Diversidade sexual na educação ... - unesdoc - Unesco

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14.04.2013 Views

para os indivíduos. Na verdade, o processo já vinha se desenrolando há algum tempo, desde o século XVIII, pelo menos: transformações políticas, culturais, sociais e econômicas articuladas ao industrialismo e à revolução burguesa, acompanhadas por uma outra divisão sexual do trabalho e pela circulação de idéias de caráter feminista, foram constituindo todo um conjunto de condições para que os corpos, a sexualidade e a existência de homens e mulheres fossem significados de outro modo. Laqueur ( 990) diz que se construiu por essa época um novo corpo sexuado. Mas alerta: não seria adequado afirmar que qualquer um desses eventos “provocou a construção desse novo corpo sexuado”, em vez disso seria importante lembrar que “a reconstrução do corpo é, ela própria, intrínseca a cada um desses desenvolvimentos” (LAQUEUR, 990: ). Este estudioso conta que até o início do século XIX as sociedades ocidentais tinham um modelo sexual que hierarquizava os sujeitos ao longo de um único eixo, cujo vértice era o masculino. Entendia-se que os corpos de mulheres e de homens diferiam em “graus” de perfeição; a “verdade” era que as mulheres tinham “dentro de seu corpo” os mesmo órgãos genitais que os homens tinham externamente. Em outras palavras, afirmava-se, cientificamente, que “as mulheres eram essencialmente homens nos quais uma falta de calor vital – de perfeição – havia resultado na retenção, interna, de estruturas que nos machos eram visíveis” (ibid.: 4). A substituição desse modelo (de um único sexo) pelo modelo de dois sexos opostos (que é o modelo que até hoje prevalece) não foi um processo simples nem linear. Essa transformação de ordem epistemológica – e também política, é claro – se deu junto com todo aquele conjunto de transformações já mencionadas. E, por um largo tempo, houve embate e disputa entre esses modelos sexuais. Nesta nova compreensão da sexualidade passava-se a prestar uma atenção especial aos corpos, às suas estruturas e características materiais e físicas. Antes, a explicação para as formas de relacionamento entre mulheres e homens e para as diferenças percebidas entre eles era buscada na Bíblia, nos textos sagrados; as diferenças eram, enfim, vinculadas a uma dimensão cósmica mais ampla. O corpo tinha menos importância. Mas agora ele passava a ter um papel primordial. Como diz Linda Nicholson ( 000), o corpo se tornou causa e justificativa das diferenças. O corpo passou a ser aquilo que dá origem às diferenças. O que temos aqui, então, é a constituição de uma nova episteme, de um outro conjunto de regras ou de formas de compreender e dar sentido ao mundo. Novos saberes, novas verdades são instituídas. Como parte desse contexto – aliás como parte especialmente importante – foram sendo construídas novas formas de representar e dar significado ao homem e à mulher, às suas relações, à sexualidade. 87

Tais mudanças não são nada banais: elas são constituídas e constituintes de outras estratégias e relações de poder. Como os novos Estados nacionais estarão agora, mais do que antes, preocupados em controlar suas populações e garantir sua produtividade, seus governantes vão investir numa série de medidas voltadas para a vida: passam a disciplinar a família e a ter especial cuidado com a reprodução e as práticas sexuais. É importante prestar atenção em quem, neste contexto, tem autoridade para afirmar a verdade e quem será o alvo preferencial de ação dos governos. Ao final do século XIX, serão homens, médicos e também filósofos, moralistas e pensadores (das grandes nações da Europa) que vão fazer as mais importantes “descobertas” e definições sobre os corpos de homens e mulheres. Será o seu olhar “autorizado” que irá estabelecer as diferenças relevantes entre sujeitos e práticas sexuais, classificando uns e outros a partir do ponto de vista da saúde, da moral e da higiene. Não é de estranhar, pois, que a linguagem e a ótica empregadas em tais definições sejam marcadamente masculinas; que as mulheres sejam concebidas como portadoras de uma sexualidade ambígua, escorregadia e potencialmente perigosa; que os comportamentos das classes média e alta dos grupos brancos das sociedades urbanas ocidentais tenham se constituído na referência para estabelecer o que era ou não apropriado, saudável ou bom. Nascia a sexologia. Inventavam-se tipos sexuais, decidia-se o que era normal ou patológico e esses tipos passavam a ser hierarquizados. Buscava-se tenazmente conhecer, explicar, identificar e também classificar, dividir, regrar e disciplinar a sexualidade. Tais discursos, carregados da autoridade da ciência, gozavam do estatuto de verdade e se confrontavam ou se combinavam com os discursos da igreja, da moral e da lei. É nesse contexto que surge o homossexual e a homossexualidade. Práticas afetivas e sexuais exercidas entre pessoas de mesmo sexo (que sempre existiram em todas as sociedades) ganham agora uma nova conotação. Não serão mais compreendidas, como eram até então, como um acidente, um pecado eventual, um erro ou uma falta a que qualquer um poderia incorrer, pelo menos potencialmente. Por certo, em muitas sociedades, aqueles que incorriam nessa falha mereciam ser punidos, e o perdão lhes era concedido a duras penas (quando era!). No entanto, agora tais práticas passam a ser compreendidas de um modo bem distinto. Entende-se que elas revelam uma verdade oculta do sujeito. O homossexual não era simplesmente um sujeito qualquer que caiu em pecado, ele se constituía num sujeito de outra espécie. Para este tipo de sujeito, haveria que inventar e pôr em execução toda uma seqüência de ações: punitivas ou recuperadoras, de reclusão ou de regeneração, de ordem jurídica, religiosa ou educativa. 88

para os indivíduos. Na verdade, o processo já vinha se desenrolando há algum tempo,<br />

desde o século XVIII, pelo menos: transformações políticas, culturais, sociais<br />

e econômicas articuladas ao industrialismo e à revolução burguesa, acompanhadas<br />

por uma outra divisão <strong>sexual</strong> do trabalho e pela circulação de idéias de caráter<br />

feminista, foram constituindo todo um conjunto de condições para que os corpos,<br />

a <strong>sexual</strong>idade e a existência de homens e mulheres fossem significados de outro<br />

modo. Laqueur ( 990) diz que se construiu por essa época um novo corpo sexuado.<br />

Mas alerta: não seria adequado afirmar que qualquer um desses eventos “provocou a<br />

construção desse novo corpo sexuado”, em vez disso seria importante lembrar que “a<br />

reconstrução do corpo é, ela própria, intrínseca a cada um desses desenvolvimentos”<br />

(LAQUEUR, 990: ).<br />

Este estudioso conta que até o início do século XIX as sociedades ocidentais<br />

tinham um modelo <strong>sexual</strong> que hierarquizava os sujeitos ao longo de um único eixo,<br />

cujo vértice era o masculino. Entendia-se que os corpos de mulheres e de homens<br />

diferiam em “graus” de perfeição; a “verdade” era que as mulheres tinham “dentro de<br />

seu corpo” os mesmo órgãos genitais que os homens tinham exter<strong>na</strong>mente. Em outras<br />

palavras, afirmava-se, cientificamente, que “as mulheres eram essencialmente homens<br />

nos quais uma falta de calor vital – de perfeição – havia resultado <strong>na</strong> retenção,<br />

inter<strong>na</strong>, de estruturas que nos machos eram visíveis” (ibid.: 4). A substituição desse<br />

modelo (de um único sexo) pelo modelo de dois sexos opostos (que é o modelo que<br />

até hoje prevalece) não foi um processo simples nem linear. Essa transformação de<br />

ordem epistemológica – e também política, é claro – se deu junto com todo aquele<br />

conjunto de transformações já mencio<strong>na</strong>das. E, por um largo tempo, houve embate<br />

e disputa entre esses modelos sexuais.<br />

Nesta nova compreensão da <strong>sexual</strong>idade passava-se a prestar uma atenção<br />

especial aos corpos, às suas estruturas e características materiais e físicas. Antes,<br />

a explicação para as formas de relacio<strong>na</strong>mento entre mulheres e homens e para<br />

as diferenças percebidas entre eles era buscada <strong>na</strong> Bíblia, nos textos sagrados; as<br />

diferenças eram, enfim, vinculadas a uma dimensão cósmica mais ampla. O corpo<br />

tinha menos importância. Mas agora ele passava a ter um papel primordial. Como<br />

diz Linda Nicholson ( 000), o corpo se tornou causa e justificativa das diferenças.<br />

O corpo passou a ser aquilo que dá origem às diferenças.<br />

O que temos aqui, então, é a constituição de uma nova episteme, de um outro<br />

conjunto de regras ou de formas de compreender e dar sentido ao mundo. Novos<br />

saberes, novas verdades são instituídas. Como parte desse contexto – aliás como<br />

parte especialmente importante – foram sendo construídas novas formas de representar<br />

e dar significado ao homem e à mulher, às suas relações, à <strong>sexual</strong>idade.<br />

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