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Heteronormatividade e Homofobia Guacira Lopes Louro* Um diário, escrito no século XIX, é descoberto muitos anos depois. Tratase das memórias de um jovem hermafrodita que narra suas poucas alegrias e suas muitas tristezas e angústias ao longo da curta vida. Herculine Barbin é inicialmente criada como uma moça, Alexina, no interior de um internato feminino católico e, posteriormente, é reconhecido como um rapaz e se vê obrigado a trocar de sexo. As humilhações e o drama que experimenta neste processo acabam por levá-lo ao suicídio. A história talvez não seja tão extraordinária ou incomum, mas o fato é que as memórias desse/a jovem acabaram sendo publicadas, já em pleno século XX, precedidas de um texto de Michel Foucault. Apesar de toda a curiosidade que pode cercar o diário de Alexina/Herculine, o que me interessa particularmente explorar, neste momento, é o pequeno prefácio de Foucault ou, mais precisamente, aproveitar sua pergunta inicial. Escreve Foucault: “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo?”. E continua, respondendo em seguida: “Com uma constância que chega às raias da teimosia, as sociedades do ocidente moderno responderam afirmativamente a essa pergunta” (FOUCAULT, 98 ). * Licenciada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1969), Mestre em Educação pela mesma universidade (1976) e Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (1986). Professora Titular aposentada da UFRGS, onde atua como colaboradora convidada no Programa de Pósgraduação em Educação, na Linha de Pesquisa Educação, Sexualidade e Relações de Gênero. Fundadora do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero.

Neste pequeníssimo trecho já se colocam duas expressões que me parecem especialmente instigantes: o sexo e a verdade. Por um lado, ao encaminhar uma resposta à pergunta que propôs, Foucault indica de forma categórica que o sexo se constituiu em uma questão não só importante, mas perturbadora e decisiva para as sociedades ocidentais. Por outro lado, ele propõe a questão da verdade. Vale dizer que o filósofo teve o cuidado de destacar graficamente neste prefácio o advérbio verdadeiramente e o adjetivo verdadeiro. Ainda que não seja possível afirmar com segurança porque ele fez isso, parece razoável supor que ele quisesse nos lembrar que colocava essas expressões sob suspeita. Seguindo seu pensamento, poderíamos dizer que uma “verdade” só aparece quando pode aparecer. Em um dado momento, um conjunto de circunstâncias se combina e possibilita que algo seja admitido como verdade. Esse conjunto de circunstâncias está atravessado e ordenado por relações de poder. Sendo assim, é possível compreender que determinadas relações de poder permitem que determinadas “verdades” (e não outras) apareçam. Daí que os saberes ou os enunciados “verdadeiros” em torno dos quais vivemos e com os quais lidamos cotidianamente precisam ser analisados em função das estratégias de poder que os sustentam. Isto vale para as teorias, as leis ou as regras do passado, mas deve valer também para aquelas que hoje abraçamos, para aquelas que nos mobilizam e nas quais apostamos. É claro que é mais fácil assumir uma postura crítica em relação ao passado. É provável que possamos entender que determinadas estratégias e tecnologias de poder estão articuladas na constituição dos discursos “científicos” antigos; por exemplo, discursos que “comprovavam” que tais e tais sujeitos ou que tais e tais práticas eram sadios ou doentes, positivos ou negativos. Foi e é assim que se produziram e se produzem discursos jurídicos, religiosos, educativos, psicológicos que mostram ou tornam evidente os sujeitos e as práticas que são bons ou que são maus, integrados ou desintegrados, produtivos ou prejudiciais para o conjunto da sociedade. Determinadas relações e estratégias de poder sustentam-se através desses saberes e “verdades”; elas precisam desses discursos para se tornarem evidentes o que, paradoxalmente, faz com que essas relações de poder se tornem invisíveis. Não há como negar (e todos podemos lembrar situações para comprovar isso!) que quanto menos for notada ou quanto mais for invisível uma relação de poder mais ela será eficiente. Num determinado momento (numa perspectiva foucaultiana, esse momento seria compreendido como o século XIX ou, mais especialmente, na metade final daquele século), passou-se a prestar uma especialíssima atenção à definição da sexualidade. A sexualidade tornou-se uma questão central para os Estados e também 86

Heteronormatividade<br />

e Homofobia<br />

Guacira Lopes Louro*<br />

Um diário, escrito no século XIX, é descoberto muitos anos depois. Tratase<br />

das memórias de um jovem hermafrodita que <strong>na</strong>rra suas poucas alegrias<br />

e suas muitas tristezas e angústias ao longo da curta vida. Herculine<br />

Barbin é inicialmente criada como uma moça, Alexi<strong>na</strong>, no interior<br />

de um inter<strong>na</strong>to feminino católico e, posteriormente, é reconhecido como um rapaz<br />

e se vê obrigado a trocar de sexo. As humilhações e o drama que experimenta neste<br />

processo acabam por levá-lo ao suicídio. A história talvez não seja tão extraordinária<br />

ou incomum, mas o fato é que as memórias desse/a jovem acabaram sendo publicadas,<br />

já em pleno século XX, precedidas de um texto de Michel Foucault.<br />

Apesar de toda a curiosidade que pode cercar o diário de Alexi<strong>na</strong>/Herculine,<br />

o que me interessa particularmente explorar, neste momento, é o pequeno prefácio<br />

de Foucault ou, mais precisamente, aproveitar sua pergunta inicial. Escreve Foucault:<br />

“Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo?”. E continua, respondendo em<br />

seguida: “Com uma constância que chega às raias da teimosia, as sociedades do ocidente<br />

moderno responderam afirmativamente a essa pergunta” (FOUCAULT, 98 ).<br />

* Licenciada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1969), Mestre em Educação pela<br />

mesma universidade (1976) e Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campi<strong>na</strong>s (1986).<br />

Professora Titular aposentada da UFRGS, onde atua como colaboradora convidada no Programa de Pósgraduação<br />

em Educação, <strong>na</strong> Linha de Pesquisa Educação, Sexualidade e Relações de Gênero. Fundadora<br />

do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero.

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