Fragmentos de um Fascínio - Estudo Geral - Universidade de Coimbra
Fragmentos de um Fascínio - Estudo Geral - Universidade de Coimbra
Fragmentos de um Fascínio - Estudo Geral - Universidade de Coimbra
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
103<br />
a má q u i n a d a es c r i t a<br />
cadinho em que o verso ganha forma» (NhPF: 36), quer<br />
dizer, aquele célebre “vaso” que aponta para a criação<br />
poética como inspiração ou dádiva? A resposta, chega,<br />
cautelosa e (in)<strong>de</strong>finida pela voz do próprio:<br />
Tudo me sai violento e natural, assim,<br />
como o caudal <strong>de</strong> <strong>um</strong> rio sem r<strong>um</strong>o<br />
inundando campos férteis,<br />
arrastando consigo à passagem<br />
idosos entrevados, cabeças <strong>de</strong> gado,<br />
lembranças dadas como perdidas,<br />
retratos sem data, versos esquecidos,<br />
imagens apodrecidas na memória.<br />
(...)<br />
A oficina, a existir, está submersa<br />
pela lama, pela água e pela esp<strong>um</strong>a.<br />
Tudo o que é trabalho apenas subjaz,<br />
esmagado pelo peso do que a emoção dita. (NhPF: 49)<br />
A <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar <strong>um</strong>a dialéctica dos opostos, <strong>de</strong><br />
larga tradição, entre “escrita natural” e “escrita artificial”,<br />
sobressai <strong>de</strong>ste “poema‑resposta” não <strong>um</strong>a recusa do<br />
trabalho <strong>de</strong> tipo oficinal, mas <strong>um</strong>a poética que procura<br />
<strong>um</strong>a síntese superadora <strong>de</strong> dualismos, supostamente<br />
antitéticos. A imagem do poeta il<strong>um</strong>inado, <strong>de</strong> raiz<br />
platónica, possuído por forças estranhas e irreprimíveis,<br />
exposto a fulgurações súbitas on<strong>de</strong> colhe <strong>um</strong> alívio<br />
emocional momentâneo, não chega a <strong>de</strong>senhar‑se nítida<br />
na obra poética <strong>de</strong> J. J. Letria, mas parece espelhar, sem as<br />
suas ilusões românticas, o processo <strong>de</strong> composição poética<br />
que fundamenta a sua obra, também dialecticamente