Fragmentos de um Fascínio - Estudo Geral - Universidade de Coimbra
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num balcão de Lisboa, sem brilho e com tão pouco e duvidoso alento. (I: 122) 51 ca r t o g ra f a n d o o labirinto A «tristeza lojista» que logo se instala no poema (porque de um só se trata) – a atingir a própria camélia que tantas vezes salta da lapela de Cesário Verde para os poemas de José Jorge Letria e que, não por acaso, aqui vemos murchar – adensa‑se, ganha corpo e mata o poeta‑repórter, espectador, não da cidade de Lisboa, mas de si e do seu drama. Neste livro «é a vida/ que teima em mover‑se na arena sombria dos olhos», como um caleidoscópio tormentoso, marcado pelo pormenor sombrio carregado de profunda significação humana, para o qual concorre, sem dúvida, a carga sémica negativa com que certo vocabulário inusitado, típico das áreas lexicais da prosa e, concretamente, da esfera comercial transitam da poesia e da vida de Cesário Verde para os versos de José Jorge Letria. O conflito expresso em Cesário: Instantes da Fala, assumindo embora outros contornos, não mais deixará de estar presente na poesia do autor, de forma mais ou menos vincada, mais ou menos subtil, encoberto, por vezes, pela acção de uma poética amadurecida. Também por meio dele se há‑de ir afirmando a distância que separa o poeta, cujo ofício consiste fundamentalmente em vencer a resistência da linguagem, de um trabalhador comum (e a consciência disto mesmo), a poesia e a criação artística de outras áreas de actividade sem mistério nem enigma. «Os Dois Mallarmés» (NhPF: 68) é, a este respeito, um poema revelador. Nele se foca a distância entre o
Teresa Carvalho Mallarmé fotografado por Nadar – «um velho notário constipado, xaile sobre os ombros,/ caneta na mão e olhar sereno» – e o Mallarmé pintado a óleo por Manet, descrito como «um ser enredado/ na loucura circular das palavras absolutas». Eis o contraponto entre, por um lado, uma serenidade que a perspectiva do descanso consente, e, por outro, uma dinâmica irrefreável representada numa elaboração estilística em que, figurada ou imageticamente, estão plasmados dois dos sentidos fundamentais de toda a criação poética de José Jorge Letria: a associação entre lirismo e loucura; o da escuridão interior só iluminada pela claridade e pela aventura da poesia. Abrindo um horizonte reflexivo que será a marca indelével da obra do autor (que ganharia com a consideração da própria história da pintura: um percurso do figurativo ao abstracto), é a própria imagem de um entusiasmo fértil e violento que ressoa como um eco místico, um entusiasmo demiúrgico que dá acesso a uma experiência espiritual profunda, mais próxima do mistério da existência (e da poesia), que se confronta com a imagem de uma sombria, sossegada e respeitável velhice, senão mesmo com a imagem de uma velha rotina burocrática e seus formalismos pouco sobressaltantes: No retrato a óleo está a essência do não dito, do não escrito. Na fotografia está o senhor de posição e de idade, poeta consagrado reinventando a linguagem com o meticuloso labor de quem faz a escrita só para as contas baterem certas. 52
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Teresa Carvalho<br />
Mallarmé fotografado por Nadar – «<strong>um</strong> velho notário<br />
constipado, xaile sobre os ombros,/ caneta na mão e olhar<br />
sereno» – e o Mallarmé pintado a óleo por Manet, <strong>de</strong>scrito<br />
como «<strong>um</strong> ser enredado/ na loucura circular das palavras<br />
absolutas». Eis o contraponto entre, por <strong>um</strong> lado, <strong>um</strong>a<br />
serenida<strong>de</strong> que a perspectiva do <strong>de</strong>scanso consente, e,<br />
por outro, <strong>um</strong>a dinâmica irrefreável representada n<strong>um</strong>a<br />
elaboração estilística em que, figurada ou imageticamente,<br />
estão plasmados dois dos sentidos fundamentais <strong>de</strong> toda<br />
a criação poética <strong>de</strong> José Jorge Letria: a associação entre<br />
lirismo e loucura; o da escuridão interior só il<strong>um</strong>inada<br />
pela clarida<strong>de</strong> e pela aventura da poesia.<br />
Abrindo <strong>um</strong> horizonte reflexivo que será a<br />
marca in<strong>de</strong>lével da obra do autor (que ganharia com<br />
a consi<strong>de</strong>ração da própria história da pintura: <strong>um</strong><br />
percurso do figurativo ao abstracto), é a própria imagem<br />
<strong>de</strong> <strong>um</strong> entusiasmo fértil e violento que ressoa como <strong>um</strong><br />
eco místico, <strong>um</strong> entusiasmo <strong>de</strong>miúrgico que dá acesso a<br />
<strong>um</strong>a experiência espiritual profunda, mais próxima do<br />
mistério da existência (e da poesia), que se confronta<br />
com a imagem <strong>de</strong> <strong>um</strong>a sombria, sossegada e respeitável<br />
velhice, senão mesmo com a imagem <strong>de</strong> <strong>um</strong>a velha rotina<br />
burocrática e seus formalismos pouco sobressaltantes:<br />
No retrato a óleo está a essência<br />
do não dito, do não escrito.<br />
Na fotografia está o senhor <strong>de</strong> posição e <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>,<br />
poeta consagrado reinventando a linguagem<br />
com o meticuloso labor <strong>de</strong> quem<br />
faz a escrita só para as contas baterem certas.<br />
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