Diversidade sexual na educação ... - unesdoc - Unesco

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14.04.2013 Views

cultural (em qualquer tempo e lugar), na medida em que é uma construção de caráter convencional, elege aleatoriamente – não inteiramente consciente, e num acontecer anônimo, coletivo e impessoal – suas instituições, padrões, crenças etc. que se integrarão à ordem (enquanto também uma “máquina simbólica” (BOUR- DIEU, 999: 8) como uma realidade única, universal e necessária, invalidando todas as demais alternativas por ela não ratificadas. A sexualidade não fica menos fora desse processo, que em ciências sociais chamamos de “institucionalização” do social (BERGER e LUCKMANN, 98 ) – assunto para cuja reflexão se pode igualmente mencionar Freud (FREUD, 9 9 [ 974]). Na história das nossas sociedades, a história da heterossexualidade angariou um notável privilégio, mas não menos sustentado pela eficácia da ideologia. Sendo o sexual polimorfo, variegado, diverso, o que ocorreu até aqui é que a institucionalização social procurou reduzi-lo a uma única forma, tendo sido a heterossexualidade a forma consentida e legitimada nas nossas sociedades. Este fato não guarda nenhum mistério, nem se deve a qualquer razão alheia às razões humanas: o consentimento da heterossexualidade, construída ao lado da negação da homossexualidade, não se deve a qualquer razão indiferente aos fatos que produzem a cultura, a história. Não é a heterossexualidade uma forma inata da sexualidade; como uma prática sexual, ela é social e historicamente construída, e sua naturalização e hegemonia ocorreram por efeito de um longo trabalho de domesticação do imaginário social das sociedades humanas, que se fez invalidando, ao mesmo tempo, a prática da homossexualidade, excluída como uma “inversão” da sexualidade “normal”. O próprio Freud considera essa hipótese da domesticação e da “proibição terminante pela sociedade” como fator de exclusão da homossexualidade na sexualidade dos indivíduos (FREUD, 90 [ 97 : ]; 9 9 [ 974: passim]). Sendo uma instituição histórico-social como outra, a heterossexualidade estabeleceu-se estigmatizando a homossexualidade, fato que se deu com a mesma semelhança e força com que a dominação masculina emergiu em todas as culturas. Aliás, a prevalência da dominação masculina e a supremacia da heterossexualidade são fatos que guardam relações entre si na história cultural das sociedades humanas. Porém, como assinalam diversos estudos (ROSALDO e LAMPHERE, 979; GODELIER, 99 ), o fato de não encontrarmos, nas diversas sociedades conhecidas, casos em que a dominação masculina não seja um dado antropológico, e conseqüentemente a submissão feminina seja sempre uma realidade, isto nada revela sobre uma pretendida inferioridade natural da mulher, mas revela, ao contrário, tão somente a longa história de dominação social dos homens que se baseou nos modelos de sociedade que a humanidade construiu até aqui. 116

O mesmo se deu com a valorização da heterossexualidade em detrimento da homossexualidade: um puro fato da história humana, que não possui nenhuma razão imanente (de qualquer ordem), mas que não foi sem conseqüência para o pensamento humano, como tem sido o caso também da questão da desigualdade entre homens e mulheres. Vale lembrar: o que toda uma perspectiva crítica – que volto a chamar construcionista 4 – tem procurado demonstrar é que a sexualidade é um construto social como outro e que sua existência se deve a um processo de construção que em nada difere de todo o processo de institucionalização da realidade. Não havendo sexualidade natural, mas social, o que ocorre com o sexual é o mesmo que ocorre com todas as demais esferas da vida social: algo que é uma construção arbitrária, uma instituição de caráter convencional e histórico, ganha, no curso histórico, a aparência de uma realidade natural, universal, necessária e irreversível, tornando inválidas todas as demais formas que ficaram foracluídas no processo da institucionalização. A homossexualidade é uma das formas foracluídas do sexual nas nossas sociedades, estigmatizada pelo discurso da instituição social da sexualidade. Do ponto de vista de uma constante antropológica e psíquica, ninguém está afastado da possibilidade de práticas eróticas com pessoas do mesmo sexo, de relações homossexuais. Conforme o Relatório Kinsey, já em 948 um quarto dos jovens americanos tinha tido relações homoeróticas. Não há o que se possa chamar de predisposição (inata ou adquirida) à homossexualidade em alguns e sua inexistência absoluta em outros, como algo determinado por movimentos internos do psiquismo ou como fenômeno enzimático-endocrinológico. De novo aqui, Freud, por mais que tenha fechado algumas vezes a via crítica aberta por ele próprio, deve ser lembrado entre os autores que indicaram a existência de uma “bissexualidade psíquica originária” no ser humano (FREUD, 97 , 974; cf. também ROUDINESCO, 00 : 4 ), o que torna possível pensar que é somente à custa de prolongada domesticação cultural que essa disposição psíquica desaparece para dar lugar à heterossexualidade ratificada como “normal” e “em conformidade com a natureza”. O preconceito inverteu as razões e apresentou a homossexualidade como um desvio de um suposto desenvolvimento normal, quando se trata de uma variante da sexualidade existindo em todos, mas inibida pela sujeição cultural – através da ideologia da heteronormatividade. A própria normalidade não sendo mais do que uma construção simbólica reversível, mas que, para se perpetuar, procura todos os meios de sua naturalização 4 Situaremos como construcionistas, por agora sem maiores distinções, os estudos configuracionistas em antropologia (Ruth Benedict, Margareth Mead, Melville Herskovits), a antropologia do simbólico (Lévi- Strauss, Geertz), a abordagem da aprendizagem social (Georg Herbert Mead, Peter Berger) e os estudos socio-históricos e socioantropológicos (Norbert Elias, Michel Foucault, Pierre Bourdieu, Maurice Godelier, Françoise Héritier, Elisabeth Badinter, Judith Butler, Michel Maffesoli, entre outros). 117

O mesmo se deu com a valorização da heteros<strong>sexual</strong>idade em detrimento<br />

da homos<strong>sexual</strong>idade: um puro fato da história huma<strong>na</strong>, que não possui nenhuma<br />

razão imanente (de qualquer ordem), mas que não foi sem conseqüência para o<br />

pensamento humano, como tem sido o caso também da questão da desigualdade<br />

entre homens e mulheres. Vale lembrar: o que toda uma perspectiva crítica – que<br />

volto a chamar construcionista 4 – tem procurado demonstrar é que a <strong>sexual</strong>idade é<br />

um construto social como outro e que sua existência se deve a um processo de construção<br />

que em <strong>na</strong>da difere de todo o processo de institucio<strong>na</strong>lização da realidade.<br />

Não havendo <strong>sexual</strong>idade <strong>na</strong>tural, mas social, o que ocorre com o <strong>sexual</strong> é o mesmo<br />

que ocorre com todas as demais esferas da vida social: algo que é uma construção<br />

arbitrária, uma instituição de caráter convencio<strong>na</strong>l e histórico, ganha, no curso<br />

histórico, a aparência de uma realidade <strong>na</strong>tural, universal, necessária e irreversível,<br />

tor<strong>na</strong>ndo inválidas todas as demais formas que ficaram foracluídas no processo da<br />

institucio<strong>na</strong>lização. A homos<strong>sexual</strong>idade é uma das formas foracluídas do <strong>sexual</strong> <strong>na</strong>s<br />

nossas sociedades, estigmatizada pelo discurso da instituição social da <strong>sexual</strong>idade.<br />

Do ponto de vista de uma constante antropológica e psíquica, ninguém está<br />

afastado da possibilidade de práticas eróticas com pessoas do mesmo sexo, de relações<br />

homossexuais. Conforme o Relatório Kinsey, já em 948 um quarto dos jovens<br />

americanos tinha tido relações homoeróticas. Não há o que se possa chamar de<br />

predisposição (i<strong>na</strong>ta ou adquirida) à homos<strong>sexual</strong>idade em alguns e sua inexistência<br />

absoluta em outros, como algo determi<strong>na</strong>do por movimentos internos do psiquismo<br />

ou como fenômeno enzimático-endocrinológico. De novo aqui, Freud, por mais que<br />

tenha fechado algumas vezes a via crítica aberta por ele próprio, deve ser lembrado<br />

entre os autores que indicaram a existência de uma “bis<strong>sexual</strong>idade psíquica originária”<br />

no ser humano (FREUD, 97 , 974; cf. também ROUDINESCO, 00 :<br />

4 ), o que tor<strong>na</strong> possível pensar que é somente à custa de prolongada domesticação<br />

cultural que essa disposição psíquica desaparece para dar lugar à heteros<strong>sexual</strong>idade<br />

ratificada como “normal” e “em conformidade com a <strong>na</strong>tureza”. O preconceito inverteu<br />

as razões e apresentou a homos<strong>sexual</strong>idade como um desvio de um suposto<br />

desenvolvimento normal, quando se trata de uma variante da <strong>sexual</strong>idade existindo<br />

em todos, mas inibida pela sujeição cultural – através da ideologia da heteronormatividade.<br />

A própria normalidade não sendo mais do que uma construção simbólica<br />

reversível, mas que, para se perpetuar, procura todos os meios de sua <strong>na</strong>turalização<br />

4 Situaremos como construcionistas, por agora sem maiores distinções, os estudos configuracionistas em<br />

antropologia (Ruth Benedict, Margareth Mead, Melville Herskovits), a antropologia do simbólico (Lévi-<br />

Strauss, Geertz), a abordagem da aprendizagem social (Georg Herbert Mead, Peter Berger) e os estudos<br />

socio-históricos e socioantropológicos (Norbert Elias, Michel Foucault, Pierre Bourdieu, Maurice Godelier,<br />

Françoise Héritier, Elisabeth Badinter, Judith Butler, Michel Maffesoli, entre outros).<br />

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