Fragmentos de um Fascínio - Estudo Geral - Universidade de Coimbra

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14.04.2013 Views

63 ca r t o g ra f a n d o o labirinto semelhança do próprio Pessoa, não encontra desmentido no universo poético de J. J. Letria, naquele sentido em que ele acolhe, numa conjugação de linguagens em conflito que o poeta engenhosamente pratica, dois mundos semanticamente diferenciados. De resto, parece discordar o poeta da afirmação de Álvaro de Campos nos versos em epígrafe, que, curiosamente, demonstra na «Ode Marítima» entender mais de operações comerciais e embarque de mercadorias do que de engenharia naval: Sonhaste‑me engenheiro naval com uma bolsa de estudo numa cidade italiana e com um futuro radioso que fizesse a inveja dos teus colegas entorpecidos pela rotina do escritório, entre cheques, ordens de compra e guias de remessa, e eu saí poeta, com uma biografia soturna e grave que se resume na solidão dos versos urdidos com magoado artifício em sucessivas vigílias. (BIV: 45) Talvez o poeta preferisse ser o positivo engenheiro naval, tal como o pai o sonhou, trocando «as cordas tensas, apertadas de infinita incerteza», que surgirão no núcleo de sentido que o poema intertextualmente desenvolve, por cordames prosaicos de embarcações. Talvez preferisse ser um cantor de odes triunfais e deixar‑se absorver pela poesia que haverá numa factura ou numa carta comercial, numa palavra que não mais nas linhas pautadas, os versos da epopeia comercial de Vasques e C.ª, e o convés onde vejo com cuidado, um pouco ao lado da pauta alcatroada dos interstícios das tábuas, as cadeiras longas alinhadas, e as pernas saídas dos que sossegam na viagem”.

Teresa Carvalho sacrificaria os significados, que não mais os distenderia, fazendo‑a sangrar. Ou o próprio prolongamento humano dos calmos escritórios. Ou até mesmo, como equacionou num poema de sugestivo título – «Mudança de Pele» – corretor da bolsa. Talvez preferisse, como Bernardo Soares, consumir a sua vida nos escritórios comerciais da Baixa de Lisboa a viver emparedado pelos livros (a expressão é sua) e a habitar no coração do desassossego que nomeia o livro do semi‑heterónimo de Pessoa. (cf. «Os Livros Pedem‑me Contas» MMV: 48). Talvez preferisse um retrato luminoso de objectivação simples e anódina a uma biografia ‘excessiva’. A verdade é que um dom intranquilo fez dele um «mercador de sonhos e mistérios», assim se auto‑descreve num poema de Bagagem Imaterial do Voo, reportando‑se a um passado que se prolonga no presente. «Ofício louco este que nos faz sacrificar/ a paz do rosto à crispação e ao esgar,/ que nos leva a desafiar a lógica oculta/ dos dedos tacteando os músculos» – desabafa o poeta em O Dom Intranquilo (p. 25). À exactidão necessária dos livros de contas, aconselhada a um mercador, corresponde a «ciência inexacta do poema», lugar de exploração de matérias como a vida e a morte, faces de um mesmo enigma interrogado pela linguagem. Em «A Ira Dos Poetas», de Carta de Afectos, uma celebração veemente da vida contra o esquecimento e a morte, a multiplicar os recursos de que se pode valer um poeta para registrar os seus sonhos, a sua expressão pessoal e a sua indignação, transgride o ‘mercador’ 64

Teresa Carvalho<br />

sacrificaria os significados, que não mais os disten<strong>de</strong>ria,<br />

fazendo‑a sangrar. Ou o próprio prolongamento h<strong>um</strong>ano<br />

dos calmos escritórios. Ou até mesmo, como equacionou<br />

n<strong>um</strong> poema <strong>de</strong> sugestivo título – «Mudança <strong>de</strong> Pele»<br />

– corretor da bolsa. Talvez preferisse, como Bernardo<br />

Soares, cons<strong>um</strong>ir a sua vida nos escritórios comerciais<br />

da Baixa <strong>de</strong> Lisboa a viver emparedado pelos livros (a<br />

expressão é sua) e a habitar no coração do <strong>de</strong>sassossego<br />

que nomeia o livro do semi‑heterónimo <strong>de</strong> Pessoa.<br />

(cf. «Os Livros Pe<strong>de</strong>m‑me Contas» MMV: 48). Talvez<br />

preferisse <strong>um</strong> retrato l<strong>um</strong>inoso <strong>de</strong> objectivação simples<br />

e anódina a <strong>um</strong>a biografia ‘excessiva’. A verda<strong>de</strong> é que<br />

<strong>um</strong> dom intranquilo fez <strong>de</strong>le <strong>um</strong> «mercador <strong>de</strong> sonhos<br />

e mistérios», assim se auto‑<strong>de</strong>screve n<strong>um</strong> poema <strong>de</strong><br />

Bagagem Imaterial do Voo, reportando‑se a <strong>um</strong> passado<br />

que se prolonga no presente.<br />

«Ofício louco este que nos faz sacrificar/ a paz<br />

do rosto à crispação e ao esgar,/ que nos leva a <strong>de</strong>safiar<br />

a lógica oculta/ dos <strong>de</strong>dos tacteando os músculos»<br />

– <strong>de</strong>sabafa o poeta em O Dom Intranquilo (p. 25). À<br />

exactidão necessária dos livros <strong>de</strong> contas, aconselhada<br />

a <strong>um</strong> mercador, correspon<strong>de</strong> a «ciência inexacta do<br />

poema», lugar <strong>de</strong> exploração <strong>de</strong> matérias como a vida e<br />

a morte, faces <strong>de</strong> <strong>um</strong> mesmo enigma interrogado pela<br />

linguagem.<br />

Em «A Ira Dos Poetas», <strong>de</strong> Carta <strong>de</strong> Afectos, <strong>um</strong>a<br />

celebração veemente da vida contra o esquecimento e<br />

a morte, a multiplicar os recursos <strong>de</strong> que se po<strong>de</strong> valer<br />

<strong>um</strong> poeta para registrar os seus sonhos, a sua expressão<br />

pessoal e a sua indignação, transgri<strong>de</strong> o ‘mercador’<br />

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