Diversidade sexual na educação ... - unesdoc - Unesco

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14.04.2013 Views

isolamento que me acompanhou da adolescência até a juventude. Só não me sentia excluído porque encarnava o papel do “melhor aluno”. O que teria acontecido se fosse também o “gay da turma”? De toda forma, não foi nem na universidade que encontrei este tipo de acolhimento, de possibilidade de discussão. Curiosamente, mesmo nos anos 90, a quase totalidade dos grupos gays se concentrava fora da universidade, fora do universo escolar. Foi no Arco-Íris e, sobretudo, no Estruturação quando voltei de vez para Brasília, que me senti mais à vontade do que em bares e boates. Encontrei um espaço em que se podia falar e discutir sobre homossexualidade com naturalidade, um espaço no qual me sentia fazer parte, ao reconhecer mesmo as minhas diferenças. A alegria, a vitalidade com que saía de muitas reuniões foi decisiva para mudar minhas relações com minha família e amigos, me tirar um pouco da imagem que ainda me assombra do adolescente melancólico, uma encarnação possível do gay deprimido de antes dos anos 0. Mas em muitos aspectos eu estava lá nos 0. Nos EUA, não se falava então que não havia gays, só tímidos? Exagero, certamente, mas não de todo descabido. Muitos não sentem necessidade de falar de sua sexualidade, mas fez uma enorme diferença para mim não só saber que eu gostava de homens, o que sabia desde criança. Compartilhar esta experiência, mesmo sem precisar dizer com todas as palavras, foi perturbador. Eu estava lá. Certamente não escreveria o que venho escrevendo, não teria começado a falar em sala de aula e em congressos, se não tivesse passado por esta experiência. Foi desta experiência que se construiu a percepção de que minhas responsabilidades como intelectual, gay e brasileiro não podiam se restringir ao de um intelectual orgânico, vinculado a um grupo social, sem levar em consideração complexos processos de exclusão e inclusão social. Não se trata de buscar aceitação e integração numa sociedade injusta, em que o termo gay se restringirá a só mais um rótulo numa sociedade de segmentação de mercado. Não sei se é o caso de recuperar uma tônica libertária ou radical, o que pode parecer ingênuo ou simplesmente ineficiente, mas certamente me sinto incomodado ao ver como cada vez mais o termo gay parece mais um item banal na nossa classe média com complexo de Miami ou de Nova York, propalador de um consumismo desenfreado. Na busca de referências intelectuais que pudessem lidar com estes impasses, o encontro com a obra de Silviano Santiago, especialmente a partir da leitura de seu romance Stella Manhattan, me fez mudar de rota. Talvez nenhum outro crítico de cultura, entre os mestres de nossa geração, tenha nos trazido tantas sugestões para a construção dos estudos gays no Brasil do que Silviano Santiago. Desde seu 357

antológico ensaio de 97 , “O Entre-lugar do discurso latino-americano”, agora reeditado, diferente de uma perspectiva marxista, que vai insistir, anos 80 adentro, exclusivamente na exclusão por classe social, como Roberto Schwarz no seu “Nacional por Subtração”, Silviano Santiago descortina o horizonte de uma sociedade em que outras diferenças foram excluídas, como as identidades índias e o negraso, estabelecendo um diálogo fecundo entre Brasil e América hispânica, que cada vez fica mais relevante, em face dos desafios do Mercosul e da hispanização dos EUA. Mais recentemente, quando discutia com estudantes e professores da Uerj, Silviano apresentou-se substantivamente como “escritor, gay”, parafraseando Murilo Mendes, que se dizia “escritor, católico”. Quando da publicação de Keith Jarrett no Blue Note, coletânea de contos assumidamente gays, Heloísa Buarque de Hollanda nos lembra na orelha do livro que “não existem papéis sexuais muito definidos. São improvisos que têm como leitmotiv o ethos gay de uma permeável disponibilidade para o sexo”. Silviano ainda escreve, em consonância com sua obra ficcional, “O Homossexual Astucioso”, recusando a vitimização e o “exibicionismo público, protestante, exigido do homossexual pelos movimentos militantes norte-americanos” ( 004: 0 ) e defendendo a busca de formas mais sutis de militância do que a política do outing (assumir publicamente a homossexualidade). Silviano se pergunta no final: 358 Se a subversão através do anonimato corajoso das subjetividades em jogo, processo mais lento da conscientização, não adiciona melhor ao futuro diálogo entre heterossexuais e homossexuais, do que o afrontamento aberto por parte de um grupo que se auto-marginaliza, processo dado pela cultura norte-americana como mais rápido e eficiente? (SANTIAGO, 000, - ). Foi com esta questão em mente que procurei resgatar a invisibilidade, o desaparecimento e a leveza como estratégias mais sutis e menos definidas por uma posição de confronto, num contexto pós-identitário e transcultural, tendo como referência as ficções de Silviano Santiago e de Caio Fernando Abreu como uma alternativa aos discursos sobre a visibilidade, hegemônicos entre os grupos militantes e nas ciências sociais. Minha busca começa por Stella Manhattan, romance de Silviano Santiago ( 98 ), que se passa em 9 9, enquanto a ditadura militar tornava-se mais e mais selvagem no Brasil, entre um grupo de brasileiros em Nova York. Uma ilha brasi- 2 Para uma leitura comparativa da crítica de Roberto Schwarz e Silviano Santiago, ver: CUNHA (1997).

isolamento que me acompanhou da adolescência até a juventude. Só não me sentia<br />

excluído porque encar<strong>na</strong>va o papel do “melhor aluno”. O que teria acontecido se<br />

fosse também o “gay da turma”? De toda forma, não foi nem <strong>na</strong> universidade que<br />

encontrei este tipo de acolhimento, de possibilidade de discussão. Curiosamente,<br />

mesmo nos anos 90, a quase totalidade dos grupos gays se concentrava fora da universidade,<br />

fora do universo escolar.<br />

Foi no Arco-Íris e, sobretudo, no Estruturação quando voltei de vez para Brasília,<br />

que me senti mais à vontade do que em bares e boates. Encontrei um espaço em<br />

que se podia falar e discutir sobre homos<strong>sexual</strong>idade com <strong>na</strong>turalidade, um espaço no<br />

qual me sentia fazer parte, ao reconhecer mesmo as minhas diferenças. A alegria, a<br />

vitalidade com que saía de muitas reuniões foi decisiva para mudar minhas relações<br />

com minha família e amigos, me tirar um pouco da imagem que ainda me assombra<br />

do adolescente melancólico, uma encar<strong>na</strong>ção possível do gay deprimido de antes dos<br />

anos 0. Mas em muitos aspectos eu estava lá nos 0. Nos EUA, não se falava então<br />

que não havia gays, só tímidos? Exagero, certamente, mas não de todo descabido.<br />

Muitos não sentem necessidade de falar de sua <strong>sexual</strong>idade, mas fez uma<br />

enorme diferença para mim não só saber que eu gostava de homens, o que sabia<br />

desde criança. Compartilhar esta experiência, mesmo sem precisar dizer com todas<br />

as palavras, foi perturbador. Eu estava lá. Certamente não escreveria o que venho<br />

escrevendo, não teria começado a falar em sala de aula e em congressos, se não tivesse<br />

passado por esta experiência.<br />

Foi desta experiência que se construiu a percepção de que minhas responsabilidades<br />

como intelectual, gay e brasileiro não podiam se restringir ao de um intelectual<br />

orgânico, vinculado a um grupo social, sem levar em consideração complexos<br />

processos de exclusão e inclusão social. Não se trata de buscar aceitação e integração<br />

numa sociedade injusta, em que o termo gay se restringirá a só mais um rótulo<br />

numa sociedade de segmentação de mercado. Não sei se é o caso de recuperar uma<br />

tônica libertária ou radical, o que pode parecer ingênuo ou simplesmente ineficiente,<br />

mas certamente me sinto incomodado ao ver como cada vez mais o termo gay<br />

parece mais um item ba<strong>na</strong>l <strong>na</strong> nossa classe média com complexo de Miami ou de<br />

Nova York, propalador de um consumismo desenfreado.<br />

Na busca de referências intelectuais que pudessem lidar com estes impasses,<br />

o encontro com a obra de Silviano Santiago, especialmente a partir da leitura de<br />

seu romance Stella Manhattan, me fez mudar de rota. Talvez nenhum outro crítico<br />

de cultura, entre os mestres de nossa geração, tenha nos trazido tantas sugestões<br />

para a construção dos estudos gays no Brasil do que Silviano Santiago. Desde seu<br />

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