Diversidade sexual na educação ... - unesdoc - Unesco

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14.04.2013 Views

leira na ilha de Manhattan. “É aí, na margem colonial, que a cultura do Ocidente revela sua diferença, seu texto-limite assim como sua prática de autoridade” (Bhabha apud HOLLANDA: 99 , 77). Tais margens não se restringem mais a uma divisão norte-sul, centro-periferia, elas podem estar no fim do bairro, nos limites do corpo. Nesse espaço, onde o olhar impera, os personagens são também verdadeiras ilhas em movimento, talvez fosse melhor dizer, fluxos em constante (des)encontro. Eles não são representações de classe ou grupos sociais, e sim imagens que encenam a crise do individualismo, caracterizada por uma progressiva perda, por parte do sujeito, de uma identidade claramente definida – crise de todo o século XX, que resulta em posturas que vão desde um narcisismo exacerbado, como observado por Cristopher Lasch em O Mínimo Eu ( 987) até o predomínio de associações efêmeras, as novas tribos cartografadas por Michel Maffesoli em O Tempo das Tribos ( 987). Essa crise do sujeito delineia-se num quadro em que sensibilidades transclassistas e transnacionais se confrontam. Sujeito no qual até a própria sexualidade se põe à deriva. “Perda das mitologias viris, mas também dos emblemas femininos – em benefício de uma miragem narcísica transexual comum aos dois (sexos) e que só toma falsamente um ar de homossexualidade” (BAUDRILLARD, 987: 7). Estas personagens-dobradiças constituem-se em verdadeiras metáforas da realidade midiática, cotidiana, no qual cada pessoa quer brilhar ainda que por um breve momento, como uma star. “Personagens sem fundo, sem privacidade, quase imagens de vídeo num texto espelhado onde se cruzam fragmentárias, velozes, outras imagens, outros pedaços de prosa igualmente anônimos, igualmente pela metade” (SÜSSEKIND, 99 , 40). Nova York se constitui em labirinto multicultural para personagens não mais individualizados mas fantasmas periclitantes. O jogo de máscaras atinge seu ápice de complexidade no protagonista. Três máscaras: Stella Manhattan, o funcionário do consulado brasileiro em Nova York, Eduardo Costa e Silva e a empregada Bastiana. Não se trata de heterônimos ou duplos resultantes de uma fratura interior do personagem, mas máscaras móveis, em diálogo, representadas pela fala, mais do que por uma caracterização psicológica. Sexos diferentes, comportamentos diferentes num só, fluxos em curto-circuito. O drama do protagonista explicita-se à medida que seu sentimental apego se contrapõe à lógica dura de Marcelo (p. 84- 8 ); este representa diferentes papéis sem que um interfira no outro. Já Eduardo é um sentimental numa época em que os sentimentos são racionalizados, mortos com uma velocidade estonteante. 3 Para o desenvolvimento desta questão, ver meu ensaio “Terceiro Manifesto Camp”, em O Homem que Amava Rapazes e Outros Ensaios (2002). 359

O confronto entre memória e olhar, central para a obra de Silviano Santiago e para repensar as possibilidades da narrativa contemporânea, é encenado uma vez mais: o personagem que lembra/o mundo que o esquece. Stella é um personagem entre a melancolia e um jogo de máscaras. A consciência se torna olhar em crise diante de um mundo simulacral. O drama do efêmero completa-se com o da experiência sexual, na voz de Marcelo: “a principal característica da bicha hoje (entendamos 9 9) é a de uma constante busca de estilo próprio” (p. ). A falta de identidade leva à procura de uma subjetividade via espetacularização de si mesmo, sempre, no entanto, precária, posto que mutante. Acentua-se a fragilidade do protagonista pelo desafio do deslocamento entre as malhas da repressão cotidiana. Não devemos esquecer que ele foi “exilado” em Nova Yorke pela família e dos ecos vindos da ditadura militar no Brasil. Stella/Eduardo memoriosa, sentimental, confirma sua diferença em face da maioria silenciosa e da minoria inserida numa prática política de esquerda tradicional. Jogado no cotidiano, cada dia é cada dia. Stella Manhattan representa o predomínio da fantasia, da ficcionalização do real em contraste com escleroses políticas e sexuais que assumem posições rígidas, imobilizadoras. Stella está livre da prisão de outros olhares, mas sofre num mundo de fugacidades. O momento de seu corpo é anti-histórico, o agora concreto. O imagético contra o discursivo. No decorrer da narrativa, Eduardo desaparece gradualmente. Corpo de neon. Os vínculos com outros personagens vão se rompendo. A perda completa das referências vem simbolicamente com o telefonema do Cel. Vianna, adido militar no consulado brasileiro, mais conhecido como Viúva Negra, que afirma Sérgio não ser pai de Eduardo. Aí se dá a ruptura definitiva da comunicação entre Eduardo e o mundo. No desenraizamento, na última perda do vínculo com a família, a leveza da solidão mais plena. 360 Eduardo não tem mais. Eduardo nunca teve. Pensou que tivesse, o bobo. Pensou errado. Ninguém tem Eduardo. Ninguém teve Eduardo algum dia. Sente-se tão solto, tão solto que todo o ambiente concreto e pesado ao seu redor parece reduzido a puro ar. Uma pedra no ar. Um avião. Um meteorito. Um acrobata liberado da gravidade. Nada o puxa mais para a terra. Um corpo que não atrai e que não é atraído. Solto. [...]. O doce prazer de deixar o nada existir. A pluma ao vento não quer saber dos quatro pontos cardeais, e se quisesse, de nada adiantaria (p. ).

leira <strong>na</strong> ilha de Manhattan. “É aí, <strong>na</strong> margem colonial, que a cultura do Ocidente<br />

revela sua diferença, seu texto-limite assim como sua prática de autoridade” (Bhabha<br />

apud HOLLANDA: 99 , 77). Tais margens não se restringem mais a uma<br />

divisão norte-sul, centro-periferia, elas podem estar no fim do bairro, nos limites do<br />

corpo. Nesse espaço, onde o olhar impera, os perso<strong>na</strong>gens são também verdadeiras<br />

ilhas em movimento, talvez fosse melhor dizer, fluxos em constante (des)encontro.<br />

Eles não são representações de classe ou grupos sociais, e sim imagens que ence<strong>na</strong>m<br />

a crise do individualismo, caracterizada por uma progressiva perda, por parte<br />

do sujeito, de uma identidade claramente definida – crise de todo o século XX, que<br />

resulta em posturas que vão desde um <strong>na</strong>rcisismo exacerbado, como observado por<br />

Cristopher Lasch em O Mínimo Eu ( 987) até o predomínio de associações efêmeras,<br />

as novas tribos cartografadas por Michel Maffesoli em O Tempo das Tribos ( 987).<br />

Essa crise do sujeito delineia-se num quadro em que sensibilidades transclassistas<br />

e trans<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is se confrontam. Sujeito no qual até a própria <strong>sexual</strong>idade<br />

se põe à deriva. “Perda das mitologias viris, mas também dos emblemas femininos<br />

– em benefício de uma miragem <strong>na</strong>rcísica tran<strong>sexual</strong> comum aos dois (sexos) e que<br />

só toma falsamente um ar de homos<strong>sexual</strong>idade” (BAUDRILLARD, 987: 7).<br />

Estas perso<strong>na</strong>gens-dobradiças constituem-se em verdadeiras metáforas da<br />

realidade midiática, cotidia<strong>na</strong>, no qual cada pessoa quer brilhar ainda que por um<br />

breve momento, como uma star. “Perso<strong>na</strong>gens sem fundo, sem privacidade, quase<br />

imagens de vídeo num texto espelhado onde se cruzam fragmentárias, velozes, outras<br />

imagens, outros pedaços de prosa igualmente anônimos, igualmente pela metade”<br />

(SÜSSEKIND, 99 , 40). Nova York se constitui em labirinto multicultural<br />

para perso<strong>na</strong>gens não mais individualizados mas fantasmas periclitantes.<br />

O jogo de máscaras atinge seu ápice de complexidade no protagonista. Três<br />

máscaras: Stella Manhattan, o funcionário do consulado brasileiro em Nova York,<br />

Eduardo Costa e Silva e a empregada Bastia<strong>na</strong>. Não se trata de heterônimos ou<br />

duplos resultantes de uma fratura interior do perso<strong>na</strong>gem, mas máscaras móveis,<br />

em diálogo, representadas pela fala, mais do que por uma caracterização psicológica.<br />

Sexos diferentes, comportamentos diferentes num só, fluxos em curto-circuito.<br />

O drama do protagonista explicita-se à medida que seu sentimental apego<br />

se contrapõe à lógica dura de Marcelo (p. 84- 8 ); este representa diferentes papéis<br />

sem que um interfira no outro. Já Eduardo é um sentimental numa época em<br />

que os sentimentos são racio<strong>na</strong>lizados, mortos com uma velocidade estonteante.<br />

3 Para o desenvolvimento desta questão, ver meu ensaio “Terceiro Manifesto Camp”, em O Homem que<br />

Amava Rapazes e Outros Ensaios (2002).<br />

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