Diversidade sexual na educação ... - unesdoc - Unesco

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plinas voltadas para domesticar a pluralidade e a multiplicidade de corpos, olhares, identidades, vivências, afetos, desejos, prazeres e sentidos. “Respeito à diferença” ou “elogio à diferença”? Com o intuito de buscar conferir certa nitidez – e evitar simpatias imerecidas –, creio oportuno sublinhar minhas distâncias das “políticas de identidade” 90 e do “multiculturalismo liberal” (conservador), ambos calcados no reducionismo, na vitimização, 9 e, quase sempre, no fomento ao ódio maniqueísta. 9 Por preconizarem identidades fixas, essencializadas, exacerbadas, diferencialistas, a-históricas, ali o gênero humano corre o risco de ser reduzido a uma parca soma de particularismos excludentes, produzidos a partir da eleição arbitrária de alguns possíveis ou supostos atributos. As diferenças tendem então a ser erigidas à condição de fetiche, 9 sem que se atente aos múltiplos nexos entre as relações de poder e os processos discriminatórios que também elas desencadeiam ou realimentam. 94 Não surpreende que, com freqüência, os posicionamentos baseados nesses pressupostos pautem-se pelo acirramento de tensões relativas ao convívio entre as diferenças e pela verticalização das agendas políticas de determinados grupos e movimentos (que podem propugnar novas rotulações e, com a colaboração do Estado, conduzir seus protagonistas a promoverem hierarquizações opressivas e submeter os integrantes do grupo a ulteriores e asfixiantes formas de controle). A tônica é 90 “A política de identidade era o que definia esses movimentos marcados por uma preocupação profunda pela identidade, o que ela significa, como ela é produzida e como é contestada. A política de identidade concentra-se em afirmar a identidade cultural das pessoas que pertencem a um determinado grupo oprimido ou marginalizado. Essa identidade torna-se assim um fator importante de mobilização política. Essa política envolve a celebração da singularidade cultural de um determinado grupo, bem como a análise de sua opressão específica” (WOODWARD, 2000: 34). 91 Criticar a vitimização não equivale a promover a negação da existência objetiva de vítimas e de dor daqueles que conseguiram sobreviver de algum modo. Criticá-la tampouco autoriza o abandono da atribuição de responsabilidades específicas a instituições e a indivíduos envolvidos. Implacáveis críticos do maniqueísmo vitimista, Hannah Arendt (1965 [1983]) e Slavoj Žižek (2003) exigem, de maneira inequívoca, punição a responsáveis por crimes de ódio – inclusive aos que alegam que “só cumpriam ordens”. 92 A feminista Rossana Rossanda (1996: 176) faz críticas aos processos de judicialização conexos à defesa do direito à diferença: “Mandar tudo para o tribunal, além de atribuir aos magistrados um papel de árbitros da política e da moral que não é o deles, significa dar a todas as relações sociais e pessoais um valor de troca. A cada perda sofrida se identifica um preço ou uma pena [...] em reembolso ou em sofrimento. Assim, o momento da justiça torna-se o da administração pública da ética, e a ética fica reduzida a código penal, ordem e/ou vingança. [...] A sociedade desaparece sob os sentimentos e ressentimentos privados. E ressentimentos se ressarcem: em dinheiro ou cárcere”. Isso tende a ser mais verdadeiro nos contextos em que todo indivíduo pode ser transformado em “vítima expiatória de um erro sempre imputável a um outro”, segundo a fórmula “Sofro, logo acuso” (ROUDINESCO, 2000: 146). Vide: ENZENSBERGER, 2007; BASCETTA, 2007, RIBEIRO, 2000a: 26-44.. 93 Sobre a fetichização da diferença, vide: ROUDINESCO, 2000: 145-149. 94 Edward Saïd (2000 [2003: 123]) alerta que os processos de fetichização e de celebração implacável da “diferença” e da “alteridade”, apesar de todas as declarações de relativismo que os acompanham, “não pode[m] ser distinguido[s] com facilidade do processo do império”. 396

conservadora, e a tendência é produzir ou revigorar disposições normativas, desestimular a formação de alianças, dificultar a concepção de projetos transformadores e desencadear novas exclusões. Com efeito, observa Rita Laura Segato ( 00 : 49), com freqüência, as lutas pelo reconhecimento de direitos à diferença a partir da perspectiva das “políticas de identidade” termina por se reduzir a meros “recursos de admissão” dentro do sistema, perdendo-se de vista a necessidade de se questionar e transformá-lo. No limite, não se trata de uma busca do reconhecimento da legitimidade da diferença, mas de esforços para obter “acesso aos instrumentos de (re)produção das classes médias e superiores [...], em um contexto de descompromisso maciço e multiforme do Estado” (BOURDIEU, 998a: 9). Ademais, não raro, no curso dessas lutas, o acirramento das tensões, a verticalização das agendas, o patrulhamento e o eventual fomento ao ódio e ao desejo de vingança dificultam (ou impossibilitam) a constituição de alianças (sobretudo as não meramente oportunistas) e criam barreiras para a crítica das relações e dos efeitos de poder que a própria luta (supostamente por reconhecimento e emancipação) pode engendrar. 9 Assim, quando aqui me referir à importância de reconhecermos a legitimidade da diversidade e da diferença ou respeitarmos a diferença, não tomo a diversidade ou a diferença como realidades naturais, congênitas, imutáveis, pré-discursivas e impossíveis de serem analisadas, questionadas e transformadas. 9 Procurar entender a diferença como construção social e histórica não comporta colocá-la sob ameaça e nem dizer que ela não exista e não seja percebida e vivenciada enquanto 95 Seria necessário investigar mais a fundo os nexos entre políticas de identidade, seus acirramentos e a adoção de uma peculiar modalidade de reconhecimento: o “reconhecimento pós-moderno” (COHEN, 2002: 326-328). Diferentemente da celebração da paz entre dois grupos, trata-se de uma estratégia por meio da qual atrocidades perpetradas “no passado”, em vez de simplesmente negadas, são admitidas de maneira racionada e inócua, em cerimônias midiáticas, nas quais se demonstra certo arrependimento, pede-se perdão coletivo, promove-se um exorcismo instantâneo e virtual de um “passado irrepetível”. A partir desse reconhecimento, creio possível identificar duas distintas posturas da parte dos que o promoveram. A primeira é apresentar o passado como algo em relação ao qual o presente não possui vínculos. Torna-se assim “ilegítimo” qualquer questionamento acerca das condições atuais de opressão que tenha por base a história (afinal, aquilo “ficou no passado”). A segunda é perceber tais condições unicamente como “herança” daqueles eventos “irrepetíveis”, de modo que atribuir responsabilidades às políticas mais recentes sobre o agravamento do quadro de opressão é considerado equivocado e desonesto. Em tempo: por mais que tais celebrações estejam em voga, desconheço a ocorrência de semelhante pedido de desculpas dirigido a “homossexuais” da parte de instituições ou governos. Se vier, dificilmente valerá o tempo da espera. 96 São muitas as possibilidades de promover reconhecimento e são tantas as formas de manifestá-lo. Em função dos limites deste artigo, ao longo dele, atenho-me a assinalar determinadas insuficiências e equívocos de algumas modalidades de política de reconhecimento em voga. Para um estudo sobre distintas formas de manifestação de reconhecimento, vide COHEN (2002: 304-328). Vale ainda lembrar que o termo “reconhecer” é rico em significados: conhecer, conhecer de novo, identificar, discernir, aceitar, admitir, confessar, constatar, aprovar, respeitar, legitimar, autenticar, certificar, proclamar, mostrar-se agradecido, perfilhar, caracterizar, declarar-se, observar, inspecionar, explorar um território de modo acurado etc. 397

pli<strong>na</strong>s voltadas para domesticar a pluralidade e a multiplicidade de corpos, olhares,<br />

identidades, vivências, afetos, desejos, prazeres e sentidos.<br />

“Respeito à diferença” ou “elogio à diferença”?<br />

Com o intuito de buscar conferir certa nitidez – e evitar simpatias imerecidas<br />

–, creio oportuno sublinhar minhas distâncias das “políticas de identidade” 90 e<br />

do “multiculturalismo liberal” (conservador), ambos calcados no reducionismo, <strong>na</strong><br />

vitimização, 9 e, quase sempre, no fomento ao ódio maniqueísta. 9 Por preconizarem<br />

identidades fixas, essencializadas, exacerbadas, diferencialistas, a-históricas, ali o<br />

gênero humano corre o risco de ser reduzido a uma parca soma de particularismos<br />

excludentes, produzidos a partir da eleição arbitrária de alguns possíveis ou supostos<br />

atributos. As diferenças tendem então a ser erigidas à condição de fetiche, 9 sem<br />

que se atente aos múltiplos nexos entre as relações de poder e os processos discrimi<strong>na</strong>tórios<br />

que também elas desencadeiam ou realimentam. 94<br />

Não surpreende que, com freqüência, os posicio<strong>na</strong>mentos baseados nesses<br />

pressupostos pautem-se pelo acirramento de tensões relativas ao convívio entre as<br />

diferenças e pela verticalização das agendas políticas de determi<strong>na</strong>dos grupos e movimentos<br />

(que podem propug<strong>na</strong>r novas rotulações e, com a colaboração do Estado,<br />

conduzir seus protagonistas a promoverem hierarquizações opressivas e submeter<br />

os integrantes do grupo a ulteriores e asfixiantes formas de controle). A tônica é<br />

90 “A política de identidade era o que definia esses movimentos marcados por uma preocupação profunda<br />

pela identidade, o que ela significa, como ela é produzida e como é contestada. A política de identidade<br />

concentra-se em afirmar a identidade cultural das pessoas que pertencem a um determi<strong>na</strong>do grupo oprimido<br />

ou margi<strong>na</strong>lizado. Essa identidade tor<strong>na</strong>-se assim um fator importante de mobilização política. Essa<br />

política envolve a celebração da singularidade cultural de um determi<strong>na</strong>do grupo, bem como a análise de<br />

sua opressão específica” (WOODWARD, 2000: 34).<br />

91 Criticar a vitimização não equivale a promover a negação da existência objetiva de vítimas e de dor daqueles<br />

que conseguiram sobreviver de algum modo. Criticá-la tampouco autoriza o abandono da atribuição de<br />

responsabilidades específicas a instituições e a indivíduos envolvidos. Implacáveis críticos do maniqueísmo<br />

vitimista, Han<strong>na</strong>h Arendt (1965 [1983]) e Slavoj Žižek (2003) exigem, de maneira inequívoca, punição<br />

a responsáveis por crimes de ódio – inclusive aos que alegam que “só cumpriam ordens”.<br />

92 A feminista Rossa<strong>na</strong> Rossanda (1996: 176) faz críticas aos processos de judicialização conexos à defesa<br />

do direito à diferença: “Mandar tudo para o tribu<strong>na</strong>l, além de atribuir aos magistrados um papel de árbitros<br />

da política e da moral que não é o deles, significa dar a todas as relações sociais e pessoais um valor<br />

de troca. A cada perda sofrida se identifica um preço ou uma pe<strong>na</strong> [...] em reembolso ou em sofrimento.<br />

Assim, o momento da justiça tor<strong>na</strong>-se o da administração pública da ética, e a ética fica reduzida a código<br />

pe<strong>na</strong>l, ordem e/ou vingança. [...] A sociedade desaparece sob os sentimentos e ressentimentos privados.<br />

E ressentimentos se ressarcem: em dinheiro ou cárcere”. Isso tende a ser mais verdadeiro nos contextos<br />

em que todo indivíduo pode ser transformado em “vítima expiatória de um erro sempre imputável a um<br />

outro”, segundo a fórmula “Sofro, logo acuso” (ROUDINESCO, 2000: 146). Vide: ENZENSBERGER, 2007;<br />

BASCETTA, 2007, RIBEIRO, 2000a: 26-44..<br />

93 Sobre a fetichização da diferença, vide: ROUDINESCO, 2000: 145-149.<br />

94 Edward Saïd (2000 [2003: 123]) alerta que os processos de fetichização e de celebração implacável da<br />

“diferença” e da “alteridade”, apesar de todas as declarações de relativismo que os acompanham, “não<br />

pode[m] ser distinguido[s] com facilidade do processo do império”.<br />

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