Fragmentos de um Fascínio - Estudo Geral - Universidade de Coimbra
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a má q u i n a d a es c r i t a<br />
impaciência felina». À medida que nos per<strong>de</strong>mos, ou nos<br />
encontramos, nos meandros do trânsito poético, neste<br />
como noutros lugares, assistimos ao prazer contagiante<br />
<strong>de</strong> criar linguagem, erguida em espectáculo.<br />
A ansieda<strong>de</strong>, o transporte, a activida<strong>de</strong> febril, o<br />
furor poeticus falam frequentes vezes nesta poesia através<br />
do prosaico ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> capas pretas, suporte material<br />
da escrita, que vemos rodopiar em alguns poemas<br />
«enfurecido/ sobre <strong>um</strong> eixo imaginário/ com o poeta<br />
<strong>de</strong>ntro a querer juntar/ os fragmentos todos do que<br />
disse» (MI: 29) ou disposto nos joelhos <strong>de</strong> Jofre, outra<br />
sobressaltada personagem <strong>de</strong> Os Amotinados do Vento,<br />
dividida entre «a visceral necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escrever e o<br />
terror <strong>de</strong> começar» 5 .<br />
Tomados, poeta e personagem, pela força<br />
incontrolável do acto criador, respon<strong>de</strong>m apenas à poesia<br />
(em verso ou em prosa), ou melhor, à sua aparição, que<br />
os chama invariavelmente com a voz da urgência. E<br />
nem sempre o chamamento, a visita daquela com quem<br />
alguns poetas, que dizem acreditar apenas na técnica,<br />
afirmam nunca ter privado, é <strong>de</strong>sejada: «O pior ainda<br />
são os dias em que toda/ a escrita é <strong>de</strong>spropositada e<br />
incómoda./ A mão que ousa o verso é lenta e trémula/<br />
prolongando o tédio sobre a página» (NA: 99).<br />
A pergunta que parece fazer mover esta escrita é<br />
a que atrai J. J. Letria para a página em branco: “Quem<br />
me chama?” – o Livro, irrecusável e inadiável resposta a<br />
esse apelo, a exigir <strong>um</strong>a disponibilida<strong>de</strong> absoluta, <strong>um</strong>a<br />
5 «Jofre ou o Mistério da Escrita»: J. J. Letria, Os Amotinados do<br />
Vento, Lisboa, Editorial Escritor, 1993, p. 122.