Diversidade sexual na educação ... - unesdoc - Unesco

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256 […] eu estava tomando café em uma cafeteria do aeroporto e havia dois rapazes próximos, quando passou uma mulher superperua, cabelo armado, supermaquiada, cheia de colares e pulseiras, e um dos rapazes comentou que a mulher seria uma travesti. Neste momento, me virei par os rapazes e disse: – Meu amor, travesti sou eu, ela é mulher! Quando a própria mulher ouviu e disse: – É isso mesmo, e eu adoraria ser uma travesti! Esta cena mostra o quanto as classificações de gêneros têm sido borradas nos últimos anos e, ao mesmo tempo, evidencia a percepção freqüente das pessoas que têm como referência a beleza e o glamour de uma travesti bem montada, quando está batalhando ou em situação social e de festa, deixando claro que nada sabem da realidade das travestis nas outras horas do dia, quando são discriminadas e desprezadas pela sociedade. Estas constatações nos levam a concordar com Marcos Benedetti ( 00 : 48), para quem: […] o gênero das travestis se pauta pelo feminino. Um feminino tipicamente travesti, ou seja, sempre negociado, reconstruído, ressignificado, fluido. Um feminino que se quer evidente, mas também confuso e borrado, às vezes apenas esboçado [...]. É o feminino travesti. Diante disso, o contato com a realidade das travestis aponta e afirma que tanto os gêneros quanto os corpos e as sexualidades só podem ser entendidos como construções sociais e históricas marcadas pela cultura, com seus sentidos e significações pertinentes, com seus processos de subjetivação. Também nessa área nossas definições, crenças, convenções, identidades sexuais e de gênero e nossos comportamentos, em vez de realidades naturais, são realidades sociais produzidas historicamente por meio de relações de saber-poder e de dispositivos sociais, econômicos e culturais (FOUCAULT, 98 ). Percebê-lo nos possibilita abrir novas discussões a respeito de como podemos contribuir para o debate sobre as relações humanas, as produções de subjetividades e a educação, de modo a ampliar o respeito em face das diferenças e o convívio com elas, distanciando-nos das leituras essencialistas sobre os sexos, os gêneros, as identidades, a fim de dialogarmos com múltiplos saberes.

Apontamentos sobre a produção da subjetividade de travestis, transexuais e transgêneros Creio que, com base no que vim até aqui considerando, em vez de propor uma conclusão, será mais oportuno fazer alguns apontamentos relativos às inúmeras questões que atravessam o universo existencial da população de travestis, transexuais e transgêneros (TTTs) para reflexão e debate. Um primeiro apontamento possível diz respeito aos obstáculos ainda encontrados nos modos de produção do pensar e do sentir contemporâneos, marcados intensamente pela filosofia platônica, que impõe um modelo único de verdade, a partir do qual poderia ser reproduzida a “boa cópia”. Deriva daí o estabelecimento de binaridades que apenas contribuem para a cristalização de identidades que se fecham em si mesmas e não permitem questionamentos e/ou abertura para outras possibilidades de existência. Encontramos aqui as oposições binárias (fixas e polarizadas) entre o masculino e o feminino, a heterossexualidade e a homossexualidade, o certo e o errado, o normal e o patológico, o pecado e a virtude. Binarismos estes que enfraquecem a vida e fazem dela uma normatização opaca e cristalizada. A rigidez e a intensidade com que as binaridades atuam fazem com que as pessoas se fixem em padrões inquestionáveis de verdade e se viciem em identidades reificadas. Diante da expressão de desejos e de realização de práticas que não se adequam às normas rigidamente estabelecidas, essas pessoas podem entrar em uma zona de turbulência e de nonsense. Trata-se do estabelecimento de confusão mental em que os modelos dados não correspondem às necessidades pessoais e singulares de seus atores, forjando vidas (freqüentemente dentro do armário), contraditórias diante das aspirações, sujeitas a sofrimento e promotoras de infelicidade. Um processo particularmente cruel, sobretudo em relação às pessoas consideradas diferentes, mas que não poupa ninguém. Talvez, uma saída possível esteja na flexibilização dos saberes e dos poderes que nos atravessam o tempo todo, de modo a dirigir nossa atenção para o diferente, o efêmero, o infame e a produzir mais inclusão e solidariedade. Para além da sexologia, é preciso que tomemos as sexualidades diferentemente de estruturas, personalismos e energias, para tomá-las como fluxos de desejos e de prazeres, sempre intempestivos e singulares. Como diz Gilles Deleuze ( 998) em seu livro Diálogos, a sexualidade só pode ser pensada como um fluxo entre outros, que entra em conexão com outros fluxos, metamorfoseando-se de acordo com as conexões possíveis a partir de uma perspectiva rizomática infinita. 3 Deleuze e Guattari (1995) afirmam que o rizoma se mostra “oposto a uma estrutura, que se define por um conjunto de pontos e posições, por correlações binárias entre pontos e relações unívocas entre estas 257

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[…] eu estava tomando café em uma cafeteria do aeroporto<br />

e havia dois rapazes próximos, quando passou uma mulher<br />

superperua, cabelo armado, supermaquiada, cheia de colares e<br />

pulseiras, e um dos rapazes comentou que a mulher seria uma<br />

travesti. Neste momento, me virei par os rapazes e disse: – Meu<br />

amor, travesti sou eu, ela é mulher! Quando a própria mulher<br />

ouviu e disse: – É isso mesmo, e eu adoraria ser uma travesti!<br />

Esta ce<strong>na</strong> mostra o quanto as classificações de gêneros têm sido borradas<br />

nos últimos anos e, ao mesmo tempo, evidencia a percepção freqüente das pessoas<br />

que têm como referência a beleza e o glamour de uma travesti bem montada,<br />

quando está batalhando ou em situação social e de festa, deixando claro que <strong>na</strong>da<br />

sabem da realidade das travestis <strong>na</strong>s outras horas do dia, quando são discrimi<strong>na</strong>das<br />

e desprezadas pela sociedade.<br />

Estas constatações nos levam a concordar com Marcos Benedetti ( 00 :<br />

48), para quem:<br />

[…] o gênero das travestis se pauta pelo feminino. Um feminino<br />

tipicamente travesti, ou seja, sempre negociado, reconstruído,<br />

ressignificado, fluido. Um feminino que se quer evidente,<br />

mas também confuso e borrado, às vezes ape<strong>na</strong>s esboçado [...].<br />

É o feminino travesti.<br />

Diante disso, o contato com a realidade das travestis aponta e afirma que<br />

tanto os gêneros quanto os corpos e as <strong>sexual</strong>idades só podem ser entendidos como<br />

construções sociais e históricas marcadas pela cultura, com seus sentidos e significações<br />

pertinentes, com seus processos de subjetivação.<br />

Também nessa área nossas definições, crenças, convenções, identidades sexuais<br />

e de gênero e nossos comportamentos, em vez de realidades <strong>na</strong>turais, são realidades<br />

sociais produzidas historicamente por meio de relações de saber-poder e de<br />

dispositivos sociais, econômicos e culturais (FOUCAULT, 98 ).<br />

Percebê-lo nos possibilita abrir novas discussões a respeito de como podemos<br />

contribuir para o debate sobre as relações huma<strong>na</strong>s, as produções de subjetividades<br />

e a <strong>educação</strong>, de modo a ampliar o respeito em face das diferenças e o convívio<br />

com elas, distanciando-nos das leituras essencialistas sobre os sexos, os gêneros, as<br />

identidades, a fim de dialogarmos com múltiplos saberes.

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