Fragmentos de um Fascínio - Estudo Geral - Universidade de Coimbra
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57 ca r t o g ra f a n d o o labirinto Nesta dialéctica, geradora de interessantes atritos sob o ponto de vista poético, se centra também um poema da colectânea Não Há Poetas Felizes, com um título tão curioso quanto preditivo: «Quando o Poeta Muda de Ramo» (NhPF: 64). A figura em causa é Arthur Rimbaud, um homem que viveu duas vidas: uma dedicada à poesia, ambicionando uma carreira literária, «extasiado com o timbre das palavras»; outra, que terá começado com a renúncia à poesia, dedicada à actividade comercial, experimentada em África, «entre negreiros e contrabandistas/ de álcool e de armas, de corpos e de luas», em que «ninguém lhe perguntava o que estava a escrever/ e o que achava da última crítica a um livro seu». Apenas a busca da fortuna interessava. Transpondo para a linguagem do poema o campo associativo do comércio, numa simplificação linguística e discursiva capaz de o evocar, o poema traduz o confronto entre duas existências díspares que vêm configurar‑se num dialogismo interior verbalmente expresso na clivagem, destramente explorada, entre a denotação e a conotação, o sentido literal e o metafórico: Não foi Rimbaud que abandonou a poesia nem foi esta que o abandonou a ele. Limitaram‑se a seguir os seus caminhos, sem compromissos nem estéreis cumplicidades, sem depósitos a prazo na conta do futuro: cada um para seu lado e foi tudo. (...) Deixando a poesia, foi como se tivesse mudado de ramo. Fechou a loja dos versos e pediu alvará urgente para o esquecimento. (NhPF: 64)
Teresa Carvalho A linguagem comum – da qual nasce a linguagem poética para se rebelar contra ela –, a dinâmica discursiva e o tom, aparentemente desprendido, não ocultam uma tensão e o vazio da poesia, ocupado, no espaço do poema, por escolhas lexicais provindas da área comercial e que o poeta investe de lirismo. Num movimento oposto ao que o ‘alvará’ evoca, vemos fechar a «loja dos versos» de Rimbaud, o poema e a própria porta (estreita) da eternidade, cujo desejo se manifesta no universo poético do autor, legitimado pela convicção de que a criação artística se nutre de uma centralidade que nenhuma outra manifestação humana possui. Nesta linha interpretativa, que procura traduzir um exercício de compreensão literária, interessante é igualmente observar que assoma na colectânea que inaugura na poesia do autor esta dialéctica conflitual, que é também a dos instantes da fala de José Jorge Letria («dividido entre sentimento e ressentimento»), a figura do contador. E refiro‑me menos a um sujeito que se narra e se (re)vela (e contar e contar‑se é mais um reforço vitalista que a aceitação de um fim, repetidamente anunciado, e a obra de homenagem a Cesário não é excepção – «total renúncia»), e mais a um sujeito que se contabiliza, a um guarda‑livros da sua própria multiplicidade : «Eu dou por mim tão longe, tão disperso/ que talvez leve o que de vida me resta ainda/ para juntar as parcelas todas com que me conto» (C:IF: 105). Desiludam‑se todos aqueles que gostam de operações de resultado claro, inequívoco – e 58
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Teresa Carvalho<br />
A linguagem com<strong>um</strong> – da qual nasce a linguagem<br />
poética para se rebelar contra ela –, a dinâmica discursiva<br />
e o tom, aparentemente <strong>de</strong>sprendido, não ocultam <strong>um</strong>a<br />
tensão e o vazio da poesia, ocupado, no espaço do poema,<br />
por escolhas lexicais provindas da área comercial e que<br />
o poeta investe <strong>de</strong> lirismo. N<strong>um</strong> movimento oposto ao<br />
que o ‘alvará’ evoca, vemos fechar a «loja dos versos»<br />
<strong>de</strong> Rimbaud, o poema e a própria porta (estreita) da<br />
eternida<strong>de</strong>, cujo <strong>de</strong>sejo se manifesta no universo poético<br />
do autor, legitimado pela convicção <strong>de</strong> que a criação<br />
artística se nutre <strong>de</strong> <strong>um</strong>a centralida<strong>de</strong> que nenh<strong>um</strong>a<br />
outra manifestação h<strong>um</strong>ana possui.<br />
Nesta linha interpretativa, que procura traduzir<br />
<strong>um</strong> exercício <strong>de</strong> compreensão literária, interessante<br />
é igualmente observar que assoma na colectânea que<br />
inaugura na poesia do autor esta dialéctica conflitual,<br />
que é também a dos instantes da fala <strong>de</strong> José Jorge<br />
Letria («dividido entre sentimento e ressentimento»),<br />
a figura do contador. E refiro‑me menos a <strong>um</strong> sujeito<br />
que se narra e se (re)vela (e contar e contar‑se é<br />
mais <strong>um</strong> reforço vitalista que a aceitação <strong>de</strong> <strong>um</strong> fim,<br />
repetidamente anunciado, e a obra <strong>de</strong> homenagem a<br />
Cesário não é excepção – «total renúncia»), e mais a<br />
<strong>um</strong> sujeito que se contabiliza, a <strong>um</strong> guarda‑livros da<br />
sua própria multiplicida<strong>de</strong> : «Eu dou por mim tão<br />
longe, tão disperso/ que talvez leve o que <strong>de</strong> vida me<br />
resta ainda/ para juntar as parcelas todas com que me<br />
conto» (C:IF: 105).<br />
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