Fragmentos de um Fascínio - Estudo Geral - Universidade de Coimbra

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14.04.2013 Views

Teresa Carvalho de Assis», Zurbarán); damas espartilhadas, outras mais livres e diurnas, envolvidas em quiméricos tons de verde («A Quimera», Dante Gabriel Rossetti) ou rodeadas de florestas que a pergunta inquietante torna ainda mais sombrias («A Imperatriz Josefina», Pierre‑Paul Prud’hon); outras, de meio corpo, vidas meias e rosto anoitecido pelas cores de uma paleta onde não há espaço para o colorismo nem para efeitos decorativos – quase só para a «tinta nocturna»; outras ainda, que ouvimos chorar em versos de timbres flébeis, a irromperem na superfície da página em pinceladas ríspidas que transportam a marca trágica de Guernica e o génio de Picasso: Porque chora esta mulher de rosto fragmentado e colorido? Será que pressente a tragédia monocolor de Guernica, o sangue e o grito, o fogo vindo do céu, a súplica vinda da terra? Será que chora por tudo aquilo que ouviu contar, por tudo aquilo que lhe roubou o sono e o brilho dos olhos? Se beleza existe neste rosto inclinado, neste olhar oblíquo e baço é no esgar da boca que se dissolve, é na aflição dos dedos que se desmente. A mulher que chora é Espanha garbosa, saborosa, arrebatada a chorar os irmãos mortos pelos irmãos na tragédia civil das baionetas trespassando os corpos fora das arenas. É Espanha desgostosa a coleccionar imagens 116

so b r e re t ra t o s (e s o b r e q u e m o s (d)e s c re v e) para a grande tela da dor de uma pátria a morrer em silêncio às portas das catedrais que Deus, inclemente, deixou de visitar. Mas existem outras, de formas mais arredondadas, que nos surgem a fazer tortilhas pela alquimia de um verbo muito hábil a explorar a influência das massas populares na pintura do muralista Diego Rivera («As Fazedoras de Tortilhas»). O universo masculino não é menos variado: senhores de colarinhos de goma, saídos de batalhas com o ar impecável que as tintas indagadoras do nosso pintor vêm matizar, se não mesmo manchar («O Duque de Wellington», Thomas Lawrence); outros, de perfil, senhores de si, «sem medo da vida e da morte» («Retrato do Duque de Albuquerque», Giovanni Battista Moroni); outros, de rostos mais surreais, sem grandes feitos no currículo, com nabos, alhos, courgettes e – arriscaria – beringelas, a fazer as vezes dos colarinhos («O Verão», Giuseppe Arcimboldo); outros ainda que o poeta, não por acaso, trata por “tu”, com tantos rostos que não parece haver pintor capaz de os retratar inteiramente. Refiro‑me, claro está, a Fernando Pessoa, que, partindo do famoso retrato de Almada Negreiros, pinta assim na tela da página 58 deste livro: Estás sentado como sempre estiveste, embora escrevesses de pé, noite fora, à maneira de Hemingway, e eu, quando falo de ti, nunca sei ao certo de quem falo 117

so b r e re t ra t o s (e s o b r e q u e m o s (d)e s c re v e)<br />

para a gran<strong>de</strong> tela da dor <strong>de</strong> <strong>um</strong>a pátria<br />

a morrer em silêncio às portas das catedrais<br />

que Deus, inclemente, <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> visitar.<br />

Mas existem outras, <strong>de</strong> formas mais arredondadas,<br />

que nos surgem a fazer tortilhas pela alquimia <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

verbo muito hábil a explorar a influência das massas<br />

populares na pintura do muralista Diego Rivera («As<br />

Fazedoras <strong>de</strong> Tortilhas»).<br />

O universo masculino não é menos variado:<br />

senhores <strong>de</strong> colarinhos <strong>de</strong> goma, saídos <strong>de</strong> batalhas<br />

com o ar impecável que as tintas indagadoras do nosso<br />

pintor vêm matizar, se não mesmo manchar («O Duque<br />

<strong>de</strong> Wellington», Thomas Lawrence); outros, <strong>de</strong> perfil,<br />

senhores <strong>de</strong> si, «sem medo da vida e da morte» («Retrato<br />

do Duque <strong>de</strong> Albuquerque», Giovanni Battista Moroni);<br />

outros, <strong>de</strong> rostos mais surreais, sem gran<strong>de</strong>s feitos no<br />

currículo, com nabos, alhos, courgettes e – arriscaria –<br />

beringelas, a fazer as vezes dos colarinhos («O Verão»,<br />

Giuseppe Arcimboldo); outros ainda que o poeta, não<br />

por acaso, trata por “tu”, com tantos rostos que não<br />

parece haver pintor capaz <strong>de</strong> os retratar inteiramente.<br />

Refiro‑me, claro está, a Fernando Pessoa, que, partindo<br />

do famoso retrato <strong>de</strong> Almada Negreiros, pinta assim na<br />

tela da página 58 <strong>de</strong>ste livro:<br />

Estás sentado como sempre estiveste,<br />

embora escrevesses <strong>de</strong> pé, noite fora,<br />

à maneira <strong>de</strong> Hemingway,<br />

e eu, quando falo <strong>de</strong> ti,<br />

nunca sei ao certo <strong>de</strong> quem falo<br />

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