Fragmentos de um Fascínio - Estudo Geral - Universidade de Coimbra
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Carlos A. Martins de Jesus no texto o temor da escrita. Da morte. A noite entra na noite como um dardo apontado ao coração das rosas sobre o ventre. (II: 341) A face do actor/poeta e a máscara que a cobre, de forma demasiado perfeita, são afinal duas faces, duas personagens que partilham, na ficção do poema/ peça, «vertiginoso exercício teatral», um mesmo nível de realidade. Mas logo a «personagem [que] morre/ por dentro daquilo que não diz», essa face primordial disfarçada, perde, na lógica de um fingimento perfeito, a sua existência essencial. Porque o poema, «máscara/ violentamente colada à fala,/ fingimento amável que duplica/ no texto o temor da escrita» é, como o jogo dramático, essa ânsia pela despersonalização que, no limite, conduz ao apagamento do eu, à sua (con)fusão com esse outro eu criado, qual criatura que suplanta o criador. Diríamos que o poeta, na senda de um pessoanismo mais inevitável que programático, “finge tão completamente/ que chega a fingir que é [fingimento]/ [o fingimento] que deveras sente”. A máscara que não mais se descola da face a que foi encostada é o motor desse processo, objecto à partida inanimado que logo ganha vida e se apodera do ser que julgava deter o domínio. Num breve texto em prosa, intitulado Variações sobre uma máscara 3 , o narrador conta‑nos a oferta, no seu quadragésimo aniversário, de uma máscara africana, 3 In O Homem que odiava os domingos e outras histórias, Lisboa, Âmbar, 2007 [2003], p.98. 84
a P o É t i c a d a m á s c a ra e d o (d e s)m a s c a ra r presente do seu tio Gervásio. Cedo a acrescentou à sua colecção e por ela nutriu um profundo afecto. Até que uma noite, enquanto esperava pelos filhos que haviam saído e tardavam em chegar, se decide a pregar‑lhes uma partida: coloca a máscara para os assustar à sua entrada sorrateira em casa. Finda a brincadeira, não consegui tirar a máscara do rosto. Colara‑se de tal maneira à minha pele que eu sentia que já fazia parte de mim. Chorei, gritei, pedi ajuda, mas ninguém conseguiu libertar‑me daquela segunda cara que se apoderara da que me tinha acostumado a ver ao espelho durante mais de quatro décadas. Volvido em deus africano dos fenómenos atmosféricos para a eternidade, incomoda‑o apenas quando lhe pedem que faça chover ou dê morte a alguém. A máscara apoderou‑se do indivíduo que a usou, foi também neste caso o eu superado pela força ancestral de um outro eu, como a palavra poética domina e comanda o ritmo de escrita do próprio poeta, ora o iluminando, ora o assombrando. Mais do que despersonalização, há talvez que falar em duplicação do sujeito, que de uno passa a ser duplo. O fingimento dita a criação de uma nova entidade, tão real e poderosa (ou mais) do que a primeira, ideia prosaicamente expressa, no texto que estamos a comentar, do seguinte modo: Tive que renovar toda a minha documentação, e só quando imito o riso sarcástico da hiena ou o rugido do leão para afugentar as crianças do bairro é que percebo até que ponto o presente de aniversário do meu tio Gervásio transformou a 85
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Carlos A. Martins <strong>de</strong> Jesus<br />
no texto o temor da escrita. Da morte.<br />
A noite entra na noite como <strong>um</strong> dardo<br />
apontado ao coração das rosas sobre o ventre. (II: 341)<br />
A face do actor/poeta e a máscara que a cobre,<br />
<strong>de</strong> forma <strong>de</strong>masiado perfeita, são afinal duas faces,<br />
duas personagens que partilham, na ficção do poema/<br />
peça, «vertiginoso exercício teatral», <strong>um</strong> mesmo nível<br />
<strong>de</strong> realida<strong>de</strong>. Mas logo a «personagem [que] morre/<br />
por <strong>de</strong>ntro daquilo que não diz», essa face primordial<br />
disfarçada, per<strong>de</strong>, na lógica <strong>de</strong> <strong>um</strong> fingimento perfeito,<br />
a sua existência essencial. Porque o poema, «máscara/<br />
violentamente colada à fala,/ fingimento amável que<br />
duplica/ no texto o temor da escrita» é, como o jogo<br />
dramático, essa ânsia pela <strong>de</strong>spersonalização que, no<br />
limite, conduz ao apagamento do eu, à sua (con)fusão<br />
com esse outro eu criado, qual criatura que suplanta o<br />
criador.<br />
Diríamos que o poeta, na senda <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />
pessoanismo mais inevitável que programático, “finge tão<br />
completamente/ que chega a fingir que é [fingimento]/<br />
[o fingimento] que <strong>de</strong>veras sente”. A máscara que não<br />
mais se <strong>de</strong>scola da face a que foi encostada é o motor<br />
<strong>de</strong>sse processo, objecto à partida inanimado que logo<br />
ganha vida e se apo<strong>de</strong>ra do ser que julgava <strong>de</strong>ter o<br />
domínio.<br />
N<strong>um</strong> breve texto em prosa, intitulado Variações<br />
sobre <strong>um</strong>a máscara 3 , o narrador conta‑nos a oferta, no<br />
seu quadragésimo aniversário, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a máscara africana,<br />
3 In O Homem que odiava os domingos e outras histórias, Lisboa,<br />
Âmbar, 2007 [2003], p.98.<br />
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