Fragmentos de um Fascínio - Estudo Geral - Universidade de Coimbra

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14.04.2013 Views

59 ca r t o g ra f a n d o o labirinto tranquilizador: o “eu” que fala nesta poesia, assumindo os seus anseios, as suas dúvidas e as suas contradições, não é um poeta de ideias seguras e contas certas: «a minha ciência é a soma/ de todas as dúvidas do mundo (MI: 22); «eu sou o cálculo imperfeito/ que leva os navegantes ao naufrágio» (CP: 57). Diga‑se, também, que não tem as contas saldadas com a poesia – longe disso –, sendo que o inverso também parece ser verdade: «Vejo‑a, à poesia bem entendido,/ passar ao largo, relutante e esquiva,/ como se um de nós estivesse/ em dívida um com o outro/ não desejando reconhecê‑lo em público» (NhPF: 18). Nesta contagem de ausências e existências dispersas/fragmentadas e de stocks, que são, expliquemos, as artes e processos do fingimento e do artifício (e o comprazimento neles) que o poeta provê para enredar o leitor (que quanto mais procura desvendar o mistério da escrita de José Jorge Letria, mais vê multiplicarem‑se os enigmas), assumem as operações aritméticas elementares, a invadir o discurso poético, particular importância: «A minha morte/ é a soma de mil selvagens, atordoadas, sufocantes/ vidas, repartidas entre o que sou e o que sonho» (BIV: 16). Numa poesia em que o excesso e o vazio lutam num espaço tensivo, não surpreende que a multiplicação e a divisão adquiram especial valor hermenêutico. Nesta estranha matemática em que multiplicar é dividir, se assume a busca de uma identidade que, por tão fugidia, obstinadamente se procura:

Teresa Carvalho Que vereda de aço, que ecrã gigante é este em que me divido e multiplico? (PM: 9) Sou sempre o outro, o que está e não está, dividindo e dividindo‑se, descrendo com o júbilo desconcertante de quem finge crer. (PIL: 18) Multipliquei‑me em tantas páginas que tudo dizendo a meu respeito nada dizem sobre mim, fingidas e densas como os livros da loucura da infância. (PIL: 17) Longe vai já o tempo da «matemática perfeita» (NhPF: 38), a que o poeta alude num poema centrado na infância, idade em que as palavras eram, a um tempo, revelação, rumo e ordem. O travo – a fel – deixado por estas operações, encontramo‑lo, entre tantos outros exemplos possíveis, num poema com um título revelador: «A Confissão do Duplo» (PIL: 17). Afirmou Goethe que a contabilidade é uma das mais belas invenções da mente humana e todo o bom empresário a devia introduzir na sua administração. José Jorge Letria, um bom gestor da sua própria multiplicidade, seguiu‑lhe o conselho. Com efeito, enquanto técnica de registos que procura captar, acumular (ou reunir), resumir e interpretar, ela funciona como um meio de controle de um “eu” que permanentemente se desdobra, projectando‑se no espelho da ficção poética, num misto de dor e satisfação criadora. Poderoso instrumento de gestão de um poeta que se diz heterónimo de si mesmo, ela assume‑se tanto mais importante quanto se sabe que 60

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ca r t o g ra f a n d o o labirinto<br />

tranquilizador: o “eu” que fala nesta poesia, ass<strong>um</strong>indo<br />

os seus anseios, as suas dúvidas e as suas contradições,<br />

não é <strong>um</strong> poeta <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias seguras e contas certas: «a<br />

minha ciência é a soma/ <strong>de</strong> todas as dúvidas do mundo<br />

(MI: 22); «eu sou o cálculo imperfeito/ que leva os<br />

navegantes ao naufrágio» (CP: 57). Diga‑se, também,<br />

que não tem as contas saldadas com a poesia – longe<br />

disso –, sendo que o inverso também parece ser verda<strong>de</strong>:<br />

«Vejo‑a, à poesia bem entendido,/ passar ao largo,<br />

relutante e esquiva,/ como se <strong>um</strong> <strong>de</strong> nós estivesse/ em<br />

dívida <strong>um</strong> com o outro/ não <strong>de</strong>sejando reconhecê‑lo em<br />

público» (NhPF: 18).<br />

Nesta contagem <strong>de</strong> ausências e existências<br />

dispersas/fragmentadas e <strong>de</strong> stocks, que são, expliquemos,<br />

as artes e processos do fingimento e do artifício (e o<br />

comprazimento neles) que o poeta provê para enredar o<br />

leitor (que quanto mais procura <strong>de</strong>svendar o mistério da<br />

escrita <strong>de</strong> José Jorge Letria, mais vê multiplicarem‑se os<br />

enigmas), ass<strong>um</strong>em as operações aritméticas elementares,<br />

a invadir o discurso poético, particular importância: «A<br />

minha morte/ é a soma <strong>de</strong> mil selvagens, atordoadas,<br />

sufocantes/ vidas, repartidas entre o que sou e o que<br />

sonho» (BIV: 16).<br />

N<strong>um</strong>a poesia em que o excesso e o vazio lutam<br />

n<strong>um</strong> espaço tensivo, não surpreen<strong>de</strong> que a multiplicação<br />

e a divisão adquiram especial valor hermenêutico. Nesta<br />

estranha matemática em que multiplicar é dividir, se<br />

ass<strong>um</strong>e a busca <strong>de</strong> <strong>um</strong>a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que, por tão fugidia,<br />

obstinadamente se procura:

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