Fragmentos de um Fascínio - Estudo Geral - Universidade de Coimbra

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14.04.2013 Views

67 ca r t o g ra f a n d o o labirinto estio» (e fulgurações perdidas); namoradas «que casaram e engordaram»; a figura sempre simpática que é para J. J. Letria a da Espanha; amigos que desapareceram estupidamente; o velho Santini, «mestre dos paladares do gelo». O próprio Eusébio‑pantera, «a enxugar as lágrimas de um jogo fatal», circula no espaço textual desta longa fala onde o monologismo para que pende esta poesia dá lugar ao dialogismo interior de um “eu” que, errante, numa verificação amarga do presente, «procura a porta para se evadir do poema». Não menos importantes são as figuras literárias que a memória culta, de um modo ou de outro, traz ao poema – Plauto, Pavese, Calvino, o próprio Pessoa (poeta que quanto mais J. J. Letria invade, mais é invadido por ele). Dão conta de uma aproximação de vozes, de um diálogo íntimo em que o autor que convoca e o autor convocado se estreitam, num implícito confronto de mundivivências. Acrescente‑se ainda a própria figura da linguagem, sempre tão presente, com a qual o poeta mantém uma tão estreita relação – a alma de um ‘negócio’ sublime que tantas vezes ameaça falir, sob a forma do silêncio, mas que o adivinhado sofrimento pela mudez criativa impede de fechar portas: «confesso que estou cansado, mas declaro/ que nada me fará desistir, renunciar» (II: 260). É um poema muito povoado, a descrever, paradoxalmente, um percurso de perda e de solidão. Tanto assim que o espaço‑tempo do presente cede a sua realidade ao espaço‑tempo do passado; a indiferença, o abandono e a inquietude do presente são quebrados pela companhia e pelo aconchego trazido ao poema pela

Teresa Carvalho figura do pai; à ausência de agora respondem as vozes da mãe e da avó, figura tutelar da sua infância. Tudo se conjuga, na verdade, para que o acto de escrita seja um acto de duração intensa, a produzir as suas marcas discursivas. Descendo a Rua da Bela Vista, a caminho da Baía – num movimento paralelo ao da vida – caminha pois o poeta enleado em negócios, tentando captar, através de um processo de rememoração subtil, a substância emotiva de vivências que se reportam a lugares e a ciclos diversos («Também na escrita há um ciclo que se fecha./ Nada voltará a ser dito como dantes, eu sei») (II: 256). Dos fios, de desigual espessura, que compõem estes ‘negócios’ destaque‑se o fio oculto que, passando pelo presente, liga o começo ao fim, a origem à morte, prefigurada no fechar do «armário azul da infância» (II: 262). Termina o poema com uma afirmação‑epitáfio que adquire neste contexto interpretativo um especial valor: «Com tão pouco me teriam feito feliz» (II: 262). Ora, é sabido que sem obtenção de ganhos não há negócios. Eis «Rendimento da Espera», um poema de Corso e Partilha com uma constelação vocabular que mascara o tema central e em que cada grupo estrófico ganha mais um verso – subtilezas do trabalho poético, lucros discretos de um poeta consciente dos seus próprios recursos: O rendimento desta espera não é, nunca será mensurável 68

Teresa Carvalho<br />

figura do pai; à ausência <strong>de</strong> agora respon<strong>de</strong>m as vozes<br />

da mãe e da avó, figura tutelar da sua infância. Tudo<br />

se conjuga, na verda<strong>de</strong>, para que o acto <strong>de</strong> escrita seja<br />

<strong>um</strong> acto <strong>de</strong> duração intensa, a produzir as suas marcas<br />

discursivas.<br />

Descendo a Rua da Bela Vista, a caminho da Baía<br />

– n<strong>um</strong> movimento paralelo ao da vida – caminha pois<br />

o poeta enleado em negócios, tentando captar, através<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong> processo <strong>de</strong> rememoração subtil, a substância<br />

emotiva <strong>de</strong> vivências que se reportam a lugares e a<br />

ciclos diversos («Também na escrita há <strong>um</strong> ciclo que<br />

se fecha./ Nada voltará a ser dito como dantes, eu<br />

sei») (II: 256). Dos fios, <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigual espessura, que<br />

compõem estes ‘negócios’ <strong>de</strong>staque‑se o fio oculto<br />

que, passando pelo presente, liga o começo ao fim,<br />

a origem à morte, prefigurada no fechar do «armário<br />

azul da infância» (II: 262). Termina o poema com<br />

<strong>um</strong>a afirmação‑epitáfio que adquire neste contexto<br />

interpretativo <strong>um</strong> especial valor: «Com tão pouco me<br />

teriam feito feliz» (II: 262).<br />

Ora, é sabido que sem obtenção <strong>de</strong> ganhos não<br />

há negócios. Eis «Rendimento da Espera», <strong>um</strong> poema<br />

<strong>de</strong> Corso e Partilha com <strong>um</strong>a constelação vocabular que<br />

mascara o tema central e em que cada grupo estrófico<br />

ganha mais <strong>um</strong> verso – subtilezas do trabalho poético,<br />

lucros discretos <strong>de</strong> <strong>um</strong> poeta consciente dos seus próprios<br />

recursos:<br />

O rendimento <strong>de</strong>sta espera<br />

não é, nunca será mensurável<br />

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