Diversidade sexual na educação ... - unesdoc - Unesco

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Em 999 e 000, o então ex-governador do Distrito Federal Cristovam Buarque, por meio de uma entidade por ele presidida, o Missão Criança, fez publicar uma cartilha intitulada “Cem perguntas e respostas que você precisa saber sobre a bolsa escola”, na qual se informa: O bolsa escola é um programa educacional. Primeiro porque não se trata de doação às famílias, mas de emprego das mães para serem fiscais da freqüência às aulas de seus filhos. Tanto assim que não recebem a bolsa no mês em que um de seus filhos faltar mais de dois dias às aulas (Buarque, apud KLEIN, 00 : 8). Mais adiante, ao indicar a quem deve ser pago o benefício, informa o texto: A bolsa escola é um benefício pago à família, mas de preferência à mãe. Em sua ausência, procura-se fazer o pagamento à avó ou a outra figura feminina que tenha poder de controle e de decisão sobre as crianças a serem beneficiadas. Só em último caso, onde a criança é mantida e educada pelo pai solteiro ou viúvo, é que o pai passa a ser beneficiário da bolsa-escola (Buarque, apud KLEIN, 00 : 44). Acerca desse programa, então implementado como programa de governo, o então Ministro da Educação Paulo Renato Souza publicou, na Folha de S. Paulo, em de maio de 00 (Dia das Mães), um artigo dirigido “Às mães dos estudantes brasileiros”, por meio do qual convocava as mulheres/mães brasileiras a acompanharem o desempenho “dos nossos alunos”: As mulheres estão à frente dos homens em todos os indicadores sociais [...]. Vocês, mulheres campeãs em educação, são as mães dos nossos alunos. Nós contamos com vocês para mandá-los à escola, para acompanharem seu desempenho, para ajudá-los a vencer as dificuldades (Souza, apud KLEIN, 00 : 4). Os excertos aqui citados nos instigam a perguntar: o que mais esse discurso promove, e de forma imperativa, para além dessa forma de empoderamento das mulheres às quais se dirige e de escolarização das crianças? Acho que não podemos deixar de reconhecer, dentre outras coisas, que ele incorpora e reforça a representação de mãe como primeira, melhor e principal responsável pelo cuidado dos filhos – a ponto de significar isto como um emprego (bastante mal-remunerado, diga-se de passagem!) com previsão de punições para alguns grupos de mulheres Nesse mesmo movimento, incorpora e reforça determinadas representações de maternidade e paternidade que são problemáticas em vários aspectos: a mulher como sinônimo de mãe é uma delas; a outra é a de paternidade ausente ou irresponsável como regra nos núcleos familiares mais pobres, o que produz, dentre outras coisas, sua (des)responsabilização pela vida das crianças que o integram. Estas representa- 5 Uma versão já um pouco modificada dessa cartilha continua disponível em BUARQUE, Cristovam. Missão Criança. 100 perguntas e respostas que você precisa saber sobre a Bolsa-Escola. 2. ed. Brasília, 2000. Disponível em: 225

ções, ao mesmo tempo, invisibilizam outras formas de exercício da maternidade e da paternidade que também coexistem nesses contextos. Essa operação produz, por um lado, o posicionamento do Estado no lugar de autoridade conferido ao pai-provedor na família mononuclear moderna e, por outro, a sobreposição de uma parte significativa dos deveres até então definidos como “paternos” (sobretudo aqueles vinculados ao provimento do lar) aos já consagrados “deveres maternos”. Mas também a escola continua sendo um espaço importante para observar e discutir articulações entre corpo, gênero e sexualidade do ponto de vista das relações de poder. Caberia então perguntar, por exemplo: em que medida normas de comportamento e práticas corporais vigentes no espaço escolar estão implicadas na produção de diferenças e desigualdades de gênero potencialmente violentas? Ileana Wenetz ( 00 : ) problematizou algumas dessas relações no recreio escolar e descreve, com três exemplos, como agressões físicas e verbais são utilizadas como recurso ou estratégia para (re)estabelecer, reiterar e subverter relações de poder de gênero nesse espaço. Pedro, que faz balé no seu bairro na parte da tarde, na escola só brinca de futebol. Como ele é um menino “que faz as coisas que um menino deveria fazer”, ninguém implica com ele, apesar de os outros meninos saberem que ele faz balé. João, menino que brinca com um grupo de meninas, é chamado de “bicha” por vários dos/as colegas. Ele não brinca de futebol e nem de “lutinhas”, classificadas como coisas de um menino que se preza e, mesmo que suas práticas sexuais estrito senso não estejam em questão aqui, é a adjetivação de sua sexualidade que funciona como recurso para posicioná-lo como masculino desviante. No terceiro caso, uma menina brinca só com meninos e joga futebol. Sua “transgressão” parece ser menos penalizada, pois, segundo algumas colegas, só às vezes os meninos pegam no pé dela, que ela é meio menino [...] que ela tem jeito de menino, até a voz dela parece de ‘menino’, ela quer jogar bola e nunca vai brincar com as meninas de pular corda. Os dois últimos exemplos permitem uma reflexão que é, no mínimo, interessante, uma vez que ela desarranja tanto a fixidez da feminilidade e da masculinidade apresentadas com artigo definido singular (a menina e o menino), quanto a narrativa hegemônica da dominação masculina e da subordinação feminina per se, um desarranjo que também vem sendo visibilizado em outras dissertações, qual seja, a de que as redes de vigilância e controle do gênero e da sexualidade parecem estreitar-se mais, contemporaneamente, em torno dos corpos masculinos quando se trata de cruzamentos ou borramentos de fronteiras historicamente instituídas para a masculinidade heterossexual. 6 Ileana Wenetz fez sua dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano, na UFRGS, sob orientação do professor Marco Paulo Stigger e minha co-orientação. 226

Em 999 e 000, o então ex-gover<strong>na</strong>dor do Distrito Federal Cristovam<br />

Buarque, por meio de uma entidade por ele presidida, o Missão Criança, fez publicar<br />

uma cartilha intitulada “Cem perguntas e respostas que você precisa saber<br />

sobre a bolsa escola”, <strong>na</strong> qual se informa: O bolsa escola é um programa educacio<strong>na</strong>l.<br />

Primeiro porque não se trata de doação às famílias, mas de emprego das mães para serem<br />

fiscais da freqüência às aulas de seus filhos. Tanto assim que não recebem a bolsa no<br />

mês em que um de seus filhos faltar mais de dois dias às aulas (Buarque, apud KLEIN,<br />

00 : 8). Mais adiante, ao indicar a quem deve ser pago o benefício, informa o<br />

texto: A bolsa escola é um benefício pago à família, mas de preferência à mãe. Em sua<br />

ausência, procura-se fazer o pagamento à avó ou a outra figura femini<strong>na</strong> que tenha<br />

poder de controle e de decisão sobre as crianças a serem beneficiadas. Só em último caso,<br />

onde a criança é mantida e educada pelo pai solteiro ou viúvo, é que o pai passa a ser<br />

beneficiário da bolsa-escola (Buarque, apud KLEIN, 00 : 44).<br />

Acerca desse programa, então implementado como programa de governo,<br />

o então Ministro da Educação Paulo Re<strong>na</strong>to Souza publicou, <strong>na</strong> Folha de S.<br />

Paulo, em de maio de 00 (Dia das Mães), um artigo dirigido “Às mães dos<br />

estudantes brasileiros”, por meio do qual convocava as mulheres/mães brasileiras<br />

a acompanharem o desempenho “dos nossos alunos”: As mulheres estão à frente<br />

dos homens em todos os indicadores sociais [...]. Vocês, mulheres campeãs em <strong>educação</strong>,<br />

são as mães dos nossos alunos. Nós contamos com vocês para mandá-los à escola,<br />

para acompanharem seu desempenho, para ajudá-los a vencer as dificuldades (Souza,<br />

apud KLEIN, 00 : 4).<br />

Os excertos aqui citados nos instigam a perguntar: o que mais esse discurso<br />

promove, e de forma imperativa, para além dessa forma de empoderamento das<br />

mulheres às quais se dirige e de escolarização das crianças? Acho que não podemos<br />

deixar de reconhecer, dentre outras coisas, que ele incorpora e reforça a representação<br />

de mãe como primeira, melhor e principal responsável pelo cuidado dos<br />

filhos – a ponto de significar isto como um emprego (bastante mal-remunerado,<br />

diga-se de passagem!) com previsão de punições para alguns grupos de mulheres<br />

Nesse mesmo movimento, incorpora e reforça determi<strong>na</strong>das representações de maternidade<br />

e paternidade que são problemáticas em vários aspectos: a mulher como<br />

sinônimo de mãe é uma delas; a outra é a de paternidade ausente ou irresponsável<br />

como regra nos núcleos familiares mais pobres, o que produz, dentre outras coisas,<br />

sua (des)responsabilização pela vida das crianças que o integram. Estas representa-<br />

5 Uma versão já um pouco modificada dessa cartilha continua disponível em BUARQUE, Cristovam. Missão<br />

Criança. 100 perguntas e respostas que você precisa saber sobre a Bolsa-Escola. 2. ed. Brasília, 2000.<br />

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