Diversidade sexual na educação ... - unesdoc - Unesco

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tal. 97 Justamente o contrário: de acordo com Bourdieu ( 99 : ), “as realidades sociais são ficções sociais cujo único fundamento é o da construção social, [...] as quais, à medida que são reconhecidas coletivamente, passam a existir realmente”. A diferença existe sócio-historicamente e é sócio-historicamente elaborada, percebida e vivenciada, no âmbito de relações assimétricas e desiguais (que, por sua vez, não apenas presidem a produção da diferença, mas que podem transformá-la em ulteriores fontes de desigualdades e iniqüidades). 98 Nesse sentido, vale lembrar do que observa Tomaz Tadeu da Silva acerca da perspectiva liberal, centrada apenas no “respeito” e na “tolerância” à diferença: 398 Apesar de seu impulso aparentemente generoso, a idéia de tolerância [...] implica também uma certa superioridade por parte de quem mostra “tolerância”. [...] a noção de respeito implica um certo essencialismo cultural, pelo qual as diferenças culturais são vistas como fixas, como já definitivamente estabelecidas, restando apenas “respeitá-las”. [...] As diferenças não devem ser simplesmente respeitadas ou toleradas. Na medida em que estão sendo constantemente feitas e refeitas, o que se deve focalizar são precisamente as relações de poder que presidem sua produção. [...] Num currículo multiculturalista crítico, a diferença, mais do que tolerada ou respeitada, é colocada permanentemente em questão (SILVA, 00 : 88-89). O reconhecimento e o respeito à diferença, tal como aqui entendidos, não autorizam desconsiderá-la com uma produção e tampouco impedem de analisar as relações de poder e os processos de elaboração, circulação e modificação de representações sociais no âmbito dos quais ela é engendrada, adquire sentido e é mais ou menos “respeitada”. Respeitar ou reconhecer a diferença significa aqui considerar as histórias, as necessidades, as reivindicações e as especificidades de indivíduos ou grupos e, ao lado disso, considerar as circunstâncias sociais, políticas e históricas da produção da diferença, as relações assimétricas que nortearam e nor- 97 Como lembra Bourdieu (1998b: 25), afirmar que a realidade social é socialmente construída é “uma proposição fundamental da ciência social clássica, não uma descoberta recente e um monopólio do chamado pós-modernismo”. Além disso, essa construção não é desencadeada de maneira adâmica: “Homens e mulheres constroem o mundo social [...] com formas e categorias que são [anteriormente] construídas pelo mundo; categorias que eles nem escolhem nem fazem e das quais não são os sujeitos” (ibid.: 23). 98 Sobre a produção social da diferença, vide, por ex.: WIEVIORKA, 2003: 101-131. Para uma distinção entre desigualdade e exclusão, vide: SANTOS, 2006: 280-283.

teiam sua produção e os conjuntos de representações sociais em circulação. 99 Por conseguinte, em nome do reconhecimento e do respeito à diferença, não podemos nos sentir desobrigados de exercer a crítica aos processos em que, no curso de sua construção, distinções, fronteiras e hierarquizações são propostas, impostas ou mantidas, e semelhanças são negadas e convergências, desestimuladas. Se renunciarmos a isso, poderemos contribuir, mesmo que involuntariamente, para o surgimento de novas desigualdades e opressões sociais, que passariam a conviver ao lado das velhas. Estas não só persistiriam, mas seriam revitalizadas, pois ulteriormente reconhecidas como legítimas. 00 Dito isso, devo sublinhar que a postura aqui defendida procura não se confundir com o bom-mocismo bem-pensante do “politicamente correto” e nem o percebe como discurso necessariamente contra-hegemônico. Onde residiria o caráter insurgente de um conjunto de normas e ritos fundados em um multiculturalismo que pressupõe a idéia de uma cultura central em relação à qual o “outro” poderia limitadamente se afirmar? O “politicamente correto” plastifica a diversidade (BASCETTA, 007: ) e, conforme nota Umberto Eco, está a ponto de se tornar uma nova modalidade de fundamentalismo restrito a “uma forma ritualística da linguagem cotidiana, quase litúrgica, que trabalha com a letra sem se preocupar com o espírito” (ECO, 000: ). Segundo ele, a “correção política” expressa mais uma preocupação em se transmitir uma imagem de “polida tolerância” em vez de ser o resultado de um efetivo engajamento em um profundo questionamento de princípios balizadores de idéias e condutas opressivas e hierarquizantes por parte dos dominantes. Limitar-se à economia do vocábulo significa esquecer que, além de não existir palavra neutra para se falar do mundo social, a mesma palavra não significa a mesma coisa dependendo de quem a pronuncia (BOURDIEU, 980 [ 98 b: 7 ]). As interações lingüísticas são atos de poder, e as formas que assumem dependerão substancialmente de coordenadas de diversos tipos (sexo, instrução, classe social etc) que intervêm na determinação das estruturas objetivas dessas interações (id., 99 : 09). Nesse sentido, o “politicamente correto” pode se prestar àquilo que Bourdieu, 99 Como representações naturalizantes costumam ser bastante acionadas, vale ressaltar que, na produção da diferença de orientação sexual, nunca houve “um homoerotismo puro, livre de coerções ideológicas e representante da autêntica essência do sexual”. Ou seja: “a atual divisão dos homens em homossexuais e heterossexuais é tão arbitrária e datada quanto qualquer outra” (COSTA, 1992: 44). 100 É preciso não esquecer que o reconhecimento da legitimidade de uma manifestação cultural ou de uma situação sociopolítica não se dá fora de um contexto de percepções, significados e de correlações de forças: “[...] o reconhecimento da legitimidade não é, como acredita Weber, um ato livre da consciência clara; ele está enraizado no acordo imediato entre as estruturas incorporadas, convertidas em esquemas práticos [do habitus] [...] e as estruturas objetivas [do campo]” (BOURDIEU, 2001: 215). Vide: id., 1998c: 107-132. 399

teiam sua produção e os conjuntos de representações sociais em circulação. 99<br />

Por conseguinte, em nome do reconhecimento e do respeito à diferença, não<br />

podemos nos sentir desobrigados de exercer a crítica aos processos em que,<br />

no curso de sua construção, distinções, fronteiras e hierarquizações são propostas,<br />

impostas ou mantidas, e semelhanças são negadas e convergências,<br />

desestimuladas. Se renunciarmos a isso, poderemos contribuir, mesmo que<br />

involuntariamente, para o surgimento de novas desigualdades e opressões sociais,<br />

que passariam a conviver ao lado das velhas. Estas não só persistiriam,<br />

mas seriam revitalizadas, pois ulteriormente reconhecidas como legítimas. 00<br />

Dito isso, devo sublinhar que a postura aqui defendida procura não se<br />

confundir com o bom-mocismo bem-pensante do “politicamente correto” e nem<br />

o percebe como discurso necessariamente contra-hegemônico. Onde residiria o<br />

caráter insurgente de um conjunto de normas e ritos fundados em um multiculturalismo<br />

que pressupõe a idéia de uma cultura central em relação à qual o<br />

“outro” poderia limitadamente se afirmar? O “politicamente correto” plastifica a<br />

diversidade (BASCETTA, 007: ) e, conforme nota Umberto Eco, está a ponto<br />

de se tor<strong>na</strong>r uma nova modalidade de fundamentalismo restrito a “uma forma ritualística<br />

da linguagem cotidia<strong>na</strong>, quase litúrgica, que trabalha com a letra sem se<br />

preocupar com o espírito” (ECO, 000: ). Segundo ele, a “correção política” expressa<br />

mais uma preocupação em se transmitir uma imagem de “polida tolerância”<br />

em vez de ser o resultado de um efetivo engajamento em um profundo questio<strong>na</strong>mento<br />

de princípios balizadores de idéias e condutas opressivas e hierarquizantes<br />

por parte dos domi<strong>na</strong>ntes.<br />

Limitar-se à economia do vocábulo significa esquecer que, além de não existir<br />

palavra neutra para se falar do mundo social, a mesma palavra não significa a<br />

mesma coisa dependendo de quem a pronuncia (BOURDIEU, 980 [ 98 b: 7 ]).<br />

As interações lingüísticas são atos de poder, e as formas que assumem dependerão<br />

substancialmente de coorde<strong>na</strong>das de diversos tipos (sexo, instrução, classe social etc)<br />

que intervêm <strong>na</strong> determi<strong>na</strong>ção das estruturas objetivas dessas interações (id., 99 :<br />

09). Nesse sentido, o “politicamente correto” pode se prestar àquilo que Bourdieu,<br />

99 Como representações <strong>na</strong>turalizantes costumam ser bastante acio<strong>na</strong>das, vale ressaltar que, <strong>na</strong> produção<br />

da diferença de orientação <strong>sexual</strong>, nunca houve “um homoerotismo puro, livre de coerções ideológicas e<br />

representante da autêntica essência do <strong>sexual</strong>”. Ou seja: “a atual divisão dos homens em homossexuais e<br />

heterossexuais é tão arbitrária e datada quanto qualquer outra” (COSTA, 1992: 44).<br />

100 É preciso não esquecer que o reconhecimento da legitimidade de uma manifestação cultural ou<br />

de uma situação sociopolítica não se dá fora de um contexto de percepções, significados e de correlações<br />

de forças: “[...] o reconhecimento da legitimidade não é, como acredita Weber, um ato livre da<br />

consciência clara; ele está enraizado no acordo imediato entre as estruturas incorporadas, convertidas<br />

em esquemas práticos [do habitus] [...] e as estruturas objetivas [do campo]” (BOURDIEU, 2001: 215).<br />

Vide: id., 1998c: 107-132.<br />

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