Fragmentos de um Fascínio - Estudo Geral - Universidade de Coimbra
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a P o É t i c a d a m á s c a ra e d o (d e s)m a s c a ra r<br />
presente do seu tio Gervásio. Cedo a acrescentou à sua<br />
colecção e por ela nutriu <strong>um</strong> profundo afecto. Até que<br />
<strong>um</strong>a noite, enquanto esperava pelos filhos que haviam<br />
saído e tardavam em chegar, se <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> a pregar‑lhes <strong>um</strong>a<br />
partida: coloca a máscara para os assustar à sua entrada<br />
sorrateira em casa. Finda a brinca<strong>de</strong>ira,<br />
não consegui tirar a máscara do rosto. Colara‑se <strong>de</strong> tal maneira<br />
à minha pele que eu sentia que já fazia parte <strong>de</strong> mim. Chorei,<br />
gritei, pedi ajuda, mas ninguém conseguiu libertar‑me daquela<br />
segunda cara que se apo<strong>de</strong>rara da que me tinha acost<strong>um</strong>ado a<br />
ver ao espelho durante mais <strong>de</strong> quatro décadas.<br />
Volvido em <strong>de</strong>us africano dos fenómenos<br />
atmosféricos para a eternida<strong>de</strong>, incomoda‑o apenas<br />
quando lhe pe<strong>de</strong>m que faça chover ou dê morte a alguém.<br />
A máscara apo<strong>de</strong>rou‑se do indivíduo que a usou, foi<br />
também neste caso o eu superado pela força ancestral <strong>de</strong><br />
<strong>um</strong> outro eu, como a palavra poética domina e comanda<br />
o ritmo <strong>de</strong> escrita do próprio poeta, ora o il<strong>um</strong>inando,<br />
ora o assombrando. Mais do que <strong>de</strong>spersonalização, há<br />
talvez que falar em duplicação do sujeito, que <strong>de</strong> uno<br />
passa a ser duplo. O fingimento dita a criação <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />
nova entida<strong>de</strong>, tão real e po<strong>de</strong>rosa (ou mais) do que a<br />
primeira, i<strong>de</strong>ia prosaicamente expressa, no texto que<br />
estamos a comentar, do seguinte modo:<br />
Tive que renovar toda a minha doc<strong>um</strong>entação, e só quando<br />
imito o riso sarcástico da hiena ou o rugido do leão para<br />
afugentar as crianças do bairro é que percebo até que ponto<br />
o presente <strong>de</strong> aniversário do meu tio Gervásio transformou a<br />
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