Fragmentos de um Fascínio - Estudo Geral - Universidade de Coimbra
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a má q u i n a d a es c r i t a<br />
inquietante, vamos encontrar esta personagem que,<br />
marcando <strong>um</strong> afastamento em relação à poética<br />
surrealista, confessa nunca ter praticado a escrita<br />
automática, nem acreditar nos «catárticos po<strong>de</strong>res da<br />
imagem vinda dos subterrâneos viscosos do instinto», no<br />
que po<strong>de</strong> ser entendido como <strong>um</strong>a remissão auto‑irónica<br />
para aquela concepção <strong>de</strong> poesia que se encontra<br />
fixada em Platão 4 , que associa a criação poética a <strong>um</strong><br />
<strong>de</strong>sregramento, a <strong>um</strong>a loucura própria <strong>de</strong> quem per<strong>de</strong><br />
a razão em favor do sopro das musas. Questionando o<br />
domínio que exerce sobre si o enredo das personagens<br />
saídas do livro aberto à sua beira, afirma‑se alucinada<br />
pela escrita.<br />
À semelhança <strong>de</strong>sta personagem, em que o<br />
autor se implica, também o “eu” que fala no universo<br />
poético <strong>de</strong> J. J. Letria se sente arrastado para a escrita e<br />
dominado por <strong>um</strong>a força estranha, <strong>de</strong>scrita n<strong>um</strong> poema<br />
como «<strong>um</strong>a alavanca nocturna, violenta e secreta [que<br />
lhe] norteia os gestos e as falas/ muito para além do<br />
entendimento» (SR‑L: 48).<br />
Assim se explica, talvez, que alguns poemas digam<br />
o que não era esperado que dissessem: «E as palavras<br />
<strong>de</strong> on<strong>de</strong> me chegam, quantas são,/ com que intenção<br />
me visitam, com que/ propósito me põem na boca tudo<br />
aquilo/ que eu, por pudor, jurei nunca dizer?» (PIL:<br />
9); «Quem foi que escreveu o verso/ que <strong>de</strong>snuda que<br />
flagela quem amou?» (LBM: 31)<br />
Não que o poeta se transforme, pelo menos<br />
exclusivamente, n<strong>um</strong> medi<strong>um</strong> da linguagem, n<strong>um</strong><br />
4 Fedro, 245a, 265b; Íon, 534b‑c.