Diversidade sexual na educação ... - unesdoc - Unesco

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248 ber o que fazer. Fui até o banheiro e me tranquei lá, chorando muito. Eu tomei um pânico e um pavor naquela referência que me traumatizou por muito tempo. Tanto que só vim a ter um contato sexual com outra pessoa quando já estava com 8 anos, quando ia começar um curso de italiano, na rua do Catete, em uma escola estadual que aceitava pessoas da comunidade. Fiz minha inscrição e comecei o curso de italiano. Estava muito feliz porque eu sou descendente de italianos e tinha a chance de ter cidadania italiana. E já pensou eu poder ir morar na Itália? Seria um luxo! Mas, como se diz, alegria de pobre dura pouco. Logo na segunda semana, quando cheguei na escola, uma funcionária que estava na porta disse que eu deveria esperar ali na entrada que a diretora queria falar comigo. Fiquei ali por meia hora e só depois a funcionária me levou até a diretora, que estava no computador e nem me olhou na cara, dizendo: “Então você resolveu se sentir gente? Com a vida que você leva, você acha que pode freqüentar lugares de gente de bem? Mas você é muito atrevido mesmo, você quer desmoralizar a minha escola? Você quer sujar o nome da escola? Saia imediatamente daqui ou terei que chamar a polícia!” Lara nos relata que ficou imobilizada, com dificuldades até mesmo para caminhar. Saiu e foi para a casa de uma amiga (também travesti) e lá teve uma crise de choro intensa, pensando obstinadamente em se suicidar. Caiu em uma tristeza profunda que a levou a uma crise de depressão. Foi hospitalizada e lá ficou durante alguns meses. A experiência da humilhação, proporcionada por uma diretora de uma escola pública que agiu como se a instituição fosse um espaço privado dela, do qual poderiam fazer parte somente pessoas que ela própria, fincada no mais puro preconceito, definia como “gente de bem”, seria certamente marcante até mesmo para a mais centrada das pessoas. De fato, Lara informa que essa cena e as palavras ditas pela diretora de vez em quando ainda voltam à sua mente e que de lá para cá sente dificuldade em estar entre pessoas desconhecidas, assim como de entrar em certos lugares e de voltar a estudar. Na análise de Lara: “Para mim, depois da experiência do colégio, a vida acabou e eu passei a não acreditar mais nas pessoas, eu fiquei arrasada!”. Essa experiência teria contribuído para o encaminhamento de Lara para a prostituição e as drogas, pois como ela mesma nos relata: “Se eu não ficar colocada, não tenho coragem para abordar os clientes”.

Diz o ditado que “quem bate não lembra, mas quem apanha nunca esquece”. Isto também vale para as experiências vividas de discriminação e exclusão que se tornam marcas de estigmatização tão profundas que podem persistir por toda a vida de uma pessoa. A escola, que deveria ser um lugar de inclusão e respeito da diversidade, muitas vezes perde a sua função e passa a desempenhar outras. Torna-se escola-polícia, escola-igreja, escola-tribunal, orientadas por tecnologias sofisticadas de poder centradas na disciplina dos corpos e na regulação dos prazeres. Distanciam-se, assim, de uma das funções da educação: tornar as pessoas preparadas para o convívio com as diferenças por meio da produção de sentimentos e atitudes de fraternidade, solidariedade e igualdade de direitos, valorizando o coletivo e garantindo o acesso à informação, sem o que é impossível às pessoas a construção de suas cidadanias. Fazendo uso de slogan do movimento nacional de travestis, transexuais e transgêneros, vale recordar que: “Cidadania não tem roupa certa!”. Uma outra cena é descrita por Brunete, anos, travesti profissional do sexo. Quando indagada sobre suas lembranças a respeito de sua ligação com a escola, relata que sempre teve boas relações com colegas e professores, pois era uma aluna exemplar. Tirava 0 em todas as disciplinas e era admirada pelos professores e referência para os colegas, que, diante das dificuldades com as matérias, sempre recorriam ao “geninho”. Brunete tem consciência do quanto suas notas ajudaram a maquiar a sua homossexualidade, mesmo porque, nos informa, era bem afeminada, só se reunia com as meninas, embora algumas vezes jogasse voleibol com os meninos. Além das boas notas, era uma aluna envolvida nas atividades extracurriculares, quando era convidada para participar de peças de teatro, de shows e outras festividades realizadas quando da comemoração de alguma data especial. Mas, relembra Brunete, houve um momento em que ela vivenciou uma situação que lhe marcou bastante. Quando estava na quarta série, alguns meninos começaram a chamá-la de “cu de veludo”, em referência a um personagem do filme “Navalha na Carne”, que tinha sido exibido na televisão. Confessa ter ficado muito chateada, mas, como era uma criança muito alegre e sociável, logo relevou o incidente e deu continuidade às suas relações. Ainda nesse período, conta Brunete: […] como eu gostava muito de dançar, de interpretar, de rebolar, minha professora de Educação Artística, que era muito minha amiga, me convidou para participar de um show que ela estava organizando em comemoração ao Dia das Mães. Aí, ela falou que eu deveria interpretar uma música do Ney Matogros- 249

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me traumatizou por muito tempo. Tanto que só vim a ter um<br />

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quando ia começar um curso de italiano, <strong>na</strong> rua do Catete, em<br />

uma escola estadual que aceitava pessoas da comunidade. Fiz<br />

minha inscrição e comecei o curso de italiano. Estava muito<br />

feliz porque eu sou descendente de italianos e tinha a chance de<br />

ter cidadania italia<strong>na</strong>. E já pensou eu poder ir morar <strong>na</strong> Itália?<br />

Seria um luxo! Mas, como se diz, alegria de pobre dura pouco.<br />

Logo <strong>na</strong> segunda sema<strong>na</strong>, quando cheguei <strong>na</strong> escola, uma funcionária<br />

que estava <strong>na</strong> porta disse que eu deveria esperar ali <strong>na</strong><br />

entrada que a diretora queria falar comigo. Fiquei ali por meia<br />

hora e só depois a funcionária me levou até a diretora, que estava<br />

no computador e nem me olhou <strong>na</strong> cara, dizendo: “Então<br />

você resolveu se sentir gente? Com a vida que você leva, você<br />

acha que pode freqüentar lugares de gente de bem? Mas você é<br />

muito atrevido mesmo, você quer desmoralizar a minha escola?<br />

Você quer sujar o nome da escola? Saia imediatamente daqui ou<br />

terei que chamar a polícia!”<br />

Lara nos relata que ficou imobilizada, com dificuldades até mesmo para caminhar.<br />

Saiu e foi para a casa de uma amiga (também travesti) e lá teve uma crise<br />

de choro intensa, pensando obsti<strong>na</strong>damente em se suicidar. Caiu em uma tristeza<br />

profunda que a levou a uma crise de depressão. Foi hospitalizada e lá ficou durante<br />

alguns meses. A experiência da humilhação, proporcio<strong>na</strong>da por uma diretora de<br />

uma escola pública que agiu como se a instituição fosse um espaço privado dela, do<br />

qual poderiam fazer parte somente pessoas que ela própria, fincada no mais puro<br />

preconceito, definia como “gente de bem”, seria certamente marcante até mesmo<br />

para a mais centrada das pessoas. De fato, Lara informa que essa ce<strong>na</strong> e as palavras<br />

ditas pela diretora de vez em quando ainda voltam à sua mente e que de lá para<br />

cá sente dificuldade em estar entre pessoas desconhecidas, assim como de entrar<br />

em certos lugares e de voltar a estudar. Na análise de Lara: “Para mim, depois da<br />

experiência do colégio, a vida acabou e eu passei a não acreditar mais <strong>na</strong>s pessoas,<br />

eu fiquei arrasada!”. Essa experiência teria contribuído para o encaminhamento de<br />

Lara para a prostituição e as drogas, pois como ela mesma nos relata: “Se eu não<br />

ficar colocada, não tenho coragem para abordar os clientes”.

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