Diversidade sexual na educação ... - unesdoc - Unesco
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de John Boswell ( 980: ), segundo quem anti-semitismo e homofobia sempre estiveram juntos na história européia: as mesmas leis que oprimiram judeus, discriminaram homossexuais; os mesmos grupos que pretenderam eliminar os primeiros, perseguiram igualmente os segundos, usando-se contra ambos idênticos métodos de propaganda. Se, por um lado, tal afirmação pode soar linear para alguns; por outro, é difícil desconsiderar os nexos entre homofobia e anti-semitismo ao longo (e a partir) de uma importante mudança ocorrida entre os séculos XVIII e XIX, apontada por Hannah Arendt ( 9 [ 99 : - ]): as noções de “crime” de prática do judaísmo ou da sodomia foram simultaneamente transformadas em “vício” de ser judeu ou de ser homossexual. Dois vícios considerados semelhantes, praticamente equivalentes, resultantes da condição psicológica intrínseca de indivíduos naturalmente predestinados a cometer determinados crimes. Até aquele momento, as práticas “criminosas” em questão poderiam ser punidas com um castigo ou evitadas com a conversão ou a abstinência. A partir de então, a extirpação de vícios inerentes a indivíduos e seus grupos exigiria decisões não apenas voltadas a punir “delinqüentes efetivos” mas, sobretudo, a liquidar todos os “racialmente culpados” (ibid.: ). Uma libertação social de um perigo em potencial. 4 É preciso, ademais, sublinhar que, nas suas expressões contemporâneas, homofobia e racismo são fenômenos que, com freqüência, convergem e se nutrem mútua e intermitentemente. E mais: imbricadas, homofobia e heteronormatividade, à medida que se articulam de modo dinâmico e múltiplo com as lógicas relativas ao sexismo, à misoginia, ao racismo, à xenofobia, parecem adquirir maiores potência, capilaridade e capacidade de atualização ( JUNQUEIRA, 00 : -4 ), elementos anti-semitismo. Em todo o caso, não se trata simplesmente de uma substituição do “judeu” pelo “árabe”, pelos imigrantes em geral ou pelos homossexuais, nem tampouco apenas de “racismo”. Creio estarmos diante de um processo em que uma modalidade de “anti-semitismo a 360 graus” se atualiza, se fortalece, se aprofunda e se desdobra, imbricado na (re)produção de múltiplos mecanismos (hetero)normativos. 53 Sobre a construção da distinção, no séc. XIX, entre as noção de “sodomita” (categoria religiosa relativa ao praticante da sodomia) e de “homossexual” (categoria psicológica, psiquiátrica e médica referente a uma classe de sujeitos vistos como uma “espécie” em si), vide: FOUCAULT, 1976 [1988] e ARIÈS, 1985. 54 Tal passagem foi crucial para possibilitar a formulação e a difusão de políticas eugenistas e higienistas. Todas elas racistas, anti-semitas e homofóbicas. Vide: BLACK, 2003; CARRARA, 1996; COSTA, 1983; DÁVILA, 2003. Sobre a perseguição aos homossexuais no regime nazista, vide: CONSOLI, 1991. 55 Não é casual a quase completa justaposição entre as características negativas atribuídas a judeus e a homossexuais: ambos seriam ardilosos, dissimulados, vingativos, imorais, inconfiáveis, traiçoeiros, mentirosos, aberrantes, ligados a “lobbies” poderosos, “complôs”, subversão etc. 56 Pode ser mais do que uma infeliz coincidência que o forte anti-semitismo na Polônia de hoje conviva com a mais explícita manifestação de homofobia institucional do continente europeu. Em março de 2007, entre outras medidas e declarações contra o “vício homossexual”, o governo polonês enviou ao Parlamento um projeto de lei proibindo a discussão sobre a homossexualidade nas escolas, para limitar “a propaganda homossexual”, proteger as crianças de “uma visão imprópria da família” e “impedir a promoção da cultura homossexual e outras aberrações”. Vide: “Polônia terá lei antigay nas escolas”: e “Poland: Official Homophobia Threatens Basic Freedoms”: . 382
indispensáveis para que a hegemonia urdida em torno delas ganhe eficácia, magnitude e produza ulteriores efeitos 7 . Isso tampouco significa dizer que as discriminações se equivalham. Como afirma Étienne Balibar ( 004: 87), “os ódios também têm sua história”. Embora racismo e homofobia com freqüência convirjam e se reforcem, são fenômenos que não desencadeiam idênticos discursos, práticas e modalidades de explicitação ou ocultamento de seus mecanismos. Basta lembrar que, aqui, onde o racismo é sistematicamente camuflado, o preconceito homofóbico, mesmo sem deixar de também ter suas sutilezas, comumente encontra manifestação ostensiva e insistente, e seus mecanismos discriminatórios operam às claras sob o beneplácito aquiescente de instituições e opinião pública. 8 E mais: de todos os setores sociais minorizados (SANTOS, 99 : 40), os “homossexuais” figuram entre os que suscitam maior aversão. 9 Assim, ao lado de numerosos discursos que não salvaguardam nem sequer vagas enunciações acerca de princípios de igualdade, não são poucos os que, dentro e fora da escola, se sentem confortavelmente legitimados a adotar, de maneira ostensiva, posições preconceituosas e discriminatórias heterossexistas e homofóbicas, amparados em uma maior aceitação da expressão de preconceito, discriminação e violência contra transgêneros, homossexuais e bissexuais. Em que pese não existirem fórmulas, creio que a eficácia dos esforços voltados para problematizar a homofobia (ou qualquer outro conceito que se prefira empregar) 0 também depende muito da compreensão que se tem acerca do grau de 57 O anti-semitismo moderno representou uma das antecipações paradigmáticas dos regimes totalitários (ARENDT, 1951 [1996]) e depois esteve, com a homofobia, presente em quase todos os regimes autoritários. 58 Em ambos os casos, lida-se com um não-reconhecimento que comporta enormes custos sociais, civis, materiais, simbólicos, psicológicos. Sem desconsiderar o fardo do racismo à brasileira, é importante sublinhar que a população homossexual é a única que não pode legalmente contrair matrimônio, inscrever parceiro/a como dependente ou beneficiário de INSS e plano de saúde. Enfrenta dificuldades para adotar e ter a guarda dos próprios filhos ou os do/a companheiro/a falecido/a. Não tem direito a receber herança do/a companheiro/a ou de tomar decisão quando ele/a se encontra impossibilitado/a. Tem dificuldades para participar de reuniões de “pais e mestres” e das atividades da escola dos filhos, etc. A atuação do movimento LGBT, sentenças judiciais e os debates em torno do reconhecimento da parceria civil e da criminalização da homofobia têm, entre outros fatores, contribuído para alterar esse cenário gradualmente. Vide: MELLO, 2005. 59 Segundo pesquisa da Fundação Perseu Abramo, no Brasil os índices de repulsa contra homossexuais somente são menores do que aqueles contra ateus e contra usuários de drogas, chegando a ser 8 vezes mais altos do que em relação a negros e a idosos (VENTURI, 2008). 60 Mesmo que o conceito de homofobia se preste a diferentes entendimentos e o de heteronormatividade nos acene com a possibilidade de análises mais fecundas e ações potencialmente mais incisivas, não creio ser prudente defender o imediato abandono do primeiro em favor do último. Tive breves mas ricas oportunidades de discutir o assunto com Berenice Bento, Beto de Jesus, Fernando Pocahy, Veriano Terto Jr. e Guacira Lopes Louro. A todos o conceito apresenta limitações, e não tínhamos posição definitiva. Berenice e Beto sublinharam a necessidade de enfatizarmos seus vínculos com as normas de gênero. Pocahy considerou a insuficiência de sua ressignificação. Veriano defendeu a pronta busca por um termo que o substitua; Guacira, sua manutenção provisória. Seja como for, distintos mas fortemente relacionados, os conceitos de homofobia e heteronormatividade talvez possam contribuir para compreendermos 383
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de John Boswell ( 980: ), segundo quem anti-semitismo e homofobia sempre<br />
estiveram juntos <strong>na</strong> história européia: as mesmas leis que oprimiram judeus, discrimi<strong>na</strong>ram<br />
homossexuais; os mesmos grupos que pretenderam elimi<strong>na</strong>r os primeiros,<br />
perseguiram igualmente os segundos, usando-se contra ambos idênticos métodos de<br />
propaganda. Se, por um lado, tal afirmação pode soar linear para alguns; por outro,<br />
é difícil desconsiderar os nexos entre homofobia e anti-semitismo ao longo (e a<br />
partir) de uma importante mudança ocorrida entre os séculos XVIII e XIX, apontada<br />
por Han<strong>na</strong>h Arendt ( 9 [ 99 : - ]): as noções de “crime” de prática<br />
do judaísmo ou da sodomia foram simultaneamente transformadas em “vício” de<br />
ser judeu ou de ser homos<strong>sexual</strong>. Dois vícios considerados semelhantes, praticamente<br />
equivalentes, resultantes da condição psicológica intrínseca de indivíduos <strong>na</strong>turalmente<br />
predesti<strong>na</strong>dos a cometer determi<strong>na</strong>dos crimes. Até aquele momento, as<br />
práticas “criminosas” em questão poderiam ser punidas com um castigo ou evitadas<br />
com a conversão ou a abstinência. A partir de então, a extirpação de vícios inerentes<br />
a indivíduos e seus grupos exigiria decisões não ape<strong>na</strong>s voltadas a punir “delinqüentes<br />
efetivos” mas, sobretudo, a liquidar todos os “racialmente culpados” (ibid.: ).<br />
Uma libertação social de um perigo em potencial. 4<br />
É preciso, ademais, sublinhar que, <strong>na</strong>s suas expressões contemporâneas, homofobia<br />
e racismo são fenômenos que, com freqüência, convergem e se nutrem mútua<br />
e intermitentemente. E mais: imbricadas, homofobia e heteronormatividade, à<br />
medida que se articulam de modo dinâmico e múltiplo com as lógicas relativas ao<br />
sexismo, à misoginia, ao racismo, à xenofobia, parecem adquirir maiores potência,<br />
capilaridade e capacidade de atualização ( JUNQUEIRA, 00 : -4 ), elementos<br />
anti-semitismo. Em todo o caso, não se trata simplesmente de uma substituição do “judeu” pelo “árabe”,<br />
pelos imigrantes em geral ou pelos homossexuais, nem tampouco ape<strong>na</strong>s de “racismo”. Creio estarmos<br />
diante de um processo em que uma modalidade de “anti-semitismo a 360 graus” se atualiza, se fortalece,<br />
se aprofunda e se desdobra, imbricado <strong>na</strong> (re)produção de múltiplos mecanismos (hetero)normativos.<br />
53 Sobre a construção da distinção, no séc. XIX, entre as noção de “sodomita” (categoria religiosa relativa ao<br />
praticante da sodomia) e de “homos<strong>sexual</strong>” (categoria psicológica, psiquiátrica e médica referente a uma<br />
classe de sujeitos vistos como uma “espécie” em si), vide: FOUCAULT, 1976 [1988] e ARIÈS, 1985.<br />
54 Tal passagem foi crucial para possibilitar a formulação e a difusão de políticas eugenistas e higienistas.<br />
Todas elas racistas, anti-semitas e homofóbicas. Vide: BLACK, 2003; CARRARA, 1996; COSTA, 1983;<br />
DÁVILA, 2003. Sobre a perseguição aos homossexuais no regime <strong>na</strong>zista, vide: CONSOLI, 1991.<br />
55 Não é casual a quase completa justaposição entre as características negativas atribuídas a judeus e a<br />
homossexuais: ambos seriam ardilosos, dissimulados, vingativos, imorais, inconfiáveis, traiçoeiros, mentirosos,<br />
aberrantes, ligados a “lobbies” poderosos, “complôs”, subversão etc.<br />
56 Pode ser mais do que uma infeliz coincidência que o forte anti-semitismo <strong>na</strong> Polônia de hoje conviva com<br />
a mais explícita manifestação de homofobia institucio<strong>na</strong>l do continente europeu. Em março de 2007, entre<br />
outras medidas e declarações contra o “vício homos<strong>sexual</strong>”, o governo polonês enviou ao Parlamento um<br />
projeto de lei proibindo a discussão sobre a homos<strong>sexual</strong>idade <strong>na</strong>s escolas, para limitar “a propaganda<br />
homos<strong>sexual</strong>”, proteger as crianças de “uma visão imprópria da família” e “impedir a promoção da cultura<br />
homos<strong>sexual</strong> e outras aberrações”. Vide: “Polônia terá lei antigay <strong>na</strong>s escolas”: e “Poland: Official Homophobia Threatens Basic Freedoms”:<br />
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