Fragmentos de um Fascínio - Estudo Geral - Universidade de Coimbra

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14.04.2013 Views

Teresa Carvalho Eles assinalam, por um lado, um procedimento comum na poesia do autor: o acto de se voltar para si mesma, ou, e servindo‑me de uma expressão que a imagem autoriza, para a própria engrenagem poética – meditando‑se, inquirindo‑se, sondando‑se, envolvendo o leitor num exercício de lúcida reflexão que revela uma forte consciência dos mecanismos implicados nos processos de significação em poesia, com as suas práticas verbais, métodos, processos e recursos, das suas próprias contradições, a adensar‑se nas obras mais recentes. Não Há Poetas Felizes, livro onde cabe «A Celebração da Metáfora», velha aliada do seu jogo de sedução com a linguagem e tantas vezes convocada no interior do próprio discurso poético, é bem um exemplo dessa consciência que confere espessura meditativa ao poema. Por outro lado, aqueles versos iniciais aproximam‑nos da ideia da (involuntária) criação contínua, simbolizada nas rodas de uma máquina de funcionamento só aparentemente simples – a da escrita, enquanto acto de linguagem – em que o poeta parece não ter mão: Move‑se uma máquina febril por detrás dos tapumes altos desta escrita e ao mover‑se clama por um entendimento que tantas vezes me supera, me transtorna. Será que não passo do instrumento difícil de um dizer que me não pertence? (SR‑L: 30) Movendo‑se por sua conta – e risco do “eu” –, ao sabor do furor e do fulgor de uma força incendiária, isto é, fora do controle de uma consciência poética que sabe 92

93 a má q u i n a d a es c r i t a das regras e da sua subversão, esta «inquieta máquina da escrita», como aparece designada noutro lugar (NhPF: 36) e que põe a questão do acto poético como acto não deliberado, faz do poeta um ser alvoraçado, consumido pelo eco do que escreve (e pelo vazio do que não escreve: «Morro todos os dias um pouco mais/ naquilo que não escrevo» – II: 59): «Não pode haver paz depois desta escrita:/ somente fogo, fumo e cinza./ Resigno‑me? Nunca, que a resignação é uma morte antes da morte,/ uma capitulação antes da derrota» (SR‑L: 41). Posto num movimento ininterrupto – «Eu sou aquele que escreve, sempre/ só para não morrer com a comoção dos livros adiados» (NhPF: 50) –, implicando o leitor nesse espaço de fluxo perpétuo, fazendo‑o participar da órbita instaurada pela Poesia (também por força do enjambement que, ao enlaçar os versos, nega a pausa que proporcionaria o repouso), vê‑se o poeta a criar sob um estado de sujeição que parece dispensar qualquer saber, no sentido de um conhecimento prático da poesia, entendida como labor e artefacto. E interessante é notar, n’ «A Última Ficção», conto que abre o volume Os Amotinados do Vento – colectânea do autor que reescreve em prosa as temáticas e motivos preferenciais da obra poética –, a agitação interior de uma personagem masculina sem nome, ou a recusar a clausura de um nome (que faz aparecer o autor empírico, apontado por pormenores de incidência biográfica), no momento em que nasce para a escrita e o modo como esta se realiza nela:

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a má q u i n a d a es c r i t a<br />

das regras e da sua subversão, esta «inquieta máquina da<br />

escrita», como aparece <strong>de</strong>signada noutro lugar (NhPF:<br />

36) e que põe a questão do acto poético como acto não<br />

<strong>de</strong>liberado, faz do poeta <strong>um</strong> ser alvoraçado, cons<strong>um</strong>ido<br />

pelo eco do que escreve (e pelo vazio do que não escreve:<br />

«Morro todos os dias <strong>um</strong> pouco mais/ naquilo que não<br />

escrevo» – II: 59): «Não po<strong>de</strong> haver paz <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sta<br />

escrita:/ somente fogo, f<strong>um</strong>o e cinza./ Resigno‑me?<br />

Nunca, que a resignação é <strong>um</strong>a morte antes da morte,/<br />

<strong>um</strong>a capitulação antes da <strong>de</strong>rrota» (SR‑L: 41).<br />

Posto n<strong>um</strong> movimento ininterrupto – «Eu sou<br />

aquele que escreve, sempre/ só para não morrer com a<br />

comoção dos livros adiados» (NhPF: 50) –, implicando<br />

o leitor nesse espaço <strong>de</strong> fluxo perpétuo, fazendo‑o<br />

participar da órbita instaurada pela Poesia (também por<br />

força do enjambement que, ao enlaçar os versos, nega<br />

a pausa que proporcionaria o repouso), vê‑se o poeta<br />

a criar sob <strong>um</strong> estado <strong>de</strong> sujeição que parece dispensar<br />

qualquer saber, no sentido <strong>de</strong> <strong>um</strong> conhecimento<br />

prático da poesia, entendida como labor e artefacto. E<br />

interessante é notar, n’ «A Última Ficção», conto que<br />

abre o vol<strong>um</strong>e Os Amotinados do Vento – colectânea do<br />

autor que reescreve em prosa as temáticas e motivos<br />

preferenciais da obra poética –, a agitação interior <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong>a personagem masculina sem nome, ou a recusar a<br />

clausura <strong>de</strong> <strong>um</strong> nome (que faz aparecer o autor empírico,<br />

apontado por pormenores <strong>de</strong> incidência biográfica), no<br />

momento em que nasce para a escrita e o modo como<br />

esta se realiza nela:

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