Tese Delson Biondo.pdf - Universidade Federal do Paraná
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que o protagonista finge ser outro, vivencian<strong>do</strong> experiências de alteridade, o cinismo<br />
e a hipocrisia são alça<strong>do</strong>s ao primeiro plano e desponta o humor irônico.<br />
Consideremos o seguinte diálogo no qual um irrequieto e temeroso<br />
português, prisioneiro <strong>do</strong>s tabajaras, interroga o <strong>do</strong>idivanas <strong>do</strong> Albuquerque:<br />
— Como te chamas tu?<br />
— Vaz de Camões.<br />
— Sou Gil Barriga Bodibeira.<br />
— És arcabuzeiro?<br />
— Sou. Arcabuzeiro.<br />
— Eu sou besteiro.<br />
— E que fazes cá como besteiro?<br />
— Besteiro; mas faço de arcabuzeiro.<br />
— Sei. Eles. Os índios. Assam-nos? [...]<br />
— Assam quan<strong>do</strong> apetecem assa<strong>do</strong>s e cozinham quan<strong>do</strong> apetecem<br />
cozi<strong>do</strong>s. [...]<br />
— Já viste a um <strong>do</strong>s nossos a assar?<br />
— Vi. Por meu olho, que um me resta. A assar. Meteram ao gajo uma vara<br />
que entrava à boca e saía ao rabo. [...]<br />
— Catixa! E deram-te a ti, a comer?<br />
— Pois sem dúvida! Almôndegas, das sobras. [...] Deliciosas. Lambi os<br />
beiços. [...] Acabarás por apreciar. Quem sabe não me vais comer um<br />
nacozito aqui da chibata?<br />
— Gracejas. Que gracejos são de mau gosto.<br />
— De mau gosto? Não será este o parecer das raparigas por cá. Bem<br />
represento Portugal, que cá e lá não há igual. [...] Eles são sábios,<br />
Bodibeira. Os rústicos são sábios. Que o fogo limpa, o fogo purifica. [...] o<br />
fogo limpa os porcos [...] A carnita fica limpita. 145<br />
Quan<strong>do</strong> Jerónimo, além de mentir o nome, inventa para si mesmo um ofício,<br />
parece fazê-lo no intuito escarnece<strong>do</strong>r de acertar a rima com arcabuzeiro. O termo<br />
besteiro nos leva a associá-lo com besta /é/ (balestra), mas também com seu<br />
homônimo besta /ê/ (animal) e até mesmo com besteira (asneira). Quan<strong>do</strong> o solda<strong>do</strong><br />
desconfia da veracidade <strong>do</strong>s fatos, o Torto imediatamente se corrige, mas a<br />
regência <strong>do</strong> verbo emprega<strong>do</strong> (faço de) sugere, por sua vez, outras embromações<br />
(simulo, fantasio, finjo). Quan<strong>do</strong> Bodibeira acusa Jerónimo de realizar piadas de mau<br />
gosto (grosseiras ou vulgares), este ignora a reprimenda e desvia propositalmente o<br />
senti<strong>do</strong> da expressão para sabor, paladar. Por certo, também as rimas, os<br />
diminutivos, bem como a suspeita de que Jerónimo está parodian<strong>do</strong> (ou crian<strong>do</strong>)<br />
adágios, contribuem para compor e realçar o cenário da ironia.<br />
Depois de tantas demonstrações de comicidade lexical, o Torto, esse<br />
goza<strong>do</strong>r invetera<strong>do</strong>, ainda encontra espaço para uma derradeira forma de sarcasmo:<br />
negar ironicamente o emprego sistemático de trocadilhos e criticar a política e o uso<br />
145 Ibid., p. 213-214.<br />
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