Diversidade sexual na educação ... - unesdoc - Unesco
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Em suma, o olhar normativo interpreta e fixa o corpo como uma confirmação literal da cor, da raça, da etnia e da sexualidade. A partir dele, os atos são percebidos como reiteração da “natureza intrínseca” de seus portadores (BAUMAN, 998a). Ficam assim definidos não só o destino natural de corpos e seus respectivos lugares na sociedade: o engessamento identitário impõe severos limites a quaisquer outras alternativas de expressão, identidade ou inclusão e comporta altos custos aos que ousam transgredir o que é demarcado, de modo dinâmico e multifário, pelo racismo, pela xenofobia, pelo sexismo, pela misoginia e amalgamado pela heteronormatividade ( JUNQUEIRA, 00 : 88). Tais processos fazem com que diferentes grupos e categorias possuam diferentes economias ou regimes de visibilidade. Britzman ( 004: 9), no caso dos judeus, observa: 380 No plano cultural, [os homens] judeus são obrigados a marcar – na verdade, a cortar – seu corpo masculino. Não há nada comparável entre as mulheres judias [...] Em público, os homens judeus religiosos podem usar um quipá para se identificarem como judeus, ao passo que as judias religiosas só são obrigadas a expressar sua relação com o estado civil heterossexual. 49 Esses processos se dão também (ou sobretudo) porque o corpo, como observa Homi Bhabha ( 00 : 7), está simultaneamente inscrito “tanto na economia do prazer e do desejo como na economia do discurso e do poder”. Não por acaso, as relações de poder e de dominação tendem a procurar sustento na degradação do corpo do “outro”, como meio de subjugá-lo, destituí-lo de inteligência e de capacidade de autocontrole e de resistência. A sexualidade do “outro” é então, quase que automaticamente, definida como afeita a prazeres e a impulsos primitivos, inferiores, sem restrições e tida como ameaçadora. 0 O medo que os brancos têm da sexualidade dos negros é um ingrediente básico de seu racismo. [...] o medo do sexo e do ca- democracia não apenas racial mas também sexual (DIAS e GAMBINI, 1999: cap. 9). 49 A propaganda nazista inovou ao produzir a imagem do homem judeu como ardiloso sedutor e estuprador. No entanto, no universo de crenças anti-semitas, continuou a prevalecer a codificação do “judeu” como feminino, dotado de masculinidade falha, sem virilidade (GILMAN, 1991: 76, 188-189, passim). O esforço da comunidade hebraica para renunciar a tais representações produziu uma reelaboração masculinizante da identidade judaica que levou ao “esquecimento” de suas diferenças sexuais (BRITZMAN, 2004: 179). 50 Gilberto Freyre (1933 [2000: 172]), nas impressões dos primeiros cronistas brancos nas Américas, observa a inversão: “Era natural europeus surpreendidos por uma moral sexual tão diversa da sua concluírem pela extrema luxúria dos indígenas; entretanto, dos dois povos, o conquistador talvez fosse o mais luxurioso”.
samento inter-racial é a fonte mais observável do temor que os brancos têm dos negros – assim como as repetidas castrações de negros vítimas de linchamento demandam uma séria explicação psicocultural (WEST, 994: 04- ). Não por acaso, conforme reitera Britzman, nos Estados Unidos, os debates conduzidos pelas correntes conservadoras dominantes entre afro-americanos e entre judeus têm sido, em ambos os casos, debates entre, sobre e a partir de homens heterossexuais de classe média (BRITZMAN, 004: 9). West vai na mesma direção ao denunciar os equívocos de lideranças do movimento negro norte-americano que, ao insistirem em cerrar fileiras contra os “hostis norte-americanos brancos”, acabam por fortalecer o poder masculino e, assim, alimentar ulteriormente um conservadorismo sociocultural que conduz à manifestação sistemática do machismo e da homofobia (WEST, 994: 40-4 , 0 - 09). A visão homofóbica que negros e não-negros partilham acerca de homens negros homossexuais é uma visão racista. Os mitos sexuais que homens negros costumam cultivar de sua própria sexualidade não são apenas resultado da eficiência da violência simbólica da visão racista anti-negra, mas também um dos ingredientes básicos de sua homofobia. Ao insistir nos vínculos entre racismo e homofobia, não pretendo fazer crer que eles sejam fenômenos forçosamente dependentes, embora me pareça importante sublinhar que a elaboração do anti-semitismo científico no século XIX foi fundamental na edificação de um pensamento nitidamente racista e na organização do olhar etnocêntrico e heteronormativo contemporâneo. É célebre a visão 51 A censura a relacionamentos afetivos inter-raciais não é apanágio de ordenamentos impostos por brancos (que encontraram suas versões mais acabadas no nazismo e no Apartheid). Podemos encontrar hoje pessoas pertencentes a grupos dos “historicamente subjugados” e particularmente afeitas a determinada política de identidade que vêem essas relações apenas como reedições de “estupros coloniais”, “estratégias de ascensão social”, “traição da raça” etc. Manter tal posição equivale a ignorar a multiplicidade da economia (e a imponderabilidade transgressiva) dos afetos e do desejo. Sem desconsiderar a relação histórica entre miscigenação e racismo e o quadro de violência contra mulheres e homossexuais, não admitir que as pessoas possam manifestar interesses sexuais diversificados equivale, entre outras coisas, a deslocar o feminino e a negar o reconhecimento do direito à livre expressão sexual. 52 Não foi necessário esperar a elaboração medieval do antijudaísmo teológico para que contra as práticas homoeróticas se expressassem duras condenações (as quais, aliás, tiveram no judaísmo uma de suas mais importantes fontes). No entanto, as alterações paradigmáticas que envolveram a elaboração do antisemitismo científico no século XIX associaram-se diretamente à edificação, à organização e à eficiência de enunciações e de tecnologias sociais e políticas de classificação, segregação e eliminação de todo aquele que viria a ser definido como o “outro” – especialmente no âmbito das políticas eugenistas, mas sem a elas se limitarem (BAUMAN, 1998a; FREDRICKSON, 2002). Mais tarde, o lugar da alteridade inferior, maléfica e invasiva do judeu (o “inimigo objetivo” por excelência) passou a ser ocupado pelo o “oriental”, sobretudo o árabe islâmico (SAÏD, 1978 [1996]). E mais: Étienne Balibar e Immanuel Wallerstein (1997) sugerem que, a partir da II Guerra Mundial, se pense o racismo contra as populações imigrantes na Europa em termos de um modelo de “anti-semitismo generalizado”. Ainda outros falam da homofobia como um novo 381
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Em suma, o olhar normativo interpreta e fixa o corpo como uma confirmação<br />
literal da cor, da raça, da etnia e da <strong>sexual</strong>idade. A partir dele, os atos são percebidos<br />
como reiteração da “<strong>na</strong>tureza intrínseca” de seus portadores (BAUMAN, 998a).<br />
Ficam assim definidos não só o destino <strong>na</strong>tural de corpos e seus respectivos lugares<br />
<strong>na</strong> sociedade: o engessamento identitário impõe severos limites a quaisquer outras<br />
alter<strong>na</strong>tivas de expressão, identidade ou inclusão e comporta altos custos aos que<br />
ousam transgredir o que é demarcado, de modo dinâmico e multifário, pelo racismo,<br />
pela xenofobia, pelo sexismo, pela misoginia e amalgamado pela heteronormatividade<br />
( JUNQUEIRA, 00 : 88).<br />
Tais processos fazem com que diferentes grupos e categorias possuam<br />
diferentes economias ou regimes de visibilidade. Britzman ( 004: 9), no caso<br />
dos judeus, observa:<br />
380<br />
No plano cultural, [os homens] judeus são obrigados a marcar<br />
– <strong>na</strong> verdade, a cortar – seu corpo masculino. Não há <strong>na</strong>da comparável<br />
entre as mulheres judias [...] Em público, os homens<br />
judeus religiosos podem usar um quipá para se identificarem<br />
como judeus, ao passo que as judias religiosas só são obrigadas<br />
a expressar sua relação com o estado civil heteros<strong>sexual</strong>. 49<br />
Esses processos se dão também (ou sobretudo) porque o corpo, como observa<br />
Homi Bhabha ( 00 : 7), está simultaneamente inscrito “tanto <strong>na</strong> economia do<br />
prazer e do desejo como <strong>na</strong> economia do discurso e do poder”. Não por acaso, as<br />
relações de poder e de domi<strong>na</strong>ção tendem a procurar sustento <strong>na</strong> degradação do<br />
corpo do “outro”, como meio de subjugá-lo, destituí-lo de inteligência e de capacidade<br />
de autocontrole e de resistência. A <strong>sexual</strong>idade do “outro” é então, quase que<br />
automaticamente, definida como afeita a prazeres e a impulsos primitivos, inferiores,<br />
sem restrições e tida como ameaçadora. 0<br />
O medo que os brancos têm da <strong>sexual</strong>idade dos negros é um<br />
ingrediente básico de seu racismo. [...] o medo do sexo e do ca-<br />
democracia não ape<strong>na</strong>s racial mas também <strong>sexual</strong> (DIAS e GAMBINI, 1999: cap. 9).<br />
49 A propaganda <strong>na</strong>zista inovou ao produzir a imagem do homem judeu como ardiloso sedutor e estuprador.<br />
No entanto, no universo de crenças anti-semitas, continuou a prevalecer a codificação do “judeu” como<br />
feminino, dotado de masculinidade falha, sem virilidade (GILMAN, 1991: 76, 188-189, passim). O esforço<br />
da comunidade hebraica para renunciar a tais representações produziu uma reelaboração masculinizante<br />
da identidade judaica que levou ao “esquecimento” de suas diferenças sexuais (BRITZMAN, 2004: 179).<br />
50 Gilberto Freyre (1933 [2000: 172]), <strong>na</strong>s impressões dos primeiros cronistas brancos <strong>na</strong>s Américas, observa<br />
a inversão: “Era <strong>na</strong>tural europeus surpreendidos por uma moral <strong>sexual</strong> tão diversa da sua concluírem pela<br />
extrema luxúria dos indíge<strong>na</strong>s; entretanto, dos dois povos, o conquistador talvez fosse o mais luxurioso”.