Diversidade sexual na educação ... - unesdoc - Unesco

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anterior: todos somos iguais a alguns, ou seja, confere-se aí certo realce à identidade comunitária – ainda mais bem-vinda se imbuída de “correção política” prêt-à-porter. Por fim, termina-se dizendo que todos somos diferentes de todos, o que pode com facilidade, no cenário em questão, ou revelar-se totalmente inócuo ou resvalar para a exaltação do individualismo mais exacerbado – em ambos os casos, em sintonia com as enunciações que inspiram essa ideologia. Deriva muitas vezes daí um truísmo cada vez mais repetido: A diversidade é a regra: falar de diversidade é falar de todo mundo. Soa bem. Mas a que as boas intenções de tais afirmações conduzem quando não acompanhadas de empenho efetivo em torno da invenção de relações menos verticalizadas e de subjetividades mais democráticas, mais inconformistas, radicalmente comprometidas com a emancipação individual e coletiva? No caso, quais perfis de lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual ou intersexo as pessoas bem-pensantes estariam dispostas a acolher na escola e no mundo do trabalho em nome da litania muticulturalista liberal? Serlhes-iam asseguradas igualdade de direitos e oportunidades? Admitiriam elas, ao mesmo tempo, a hipótese de alterarmos o quadro atual de correlações de forças, produção de regras e dos princípios de visão e divisão do mundo social, com base em pressupostos voltados a garantir ao “outro” mais do que a oportunidade de um minguado “empoderamento” e bem mais do que um reconhecimento que lhe consinta apenas uma inclusão periférica em um universo social heterocêntrico? De um lado, a tensão entre identidade comum, identidade coletiva e identidade individual pode ser bastante produtiva no campo da educação. De outro, parco ou nenhum efeito transformador tenderá a apresentar se simplesmente resvalar para a assimilação do “diferente” (ancorado na condição de “idêntico”) ou para o “elogio das diferenças” – em ambos os casos, em situações em que cada um não faz mais que reiterar a ordem normativa, e os dominados se entregam a processos intensos de autovigilância. Mas pode ser ainda pior. Segundo Bauman ( 00 b: 99), as divisões e as desigualdades brutalmente geradas pelo quadro de opressão e iniqüidade têm sido freqüentemente apresentadas como expressões culturais, um “direito de toda comunidade escolher a sua forma de viver”: 414 O que a visão “culturalista” do mundo não menciona é que a desigualdade é sua própria causa mais poderosa, e que apresentar as divisões que ela gera como um aspecto inalienável da liberdade de escolha, e não como um dos maiores obstáculos a essa liberdade de escolha, é um dos principais fatores de sua perpetuação (ibid.).

Para tentar escapar dessa fetichização da diferença (evocada sob lemas extremamente cativantes), a serviço desse quadro de dominação que ela aparentemente denuncia e, involuntariamente ou não, contribui para tornar intransponível, creio ser mais prudente, instigante e produtivo procurar ter em conta a formulação pós-identitária sugerida por Denilson Lopes ( 00 : 74; 00 ), manifestamente inspirada nas teorias “queer”: Todos somos estranhos, mas não da mesma forma e intensidade. 9 Um estranhamento que, dito desse modo, não parece procurar refúgio no encapsulamento essencialista e diferencialista, mas, sem negar possíveis identidades coletivas, mostra-se corajosamente disposto a sair em busca das possibilidades de desestabilização e invenção, bem como do reconhecimento de semelhanças 40 e de multiplicidades. Um estranhamento que, dirigido inicialmente a si, parece querer acolher ou mesmo superar a “aparente estranheza do outro” (tal como dizia Montaigne), pois constantemente voltado para (re)conhecer dessemelhanças naquilo que parece homogêneo e encontrar possibilidades de convergência, encontro e diálogo com o que supomos diverso ou oposto. Não por acaso, no campo da educação, os debates desencadeados a partir das provocações e das explorações das teorias e dos movimentos “queer” parecem oferecer possibilidades bastante instigadoras e promissoras, 4 especialmente se pensadas para além de certo ceticismo pós-moderno em relação aos temas da emancipação e da transformação social e política. 4 139 A ética do estranhamento e a valorização do estranho transgressor são aspectos centrais nas teorias e nos movimentos “queer”, que se contrapõem tanto à heteronormatividade quanto à estabilidade e à normatividade da identidade homossexual. O “queer” coloca-se contra a normalização, venha ela de onde vier. Sobre o “queer”, vide: LOURO, 2001: 541-553, 2004b: 23-28 e 2004c; MUSSKOPF, 2002, 2003: 129-143 e 2004: 380-387; TURNER, 2000. Vide também artigo de Denilson Lopes neste volume. 140 Igor Stravinski (1942 [1999]) dizia que o contraste, a variedade, está em todo o lugar e que só valia enquanto busca da semelhança, pois esta, sempre escondida, parecia propor soluções mais difíceis e, ao mesmo tempo, resultados mais sólidos e preciosos. Na música, a dissonância pode se fazer harmônica. 141 “O movimento que consiste em queering a educação pode ser pensado, ainda, como um movimento que implica uma erotização dos processos de conhecer, de aprender e de ensinar. A erotização será tomada num sentido pleno e alargado, como uma energia e uma força motriz que impulsionam nossos atos cotidianos e nossa relação com os outros. [...] penso aqui num erotismo presente na sala de aula e em outros espaços educativos que se liga à curiosidade, portanto, ao desejo de saber” (LOURO, 2004c: 71-72). Nessa mesma direção vai Deborah Britzman: “Em primeiro lugar [professores/as] devem estar dispostos a estudar a postura de suas escolas e a ver como essa postura pode impedir ou tornar possíveis diálogos com outros professores e com estudantes. As professoras precisam perguntar como seu conteúdo pedagógico afeta a curiosidade do/a estudante e suas relações com os/as estudantes. Elas devem estar preparadas para serem incertas em suas explorações e terem oportunidades para explorar a extensão e os surpreendentes sintomas de sua própria ansiedade. Mas, juntamente com a análise de por que a sexualidade é tão difícil de ser discutida no conteúdo escolar, deve também haver uma disposição de parte das professoras para desenvolver sua própria coragem política, numa época em que pode não ser tão popular levantar questões sobre o cambiante conhecimento da sexualidade” (BRITZMAN, 1999: 109). 142 Dennis Altman (2006: 234-240) critica a ênfase que as teorias “queer” dão ao discurso e as considera “elitistas” por seu “primeiro-mundismo” e por sua falta de interesse nos movimentos sociais. Para Marco Aurélio Máximo Prado e Frederico Viana Machado (2008: 59), o espaço das vivências cotidianas e o espaço público institucional são “campos privilegiados para a produção de antagonismos políticos”, por isso consideram que, ao privilegiar discursos, o relativismo lingüístico queer “talvez contribua para deixarmos em segundo plano o concreto, a sexualidade encarnada, a subjetividade corporificada [...], o 415

Para tentar escapar dessa fetichização da diferença (evocada sob lemas extremamente<br />

cativantes), a serviço desse quadro de domi<strong>na</strong>ção que ela aparentemente<br />

denuncia e, involuntariamente ou não, contribui para tor<strong>na</strong>r intransponível,<br />

creio ser mais prudente, instigante e produtivo procurar ter em conta a formulação<br />

pós-identitária sugerida por Denilson Lopes ( 00 : 74; 00 ), manifestamente<br />

inspirada <strong>na</strong>s teorias “queer”: Todos somos estranhos, mas não da mesma forma e intensidade.<br />

9 Um estranhamento que, dito desse modo, não parece procurar refúgio no<br />

encapsulamento essencialista e diferencialista, mas, sem negar possíveis identidades<br />

coletivas, mostra-se corajosamente disposto a sair em busca das possibilidades de<br />

desestabilização e invenção, bem como do reconhecimento de semelhanças 40 e de<br />

multiplicidades. Um estranhamento que, dirigido inicialmente a si, parece querer<br />

acolher ou mesmo superar a “aparente estranheza do outro” (tal como dizia Montaigne),<br />

pois constantemente voltado para (re)conhecer dessemelhanças <strong>na</strong>quilo que<br />

parece homogêneo e encontrar possibilidades de convergência, encontro e diálogo<br />

com o que supomos diverso ou oposto.<br />

Não por acaso, no campo da <strong>educação</strong>, os debates desencadeados a partir das<br />

provocações e das explorações das teorias e dos movimentos “queer” parecem oferecer<br />

possibilidades bastante instigadoras e promissoras, 4 especialmente se pensadas<br />

para além de certo ceticismo pós-moderno em relação aos temas da emancipação e<br />

da transformação social e política. 4<br />

139 A ética do estranhamento e a valorização do estranho transgressor são aspectos centrais <strong>na</strong>s teorias e<br />

nos movimentos “queer”, que se contrapõem tanto à heteronormatividade quanto à estabilidade e à normatividade<br />

da identidade homos<strong>sexual</strong>. O “queer” coloca-se contra a normalização, venha ela de onde vier.<br />

Sobre o “queer”, vide: LOURO, 2001: 541-553, 2004b: 23-28 e 2004c; MUSSKOPF, 2002, 2003: 129-143 e<br />

2004: 380-387; TURNER, 2000. Vide também artigo de Denilson Lopes neste volume.<br />

140 Igor Stravinski (1942 [1999]) dizia que o contraste, a variedade, está em todo o lugar e que só valia enquanto<br />

busca da semelhança, pois esta, sempre escondida, parecia propor soluções mais difíceis e, ao<br />

mesmo tempo, resultados mais sólidos e preciosos. Na música, a dissonância pode se fazer harmônica.<br />

141 “O movimento que consiste em queering a <strong>educação</strong> pode ser pensado, ainda, como um movimento que<br />

implica uma erotização dos processos de conhecer, de aprender e de ensi<strong>na</strong>r. A erotização será tomada<br />

num sentido pleno e alargado, como uma energia e uma força motriz que impulsio<strong>na</strong>m nossos atos cotidianos<br />

e nossa relação com os outros. [...] penso aqui num erotismo presente <strong>na</strong> sala de aula e em outros<br />

espaços educativos que se liga à curiosidade, portanto, ao desejo de saber” (LOURO, 2004c: 71-72). Nessa<br />

mesma direção vai Deborah Britzman: “Em primeiro lugar [professores/as] devem estar dispostos a estudar<br />

a postura de suas escolas e a ver como essa postura pode impedir ou tor<strong>na</strong>r possíveis diálogos com<br />

outros professores e com estudantes. As professoras precisam perguntar como seu conteúdo pedagógico<br />

afeta a curiosidade do/a estudante e suas relações com os/as estudantes. Elas devem estar preparadas<br />

para serem incertas em suas explorações e terem oportunidades para explorar a extensão e os surpreendentes<br />

sintomas de sua própria ansiedade. Mas, juntamente com a análise de por que a <strong>sexual</strong>idade é tão<br />

difícil de ser discutida no conteúdo escolar, deve também haver uma disposição de parte das professoras<br />

para desenvolver sua própria coragem política, numa época em que pode não ser tão popular levantar<br />

questões sobre o cambiante conhecimento da <strong>sexual</strong>idade” (BRITZMAN, 1999: 109).<br />

142 Dennis Altman (2006: 234-240) critica a ênfase que as teorias “queer” dão ao discurso e as considera<br />

“elitistas” por seu “primeiro-mundismo” e por sua falta de interesse nos movimentos sociais. Para Marco<br />

Aurélio Máximo Prado e Frederico Via<strong>na</strong> Machado (2008: 59), o espaço das vivências cotidia<strong>na</strong>s e<br />

o espaço público institucio<strong>na</strong>l são “campos privilegiados para a produção de antagonismos políticos”,<br />

por isso consideram que, ao privilegiar discursos, o relativismo lingüístico queer “talvez contribua para<br />

deixarmos em segundo plano o concreto, a <strong>sexual</strong>idade encar<strong>na</strong>da, a subjetividade corporificada [...], o<br />

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