Fragmentos de um Fascínio - Estudo Geral - Universidade de Coimbra
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Teresa Carvalho retrato da sua miséria absoluta, muito mais trágica que a retratada nos tons soturnos dos quadros e das noites. O santo está de pé sobre o túmulo e tem a seus pés, na escuridão das tintas, o clamor dos animais que a sua morte deixou órfãos, minguados de pão e de afecto, para sempre. O santo está vivo no modo como olha para Deus nada dizendo, tudo calando no casulo da sua crença austera e sofrida, luz derramada sobre o lado esquerdo da tela como a água lustral de um mistério ou a placenta de um milagre, proclamando a santidade em cada gesto, a claridade em cada instante do olhar. Não disse pobremente recebidos, porque o poema de abertura, na sua sobriedade imagética, num adequado despojamento verbal que parece ter como programado limite a fala do silêncio, tem valor emotivo de puro quilate. A Palavra mede aqui a sua natural vantagem sobre a Pintura: para além do jogo de luz e sombra, ele combina e sobrepõe, num subtil entrelaçado, a vida de retratado e retratista – Zurbarán – elementos reais e metafóricos, traços simbólicos, índices de afectividade que não poderiam ser simultaneamente oferecidos ao olhar pela superfície de um quadro, pelo menos concebido em moldes tradicionais. 122
so b r e re t ra t o s (e s o b r e q u e m o s (d)e s c re v e) Avançando ligeiramente, o mesmo é dizer, voltando a página, deparamos com o retrato do escritor Somerset Maugham (Sutherland Graham) «repousando de viagens e errâncias,/ com uma sabedoria solene e vagarosa». Ele emerge de um fundo amarelo – «tanto pode ser/ o âmbar de um lugar primordial/ como a figuração de uma certa eternidade» – que ofusca o olhar. Fixemo‑lo em «Catarina de Aragão» (Michiel Sittow – imagem 5), pousada em retrato na página seguinte. Eis alguns versos que, combinando sóbria descrição e evocação histórica, compõem a figura, que parece ter um segredo a proteger, à medida que lhe devassam o íntimo: Em que pensa Catarina de Aragão quando os seus olhos se desviam da luz buscando um objecto ou um lugar que não vem nos mapas nem nos livros? O colar que lhe adorna as vestes escuras não ostenta riqueza nem poder, mais parecendo, na ilusão baça do ouro, a corda espessa de uma serena punição. E porque, de um modo geral, não são amenos os lugares que a poesia de José Jorge Letria destina ao seu leitor, à medida que avançamos neste “museu”, sentimo‑nos desconfortavelmente levados pela voragem do Tempo e da Morte. Seguimos na penumbra, por vezes com alternativas de claro‑escuro, até «Auto‑Retrato» (Anton Raphael Mengs – imagem 6), um poema também marcado por tons sombrios, em que a poesia 123
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Avançando ligeiramente, o mesmo é dizer,<br />
voltando a página, <strong>de</strong>paramos com o retrato do escritor<br />
Somerset Maugham (Sutherland Graham) «repousando<br />
<strong>de</strong> viagens e errâncias,/ com <strong>um</strong>a sabedoria solene e<br />
vagarosa». Ele emerge <strong>de</strong> <strong>um</strong> fundo amarelo – «tanto<br />
po<strong>de</strong> ser/ o âmbar <strong>de</strong> <strong>um</strong> lugar primordial/ como a<br />
figuração <strong>de</strong> <strong>um</strong>a certa eternida<strong>de</strong>» – que ofusca o olhar.<br />
Fixemo‑lo em «Catarina <strong>de</strong> Aragão» (Michiel Sittow<br />
– imagem 5), pousada em retrato na página seguinte.<br />
Eis alguns versos que, combinando sóbria <strong>de</strong>scrição e<br />
evocação histórica, compõem a figura, que parece ter<br />
<strong>um</strong> segredo a proteger, à medida que lhe <strong>de</strong>vassam o<br />
íntimo:<br />
Em que pensa Catarina <strong>de</strong> Aragão<br />
quando os seus olhos se <strong>de</strong>sviam da luz<br />
buscando <strong>um</strong> objecto ou <strong>um</strong> lugar<br />
que não vem nos mapas nem nos livros?<br />
O colar que lhe adorna as vestes escuras<br />
não ostenta riqueza nem po<strong>de</strong>r,<br />
mais parecendo, na ilusão baça do ouro,<br />
a corda espessa <strong>de</strong> <strong>um</strong>a serena punição.<br />
E porque, <strong>de</strong> <strong>um</strong> modo geral, não são amenos<br />
os lugares que a poesia <strong>de</strong> José Jorge Letria <strong>de</strong>stina ao<br />
seu leitor, à medida que avançamos neste “museu”,<br />
sentimo‑nos <strong>de</strong>sconfortavelmente levados pela voragem<br />
do Tempo e da Morte. Seguimos na pen<strong>um</strong>bra, por vezes<br />
com alternativas <strong>de</strong> claro‑escuro, até «Auto‑Retrato»<br />
(Anton Raphael Mengs – imagem 6), <strong>um</strong> poema<br />
também marcado por tons sombrios, em que a poesia<br />
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