como destruir a pretensão<br />
à cientificidade, último reduto das velhas<br />
opressões que permanece? Também Gilles<br />
Deleuze, 5 herdeiro direto da crítica da verdade<br />
em Nietzsche, para quem “o mundo verdadeiro<br />
não existe e se existisse seria inacessível,<br />
inevocável, e se fosse evocável, seria inútil, supérfluo”,<br />
defendia que a alternativa real/fictício<br />
deveria ser ultrapassada em favor da afirmação<br />
do falso, ou das potências do falso, entendido<br />
não como um erro, uma falha ou uma confusão,<br />
mas como uma potência que torna o verdadeiro<br />
indecidível.<br />
Segundo Deleuze, a potência do falso é o tempo<br />
em pessoa, não porque os conteúdos do tempo<br />
sejam variáveis, mas porque a forma do tempo<br />
como devir põe em questão todo o modelo<br />
formal de verdade. Resulta disso um novo estatuto<br />
de imagem e narrativa. A imagem deixa de<br />
ser regida pelo modelo “imagem-movimento”<br />
(modelo dominante antes da Segunda Guerra,<br />
sustentado por cortes racionais, encadeamentos<br />
e montagem, no qual o tempo deriva do movi-<br />
mento), sujeita a um efeito de verdade, para fazer<br />
parte do regime “imagem-tempo”, sustentado<br />
por cortes irracionais e reencadeamentos, no<br />
qual o movimento deriva do tempo, logo, um<br />
movimento em falso, que substitui o efeito de<br />
verdade pela potência do falso como devir. Assim<br />
também a narração liberta-se da necessidade<br />
de ser verídica, de aspirar a uma verdade<br />
unívoca e universalizante, para se fazer essencialmente<br />
múltipla e falsificante. Elevando o falso<br />
à potência, a vida se liberta tanto das aparências<br />
quanto da verdade. Para Deleuze, esse era o caso<br />
de Orson Welles. Um artista revolucionário pois<br />
criador de verdades, porque “a verdade não tem<br />
que ser encontrada nem reproduzida, ela deve<br />
ser criada”. Desse modo, o que se opõe à ficção<br />
não é o real, não é a verdade que é sempre a dominante,<br />
mas é a função fabuladora. E para que<br />
tal função seja exercida, é preciso que o personagem<br />
seja primeiro real para afirmar a ficção como<br />
potência e não como modelo: é preciso que ele<br />
comece a fabular para se afirmar ainda mais como<br />
real, e não como fictício. O personagem está sempre<br />
se tornando outro, e não é mais separável desse<br />
devir que se confunde com o povo.<br />
Mas, por onde anda “o povo”? Essa entidade,<br />
hoje, tão abstrata e fictícia? Ainda segundo o<br />
filósofo, a primeira grande diferença entre o cinema<br />
clássico e o moderno é que no cinema clássico<br />
o povo estava presente, embora oprimido,<br />
enganado, submetido ou inconsciente. No cinema<br />
americano ou no cinema soviético da primeira<br />
metade do século XX, o povo era, simultaneamente,<br />
real e ideal. Daí a idéia de que o<br />
cinema como arte das massas pudesse ser a arte<br />
revolucionária por excelência, ou democrática,<br />
porque fazia das massas um verdadeiro sujeito.<br />
Mas vários fatores comprometeram essa crença:<br />
o surgimento de Hitler dava como objeto ao cinema<br />
não mais as massas que se tornaram sujeito,<br />
mas as massas assujeitadas; assim como o<br />
stalinismo substituía a unidade dos povos pela<br />
unidade tirânica de um partido. Em suma, para<br />
Deleuze, se houvesse um cinema político moderno,<br />
seria sobre a seguinte base: “o povo já<br />
não existe, ou ainda não existe... o povo está<br />
AN PH/FOT/ 1933(35)<br />
AN PH/FOT/ 1933(2)<br />
As ruas de Dantzig ostentam o aspecto de uma cidade<br />
alemã em 1939. Acervo Correio da Manhã<br />
Jovens alemães. s.l. e s.d. Acervo Correio da Manhã<br />
111
... ...<br />
D EPOIS EPOIS DAS DAS REVOLUÇÕES<br />
REVOLUÇÕES...<br />
REVOLUÇÕES<br />
REVOLUÇÕES...<br />
REVOLUÇÕES<br />
faltando”. Se o cinema já não reivindica a tarefa<br />
de conscientização do povo, vista como equivocada<br />
ou ultrapassada, e se parece não encontrar<br />
outras ferramentas de intervenção social, Deleuze<br />
nos adverte, diante desse impasse, que se ainda<br />
há alguma tomada de consciência possível, esta<br />
é “a tomada de consciência de que não há povo”.<br />
Esta constatação de um povo que falta não é uma<br />
renúncia ao cinema político, mas, ao contrário,<br />
a nova base sobre a qual ele tem de se fundar, no<br />
Terceiro Mundo e nas minorias, como sugere o<br />
filósofo. Porém, tratar-se-ia não de se dirigir a<br />
um povo suposto, já preexistente, e sim de contribuir<br />
para a invenção de um povo, porque o<br />
povo que falta é um devir, ele se inventa, nas<br />
favelas, nos campos ou nos guetos, com novas<br />
condições de luta, para as quais uma arte verdadeiramente<br />
política tem de contribuir. E para<br />
desenvolver tal tarefa, seria preciso que o cinema<br />
exercesse a função de fabulação, em que o<br />
personagem se põe a ficcionar, não cessando de<br />
ultrapassar as fronteiras entre o real e o fictício,<br />
o privado e o político, dando ao falso a potência<br />
de construir uma memória e produzindo, assim,<br />
enunciados coletivos. Também é imprescindível<br />
que o cinema contemporâneo, não conseguindo<br />
se constituir sobre uma possibilidade de evolução<br />
e revolução, como o cinema clássico, tematize suas<br />
impossibilidades, seus impasses, sem poupar-se<br />
da indecidibilidade, do absurdo e do intolerável.<br />
Deleuze chamaria este cinema do intolerável<br />
de “cinema de agitação”, mas uma agitação que<br />
não decorre mais de uma tomada de consciência,<br />
ao contrário, a consciência se dá agora num<br />
vazio, consistindo, antes, em fazer tudo entrar<br />
em transe, o povo e seus senhores, a própria câmera,<br />
em levar tudo à aberração, tanto para pôr<br />
em contato violências quanto para fazer a crítica<br />
do mito, referindo o arcaico ao estado das pulsões<br />
numa sociedade atual. Assim define Terra<br />
em transe (1967) de Glauber Rocha: “O transe,<br />
o fazer entrar em transe é uma transição, passagem<br />
ou devir: é ele quem torna possível o ato de<br />
fala através da ideologia do colonizador, dos<br />
mitos do colonizado, dos discursos do intelectual.<br />
Glauber faz entrar em transe as partes, para<br />
contribuir à invenção de seu povo, que é o único<br />
capacitado a constituir o conjunto”. Mas é<br />
importante ressaltar que esse conjunto é constituído<br />
com base na fragmentação, no estilhaçamento,<br />
o que não quer dizer que o estado de<br />
combustão permanente desse povo seja uma impossibilidade<br />
imobilizante, inversamente, se o<br />
povo falta, se ele se estilhaça em minorias, “sou<br />
eu que sou primeiro um povo”.<br />
Glauber era, ele mesmo, um povo e inventou<br />
muitos povos. Jean-Luc Godard também o<br />
fez e continua fazendo. Em Vento do Leste (1969),<br />
parceria com Jean-Pierre Gorin e outros colaboradores,<br />
sob o grupo Dziga Vertov, uma organização<br />
cinematográfica empenhada em fazer filmes<br />
militantes de esquerda, que se situava contra<br />
o cinema de Hollywood e contra a tradição<br />
eisensteiniana, questionavam-se as formas das<br />
imagens e dos sons, colocando-se num cinema<br />
de encruzilhada. Em dado momento, o próprio<br />
Glauber, convidado a uma participação especial,<br />
posto de braços abertos numa bifurcação do<br />
caminho, é questionado por uma moça grávida:<br />
“Qual o caminho do cinema político?” Ao que<br />
ele responde: “O caminho do cinema de aventura<br />
é pra lá e o caminho do cinema do Terceiro<br />
Mundo, o cinema divino, perigoso e maravilhoso,<br />
é pra cá”. A moça grávida titubeia e segue o<br />
sentido do cinema de aventura... Godard e<br />
Gorin, munidos de ironia, tratavam da impossibilidade<br />
de uma representação revolucionária mediada<br />
pelas convenções ilusionistas da representação<br />
burguesa, tendo como alternativa a autoreferencialidade,<br />
a revelação dos artifícios da encenação,<br />
de modo a cultivar a consciência do<br />
espectador, sem tentar iludi-lo. A questão não<br />
era, assim, a busca de um caminho verdadeiro<br />
para a arte e para o cinema, mas a construção de<br />
um diálogo que poderia ser amarrado a partir de<br />
todo esse questionamento, literalmente, disparado<br />
pela posição de câmera – posicionamento<br />
moral, segundo Godard –, pelas intervenções, en-<br />
6 Entrevista concedida a Jane de Almeida. Folha de S. Paulo, São Paulo, 2 jul. 2004. Caderno Mais!<br />
cenações, ruídos e discursos. Como disse Gorin<br />
em recente entrevista, 6 os cineastas se enquadram<br />
em dois grupos: os do idioma e os da gramática.<br />
Os do idioma tendem a funcionar melhor na estabilidade<br />
das convenções, já os da gramática são<br />
inclinados a interrogá-la. Como diria Deleuze, 7<br />
citando Proust, trata-se de ser estrangeiro em sua<br />
própria língua, estimular uma certa gagueira da<br />
linguagem, questionando as noções correntes e<br />
as imagens e idéias ajustadas.<br />
Questionar é romper. As rupturas dentro da<br />
linguagem artística não estão a serviço de transformações<br />
sociais, não têm tarefas ou funções<br />
fora dos limites da arte, propondo, sobretudo,<br />
uma alteração da percepção de quem a assimila,<br />
alteração essa sempre política e transformadora,<br />
por propor outros estatutos e outros universos<br />
possíveis. Uma arte com obrigações políticas, a<br />
serviço de uma ideologia ou de uma causa, torna-se<br />
programática, um meio de se alterar o mundo,<br />
como um partido político ou um panfleto,<br />
sem necessariamente propor uma forma que, por<br />
sua negação das convenções, altera o olhar do<br />
espectador, mesmo que momentaneamente. Um<br />
cinema revolucionário, de fato, pode ser traçado,<br />
se assim traçar novos percursos, novos circuitos,<br />
se promover curtos-circuitos, se tematizar<br />
e potencializar seus impasses, seus absurdos, seus<br />
intoleráveis. Toda revolução pressupõe uma nova<br />
sociedade, uma nova arte, um novo homem, que<br />
vai se relacionar com o mundo através de uma<br />
nova forma de percepção. Em Antes da Revolução<br />
(1964), de Bernardo Bertolucci, Fabrizio, o<br />
jovem protagonista, dotado de mais lucidez que<br />
fervor revolucionário, nos diz, já apontando para<br />
um antes e um além da revolução: “Não me bastam<br />
os acontecimentos de julho de 60, as revoluções<br />
de um dia, não me bastam as greves, as<br />
agitações sindicais com suas bandeiras vermelhas.<br />
Nem os protestos não me bastam mais.<br />
Quero um homem novo”. Fabrizio é aquele para<br />
quem a vida é o valor que deve estar acima da<br />
violência como método revolucionário, é aquele<br />
para quem o “homem novo” precisa constituir-<br />
7 DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.<br />
AN PH/FOT/ 23731(4)<br />
Godard e Jean Renoir, s.l. 15/3/1968<br />
se na alegria de viver, de certa forma já indicando<br />
a demanda por prazer e contra a repressão<br />
que estaria por vir. Quatro anos mais tarde, em<br />
maio de 68, os situacionistas pichariam num<br />
muro de Paris: “O tédio é anti-revolucionário”.<br />
E anti-revolucionária também é a<br />
institucionalização da rebeldia. Fazendo a ponte<br />
entre a geração dos anos de 1960 e a dos<br />
anos de 1990, O pornógrafo (2002), de Bertrand<br />
Bonello, coloca em foco com contundência a<br />
passagem da geração de seu protagonista, um<br />
cineasta francês de filmes pornô, para a geração<br />
de seu filho, ainda estudante. Em certo momento,<br />
Jean-Pierre Léaud, o cineasta, diz a seu<br />
filho: “Enquanto minha geração ia às ruas lutar<br />
em nome da liberdade e contra a repressão, a<br />
sua vai às ruas reivindicar um lugar social, reivindicar<br />
emprego”. O que era anteriormente um<br />
protesto de contestação torna-se uma manifestação<br />
de pedido de adesão ao sistema. O mesmo<br />
aconteceu com o cinema pornô, antes empregado<br />
como um gesto libertário pelo personagem<br />
de Léaud e por seus companheiros de<br />
geração, e agora incorporado pelo mercado,<br />
tornando-se uma mera atividade de sua sobrevivência.<br />
Apesar da resistência de seus ideais,<br />
agora não mais a serviço de uma transformação<br />
total da sociedade, mas de uma luta pela possibilidade<br />
de ainda resistir à conformidade, a<br />
grande revolução possível, para o personagem<br />
de Jean-Pierre Léaud e para todos nós, é o esforço<br />
em não deixar a rebeldia ser assimilada e<br />
assim se tornar apenas mais uma mercadoria.<br />
113
Revolta dos marinheiros a favor da suspensão das penas disciplinares impostas à Associação dos<br />
Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil. Fotógrafo Décio. Rio de Janeiro, 26/3/1964.<br />
Acervo Correio da Manhã<br />
Mao Tse-Tung com tropa comunista. Pequim, China, janeiro/1949. Acervo Agence France Presse<br />
a<br />
AN PH/FOT/ 5610(37)<br />
Revolução, esse fenômeno recorrente na história da humanidade, implica a<br />
quebra de uma determinada ordem constituída – vista como injusta e opressora<br />
– para, então, abrir caminho, pela violência, a uma nova ordem revolucionária...<br />
A idéia de movimento em direção a um novo início da aventura humana<br />
é o cerne do conceito de revolução e fundamenta o direito de resistência à<br />
opressão, ao despotismo e às estruturas injustas, para consagrar a emancipação<br />
e o triunfo do povo conflagrado. Em princípio, a revolução clama pela<br />
Liberdade, pela Igualdade e Fraternidade para todos, democratizando as estruturas<br />
sociais, políticas e econômicas anteriores. Mas ela mesma poderá (re)criar<br />
a uniformidade, a censura e novas proibições que exalam o ressurgimento de<br />
novas formas de terror e novas estruturas autoritárias… E aí poderá irromper<br />
o ímpeto do início de nova revolução… Os momentos e os processos revolucionários<br />
sempre despertam paixões das massas, criam violências próprias contra<br />
os que detinham o poder da velha ordem, polarizando posições ideológicas e<br />
políticas… Nesse furacão social, como nos exemplos ocorridos na segunda<br />
metade do século XX, as revoluções passaram pelo crivo, pelos flashes e registro<br />
da nova tecnologia, a da máquina fotográfica. A arte – ou o meio de popularizar<br />
a arte – ganha status de prodígio ao recriar pelo instantâneo, pelo enquadramento<br />
rigoroso, pela imagem-denúncia ou pelo instântaneo-de-rua o<br />
poder de testemunhar os episódios humanos e desumanos das revoluções –<br />
antes registrados pela escritura ou pela pintura. Pela comicidade ou pela dramaticidade,<br />
a fotografia é esse olhar mágico que a nova tecnologia, a serviço<br />
da arte, faz com que momentos, processos, panoramas ou ações espetaculares<br />
expressem as Revoluções e, assim, tenhamos a reconstrução de suas histórias e<br />
da sua própria memória social. É essa a principal contribuição que o <strong>Recine</strong>,<br />
tão oportunamente organizado pelo <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> – composta pelo acervo<br />
do combatente jornal Correio da Manhã e pela riqueza da Agência France<br />
Presse –, oferece ao público: é mirar, sorver e aprender como as Revoluções<br />
no século XX tornaram-se realidades imperecíveis pela arte fotográfica.<br />
Clóvis Brigagão<br />
Cientista político e escritor, é diretor-adjunto do Centro de Estudos das Américas,<br />
do Instituto de Humanidades da Universidade Candido Mendes.<br />
REVOLUÇÕES<br />
115
F ALSIFICAÇÕES<br />
ALSIFICAÇÕES<br />
Forças policiais peruanas<br />
vigiando a casa do<br />
embaixador japonês<br />
devido à invasão dos guerrilheiros<br />
do Tupac Amaru.<br />
Lima, Peru, 5/1/1997.<br />
Acervo Agence<br />
France Presse