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ARTiSTAS CATARinEnSES diLuEM fROnTEiRAS, TRAnSfORMAM ...

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<strong>ARTiSTAS</strong> <strong>CATARinEnSES</strong> <strong>diLuEM</strong> <strong>fROnTEiRAS</strong>,<br />

<strong>TRAnSfORMAM</strong> SuAS CASAS EM ESPAçOS PúbLiCOS dE<br />

ExPOSiçõES ARTíSTiCAS E ELEvAM SEuS “vESTíGiOS” à<br />

COndiçãO dE MATéRiA-PRiMA ARTíSTiCA<br />

26 Foto: Fernanda Kock<br />

por Jessé Torres<br />

“O nde um trabalho começa? Onde começa minha<br />

casa?”, pergunta-se a artista Raquel Stolf, professora de<br />

artes visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina<br />

(Udesc). Rachel não tem dúvidas de que seu trabalho e<br />

sua casa se contaminam. A fronteira entre a criação e o<br />

banal parece destruída. Vive com o marido na Lagoa da<br />

Conceição, em Florianópolis. Nunca separou a casa do<br />

ateliê – que é também biblioteca, depósito e escritório.<br />

Essa ruptura de limites criou um território vago e instável,<br />

que define sua arte.<br />

Não está sozinha. Também no caso da artista catarinense<br />

Aline Dias, de Itajaí, a arte se mistura com as coisas da<br />

vida comum. Aline leva para a galeria partes aleatórias<br />

de seu mundo privado. Cubo de Poeira, um trabalho da<br />

artista selecionado pelo Prêmio Projéteis Funarte de<br />

Arte Contemporânea 2007-2008, é o resultado de um<br />

longo processo que acontece na intimidade de seu<br />

lar, em Florianópolis, onde vive com o marido, o artista<br />

e professor Diego Rayck, e a filha de poucos meses.<br />

Tornou-se uma aplicada colecionadora de vestígios<br />

da passagem do tempo pela casa. Tem o hábito de<br />

guardar parte do lixo caseiro, sem pensar muito se um<br />

dia vai utilizá-lo ou não. Pulgas dos gatos, migalhas de<br />

pão, cinzas de incenso, palitos, casulos de traças fazem<br />

parte de sua bizarra coleção. Eles são acomodados em<br />

embalagens de chocolate e arquivados com método. A<br />

arte pode vir das coisas mais desprezíveis. Fotografias<br />

de alimentos mofados ilustram sua estranha relação<br />

com a geladeira enquanto cursava o mestrado em<br />

Porto Alegre. Por passar a maior parte do tempo na rua,<br />

muitos alimentos estragavam. Parte desses restos virou<br />

obra de arte.<br />

27


Um projeto de Tamara Willerding, Espaço Contramão<br />

transforma casas em espaços de arte. “Curadoresresidentes”<br />

foram convidados a ceder o lar, em<br />

substituição às galerias. Realizaram, então, uma seleção<br />

de trabalhos que a artista Adriana Barreto, uma das<br />

participantes, chama de “curadoria afetiva”. A primeira<br />

curadora-residente foi Tamara, que hospedou em sua<br />

casa obras das colegas Adriana Barreto, Bruna Mansani<br />

e Sandra Checluski. As primeiras exposições foram<br />

combinadas e divulgadas boca a boca, em um clima de<br />

absoluta informalidade, tal qual um cafezinho na cozinha,<br />

aproximando assim a arte da vida.<br />

Na sexta edição do Contramão, denominada Fogos<br />

de Artifício e realizada no ano de 2006 na casa<br />

de Julia Amaral, amiga de Aline, a proposta era<br />

convidar amigos para expor trabalhos tão sutis que<br />

se misturassem aos objetos da casa e simplesmente<br />

desaparecessem como obras de arte. Eles criam o que<br />

chamam de uma “arte invisível”. Arte tão sutil a ponto<br />

de a faxina que Aline fez na residência da amiga<br />

horas antes da abertura da exposição se tornar, ela<br />

também, uma performance artística, simplesmente<br />

porque deixou suas marcas no ambiente.<br />

Conta Julia que foi uma “puta festa”, com a presença de<br />

cerca de 120 convidados, que circularam entre uma arte<br />

que, à primeira vista, não se deixa ver. De tempos em<br />

tempos, a dona da casa dava “blecautes”: apagava todas<br />

as luzes para que pudessem ver as moscas pintadas nas<br />

paredes com tinta fosforescente pela artista Adriana<br />

Barreto. No fim da festa, Julia descobriu que o símbolo<br />

do projeto, uma placa de trânsito fincada na entrada da<br />

casa, havia sumido. Doada por um amigo de Tamara que<br />

trabalha no Detran, ela foi simplesmente retirada por<br />

um vizinho desavisado, que a confundiu com uma placa<br />

comum – que, de fato, era.<br />

Aline ajuda a amiga Julia caçando os insetos que ela usa<br />

em seus trabalhos de fundição. Os três cães de Julia e seus<br />

próprios gatos a auxiliam nessa empreitada. A insólita<br />

cena aparece em um tríptico de fotografias sem título<br />

já exibido por Julia na Galeria Pedro Paulo Vecchietti e<br />

na exposição Impremeditações, realizada no Memorial<br />

Meyer Filho, ambos em Florianópolis. Um vídeo que nos<br />

ajuda a ver a arte invisível.<br />

Raquel Stolf também participou de edições do<br />

Contramão. Mantém caderninhos que, a qualquer<br />

momento, podem ser expostos: seu processo de criação<br />

é a própria obra. Guia-se pelo acaso, como quando<br />

um grilo entrou em seu quarto e, ato contínuo, foi<br />

incorporado a seu trabalho. Raquel gravou o cricrilar<br />

do inseto e depois reproduziu a gravação em carros de<br />

som, que circulavam pela cidade nos fins de tarde e à<br />

noite, confundindo os moradores. A fita chegou a Belém,<br />

onde a performance foi registrada em um vídeo. Nele,<br />

conhecemos Bacalhau, o responsável pela execução do<br />

som dos insetos na capital paraense.<br />

Em vez de carro de som, porém, Bacalhau usa uma<br />

bicicleta sonorizada. Uma coisa leva a outra. O vídeo, que<br />

a princípio era um simples registro de sua performance,<br />

foi parar na Fiat Mostra Brasil 2006, na qual Raquel<br />

expôs três bicicletas sonorizadas, disponíveis para quem<br />

desejasse pedalá-las. Os trabalhos da artista não são<br />

objetos fechados, mas objetos soltos no mundo, que<br />

estão sempre a gerar novos trabalhos.<br />

Com o abandono das técnicas clássicas das artes plásticas,<br />

os artistas não precisam mais de um lugar específico para<br />

trabalhar. Diego Rayck desenha não só em seus cadernos,<br />

mas nas paredes das galerias, como na série de desenhos<br />

Buracos, na qual retrata esburacamentos e escavações<br />

ficcionais. Sempre com o mesmo entusiasmo pelo<br />

desconforto provocado pelos falsos buracos, repetiu a<br />

experiência em outros ambientes. Ele é autor ainda de<br />

estranhos “homens paredes” – homens de gesso que<br />

emergem das paredes, como se estivessem presos a elas.<br />

Estudante de artes visuais, Priscilla Menezes tem<br />

um “ateliê” que não usa. Antigo laboratório da mãe,<br />

patologista, nele guarda seus trabalhos, além de materiais<br />

diversos, como conchas de praias da Grécia, penas, folhas<br />

Casa-movente, montada sobre rodas:<br />

combinação impossível de nomadismo e sedentarismo.<br />

Foto: Fernanda Kock<br />

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Para os artistas do Espaço Contramão, o registro do processo de criação é a própria arte. Foto: Fernanda Kock<br />

secas e insetos em vidrinhos. Hoje, ela prefere trabalhar<br />

no ambiente mais íntimo, mas também mais instável, do<br />

próprio quarto. Sua relação com o espaço é a de quem<br />

ama algo sobre o qual não tem total controle – análoga<br />

à que temos com o corpo, que não controla o lapso, o<br />

susto, a gargalhada.<br />

Muitas vezes, os trabalhos se aproximam tanto da vida que<br />

se transformam em uma ficcionalização dela. Isso acontece,<br />

por exemplo, quando Priscilla desafia seu medo do abismo<br />

em fotos que a mostram adormecida nas pedras da praia<br />

da Joaquina. A máquina de escrever sobre a mesa da avó já<br />

falecida, a também artista plástica Jarina Menezes, lhe serve<br />

como ferramenta para emprestar uma aparência antiga<br />

aos textos que usa em suas obras visuais. Na Exposição<br />

Seminário, atividade final da disciplina de performance na<br />

Udesc, de que também participa Tamara Willerding, Priscilla<br />

mostra fotografias em que aparece na casa vazia da avó<br />

morta. “Interessa-me pensar a matéria biográfica como<br />

fábula. Esquize 1 confessional, suspensão de limites. Gênese<br />

de si mesmo, e o ‘si mesmo’ como ficção. Imaginar uma<br />

vida”, dizem as primeiras palavras do texto que lê.<br />

1 Termo usado pela artista para expressar uma subjetividade ficcionalizada.<br />

Até os ruídos cotidianos se incorporam a esse<br />

trabalho. Raquel Stolf já gravou o som do fim do<br />

vácuo em embalagens de alimentos e o barulho que<br />

fazem as panquecas no fogo (faixa 31 do disco Fora<br />

[do Ar], “Panquecas Fantasmáticas”). No fôlder da<br />

exposição Cadernos de Desenho, pequenas imagens<br />

mostram a mesma mesa onde me recebe para a<br />

entrevista, mais uma obra em que um pedaço de sua<br />

intimidade aparece.<br />

Nascida de uma lista de compras, a primeira<br />

montagem da Lista de Coisas Brancas de Raquel<br />

foi feita em casa. É um inventário sem fim, que já<br />

conta com mais de 400 “coisas brancas” – palavras<br />

como “parede”, “comprimido”, “pessoa pálida”, “tudo”<br />

e “nada”. As palavras são adesivadas sobre diversas<br />

superfícies, em livro da artista, ou gravadas em áudio<br />

pela própria artista. Nesses casos, explica, “a palavra<br />

sonora é coisa”.<br />

Tomar a palavra em sua aparência física é também uma<br />

característica do poeta Dennis Radünz. “A casa mora onde<br />

obra a noite / se nenhum rumo mais a mura”, dizem<br />

os versos de “Casas Noturnas (I)”, do Livro de Mercúrio<br />

(Letradágua, 2001). O escritor teve uma infância nômade:<br />

já morou em 25 casas em seis cidades diferentes, entre<br />

elas Blumenau, onde nasceu, Joinville e Florianópolis.<br />

Considera que seus livros e discos são, na verdade, sua<br />

casa. Ou pelo menos os livros, já que os discos arranham,<br />

como frisa. Diz em “Moradas Volantes”, do livro Cidades<br />

Marinhas: Solidões Moradas (Lábias, 2009): “No final<br />

de meia vida, todas as casas são a mesma, com os<br />

cômodos à escolha, cheiros, caixas...”<br />

Radünz e Raquel compartilham a<br />

ideia de que o escritor se alimenta<br />

da perda, do esquecimento e<br />

do branco. Ele lembra de Funes,<br />

personagem do conto “Funes, o<br />

Memorioso”, do livro Ficções, de<br />

Jorge Luis Borges, um homem<br />

em conflito com o excesso de<br />

memória. Para Radünz, é preciso<br />

primeiro esquecer, para só então<br />

rechear as palavras de significado.<br />

Para ele, “um dos problemas<br />

da sociedade contemporânea<br />

é a repetição”. No poema<br />

“Impossível Silenciar o Mundo”,<br />

de Raquel, disponível no site<br />

Poetas no Singular (http://www.<br />

p o e t a s n o s i n g u l a r. c o m . b r ) ,<br />

aparece a ideia de deter o fluxo<br />

das palavras: “Decisão: durante<br />

cinco dias, a primeira palavra<br />

que surgisse em sua cabeça, / seria perpetuada até<br />

o pôr do sol / seria sincera consigo, / com a palavra<br />

/ e o silêncio / viveria apenas uma palavra / fosse<br />

qual fosse”.<br />

Radünz não tem uma relação forte com seu lugar de<br />

origem, nem com a cidade onde mora. Prefere a falta de<br />

identidade da vida urbana e por isso vive se mudando.<br />

“Eu sou sempre o mesmo, as casas é que passam por<br />

ATé OS RuídOS COTidiAnOS<br />

SE inCORPORAM AO<br />

TRAbALhO dE RAquEL<br />

STOLf, quE já GRAvOu O<br />

SOM dO fiM dO váCuO EM<br />

EMbALAGEnS dE ALiMEnTOS<br />

E O bARuLhO quE fAzEM AS<br />

PAnquECAS nO fOGO<br />

mim.” Aos 12 anos, desenhou uma cidade imaginária,<br />

onde tudo que possuía era um pequeno quarto. Já nesse<br />

desenho de menino despontava a ideia de que o artista<br />

não necessita de um lugar especial para criar, qualquer<br />

pequeno espaço – um quartinho apertado – lhe serve.<br />

“Um escritor não tem o pertencimento de nada, nada<br />

possui.” Esse nomadismo teria influenciado seus livros,<br />

que ele vê como uma reunião de poemas aleatórios, sem<br />

lastro, sem teto e sem arquitetura.<br />

O sentimento de nada possuir se estende a seus<br />

cadernos, onde faz anotações<br />

em um código muito pessoal e<br />

igualmente transitório. Achar um<br />

bloquinho com anotações de<br />

1998 em 2010 é reencontrar coisas<br />

estranhíssimas. “Aquilo que nos<br />

surpreende muda com o passar do<br />

tempo.” Radünz anota tudo que lhe<br />

soa estranho (“ossoso”, “lanugem”...),<br />

como se desbravasse novos<br />

“lugares” na linguagem. Considera<br />

que “as palavras em si mesmas são<br />

obras de arte” e, por isso, o trabalho<br />

do escritor pertence à arte (e à<br />

ruptura), e não à cultura e à tradição.<br />

Filha de uma família de alma cigana,<br />

Helene Sacco considera que as<br />

várias mudanças de sua infância a<br />

construíram como artista. “Via tudo<br />

que tínhamos se transformar num<br />

grande bloco, que se deslocava<br />

pelo país e tomava forma de lar, sempre igual, pois se<br />

tratavam dos mesmos objetos, mas dispostos de uma<br />

forma totalmente diferente...” Os primeiros trabalhos de<br />

Helene, desenvolvidos quando estudava artes visuais na<br />

Universidade Federal de Pelotas, já tratavam da questão<br />

da memória e do tempo no universo doméstico. Gaúcha<br />

de Canguçu, viveu alguns anos em Meleiro, pequena<br />

cidade catarinense de 7 mil habitantes, onde deu aulas<br />

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Os artistas do banal recolhem os fragmentos do cotidiano para transformá-los em arte, dos sons do quintal a milhares de palitos de fósforo usados. Foto: Fernanda Kock<br />

de pintura para mulheres. A experiência a mergulhou<br />

no universo caseiro, resultando na exposição<br />

individual Antologia Feminina, realizada na Fundação<br />

Cultural de Criciúma.<br />

Uma das pesquisas da artista, cujo trabalho está permeado<br />

pela ficcionalização do cotidiano (“O real e o inventado<br />

oscilam a todo momento”), resulta na obra Casa-movente,<br />

exposta até julho no 12º Salão Nacional de Artes de Itajaí.<br />

Uma casa ambulante, montada sobre rodas, que “expõe,<br />

sobretudo, a construção permanente do viver”. “A casamovente<br />

apresenta um paradoxo. É uma combinação<br />

impossível de nomadismo e sedentarismo.”<br />

Helene considera o lugar em que mora como um<br />

abrigo. “Eu sempre o pensei assim. Mas ele me ajuda<br />

também a pensar a construção de um território. Minha<br />

casa é ferramenta de criação.” Seu caderninho é virtual:<br />

o site a1infinito.net, criado praticamente junto com a<br />

construção da casa, mostra um pouco desse processo.<br />

“Deambulei por Porto Alegre à procura de objetos e<br />

isso me levou a pensar no funcionamento da cidade,<br />

nas formas de habitação, em soluções alternativas de<br />

moradia, em consumo, descarte.”<br />

Há 23 anos na Holanda, a artista brasileira Renata de<br />

Andrade também trabalha com material abandonado<br />

nas cidades. “Sinto-me muito ligada ao meio ambiente.<br />

Em casa, sou cuidadosa com o uso de energia, água,<br />

reflito muito antes de comprar uma roupa, e evito<br />

comidas embaladas em plástico. Procuro viver de uma<br />

forma consciente e respeitosa, que acaba influenciando<br />

meu trabalho.”<br />

Em novembro de 2009, fechou o ateliê que tinha havia<br />

22 anos em Amsterdã. Um pedaço de sua sala de visitas<br />

virou um estúdio. E começou a se interessar muito<br />

mais pelo espaço público. “Passei a fazer mais grafites, a<br />

colocar mais assemblages, esculturas e pinturas nas ruas,<br />

a considerar as ruas e as calçadas de Amsterdã como meu<br />

ateliê!” Como Aline Dias, Renata acumula em sua casa<br />

materiais como plástico, papelão, rolhas, sem saber que<br />

destino lhes dar. “Acho muito difícil não ver arte em tudo.”<br />

Na maioria das vezes, se sente mais como um instrumento<br />

do que a autora de sua obra. “Sou sua humilde serva...”<br />

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