Diversidade sexual na educação ... - unesdoc - Unesco

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418 – e com o qual nos identificamos sem saber –, perdem-se os limites entre o real e o imaginário [...]. Reconhecer o estrangeiro em nós mesmos nos revela um país desconhecido onde fronteiras são, permanentemente, construídas e desfeitas. Não se trata, pois, de “integrar” o estrangeiro e, ainda menos, persegui-lo, mas de acolhê-lo, neste inquietante estranhamento que é tanto o seu quanto o nosso [...]. Trata-se de um cosmopolitismo de tipo novo, transverso a governos, economias e mercados – aquele que instala em nós a diferença como condição de nosso estar com os outros. Disso resulta a ampliação de nossa identidade. [...] significa aprender um pensamento eclético e plural que recusa a lógica binária das ortodoxias (MATOS, 00 : - ). É preciso então desestabilizar construções que dependam de oposições diametrais entre pares conceituais irredutíveis (eu-outro, branco-negro, homem-mulher, hetero-homossexual, puro-impuro etc.). Nesse “jogo das dicotomias polarizadas”, os dois pólos se diferem, opõem-se bipolarmente e pressupõem que cada qual seja monolítico, imutável, pronto e sem contradições internas. Uma cilada, pois tais oposições determinam uma ordem hierárquica, e tudo o que não se encaixar nitidamente nesta relação tenderá a ser marginalizado ou suprimido (BORRADORI, 004: 48). Esta polarização dicotômica carrega consigo o sinal da suposta superioridade do seu primeiro elemento, o qual permanece como medida e padrão de todo discurso dominante (LAURETIS, 98 : ). O primeiro elemento atua como “identidade-referência”, a partir da qual as identidades que dela se diferenciarem serão marcadas e constituídas como “o outro” (inferior ou marginal). A “identidadereferência” será considerada “não-problemática”, socialmente edificada como norma e, por conseguinte, sempre presumida (LOURO, 00 : 4 e 004b: 0 ). Assim, como observa Louro, desconstruir tais dicotomias constitui uma estratégia subversiva e intelectualmente fértil, pois, ao problematizar a constituição e a oposição dos pólos, descobre-se que, além de um supor e conter o outro, cada um deles não é uno, mas plural, internamente fraturado. Assim, por exemplo, “não existe a mulher, mas várias e diferentes mulheres que não são idênticas entre si, que podem ou não ser solidárias, cúmplices ou opositoras” (id., 004a: ). 151 A presunção de heterossexualidade produz um regime de invisibilidade em relação à homossexualidade. Seria importante que profissionais da educação refletissem mais cuidadosamente sobre os efeitos de invisibilização (entre outros) que a presunção de heterossexualidade gera em suas ações pedagógicas e sobre o conjunto do alunado e do próprio professorado.

A importância da desconstrução de tais dicotomias reside ainda no fato de que quanto mais um indivíduo ou grupo social distanciar-se do pólo-referência, mais desvalorizado estará em um determinado “mercado social” (ou “campo”). Isto poderá ensejar uma espiral de ulteriores discriminações entre diferentes indivíduos, grupos e subgrupos sociais também discriminados. Poderá, aliás, se fazer acompanhar, com enorme freqüência, de mecanismos de autodiscriminação. Mantendo-se intactas as normas de gênero e o padrão heteronormativo das dicotomias polarizadas, o risco é ver o “tabu da feminilização” e do “sacrilégio do masculino” (BOURDIEU, 999: 44) conduzir a ulteriores formas de discriminação e violência. Com efeito, a hipermasculinação de determinadas configurações identitárias gays (por exemplo: as “barbies”) se constrói em contraposição a atitudes, gestos, comportamentos, performances, estilos e portes físicos considerados femininos ou afeminados (discriminando-se e investindo-se simbólica e socialmente contra travestis, camps, drag-queens e outros objetivados como “pintosas”, “passivonas” etc.). Também em função desse tabu e dos esforços de exorcismo que desencadeia, derivam as “pequenas mentiras” nos sites de bate-papo e namoro na internet, nos quais um número expressivo de pessoas leva ao extremo a afirmação da virilidade, insistindo em auto-representar-se como “homem com jeito de homem”, “não afeminado” (e alguns até completam: “nada contra”), “exclusivamente ativo”, “estranho [?] ao meio” etc. (Em caso de profunda negação, a angústia resultante do “retorno do recalcado”, agravada por uma eventual discrepância entre imagem pública e auto-imagem, poderá conduzir a situações de embaraço ou até mesmo de violência). Nesse sentido, sublinhando o afastamento de qualquer proposição essencialista, concordo com Britzman ( 99 : 74) quando observa que nenhuma identidade (nem mesmo a sexual) é automática, autêntica, facilmente “assumida” 4 ou existe sem negociação ou construção. Ela vai ainda mais longe: “a identidade não é uma soma de atos singulares e conscientes, mas uma relação social aprisionada – ao 152 Para uma reflexão sobre o camp, vide o clássico SONTAG (1987) e LOPES (2002: 89-120). Sobre transgêneros, travestis e transexuais, vide: BUTLER, 2003: 192-201; BENTO, 2003, 2004 e 2006; OLIVEIRA, 1994; PERES, 2004; SILVA, 2007 e diversos artigos em LOPES, 2004: 107-151. 153 Vale lembrar que existe também uma rejeição à lésbica masculina (a butch). 154 “Sair do armário”, “assumir a condição homossexual” ou a “identidade gay” representa uma afirmação politicamente estratégica e, em certas circunstâncias, indispensável, no quadro histórico da luta por direitos civis e do enfrentamento da homofobia. No entanto, a idéia de que se possa “assumir” uma identidade sexual costuma se revestir de um caráter essencialista, como se existisse, pronto para ser assumido, o “verdadeiro homossexual” (diametralmente oposto ao “verdadeiro heterossexual”). 155 São efetuadas diversas operações sofisticadas (dotadas de mecanismos complexos, relativamente autônomos, eventualmente combinados e sempre multidimensionais) quando alguém se define (ou é definido) identitariamente (SOARES, 2001). A perspectiva psicanalítica, por sua vez, reitera que não há “nenhuma sexualidade humana estável, dada, natural ou adequada a todos os sujeitos” (COSTA, 1992: 145; 1995). 419

A importância da desconstrução de tais dicotomias reside ainda no fato de<br />

que quanto mais um indivíduo ou grupo social distanciar-se do pólo-referência,<br />

mais desvalorizado estará em um determi<strong>na</strong>do “mercado social” (ou “campo”). Isto<br />

poderá ensejar uma espiral de ulteriores discrimi<strong>na</strong>ções entre diferentes indivíduos,<br />

grupos e subgrupos sociais também discrimi<strong>na</strong>dos. Poderá, aliás, se fazer acompanhar,<br />

com enorme freqüência, de mecanismos de autodiscrimi<strong>na</strong>ção.<br />

Mantendo-se intactas as normas de gênero e o padrão heteronormativo<br />

das dicotomias polarizadas, o risco é ver o “tabu da feminilização” e do “sacrilégio<br />

do masculino” (BOURDIEU, 999: 44) conduzir a ulteriores formas<br />

de discrimi<strong>na</strong>ção e violência. Com efeito, a hipermasculi<strong>na</strong>ção de determi<strong>na</strong>das<br />

configurações identitárias gays (por exemplo: as “barbies”) se constrói em contraposição<br />

a atitudes, gestos, comportamentos, performances, estilos e portes<br />

físicos considerados femininos ou afemi<strong>na</strong>dos (discrimi<strong>na</strong>ndo-se e investindo-se<br />

simbólica e socialmente contra travestis, camps, drag-queens e outros objetivados<br />

como “pintosas”, “passivo<strong>na</strong>s” etc.). Também em função desse tabu e dos<br />

esforços de exorcismo que desencadeia, derivam as “peque<strong>na</strong>s mentiras” nos sites<br />

de bate-papo e <strong>na</strong>moro <strong>na</strong> internet, nos quais um número expressivo de pessoas<br />

leva ao extremo a afirmação da virilidade, insistindo em auto-representar-se<br />

como “homem com jeito de homem”, “não afemi<strong>na</strong>do” (e alguns até completam:<br />

“<strong>na</strong>da contra”), “exclusivamente ativo”, “estranho [?] ao meio” etc. (Em caso de<br />

profunda negação, a angústia resultante do “retorno do recalcado”, agravada por<br />

uma eventual discrepância entre imagem pública e auto-imagem, poderá conduzir<br />

a situações de embaraço ou até mesmo de violência).<br />

Nesse sentido, sublinhando o afastamento de qualquer proposição essencialista,<br />

concordo com Britzman ( 99 : 74) quando observa que nenhuma identidade<br />

(nem mesmo a <strong>sexual</strong>) é automática, autêntica, facilmente “assumida” 4 ou existe<br />

sem negociação ou construção. Ela vai ainda mais longe: “a identidade não é<br />

uma soma de atos singulares e conscientes, mas uma relação social aprisio<strong>na</strong>da – ao<br />

152 Para uma reflexão sobre o camp, vide o clássico SONTAG (1987) e LOPES (2002: 89-120). Sobre transgêneros,<br />

travestis e transexuais, vide: BUTLER, 2003: 192-201; BENTO, 2003, 2004 e 2006; OLIVEIRA,<br />

1994; PERES, 2004; SILVA, 2007 e diversos artigos em LOPES, 2004: 107-151.<br />

153 Vale lembrar que existe também uma rejeição à lésbica masculi<strong>na</strong> (a butch).<br />

154 “Sair do armário”, “assumir a condição homos<strong>sexual</strong>” ou a “identidade gay” representa uma afirmação<br />

politicamente estratégica e, em certas circunstâncias, indispensável, no quadro histórico da luta por direitos<br />

civis e do enfrentamento da homofobia. No entanto, a idéia de que se possa “assumir” uma identidade<br />

<strong>sexual</strong> costuma se revestir de um caráter essencialista, como se existisse, pronto para ser assumido, o<br />

“verdadeiro homos<strong>sexual</strong>” (diametralmente oposto ao “verdadeiro heteros<strong>sexual</strong>”).<br />

155 São efetuadas diversas operações sofisticadas (dotadas de mecanismos complexos, relativamente autônomos,<br />

eventualmente combi<strong>na</strong>dos e sempre multidimensio<strong>na</strong>is) quando alguém se define (ou é definido)<br />

identitariamente (SOARES, 2001). A perspectiva psica<strong>na</strong>lítica, por sua vez, reitera que não há “nenhuma<br />

<strong>sexual</strong>idade huma<strong>na</strong> estável, dada, <strong>na</strong>tural ou adequada a todos os sujeitos” (COSTA, 1992: 145; 1995).<br />

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